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Essência da Verdade

Summary:

Camus busca conforto para seu corpo quando do término de um relacionamento.
Kanon sente os receios de uma paixão insurgente.
A essência da verdade de homens tão diferentes parece inconciliável.
Nos bares da vida ou entre encontros e desencontros o improvável por vezes acontece…

Notes:

Esta história foi originalmente publicada na plataforma spirit - de março de 2020 a janeiro de 2021 - em parceria com MorganaLFay que não possuí perfil no Ao3.

Todos os capítulos e o nome da fanfic são inspirados na letra da canção The Real Thing de Faith No More

Chapter 1: O sussurro é um grito

Chapter Text

Esquadrinharam o salão procurando a mesa o mais afastada possível.

Um deles por ser sensível ao barulho e o outro porque conseguiria colocar mais facilmente em prática suas táticas predatórias.

Sair para conversar e beber era só um pretexto para terminar a noite na cama de alguém. Seria muito mais fácil se a sua companhia de prontificasse a tal coisa, mas duvidava muito que Shaka se prestasse a esse papel.

Conhecia Shaka desde a época da faculdade, e tinha consciência que o fato de ter conseguido arrastá-lo até o bar já era uma vitória. Mesmo assim, Camus tinha plena certeza que o amigo fazia aquilo só para escarnecer dos problemas alheios. Camus acreditava piamente que Shaka, gostava de analisar a vida dos outros e destrinchar cada aspecto, dissecando e constrangendo todos ao redor com sua análise mordaz.

Mesmo que aquele ali não fosse a companhia que desejava, afinal, queria saciar seus ímpetos, não jogar conversa fora, era a única que havia sobrado.

Ao que tudo indicava, havia perdido o namorado e os amigos. A bem da verdade, os amigos nunca tinham sido dele. Todos sempre rodearam Milo, ele só estava ali para cumprir uma tabela e esse havia sido um dos milhares de motivos da dissidência entre os dois.

Camus colocou uma mecha de seus cabelos vermelhos e lisos atrás da orelha, sabia que o loiro empertigado sentado ao seu lado, provavelmente era a única exceção, pois o havia trazido de um tempo remoto, no qual ainda era inocente, e crédulo em coisas estúpidas como amor e fidelidade.

Palavras que Milo repetia à exaustão e das quais Camus detestava o significado. Sendo sincero consigo mesmo, como raramente se dava ao luxo de ser, passou a quase odiar tudo o que dizia respeito a Milo. O jeito risonho e gentil, os olhares perdidos que focavam o nada quando ele se deixava levar por algum pensamento, o sorriso sexy e arrebatador, tudo que antes fazia o ruivo delirar, com o passar do tempo começou a irritá-lo.

E não podia dizer que a culpa era sua, lógico que não. Jamais carregaria aquele peso.

A insistência de Milo pela retribuição de algo que ele sequer sabia que deveria ser obrigado a dar em troca, o fatigava diariamente. O ex-namorado tinha uma noção romântica de amor, acreditando ser algo que preenchia o peito e chegava de maneira calorosa e acolhedora. O ruivo sabia que aquele sentimento estava muito mais para uma faca dilacerando e estraçalhando a carne, fazendo micro feridas que nunca cicatrizavam, e infeccionavam na medida em que se proliferavam.

Por isso, não via sentido algum na cobrança diária e nas brigas que passaram a ser constantes e só valiam a pena quando eram seguidas de um sexo quase brutal.

Honestamente, o único pesar que Camus tinha naquela história toda, era de não ter feito sexo uma última vez antes de terminarem. Apenas isso.

— Estou esperando… — Shaka falou bebendo um gole da cerveja que o garçom tinha acabado de deixar na mesa.

— Como?

— Não se faça de desentendido que esse tipo de coisa não combina com você. — Colocou o copo na mesa e jogou alguns fios do longo cabelo para trás. — Você me trouxe até aqui dizendo que precisava conversar. Estou esperando que essa conversa seja comigo e não consigo mesmo. Caso contrário estou perdendo meu precioso tempo.

— E por acaso você tem algo mais para fazer? — Camus perguntou arrogante enquanto preenchia o copo com mais cerveja. Metade já tinha ido.

— Tenho sim meu, caro. Ao contrário de você que é uma pessoa sozinha, eu tenho um ótimo namorado me esperando em casa.

— E porque não está com ele?

— Porque você me inspira pena, Camus, apenas por isso.

O ruivo sobressaltou-se.

— Ora vamos, não faça essa cara de ofendido. Ambos sabemos que pena não é um sentimento que te deixa mortificado desde que seja a seu favor.

Camus deu um sorriso de lado e se recostou na cadeira. O loiro não estava de todo errado. Quantas vezes havia apelado para a pena alheia para conseguir o que queria? Fazer-se de vítima não era um papel ao qual tivesse asco, na verdade, só sentia repulsa quando não tinha seus desejos satisfeitos.

— Ok, Shaka. — Sorriu pequeno — Não vou me fazer de ofendido. Mas achei que ao menos apreciasse a minha companhia.

— Apreciar seria um termo um pouco pesado. Mas não desgosto. — Shaka suspirou. — Acho que o mais importante seria você gostar da sua companhia. O que não acredito que seja uma realidade.

Camus inclinou a cabeça. Sair com Shaka era o verdadeiro inferno na terra, mas era o que lhe restava.

Shaka tinha quase um dom de enxergar o âmago das pessoas, e isso era geralmente constrangedor. Camus não se abalava, havia se habituado de tal forma a mentir para si mesmo, que não importava nenhuma das palavras que fossem proferidas pelo virginiano. No momento em que saiam de sua boca, elas se perdiam em um limbo, sendo rejeitadas pela arrogância nociva e desmedida do aquariano.

— Gosto da minha companhia. Gosto tanto que acho um desperdício não compartilhar com alguém. — Sorriu de lado observando as mesas ao redor.

— Isso pra mim se chama carência afetiva e não amor próprio. Uma dose de arrogância também.

— Agora vamos falar sobre arrogância, Shaka. Sério? Vamos mesmo? — O ruivo fez um sinal pedindo outra cerveja.

— Sim… A arrogância pode ser um defeito que permeia nós dois. Mas, meu caro, eu nunca deixei de assumir nenhum dos erros que cometi. — Shaka bebeu um gole da cerveja.

— Isso quando percebe o erro. — Camus riu debochado.

— Ao menos eu percebo meus erros, Camus. Não fico mentindo pra mim mesmo e arrumando as desculpas mais esdrúxulas para esconder a merda de ser humano que me tornei.

Camus gargalhou e dobrou as mangas da camisa social até o cotovelo. Aquele lugar estava quente, para os padrões do ruivo, e por mais que estivesse acostumado ao jeito direto e jocoso de Shaka, não podia negar que estava começando a se sentir levemente irritado.

Shaka suspirou, e bebeu o restante da cerveja que tinha em seu copo fazendo uma leve careta. Já estava quente. Não era um grande fã de bebidas alcoólicas, mas naquele momento precisava de uma dose extra de qualquer coisa, bebida, fumo, o que quer que fosse, para aplicar sua última tentativa de ajudar Camus. Ele conhecia aquele homem há tempo suficiente para ter a plena certeza que nem sempre ele havia sido a pessoa tóxica e perturbada que com quem conversava. Convivia com o ruivo desde a época da faculdade e ele nunca fora do tipo sentimental, mas era leal e sincero.

Shaka conseguia enxergar o ponto exato em que Camus começou sua transformação, o momento em que decidiu depois de muito sofrer abraçar a filosofia do homem que o havia quebrado.

— Sempre com esse nariz empinado e essa aura de superioridade. — Camus falou demonstrando levemente a irritação e parando o olhar em uma mesa próxima.

Ele sorriu felinamente ao avistar um homem alto e loiro sentado em uma mesa próxima a sua. Vejam só… Essa noite não vai ser um completo desperdício, pensou enquanto salivava e comemorava internamente sua sorte.

Conhecia aquele homem de outro lugar, outra ocasião, e tinha memórias no mínimo excitantes sobre a noite na qual haviam compartilhado muito mais do que apenas um leito, tinham saciado as necessidades mais profundas e até mesmo obscuras um do outro. Acaso alguém além dos dois estivesse no quarto, poderia ter julgado degradante o que se passava ali. Camus pelo contrário, nunca se importou com um pouco de bagunça e baixeza, sendo assim, ao ver o homem alto, de costas largas e que possuía um sorriso quase cruel, se jogou nos braços dele na eterna tentativa de saciar seus desejos. O que ele nunca pareceu perceber, é que estava sempre sedento, pois não era apenas o corpo que precisava de acalento.

Dentro de sua lógica simplista, um orgasmo arrebatador era tudo que precisava para continuar vivendo. Negligenciava seu espírito, pois julgava cansativo demais aplacar sentimentos, já o corpo, esse se acalmava ao ser possuído ou possuir alguém. E o homem sentado na mesa próxima a dele, sabia muito bem como satisfazer seu corpo. O espírito que se acalmasse no leito de morte.

O encontro casual ocorreu na sua segunda semana de namoro com Milo. Talvez o ex jurasse que tinha mais do que duas semanas. O ruivo não se importava. Esse tipo de contagem era só mais uma forma de controlar e tentar romantizar uma coisa simples, a passagem do tempo.

Sinceramente, não lembrava exatamente como tudo tinha acontecido.

Por algum motivo Milo furou com ele, e ao se ver só e frustrado, avistou o belo homem encostado em um canto quase o despindo com o olhar. E como gostou daquilo! A sugestão e a expectativa. Não tinha o que reclamar do sexo com Milo. Ao menos nisso ele era bom, Camus pensou amargamente. Em seu íntimo sabia que o ex tinha milhares de qualidades, mas gostava de negar. No final das contas, Milo acreditava em lealdade, Camus em não ser pego, e assim foi.

Milo nunca descobriu sobre aquela noite, mesmo que o francês tivesse feito questão de sair do quarto sem ao menos tomar um banho. Apreciava a mistura dos cheiros que ficaram impregnados em seu corpo, e da sensação de impunidade.

Agradecia mentalmente a discrição de Saga.

O parceiro inesperado foi discreto o suficiente para não pedir seu telefone e muito menos um segundo encontro. Ambos concordavam, mesmo que ninguém tivesse dito, que aquilo tinha sido apenas uma noite. E caso Camus não estivesse tão habituado a mentir para si mesmo, poderia perceber que no fundo, não levou aquele encontro para frente pois acreditava mesmo que de sua maneira distorcida, que Milo poderia trazer a tona os sentimentos que ele havia soterrado.

No fim, percebeu que preferia manter tudo aquilo no porão de sua alma. Sentimentos eram cansativos, inibidores, quem sabe até castradores. Não estava disposto a ser podado por nada e nem ninguém.

Encontrou com Milo na manhã seguinte em uma cafeteria próxima à casa do loiro, foi recebido com o sorriso apaixonado e o abraço terno. Sentiu o estômago revirar e a culpa começar a tomar conta de sua mente, mas isso durou até ver os olhares direcionados ao até então namorado. Não precisava se preocupar, aquele ali tinha toda a atenção que precisava. Maldito exibicionista. No final das contas, Camus se orgulhava de nunca ter sido pego.

Costumava nutrir esse sentimento por uma diversidade de coisas que não eram dignas dele.

O ex poderia apontar um trilhão de motivos para o fim do relacionando, agora traição, jamais seria um. Isso fazia o ruivo sorrir internamente e se sentir mais próximo dele, o homem que o havia despedaçado, para depois ir recolocando os pedaços e construindo o quebra cabeça defeituoso que havia se tornado. Sorriu em antecipação e mordeu os lábios imaginando o que a noite esperava, quando foi tirado de seus pensamentos pela macia e naquele momento irritante voz de Shaka.

— Não é superioridade. Você sabe muito bem… — O virginiano parou de falar ao acompanhar o olhar do ruivo que estreitou os olhos. — Camus… você não vai fazer isso. — Shaka falou um pouco mais alto.

— Não sei a que você se refere. — Passou a língua levemente sobre os lábios olhando para seu “novo” objeto de desejo.

Sentiu uma espécie de desconforto emanando do homem ao sentir seus olhares. Alargou mais ainda o sorriso. Ah, querido, você vai querer jogar esse jogo? Tudo bem. Vamos lá então.

Acaso Shaka não fizesse o desserviço de ficar trazendo-o para a droga da realidade, poderia traçar sua tática para terminar a noite rebolando no colo daquele homem fenomenal. Mas Shaka, tinha que ser Shaka.

— Você sabe muito bem do que estou falando. Caralho, Camus, eu te conheço há mais de dez anos e você nem sempre foi esse maldito filha da puta, tóxico e egoísta. Será que você não consegue perceber que talvez, só talvez, tenha perdido a única pessoa com potencial para te amar, mesmo sendo essa bagunça que você é? Você está sozinho, porra. Basicamente, eu sou a última pessoa que ainda tenta ajudar você e mesmo assim, você tá mais preocupado em ter a merda de um pau enfiado no seu rabo, do que em conversar comigo e tentar parar de ser um escroto.

O ruivo olhou consternado para o "amigo", pois mesmo usando um linguajar incomum para seu vasto vocabulário, o virginiano mantinha o rosto impassível e a calma tão característica de sua personalidade. Por vezes tinha vontade de esmurrar aquela cara e destruir aquele espírito. No geral, era grato pela amizade e paciência de Shaka.

Naquele momento, queria que ele sumisse para deixar vago o lugar na mesa, que seria ocupado por outro loiro, mas um que ele sabia estar muito mais disposto a lhe proporcionar o que realmente precisava, ao menos segundo suas concepções. Além disso, não estava afim de adentrar naquele papo psicológico. Afinal, não tinha nada de errado com ele. Apenas era um homem que acreditava na satisfação dos desejos acima de todas as coisas, sua liberdade era mais preciosa que tudo.

— Shaka, não te chamei aqui para fazer terapia e muito menos para ser ofendido.

— E para o que exatamente você me chamou, Camus?

— Sinceramente? Para beber e me fazer companhia até que eu encontre alguém que queria mais do que só conversar. E nem adianta torcer o nariz. Você só está aqui porque acha que é meu terapeuta e que está muito acima de tudo e de todos.

— Ok, Camus. — Shaka fez o sinal para o garçom fechar a conta. — Você tem razão. Eu só vim com você porque achei que ainda podia encontrar algo do Camus que eu conheci. Mas acho que o Surtr conseguiu te moldar a imagem e semelhança dele. Parabéns!

Camus apertou os lábios e estreitou os olhos, já preparava uma resposta quando percebeu que Shaka estava se levantando.

— Vou pagar diretamente no caixa. Tenha uma boa vida Camus.

Ele viu o loiro abordar o garçom no meio do caminho e se encaminhar ao caixa.

Shaka lançou um olhar penalizado ao homem que sabia ser o alvo do ruivo. Alguém com um mínimo de sensibilidade conseguiria compreender todos os sentimentos expressões ali, tristeza, preocupação, raiva, carinho, decepção e medo. Sim, Shaka tinha medo por Camus, em alguns momentos, tinha medo do próprio Camus. Chegava ao ponto de não reconhecer o ruivo. Geralmente, ele parecia apenas um retrato do homem quieto, gentil e sincero que havia conhecido. Mais do que isso, Shaka ficava apreensivo pelos outros. Camus havia se tornado o tipo de pessoa que poderia ser considerada quase como nociva ao convívio e isso o desesperava, pois queria acreditar que o amigo ainda residia dentro daquele corpo que havia sido machucado física e mentalmente.

Por diversas vezes sugeriu que Camus fizesse terapia. O aquariano ria e balançava as mãos de forma vaga. Parecia querer continuar preso às suas feridas, pois só se sentia vivo quando perfurava uma delas.

Shaka fez menção a dizer algo ao estranho, que precisava admitir era extremamente bonito, mas desistiu.

Seguiu o jovem garçom até o caixa e pagou toda a conta. Saiu do bar e antes ainda olhou para a mesa, apenas para constatar que Camus parecia um animal no cio, lançando olhares cobiçosos e até mesmo incômodos ao homem que na mesma medida em que não retribuía, também não queria se deixar intimidar. Suspirou, apertando a junção entre os olhos e finalmente saindo do bar. Queria muito conseguir te ajudar, meu amigo, mas ao contrário do que você diz em seus momentos de irritação, tenho plena consciência da minha humanidade, então, não posso fazer um milagre… Ao menos não sem a sua ajuda.

Camus acompanhou até certo ponto o trajeto de Shaka, mas acabou se perdendo na visão do jovem garçom, que percebeu ser caolho e assustadoramente bonito. Vejam só… Possibilidades, sorriu maliciosamente e piscou para o rapaz. Percebeu com o canto do olho o momento em que Shaka ainda titubeou na saída do bar, mas já estava focado em seu alvo principal.

O que estava feito, estava feito. Tinha acabado de cortar o laço com o último amigo restante, conhecia o loiro o suficiente para saber disso e no fundo, talvez, era isso que buscava.

Aquela amizade pertencia a um outro tempo, a outro Camus.

O homem que havia se tornado estava mais preocupado em com quem passaria a noite, do que com os faniquitos dos outros. Observou o garçom voltar e se deter algum tempo na mesa de Saga. Elaborou sua estratégia e deu um belo sorriso que escondia as intenções mais sórdidas.

Definitivamente, não vou passar essa noite sozinho.

Chapter 2: Brilho desapercebido da vida

Chapter Text

Como se não fosse humilhante o suficiente, e de um jeito absurdamente irônico, por estar naquele bar, "Imperador", em uma data tão específica, tentando chamar a atenção de um fedelho, ainda se via um tanto intimidado pela perspectiva de ser rejeitado pelo citado jovem e oprimido pelos olhares de um certo ruivo que nem se dava ao trabalho de imprimir sutileza a sua tática.

Ser objetificado não era sempre ofensivo, por vezes fazia parte da dança da sedução, mas aquele homem, por mais belo que fosse, parecia permear cada olhar com um grau de degradação e violência sombria. Não chegava a ser revoltante, era uma impressão… A promessa de prazer e desprezo? Uma combinação que jamais lhe chamou a atenção, mas sabia ser combustível para muitos.

Fosse em outro momento Kanon tomaria alguma atitude. Tanto com relação ao “novinho” quanto ao ruivo “psicopata”.

Analisou brevemente a figura do ruivo, cabelos lisos e de tom intenso e incomum, compleição atlética e pele clara onde se destacava um rosto fascinante, másculo sem exageros, olhos de cor que não podia precisar a distância e uma boca larga, fina e cheia ao mesmo tempo em um desenho instigante que em outro momento talvez o fizesse atravessar aquele salão para tirar satisfações.

E quem sabe o que mais. Mordeu o lábio inferior.

Só que Kanon era outro depois de Isaak. Seria assim se apaixonar? Não saberia dizer. Era um homem experiente, colecionava, a seu modo, conquistas, sentia ganas de envolvimento, mas, nunca antes alguém lhe instigou os sentidos de forma assim tão desconcertante.

Nunca foi seu estilo se acovardar, ao contrário sempre era ele aquele que tomava iniciativas, o aguerrido e ousado. Não, não dessa vez. Sua atenção deveria estar voltada ao pretenso motivo que o trouxera ali, a despedida de solteiro do primo, mas não. Estava perdido em devaneios, memórias de uma noite não tão recente que terminou inesperadamente nos braços do tal garçom.

Fosse em outro momento ele provavelmente nem se alteraria com o peso daquele olhar. Mas, hoje, parecia ter voltado no tempo. Estava inseguro. Era irritante.

Esse era o momento. A insegurança e o olhar não autorizado. Torceu o nariz para suas reflexões.

No inferno abrace o capeta, não era o que diziam?

Certamente quem assim pensava jamais se viu de quatro, literal e figurativamente, para um insano e caolho Isaak.

A mera menção em pensamentos do nome já desenhava um sorriso em seu rosto. Como explicar o que aquele rapaz lhe causava? Provavelmente era sua cota de justiça cármica, os melhores orgasmos de toda sua vida e um ranço irascível. Ele conhecia bem a sensação, encontrava-se no entanto, na outra ponta da corda normalmente.

De quem solta, não de quem se enforca.

Sentiu o arrepio incômodo de estar sendo observado formigando em sua nuca. Riu sozinho e irritado.

Desde quando permitia esse tipo de opressão?

Por que a atenção daquele cara estava o incomodando tanto? Ele poderia apenas ignorar, mas sentia um ranço crescente. E algo além disso, como a previsão de algo pior. Estranhou, que sensação incomoda aquele homem lhe transmitia. Isso rendeu um pouco de curiosidade e passou a analisar disfarçadamente o outro homem que mesmo estando acompanhado não amenizava seus olhares desejosos. Era talentoso, não podia negar, em transmitir claramente seu desejo.

Talvez o incômodo fosse fruto disso. Muito desconfortável tanto a sua situação quanto a do outro cara que parecia mesmo desapontado, fatigado e… Algo que não soube nomear. Por algum motivo não acreditou que eram um casal, mas com certeza um deles estava magoado e o outro… O outro estava empenhado em descolar uma foda, não haveria como ser delicado com os olhares que vinham daquela mesa diretamente para si. Aquele homem desejava explicitamente e com violência. Poderia descrever seu menino Isaak com as mesmas palavras, mas o jovem mantinha um frescor e uma energia natural que em nada se comparava com o prenúncio de tempestade que partia do desconhecido que lhe endereçava olhares quase pornográficos.

Devia se afundar naquele ruivo empertigado? Ou, afundar um murro naquele nariz impecável. Detestava o puro, o clássico e o padrão. O que em muito se devia a sua própria aparência bela, a clássica atribuída aos deuses gregos. Sua personalidade, no entanto, sempre fora de tormento e contraponto…

Mas aquele homem não era apenas impuro, existia algo sombrio nele. Não no olhar, nele. Kanon apenas sabia.

Ponderou que o maldito modelo ruivo deveria estar o confundindo com alguém, não seria a primeira e amargamente nem a última ocasião a assim acontecer.

Descontar suas frustrações com a paixonite em que se metera no tal desconhecido não seria de presteza alguma. Tão pouco tinha qualquer gana nesse sentido.

O desgraçado Isaak o havia enfeitiçado, bruxo. A possibilidade de que aquela coleção de livros de outro jovem bruxo que o mais novo guardava quase escondendo embaixo da cama tivesse essa finalidade passou por sua cabeça. Ridículo, tornara-se um ridículo. Passou um par de anos dos 30 e nessa posição… Só podia ser castigo. Por que fora ele o escolhido? O garçom se aproxima. Sente sua presença. O magnetismo e o cheiro do rapaz. Uma mistura de sabonete, desodorante, suor e aquela cacofonia olfativa dos bares: álcool de toda qualidade e variados preços, angústia, alegria e futilidade. E sexo.

Isaak era uma personificação do sexo e do desejo.

O bar parecia uma moldura perfeita a ele, apesar do rapaz ter lhe confidenciado que sonhava em viver mais próximo do mar. Sentia-se vivo na praia. Quem resiste a um surfista?

Ele contém o sobressalto. O desgraçado, como se gelo fosse a lhe correr pelas veias o atende indiferente.

 

— Quer pedir algo ou está esperando alguém?

— Pode trazer uma dose de conhaque e uma garrafa de água…

— Sem gás, certo? — E lança um sorriso com muito mais do que duplo sentido.

— Isso.

Tenta ignorar o motivo de sua presença lá. Poderia ter comentado que sim, aguardava alguém, mas quando foi que seu raciocínio deixou de funcionar? Ah sim… Na noite em que sentira o gosto daquele Caolho pela primeira vez. Foi tudo tão rápido, tão profundo, aliás muito profundo, riu com sua lembrança. Um esbarrão, se encararam e saíram juntos do bar. Já engajados em beijos e abraços que levaram o loiro para outra dimensão. Era um pouco engraçado, mas ele sabia que não suportaria uma rejeição.

Como tinha deixado isso acontecer?

Nota que o rapaz pareceu hesitar por um segundo antes de deixar a mesa. Observa ele se afastando. Sente a saliva abundante em sua boca. Lembra das baixarias que Isaak lhe disse ao pé do ouvido, enquanto lhe mordia a nuca. Referências sórdidas a cobras caolhas. Falou sobre a altura de Kanon, o prazer de escalar seu corpo, reverenciou cada centímetro de sua pele… Deixou sua marca por cada canto do geminiano…

Respirou fundo. Precisava se acalmar. No tempo era impossível retornar. E lá estava ele naquele bar. Claramente ambos sabiam a motivação...

Observa de canto de olho a movimentação do garçom pelo salão, desenvoltura e precisão. Ele atende a todos com um charme um tanto distante. A ausência do olho esquerdo, a cicatriz antiga, tudo parece deixar sua presença ainda mais cativante. O grego quase esquece do ruivo psicopata, mas a movimentação na mesa deste atrai seu olhar e eles se encaram momentaneamente. A que tipo de jogos aquele homem se lançava? Baixou os olhos torcendo para não ter que lidar de forma mais direta com a situação. A noite seria longa. Isaak retorna depois de algum tempo com o pedido equilibrado na bandeja de alumínio.

— Um amigo pode ficar aqui com você, nessa mesa?

Kanon pensou não ter entendido a pergunta. Mas, em se tratando de Isaak, qualquer fator não usual parecia possibilidade vigorosa.

Como assim trazer outra pessoa para aquela mesa? Ele estava aguardando um amigo! Amigo não, um primo, quase irmão. Quer dizer, não era primo de verdade, mas na triangulação, já que era melhor amigo de seu primo, então… Não eram todos eles uma grande família grega naquela cidade? Pois que assim fosse! Cresceram juntos. Eram amigos, o mais importante dos títulos.

Agora o primeiro entre eles, seus primos/amigos de infância, se casaria e pela primeira vez em anos estariam todos reunidos. Incluindo aí aquele a quem aguardava. E ele havia manipulado o amigo para que o encontrasse naquele bar para poder ver o garçom de um olho só. Mesmo sabendo que o motivo do encontro era ajudá-lo a organizar a despedida de solteiro de Aiolos, já que se dependesse dos primos mais velhos acabariam em alguma casa de tolerância e esse realmente não era o perfil do noivo.

O rapaz, objeto de suas elucubrações, se distanciou antes que ele pudesse responder qualquer coisa. Acompanhou seus passos sem disfarçar dessa vez, as longas pernas metidas no jeans justo e a camiseta branca onde se via o nó do avental que lhe cobria a dianteira eram trajes simplórios, ainda assim ele era divino, um selvagem representante de divindades pagãs, caminhava com desenvoltura e o viu a falar com um homem loiro de longos cabelos lisos e olhos de cor impressionante? Ambos olharam em direção a mesa ocupada pelo ruivo insistente.

Kanon sentiu um frio correr-lhe a espinha.

Seria esse o tal amigo? Era uma figura no mínimo intrigante; seus olhares se cruzaram e ele foi o primeiro a desviar. A intensidade daquela mirada foi demais para ele.

Só então passou a dar atenção a sua taça de conhaque. Apreciando com vagar os aromas e cada camada de sabor e sensações. Sem exagero, o calor agradável acolhendo seu peito e facilitando a espera.

Estava fragilizado, pessoas que parecem ver através de sua alma não eram bem vindas em sua mesa. Pouco depois percebe o outro homem se afastando.

Se não tivesse se voltado teria visto um quase aviso da parte do loiro.

O ruivo estava sozinho, agora, na mesa estrategicamente colocada. Nada em sua postura nega que tem uma meta naquela noite.

***

Isaak acompanhou o cliente até o caixa sem tecer nenhum comentário. Checou disfarçadamente o traseiro do loiro e aprovou seus contornos com um meneio satisfeito.

A maior graça de se trabalhar no bar era essa possibilidade de acompanhar o desenrolar de enredos alheios. Dramas, comédias, romances, tragédias… Mesmo tendo sua paixão atrelada ao mar, Isaak adorava escrever e especialmente ler as nuances nos mais variados textos que a vida oferece. E o Bar… Ahn o Imperador era uma enciclopédia ilustrada.

Seu olhar cruzou com o do homem que permaneceu na mesa. Teria o ruivo piscado para ele? Interessante e repugnante em algum nível, pensou. Esse cara estava realmente disposto a sair acompanhado dali e tomar uma surra de rola, só podia! Não podia recriminar o outro, mas talvez suas táticas, já que para ele, uma abordagem direta não necessita necessariamente ser sem classe. Isaak era um rapaz inteligente e trabalhador, tesudo em primeiro lugar, mas, jamais um tosco.

Já o ruivo em questão exalava uma devassidão planejada, ao que tudo indicava, para a imundice. Não deixava de ser intrigante, mas era também um pouco triste. Lamentável um ser como aquele, exótico e presumivelmente complexo, diminuído em postura tão superficial.

Como o loiro com pinta de instrutor de yoga caiu fora, estava agora o tal ruivo disparando pelo salão seu "charme", já que chamar pelo nome correto seria de mau gosto, tirando um pouco da mística daquela noite. E o garçom percebia claramente quem era o alvo eleito como principal pelo homem agora sozinho na mesa, cercado de garrafas vazias.

Apesar de distribuir como as borrifadas de um gato suas atenções, o ruivo queria o seu homem. E isso deixava Isaak quase excitado. Quase.

O clima no bar ressentia a algo que não soube definir. Quem sabe o momento antes da batalha? E ele que não era homem de meias palavras ou conclusões pequenas, bem como, não era de tomar para si os imbróglios de terceiros. Quer dizer, ao menos não gratuitamente. Se viu cauteloso.

Tentou focar qual era exatamente o enredo que incorria entre a dupla agora desfeita. Analisou o entorno e repassou mentalmente as poucas partes da conversa delas que havia escutado. Mas, como o bar estava a cada minuto mais apinhado e o entojado do Sorento não aparecia na hora para seu turno, ainda tinha que se desdobrar entre as mesas.

Não esperava a presença de Kanon e havia combinado de rachar um carro de aplicativo com seu colega de apartamento. Estava cansado, a semana fora bem puxada, tanto na faculdade quanto no bar e no café onde trabalhava eventualmente. Ainda assim, a presença do monumento grego o agradou sobremaneira. Há poucas semanas esbarrou em Kanon, desde então estava se descobrindo cada vez mais fundo naquele corpo.

Kanon era a perdição e a pureza. Uma combinação impensável. A ironia de que fosse ele o escolhido das atenções do grego levava Isaak ao delírio. Mesmo tendo uma postura despojada, a sensação de poder, trazida por ser objeto de desejo era algo que não sentia todo tempo. Sabia de sua beleza, sabia também que nem todos estavam dispostos a um segundo olhar e ele… Não era belo em rápida inspeção.

Assim, como a vaidade que o assolava pelas atenções nada disfarçadas do mais velho. Suspirou. Kanon, que homem! Com ele quase havia se despido de sua armadura mental. No entanto, não podia se dar a esse luxo.

Durante a trepada só um podia ficar de quatro, não é?

Dessa vez não seria ele, estava decidido. Não por maldade, apenas sentia que não tinha estrutura para lidar com a intensidade do grego, isso não o impedia de aproveitar toda maravilha que aquele encontro proporciona…

Aproximou-se da mesa onde Hyoga, o amigo querido, bebericava um drink sem álcool.

— Hey Pato, preciso que libere a mesa. O bar está muito cheio tem um pessoal aguardando e a Thétis mandou te despachar. Vou te levar para outra, vamos?

O rapaz torceu o nariz. Mais essa agora? Isaak era um cara legal, mas nada com ele podia ser simples ou linear? Pensou recolhendo sua mochila e guardando nela o livro que tentava ler em meio à algazarra.

— Que mesa é essa Isaak? Não me coloque em roubadas por favor...

Disse entre dentes percebendo o sorriso no rosto do amigo.

O garçom era impagável, indecifrável. Mas sabia que a gerente do bar estava sempre de olho no amigo, por isso, não pretendia atrapalhar. O seguiu pelo salão e antes de chegar até o destino pressentiu que estava sendo levado ao encontro de alguém com quem o finlandês era envolvido. Isaak não tinha a menor noção do quanto era envolvente e carismático. Aquele homem, no entanto, supera de longe qualquer um que Hyoga já tenha tido notícia de envolvimento com o garçom. Era lindo e tinha um olhar sincero, quase condoído. Encantador. Mesmo um pouco constrangido o homem alto o recebeu com um sorriso polido e se ergueu para lhe estender a mão.

Hyoga desejou morrer um pouco, detestava estar perto de pessoas bonitas e ao lado de um homem como esse, justamente nesse momento em que refletia sobre sua própria sexualidade se sentia minúsculo e infantil.

Respirou fundo… Enquanto o outro garçom não chegasse teria que passar pela bela provação de estar na mesma mesa que aquele monumento, certamente uma conquista de Isaak, mas ainda assim, olhar não arranca pedaço e a Hyoga era a única coisa permitida por sua ligeira timidez.

***

Foram apresentados rapidamente e se olharam um pouco constrangidos. Tentaram manter uma conversa amigável, Kanon era um homem culto e educado. Pareceu satisfeito em saber que ele era amigo de Isaak da faculdade e discretamente foi angariando informações sobre o amigo de um olho só.

Kanon se alegrou com a presença do jovem estudante. Era evidente que o russo, conforme lhe disse, não tinha nenhum interesse romântico em Isaak de quem era amigo desde a infância. Sabendo que eles também dividem o pequeno apartamento; onde passou a noite com Isaak em seu primeiro encontro; viu aquele momento como uma oportunidade de saber mais sobre o garçom, por quem estava arrebatado no momento.

Não que fosse inteiramente desagradável, mas era irritantemente comum a situação de se ver como fonte de informações direta ou indireta sobre o amigo caolho e Hyoga sentia certo enfado nesse papel. Mesmo as garotas com quem já havia se envolvido sempre acabavam em algum nível o sondando para saber mais sobre Isaak.

Parecia sua sina, uma da qual a bem da verdade, não se ressentia, mas, o eterno dejavu por vezes era cansativo.

O jovem russo, nesse momento, ao menos, não via qualquer problema em fornecer as ansiadas informações ao grego. Estar apenas próximo a tão cativante homem, nesse período em que finalmente percebia o brilho antes despercebido em sua vida já era digno de nota. Não tinha nenhuma inclinação a se interessar por Kanon, romântica ou sexualmente, estava quase em trabalho de campo analisando outros homens.

Lembrou da última conversa que tivera com a ex e suspirou. Realmente não podia mais se enganar. Olhou em volta, no bar lotado sempre sua atenção, ainda que fugaz, se prendia primeiro as figuras masculinas. Como podia ter ignorado por duas décadas sua orientação sexual? Bom, em teoria ele compreendia que sexualidade era um espectro, mas na prática, quando dividiu intimidade com um homem percebeu o quanto havia sido raso com suas namoradas, o quanto nomeara de prazer e entrega tão somente respostas mecânicas de seu corpo. E então, não pode mais ignorar. Encontrou no corpo que refletia o seu a potência de afeto e plenitude. Mas claro, isso se deu da forma mais angustiante e até cômica possível, afinal, sua vida parecia toda ser um enredo mal desenvolvido.

Kanon preencheu seu copo com conhaque, ele reconheceu pelo cheiro. Bebericou para não ser deselegante, estava se esforçando para não ingerir álcool.

Percebeu um olhar um pouco diferente de Kanon para algum ponto além de si. Talvez estivesse entediando o mais velho.

Pensava em uma maneira discreta de encaminhar o rumo da conversa amigável entre eles para temas mais neutros…

Por sorte ou, quem sabe azar, ou talvez até ironia do destino nesse momento um terceiro elemento juntou-se a eles na mesa.

Chapter 3: Cerre os dentes, não faça barulho

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Atravessou a rua depois de soltar um pesado suspiro. Seria mais fácil conseguir um carro do outro lado.

Retirou o celular do bolso da calça e ficou olhando um tempo para a tela de bloqueio do aparelho. Será mesmo que eu devo ir embora? Shaka pensou desviando o olhar do celular e encarando o céu. Não estava completamente confortável com aquela decisão, pois preferia acreditar que ainda existia uma centelha do homem que conheceu no meio de toda aquela bagunça.

Ele só precisa de uma organização mental, e Shaka era bom em arrumar coisas. Mas não sabia se era possível consertar alguém que sequer sabia que estava quebrado. Longe de ser considerado um moralista conservador, não era contra a gana sexual do ruivo. Pelo contrário, achava saudável qualquer ser humano sentir desejo e vontade de satisfazê-lo. Sentia a ironia de originar do país que criou o Kamasutra e que ao mesmo tempo, colecionava histórico de abusos sexuais.

Assim, como seu temperamento normalmente fazia com que todos achassem que ele era algum tipo de celibatário, mesmo que sua aparência despertasse os mais lascivos desejos.

O prazer fazia parte da vida, não havia problema nisso. Agora, o que estava de alguma forma deslocado do normal, era a maneira como o francês enxergava sua necessidade de satisfação e acima de tudo, os motivos pelos quais ele começou a ter uma noção de mundo tão deturpada.

Shaka ainda conseguia lembrar do quieto e educado Camus que conheceu na faculdade. O homem gentil e até certo ponto prático com quem dividiu o quarto do alojamento estudantil e com quem desenvolveu uma sólida amizade. O ruivo nunca foi do tipo sentimental, mas era sincero consigo mesmo e tinha noções definidas de honestidade, fidelidade e amor. Durante muito tempo foram quase inseparáveis, até o dia em que Camus voltou de um encontro dizendo que estava apaixonado.

No primeiro momento, Shaka vibrou com e pelo amigo.

Depois de algumas semanas, passou a perceber os hematomas, o rosto antes tão bonito e vistoso, agora estava cansado e cheio de olheiras profundas, o cabelo sempre arrumado parecia sem vida, assim como o próprio Camus. Enrolou o amigo e conseguiu ser apresentado ao tal namorado, a antipatia foi instantânea.

Poderia ignorar o fato repugnante de ter sido cantado pelo tal Surtr praticamente na frente de Camus, mas era impossível não perceber o mal que aquele demônio fazia ao amigo.

O aquariano parecia viver constantemente em estado letárgico, só reagindo ao ver o namorado. Como se fosse uma espécie de droga, que causava euforia e depois fazia a pessoa cair na pior bad trip de todas. Tudo ficou mais problemático, quando passou a existir apenas a bad trip.

Shaka sentia-se culpado por ter sido menos enfático naquele momento. Conversou a exaustão com Camus e até mesmo com o insuportável Surtr, mas nada parecia fazer efeito. Acreditava piamente que deveria ter tentado mais, mesmo que não tivesse noção do que poderia ter feito.

Na época, tinha acabado de conseguir um estágio com grandes chances de efetivação e já não possuía mais tanto tempo quanto tinha no começo da faculdade.

Mesmo assim, não conseguia tirar da cabeça que parte do homem quebrado que Camus havia se transformado era culpa sua, e por isso, ainda continuava ali, olhando para o céu ao invés de chamar o motorista pelo aplicativo. Jogou alguns fios de cabelo pra trás e passou às mãos pela franja farta. “Você precisa satisfazer seus desejos, não importa como. Essa coisa de fidelidade, monogamia, amor, tudo isso é uma criação das pessoas para castrarem a si mesmas. Veja bem… se eu quiser foder com você eu vou foder e se amanhã eu achar a bunda do teu amigo aí mais gostosa que a sua, pode apostar que é nele que vou entrar”.

Shaka sentiu um arrepio assustador ao lembrar da voz detestável que aquele homem tinha.

Acompanhou uma vez um das sessões de lavagem cerebral que ele aplicava diariamente em Camus, e mesmo que tentasse intervir, só conseguia deixar o amigo bravo, e passava a noite preocupado com o que estava acontecendo com o ruivo. Aquele relacionamento tóxico e altamente prejudicial, durou mais tempo do que qualquer pessoa julgaria possível e terminou simplesmente porque Surtr alegou estar enjoado do Camus.

Semanas depois ficou sabendo que o maníaco, porque sim, aquele homem era um maníaco, aparentemente havia voltado para sua terra natal com o pretexto de resolver problemas familiares.

Shaka nunca soube de onde ele era, se tinha irmãos, ou qualquer tipo de informação pessoal. Inclusive, acreditava que o próprio Camus não soubesse de praticamente nada, uma vez que, aquela relação era ancorada em dominação e sujeição.

Shaka sabia que existiam diversas formas de se entender os termos que aplicava para definir a situação do amigo, sendo assim, adotava a significado mais humilhante para cada um deles, e dessa forma conseguia a real proporção do que se passava com o Ruivo. No fundo, sabia que não tinha culpa pela situação do amigo, e que o ruivo era uma vítima e como tal precisava de ajuda. Só não sabia mais o que fazer para que aquele francês tarado e cabeça dura percebesse isso.

Vibrou quando conheceu Milo e soube que depois de um bom tempo, o aquariano tinha aceitado começar um relacionamento sério com alguém. Gostava do grego risonho e carinhoso que tratava o ruivo com toda a pompa e circunstância de um rei. Assumiu que aquele era o começo da rendição de Camus, que todas suas feridas seriam curadas e que ele voltaria a ser uma pessoa mentalmente saudável.

Ledo engano! O que presenciou foi a aplicação prática dos ensinamentos de Surtr e o desespero de um apaixonado Milo em tentar extrair algum tipo de reciprocidade por parte do ruivo.

Olhou mais uma vez para o celular, sorriu ao ver a tela se iluminar e a foto do bloqueio aparecer. Destravou o aparelho e entrou no aplicativo para chamar um carro. Estava cansado, físico e psicologicamente. Mesmo assim, ainda se sentia inseguro em partir. Tinha plena consciência que Camus estaria praticamente atirando para todos os lados e certamente sairia daquele lugar com alguém. Além de ser muito bonito, uma beleza exótica e ímpar, o ruivo era bastante insistente e sedutor. A última parte, Shaka acreditava que acabava por atrair um público específico, com o passar do tempo o francês havia desenvolvido a habilidade de deixar claro apenas com o olhar o tipo de sexo ao qual estava interessado.

Logo, suas táticas de sedução não eram sutis e imprimiam toda a necessidade de sordidez e decadência que esperava daquele com quem fosse compartilhar a foda. Ah sim… Camus queria uma foda, Shaka pensou apertando os lábios e decidindo finalmente chamar um carro. Direcionou o corrida para sua casa, precisava de um banho e de uma boa noite de sono. O motorista demoraria cerca de dez minutos, tudo bem. A rua era movimentada e segura, recostou-se no muro de uma das casas que ficavam próximas ao bar e pacientemente aguardou o carro. Tentava se convencer que estava tomando a decisão correta, não era um homem indeciso e inseguro, muito pelo contrário. Mas não conseguia parar de se preocupar com o que sabia estar sendo encaminhado dentro daquele bar.

 

Camus se muniu do sorriso mais safado e revelador que podia adornar seu belo rosto. Então quer dizer que você conhece o menino caolho, Saga? Huuumm… Ele pensou ao perceber que o rapaz se deteve mais tempo do que seria comum para a entrega de um pedido. Acompanhou o jovem se dirigir a outra mesa, na qual um loirinho com um ar confuso estava sentado. Já havia observado o jovem em questão.

Como um animal em busca de sua presa, o francês já havia computado todas as possibilidades daquela noite. Algumas pareciam mais promissoras que outras, mas jamais poderia dizer que não existiam possibilidades latentes. Estalou a língua no céu da boca ao ver o loirinho sentar na mesa de Saga.

Gabava-se de sua percepção e não era à toa. Deteve o olhar por mais tempo no jovem que pareceu envergonhado na presença do monumento com quem tentava conversar. Saga tinha esse efeito, ao menos foi o que constatou da vez em que passaram a noite juntos. Um pouco mais novo do que estou habituado, mas não menos interessante. A juventude tem suas vantagens, não tem? Aposto que ele aguentaria uma noite toda! Camus sorriu com o pensamento bebendo o último gole de sua cerveja.

Olhou mais atento para o jovem loiro e imaginou o quão excitante seria se arremeter naquele corpo jovem e de aparência firme. Não descartava a possibilidade de levar o garçom caolho junto, afinal, ele deveria ter alguma compensação por falta daquele olho, só esperava que fosse em uma parte específica do corpo.

Construiu o estimulante quadro, no qual se via colocando o loiro de quatro, enquanto era ele próprio possuído pelo garçom caolho. Os sons dos gemidos em uníssono, o cheiro de suor e sexo, e um impassível Saga que olhava tudo enquanto se masturbava e aguardava sua vez de preencher o corpo do ruivo, enquanto seria lambido e sugado pelos outros dois. Sentiu o corpo esquentar e uma leve pulsação no baixo frente, estava um calor infernal naquele lugar… Ou era sua excitação que já estava chegando ao auge.

Estreitou os olhos ao ver o loiro corar minimamente e desviar o olhar de Saga.

Perdeu o interesse!

Entendeu aquele olhar sem jeito e a timidez, o rapaz não parecia estar completamente confortável com o que estava sentindo mediante a visão do grego, então era provável que ainda não estivesse se sentindo apropriado dentro de sua própria pele. Por alguns minutos, lembrou do ano infernal que passou até conseguir aceitar seus desejos, e agradeceu mentalmente por não ter conhecido Surtr naquela época.

Espantou o pensamento quase na velocidade da luz, afinal, não estava ali para divagações, mas sim para ações. O loirinho ficaria de fora. Camus não era nenhum criminoso, e sabia que era necessário paciência e compreensão nessas horas. Sendo assim, seria muito provável que o jovem desistisse do sexo na “hora H” e ele teria que entender. Poderia ser um puto de um tarado inconsequente, mas jamais seria um criminoso nojento.

E naquela noite, mais do em qualquer outra, ele queria alguém que estivesse seguro de si. Que aceitaria ser dominado e dominante, sem ressalvas e sem pudores. Ele queria uma foda inimaginável e não dormir de conchinha enquanto afagava os cabelos de alguém. Não hoje!

***

Sorento chegou ao seu provisório local de trabalho entediado e contrariado como sempre. Essa fase independente e desfavorecida estava se estendendo por muito mais tempo do que previu a princípio. Colocou o avental e ajeitou mais uma vez a camisa bem passada e os cabelos. Cerra os dentes, o sorriso falso praticamente parte do uniforme colado em seu rosto.

Nesse momento Thétis entra no pequeno quartinho dos funcionários. Ela fala com delicadeza, malícia e num tom ameaçador e suave. Sem dúvidas algo muito sofisticado para aquele ambiente.

— Vejo que finalmente nos deu o ar de sua graça! O Salão está tomado nessa noite. E se eu ouvir Isaak reclamando mais uma vez vou deixá-lo sem o olho que ainda tem. Quem sabe, como cão guia ele te dá alguma atenção…

— Adequadíssima em suas colocações profissionais como sempre senhorita Gerente.

A animosidade entre eles era mais teatral que factual. Com uma mesura exagerada ele a cumprimenta e segue rumo ao inevitável.

Bar lotado. Gente bêbada, ansiosa e tensão sexual, litros e litros de tensão sexual mal resolvida costurada por vozes exaltadas, risadas e brindes.

Mesmo entre aquela pequena multidão ele avista de longe o garçom que deveria substituir: Isaak.

Que pesadelo aquele homem! Cabelos bagunçados, roupa de adolescente, atitude rebelde. Uma adorável fonte de perda de tempo. Isaak parecia reparar em todo e qualquer ser vivente como potencial parceiro, a única exceção era Sorento.

Enervante. Estimulante.

No balcão o recém chegado checa os pedidos presos com fita adesiva e é cumprimentado por outro garçom que vem e vai apressado, era Io, sempre modelo de dedicação.

Percebe em um dos cantos, ótimo observatório para predadores, quase sorri, um gatíssimo ruivo solicitando a presença de garçom e sendo solenemente ignorado por Isaak que passava com uma bandeja pesadíssima. Caminha até ele com sua altivez natural. Com precisão analisa todo o contexto e o cliente sustenta seu olhar. É com um cuidadoso sorriso profissional, ainda que com espaço a interpretações sutis, que pronuncia:

— Boa noite senhor, em que posso ajudar?

 

Mas esse bar está saindo melhor que a encomenda, pensou um desejoso Camus enquanto analisava brevemente o novo garçom que parecia ter assumido o turno.

Já estava ficando puto com o que passou a denominar de “menino caolho do Saga”, já que o garçom parecia propositalmente não atender seus chamados. Odiava ser rejeitado, e sinceramente não entendia como isso poderia acontecer. Sabia muito bem de seu potencial estético, e se garantia nas demais necessidades, fossem culturais ou sexuais, mesmo que usualmente só utilizasse a última com seus parceiros.

De qualquer forma, o garçom novo parecia muito mais interessado em sua pessoa, e não podia deixar de notar que o rapaz era muito apetitoso. Poderia aplicar outros adjetivos, mais sutis, mas apetitoso era o que melhor se adequava ao que pretendia fazer com o jovem.

 

— Acredito que em muitas coisas… — Deu um sorriso sugestivo e se recostou na cadeira, deixando-se analisar pelo garçom — Mas por hora, gostaria de saber o que aquele homem está bebendo? — Fez um gesto com a cabeça indicando a mesa na qual Kanon sorria levemente para Hyoga.

 

Sorento acompanhou o sorriso, sabia muito bem o que aquele ruivo com pinta de modelo queria, e não via problema nenhum em fazer parte daquele jogo. Olhou para a direção na qual o cliente apontou e sorriu de lado.

— Olhando daqui, acredito que seja uma taça de conhaque…

— Humm… E você poderia levar outra taça até a mesa com os meus cumprimentos?

— Claro. Levo no nome de? — Aguardou o cliente se identificar.

— Camus… E você seria? — Sorriu apoiando o queixo nas mãos.

— Sorento.

— Muito… Prazer, Sorento. — Camus fez uma pausa proposital, deixando no ar uma gama possibilidades, que ambos sabiam que poderia ser aproveitada.

 

O garçom apenas sorriu e se dirigiu ao bar. Camus avaliou a silhueta do jovem que parecia mais arrumado do que aquele lugar pedia e anotou mentalmente o quão bem feito aquele traseiro ficava naquela calça de tecido leve. Aguardou com certa ansiedade a bebida chegar até a mesa de Saga, mesmo que já tivesse percebido um novo parceiro em potencial.

Sorento trocou olhares com Isaac enquanto se dirigia ao bar e teve a impressão de ter visto uma certa preocupação… Além de algo mais que não sabia precisar na face do outro. Era sempre assim. Isaac lhe dirigia o olhar mais significativo, sem no entanto concatená-lo com suas palavras. Se porventura se deixasse levar por tudo que aquele único olho verde transmitia já estaria há muito tempo liquidado, portanto, acabava por aceitar o que saia daquela boca maldosa e não daquele olhar.

Voltou do bar com o copo de conhaque e se dirigiu a mesa indicada, atento ao olhar do ruivo bonitão e ao do próprio Isaac que agora, parecia acompanhar seu trajeto com mais interesse que o usual.

— Com licença, senhor. — Falou no tom mais formal e até certo ponto charmoso que podia transmitir dentro daquela situação, em seguida colocando o copo na mesa. — Cortesia do Camus, o cavaleiro ruivo sentado naquela mesa. Imagino que já deva saber quem é.

 

Kanon suspirou contrariado e balançou a cabeça positivamente.

Olhou na direção de Camus e levantou o copo de bebida como se agradecesse, contudo, não bebeu o que lhe foi ofertado.

Hyoga pareceu um pouco confuso, olhando do novo garçom, que acabou percebendo ser muito bonito, para Kanon e depois para o ruivo assustadoramente descarado que não parava de olhar a todos como se fossem peças de carne em um açougue. Era nítido que o ruivo esperava alguma coisa que não apenas um aceno de cabeça. Seu olhar transparecia toda a decepção e acima de tudo a indignação com aquele aceno cordial e insignificante.

Kanon por sua vez, se limitou a retornar a conversa com Hyoga, ignorando a fúria no olhar do francês e a sensação de ser congelado vivo que aqueles olhos de cor indefinida transmitiam. Pegou-se imaginando que ser preso em um esquife de gelo deveria ser menos mortal que aguentar aquele olhar. Ele que se foda! Pensou contrariado e fazendo o possível para desconsiderar aquele homem.

Sorento pediu licença e se afastou daquela mesa atendendo aos demais pedidos que acabaram surgindo. Trocou um último olhar com Isaac, e teve a certeza que alguma coisa estava acontecendo.

O clima no bar estava diferente do usual, alguma coisa tão pesada pairava na atmosfera, que acreditava ser possível tocar no ar e retirar dali os pequenos retalhos que formariam a colcha daquela história. Acreditava que até o cheiro do lugar estava diferente, óbvio que podia ser só sua imaginação, mas talvez e só talvez, a batalha silenciosa que se desenrolava ali fosse responsável pelos odores que julgava ser possível sentir. Para o faro humano devia ser improvável sentir o cheiro de medo e desejo, mas Sorento tinha plena certeza que era a isso que o lugar exalava. Como se o bar tivesse virado uma selva e uma luta entre predadores em busca da dominação do mais forte estivesse ocorrendo. Welcome to the jungle, pensou sorrindo discretamente e ajeitando mais uma vez a roupa.

Não gostava daquele trabalho, mas naquela noite, estava curioso para saber quem ganharia a batalha e acima de tudo, se poderia tirar algum espólio dali.

 

Mas o que diabos esse filha da puta desgraçado está esperando para vir aqui? Camus pensou mantendo a face inabalável, mas transmitindo em seu olhar toda a irritação e frustração que a ausência de atitude do outro estava proporcionando. Já estava cansado daquele joguinho e de ficar marinando aguardando algum sinal de aproximação.

Tudo que a postura e os olhares de Saga transmitiam era o avesso do que o ruivo pretendia. Tinha sido divertido nos primeiros minutos, quase como a dança de um felino antes de atacar uma de suas pequenas presas, e assim como um felino, já estava cansado daquela brincadeira e queria partir para a vias de fato. Não era possível que Saga não estivesse lembrando dele!

Sabia que a noite havia sido memorável para os dois, além disso, tinha ciência que não era portador de uma beleza trivial, logo, se não fosse pelo sexo digno de aplausos que proporcionou ao outro, ao menos de sua aparência ele deveria lembrar.

Era um fato que o grego não parecia estar interessado no garoto loiro, esse inclusive, parecia mais entretido em tentar disfarçar seus olhares do que com alguma outra coisa. Talvez o garoto caolho fosse o culpado. Não! O Saga que conheceu não iria limitar seus movimentos por conta de um reles moleque gostoso, de forma alguma! Além disso, sempre poderiam levar o garoto com eles, não se fazia de rogado com relação a isso.

Estava até curioso para saber a história daquela cicatriz e para verificar sua teoria de compensação. Sendo assim, alguma coisa estava fora do lugar. Será que faz parte de mais um joguinho dele? Não era uma suposição impossível, afinal, poderia ter passado apenas uma noite com aquele homem, mas brincaram o suficiente um com outro para o ruivo supor que tudo não passava de mais uma artimanha de Saga.

O motivo já não importava mais!

Decidiu que já estava na hora de dar o xeque naquele jogo e empurrou a cadeira para trás começando a se levantar. Por mais que fosse possível construir uma ponte com a quantidade de garrafas que se avolumavam na mesa do francês, ele ainda se mantinha sóbrio o suficiente para se levantar sem cambalear e demonstrar alguma dignidade em seus movimentos.

Percebeu que o menino loiro arregalou os olhos, captando sua movimentação e acabou perdendo o cenho franzido de Isaac e o sorriso de escárnio de Sorento.

A única coisa que conseguiu notar, além do garoto loiro, simplesmente porque teve vontade de gargalhar da cara dele, foi o olhar que Saga lançou em direção a porta do bar.

Não pôde deixar de acompanhar aquele movimento, pois ele foi seguido do sorriso mais deslumbrante e sincero que já julgou ter visto na face de alguém.

Deteve seus movimentos e acompanhou aquele olhar, estava curioso com o que ou quem poderia ter causado aquele sorriso, e ao mirar a entrada sentiu como se uma mão invisível pressiona-se seus ombros deixando-se cair novamente na cadeira.

Sentiu os nós dos dedos doerem ao perceber que apertava o assento, e se encolhia como se fosse possível fundir-se à madeira e desaparecer mediante a camuflagem. Mas que diabos está acontecendo aqui? Pensou nervoso, enquanto percebia a boca seca e a ausência de saliva, por mais que fizesse movimentos constantes para engolir.

Começou a cogitar que talvez tivesse sido melhor ter ido embora com Shaka.

Chapter 4: Tocar nas raízes da experiência

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Minúsculas ondas se formam na superfície do líquido âmbar represado no interior da taça que fora recentemente pousada sobre a mesa. Seguem o ritmo dos dedos que Kanon tamborila sobre a madeira rústica, parte da decoração calculadamente despretensiosa do Imperador.

Ele está incomodado.

Vê os imensos e claros olhos azuis de Hyoga observando atentamente todo o entorno. É provável que o jovem também tenha notado a mudança.

Com a chegada da taça de conhaque, uma mensagem bem mais direta havia sido lançada pelo ruivo psicopata, que agora tinha nome. A estranha sensação de já ter escutado aquele nome em algum lugar permanece em Kanon como a dor de ter um fio de cabelo arrancado repentinamente. Aguda, chata.

Ele ergueu a taça ao homem que a havia enviado, um gesto polido de gratidão.

Acaso estivesse aceitando o convite não tão velado teria convidado o homem para sua mesa, ou partido para a do outro.

Meia noite, na madrugada a maior parte dos animais noturnos se sente confiante. Olhou discretamente o celular: Nenhuma mensagem. Demorou o olhar na tela do aparelho, atinando a possibilidade de enviar uma mensagem.

Sua atenção foi atraída pela ligeira mudança na postura de Hyoga por uma fração de segundo, mas antes que pudesse processar a informação da mudança repentina nas feições do rapaz a movimentação na entrada do bar cativou completamente suas atenções.

No mesmo instante sua tensão se esvaiu e assim que encontrou os olhos do amigo um espontâneo sorriso aflorou em seu rosto. Kanon sentiu finalmente acolhimento e tranquilidade. Ele se levantou para receber o abraço familiar.

No exato momento em que Camus se deixava cair como um corpo sem vida em sua própria cadeira. A única pessoa que poderia ter testemunhado essa sincronia estava perdida em encantamento.

Hyoga olhava para o recém chegado sem conseguir disfarçar seu fascínio.

***

Desencostou do muro e olhou a tela do aparelho verificando a localização do motorista. A proximidade do carro que aparecia no mapa era proporcional a chegada do momento no qual deveria tomar a decisão final. Voltava para o bar e arrastava Camus de lá, ou mergulhava no descanso merecido e deixava o amigo tomar mais uma vez o caminho da esbórnia.

Provavelmente, a única coisa que ainda o prendia naquele senso de obrigatoriedade para com o ruivo, era a culpa que sentia, mesmo que racionalmente soubesse que não era responsável por nenhuma das decisões do francês e muito menos pelos caminhos que ele havia seguido até ali.

Olhou para a porta do bar maldizendo o momento em que aceitou ir até aquele lugar. Poderia só não ter se envolvido e se encaminhado direto para casa, para os braços daquele que fazia com que deixasse de sentir a necessidade de organizar tudo e todos. Ao lado dele, podia expor a zona que escondia em seu cerne. Olhou uma última vez para a porta do bar antes de desviar sua atenção para a buzina do carro preto que estava encostando perto dele. Conferiu a placa e o modelo do automóvel. Segurou na maçaneta e deu um último suspiro desanimado.

É agora ou nunca!

— Algum problema, senhor? — O motorista abriu a janela e falou olhando sem jeito para o homem que segurava a maçaneta do carro enquanto olhava apreensivo para o bar. — O senhor precisa voltar lá? — Apontou para a entrada do Imperador.

— Não! — Shaka falou decidido. — Não preciso.

Ele entrou na parte de trás do carro e encostou a cabeça pesadamente no estofado. Percebeu que o motorista o encarava pelo retrovisor e sorriu minimamente tentando demonstrar que estava tudo bem. Vai ficar tudo bem, pensou tentando se convencer daquilo.

Não tinha mais nada que pudesse fazer. A realidade daquela constatação o atingiu em cheio no momento em que ao olhar pela janela do carro, percebeu a silhueta do homem que poderia tornar aquela noite ainda mais caótica, deslocando-se para dentro do famigerado bar.

Esse não pode ser o único bar da região, não é possível! Shaka pensou em um misto de desespero e graça, tendo a certeza que não conseguiria pegar no sono, pois ficaria atormentado com a situação do ruivo maluco que queria muito poder voltar a chamar de “grande amigo”. Cogitou a ideia de cancelar a corrida quando ao mesmo tempo em que ouviu o motorista perguntar se poderia iniciar o trajeto, recebeu uma mensagem em seu celular.

Olhou o aparelho com certa apreensão, crendo que seria a mensagem de um desesperado Camus em busca de resgate ou no mínimo cobertura.

Em um milésimo de segundos criou todo um panorama, no qual entrava o mais discretamente possível no bar e salvava o ruivo da situação no mínimo embaraçosa que certamente iria de desenrolar caso ele permanecesse ali.

Foi com grata surpresa e um sorriso sacana, devidamente disfarçado pela mão que o loiro colocou na frente da boca, que notou não ser do francês a mensagem que lia naquele momento. Sentiu o rosto esquentar e podia jurar que tinha ficado vermelho com o conteúdo da mensagem. Ouviu mais uma vez a voz do motorista mas não soube precisar o que ele havia dito, pigarreou e percebeu o olhar do outro pelo retrovisor.

— Será que poderíamos mudar o trajeto? Acabei de lembrar que preciso ir a outro lugar. — Shaka falou em um tom que misturava alívio e ansiedade, caso isso fosse possível.

O motorista estava achando aquele loiro cabeludo com pinta de gringo um pouco estranho, mas achou melhor não contrariar. Não queria levar uma nota negativa no final das contas, e o novo trajeto ainda estava dentro da rota que gostava de seguir. Reajustaram o caminho e o indiano finalmente relaxou.

Sinto muito, Camus, você está por conta própria — pensou fechando os olhos e torcendo para que suas previsões não se concretizassem.

***

Alguns encontros parecem ter a capacidade de transportar as pessoas no tempo.

O abraço entre estes amigos resplandecia a infância e adolescência bem vividas. Em uma vizinhança onde todos eram família, ainda que de consideração. A certeza de se saber parte de algo maior. Gregos barulhentos e intensos. É um estereótipo, mas tem seu pé na realidade, ao menos da família de Kanon.

Ele e o irmão cresceram em uma vizinhança simples, calorosa. Brincando na rua. Jogando e brigando na rua, com outros garotos e entre si.

Os amigos mais próximos eram os primos Aiolos, da mesma idade dos gêmeos e Aiolia, alguns anos mais novo. Estes tinham também outros primos que fechavam a turma. Eram Kardia, o mais velho entre eles, e Milo, que tinha mais ou menos a idade de Aiolia. Kanon sempre gostou da companhia dos mais novos. E em pensar que o baixinho e mirrado Milo tinha se tornado o homem à sua frente ele sentia grande orgulho e satisfação.

— Mas está sempre atrasado esse moleque! — falou bagunçando os cabelos do mais novo assim que terminaram o longo abraço.

— Kanon! Sabe quanto tempo eu levei para arrumar o cabelo! — riu o recém chegado ajeitando novamente os cachos.

Ainda sorrindo Milo desviou o olhar de Kanon e viu que ele possuía um acompanhante na mesa. Alargou o sorriso ao perceber a preciosidade de imensos olhos azuis claros e cabelos loiros tão lisos que pareciam os fios de ouro daquele conto de fadas que ouviu durante a infância. De acordo com a história, uma camponesa presa em uma artimanha do próprio pai precisava transformar palha em finos fios de ouro. Tudo terminava com um nome, e o tal Rumpelstiltskin muito indignado. Definitivamente, se a moça da história tivesse o cabelo daquele rapaz, não teria passado por metade daqueles problemas.

Aquela figura inteira parecia ter saído de algum tipo de conto folclórico, dada a beleza e acima de tudo, a quase ingenuidade que conseguia ver naquele olhar. De certo, Milo estava confundindo a incerteza e o encantamento que perpassa os olhos do russo com ingenuidade. Não havia mal naquilo. A sua maneira, as duas figuras que agora se encaravam em um misto de deslumbramento e curiosidade, possuíam sua dose de inocência, mesmo que a idade indicasse que já não havia mais espaço para tal sentimento em suas vidas.

— Kanon, meu primo, você não vai me apresentar o seu amigo?

— Lógico! Esse é o Hyoga. Ele é amigo do Isaak, que é… Meu amigo também.

Milo lançou um olhar divertido a um constrangido Kanon, que pareceu escolher milimetricamente as palavras para definir sua relação com o tal Isaak. Milo ainda não sabia de quem se tratava, mas já tinha grandes expectativas a julgar pela cara que Kanon fazia. Era quase impossível ver aquele homem sem jeito e deslocado. Esse Isaak, hein… Pensou ainda sorrindo e contemplando os olhos azuis de Hyoga.

Sentou ao lado do mais jovem, fazendo um risonho Kanon pular uma cadeira e controlar seus comentários mediante o nítido interesse de Milo no russo. Pelo que podia perceber era evidente que o sentimento era recíproco.

— Muito prazer, Hyoga! — Milo estendeu as mãos para cumprimentar o rapaz.

— Igualmente. — O mais novo respondeu com um sorriso que até o momento Kanon não tinha visto e que foi minuciosamente analisado por um atento Milo.

— Agora que já estão apresentados, vamos ao que interessa: Milo… Eu não faço a mais vaga ideia de como montar uma despedida de solteiro.

— Oi? - Milo encarou Kanon por alguns segundos. — Ah sim… A despedida do Aiolos… Tinha até esquecido.

E por alguns minutos esqueceu mesmo, pois estava focado em algo, ou melhor, alguém muito mais interessante do que a última farra antes do casório do primo. Não era todo dia que encontrava um ser saído de contos de fadas andando por aí. Alguma coisa naquele rapaz atraía Milo de forma arrebatadora e não era apenas a aparência. Tinha algo mais, só não sabia precisar exatamente o que era.

— Milo… Milo… — Kanon balançou a cabeça negativamente.

— Algum parente de vocês vai casar? — Hyoga perguntou bebendo o último gole de sua soda italiana, ligeiramente batizada por Kanon com conhaque.

— Sim… — Milo adiantou em responder — Um dos meus primos mais velhos e decidimos ajudar a organizar a festa de despedida de solteiro.

— Muito gentil da parte de vocês. — Hyoga colocou o copo de lado e virou o corpo levemente na direção do escorpiano.

Kanon notou a mudança na postura do jovem e a quase automática sincronia entre os dois. Antes, Hyoga parecia tímido e confuso, agora, ele ainda carregava os traços da confusão no olhar, mas estava mais à vontade e relaxado.

— Gentileza não tem nada a ver com isso, só não queremos acabar em alguma casa de tolerância de segunda mão. — Milo gargalhou chamando a atenção de algumas pessoas que estavam perto e batendo as mãos na perna de Hyoga.

Por mais que não admitisse, o grego mais jovem não podia esconder alguns dos aspectos do estereótipo que cercava sua ascendência.

Milo falava alto, e como falava, era risonho, expansivo e tinha a gargalhada mais gostosa da qual se tinha notícia. E acabava atraindo os olhares não por ser incômodo ou inconveniente, mas porque todos acabavam se contagiando com o timbre daquela voz e com o homem, que além de muito bonito e descaradamente gostoso, ainda era portador de uma risada altamente contagiante.

Hyoga percebeu que o toque em sua perna não teve nenhuma segunda intenção ou malícia, estava claro que era muito mais um ato automático mediante a intensidade da gargalhada. Contudo, não pode deixar de sentir um arrepio pelo corpo e a vontade de que aquela mão permanecesse ali, mesmo com o findar daquele riso.

Milo por sua vez, tinha mesmo o hábito de tocar as pessoas em seus rompantes, mas contraiu o ímpeto de apertar, mesmo que de leve, a coxa grossa na qual havia depositado a mão. Ele deve fazer algum tipo de exercício, ninguém nasce com pernas assim! Balançou a cabeça ainda rindo, dessa vez ria de seu pensamento e tirou as mãos de Hyoga. O que considerou rapidamente uma lástima, mas não tinha muito o que ser feito naquele momento. Não queria passar a impressão de algum tipo de assediador, mesmo que tivesse a leve sensação que o rapaz não o consideraria daquela forma. Era melhor prevenir.

— Kanon, meu velho, eu também não faço ideia do que podemos fazer e… Você não vai beber isso aí não? — Interrompeu a frase ao perceber uma taça cheia no meio da mesa.

Kanon franziu o cenho olhando para o copo e lembrando brevemente do desconforto de minutos atrás. Acabou percebendo que o ruivo tinha aquietado, por algum motivo, não estava mais sentindo o olhar pétreo em sua nuca e muito menos a intenção predatória do outro.

Parecia inclusive, que a atmosfera pesada havia se dissipado. Cogitou olhar na direção da mesa do ruivo psicopata, mas preferiu não alimentar aquela brasa já que ela parecia extinta.

Hyoga por sua vez, olhou com o canto do olho para a mesa do Ruivo e franziu o cenho, o homem estava completamente mudado, como se tivesse visto um fantasma ou algo do tipo. Não pôde deixar de ficar curioso sobre o motivo daquela mudança, o homem que antes parecia o maior predador da selva, agora se encolhia como se estivesse na base da cadeia alimentar. Por alguns segundos achou que ele pretendia criar uma simbiose com a cadeira e fazer parte da decoração rústica do Imperador. Mesmo que aquele homem não tivesse nada de rústico.

Foi tirado de seus pensamentos ao identificar no meio da conversa dos dois gregos com quem compartilhava a mesa, uma possível curiosidade da parte de Milo ao saber que a taça havia sido enviada por alguém que estava sentado em algum canto do salão.

A fase de descobertas deixa qualquer um inseguro, e por isso, mesmo sabendo de todas suas qualidades, Hyoga decidiu mudar o rumo daquele diálogo. Estava satisfeito com a atenção que lhe era dispensada e não queria dividi-la com o ruivo tarado.

 

Camus não sabia se batia com a cabeça na parede intencionando acordar do pesadelo na qual estava inserido, ou se soltava a mão da cadeira e ligava para Shaka pedindo socorro. Tinha certeza que o indiano viria em seu auxílio, mesmo depois do desentendimento, não seria a primeira vez.

Não conseguia acreditar na situação pela qual estava passando, e ao mesmo tempo sentia como se tudo aquilo fosse uma parcela do seu castigo. Quem sabe já estivesse morto, e em um dos círculos do inferno, porque certamente aquele era seu inferno pessoal. Em que momento Milo conheceu Saga? Quando tinham ficado amigos e acima de tudo, porque o estava chamando de Kanon?

Milo possuía uma das vozes mais potentes que já havia ouvido. Ele não gritava, tinha a voz naturalmente alta. Talvez treinada pelos anos na convivência com a barulhenta família grega de que tanto se orgulhava. Assim como um professor, que desenvolve o hábito de falar alto para se fazer ouvir em toda a sala de aula, o grego aprendeu a impor a voz para ser ouvido no meio da família, já que era um dos menores e mais novos.

O tempo fez bem a Milo, Camus podia atestar pelas fotos. Não que fosse feio, muito pelo contrário. Não existiu um momento na vida daquele homem em que tal adjetivo tivesse se aplicado a ele, e o ruivo admitia isso com certa irritação. Milo criança apenas era pequeno e mirrado, mas simplesmente adorável. Os belos olhos azuis e o rosto adornado pelo cabelo cacheado que possuía um corte curto e por consequência acaba ficando mais modelado, dava ares quase angelicais a levada criança que Milo era. Sendo assim, não tinha sido difícil, mesmo com o barulho no ambiente ouvir o grego chamando o homem que acreditava se chamar Saga por outro nome.

Será que ele me deu o nome errado? Não… Não é possível. Outras pessoas também o chamaram de Saga naquele dia. Ele pensou, sentindo o estômago embrulhar e uma vontade absurda de despejar todo o conteúdo de sua barriga, que naquele momento era composto de litros e mais litros de cerveja, no banheiro mais próximo.

Contudo, tinha medo de produzir o mínimo movimento e chamar a atenção para sua mesa. Ao contrário de minutos atrás quando sua intenção era ser notado, nesse momento ele queria ser completamente esquecido.

Em hipótese alguma Milo poderia vê-lo e aquele homem sendo Saga ou não, jamais deveria sonhar que ele era o ex namorado do loiro risonho que parecia jogar parte de seu charme no loirinho confuso.

Camus apertou mais ainda a cadeira e se sentiu emburrar. Quase uma reação infantil.

A outra mesa parecia algum tipo de propaganda de televisão, com homem loiro e gostoso por metro quadrado. Isso não era justo! Ele estava ali, sozinho, levemente alcoolizado, suando em parte pelo nervoso, e pelo maldito calor daquele lugar e tentando a todo custo manter o conteúdo do estômago no lugar.

Milo o atormentava mesmo após o término.

Porque diabos ele veio logo aqui? Merda… Ele não pode descobrir… Nunca. Camus teve uma sensação de refluxo, mas engoliu o amargor que lhe veio à boca. Mais do que o enjoo causado pela bebida, percebeu ser reflexo de seu medo de ser pego.

A ideia de Milo descobrir sua traição, o incomodava mais do que julgou ser possível. O que não fazia nenhum sentido, afinal, já não eram mais um casal há mais de três meses, talvez dois, quase certeza que eram três. Isso não importava!

A questão era que aquele sentimento de desespero, vergonha, culpa e tristeza… Sim, tristeza, que estava sentido não devia estar ali.

Transou com Saga porque havia sentido vontade, e havia ficado bem depois disso. Talvez uma leve culpa no começo, mas depois esqueceu daquilo. Milo nunca soube e nunca saberia. E se soubesse, qual seria o problema? Camus pensou e teve como resposta uma pontada no peito. Não amava Milo, nunca amou... Mas, percebeu que se importava mais do que acreditou ser possível com a opinião do outro. Mesmo depois de tudo, aquele maldito e tesudo grego o despertava os sentimentos mais conflitantes. E alguns desses sentimentos haviam sido os responsáveis pelo término.

Não queria se deixar levar, não se permitia sentir além do que o corpo poderia alcançar e por isso, a aura de amor e aconchego que o loiro exalava o deixava doente.

Aceitou namorar com Milo, pois ele trazia a tona o Camus que havia sido um dia. E exatamente por isso passou a quase odiar aquele homem e se empenhar constantemente na tarefa de despertar o desprezo e o asco por parte dele. No fim, não conseguiu que o grego desenvolvesse aqueles sentimentos, apenas pesar, solidão e desistência. Já era o bastante. Soterrou o que sentia e seguiu.

Não queria nada mais além do corpo, e do que ele pudesse proporcionar e nesse momento, via suas convicções sendo abaladas pela mera possibilidade daquele homem descobrir sua traição.

Agora, que já não eram mais nada um para o outro. Ainda sim, queria continuar impune. Alguns olhares são mais fáceis de suportar do que outros. Estava quase apostando sua vida que aquilo ali era algum tipo de penitência, um castigo por todo mal que já havia feito o outro passar.

“Quase tudo nessa vida é castigo!” Lembrou da voz calma, macia e irritante de Shaka proferindo a frase. Maldito indiano! Camus pensou, finalmente criando coragem para se mover e tirando o celular do bolso.

Desbloqueou o aparelho e foi para a discagem rápida escolhendo o número do amigo. O telefone chamou diversas vezes e caiu na caixa postal. Seu desespero aumentou. Shaka jamais deixaria de atende-lo só por pirraça. Camus faria isso, o indiano não.

Tentou mais algumas vezes e obteve o mesmo resultado. Estava preparado para mandar uma mensagem quando ouviu uma voz perto de si e sobressaltou-se.

— Por acaso o senhor precisa de ajuda? — Sorento estava em frente a mesa e exibia um olhar que mesclava sadismo soft e divertimento.

— Preciso! Como saio daqui sem ser visto?

Chapter 5: Valorize a certeza do agora

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Sorento estreitou os olhos e alargou o sorriso.

É esse o caso, então? Pensou olhando rapidamente para a mesa na qual mais um homem gatíssimo completava o time de loiros sarados e risonhos que conversavam animadamente.

Isaak parecia nitidamente contrariado e Sorento acreditava que a culpa podia ser de um certo copo de conhaque ofertado.

Ignorou o fugaz desconforto que se insinuou em seu peito. Poucas vezes havia presenciado o olhar protetor, quase possessivo que o outro lançava ao homem alto e elegante que agora estava sentado de frente para os dois mais novos. Só falta ele mijar no cara para demarcar território… se bem que existem formas mais higiênicas e prazerosas de fazer isso.

 

— Não se preocupe senhor... Camus… Vou dar um jeito para que a sua presença seja ignorada. — Sorento falou melodiosamente, enquanto prostrava-se na frente do cliente, de forma que a visão do salão fosse ocultada.

Olhou mais uma vez para a mesa e buscou o olhar de Isaac. Ele já parecia estar se preparando para terminar o turno. No fim, seria mais fácil manter o ruivo incólume do que havia imaginado.

Afundado na cadeira o francês parecia muito mais jovem e um arremedo do homem que há pouco tempo dominava aquela ambiente com sua gulosa altivez.

***

Isaak quase bufou de alívio enquanto se encaminha para a cozinha equilibrando um cem número de copos usados e guardanapos sujos em sua bandeja. Esteve pelo menos na última meia hora ensaiando para se desvencilhar do papel de garçom dezenas de vezes e era a todo tempo solicitado por mais algum cliente. O Imperador estava se superando naquela noite. Salão lotado, um mar de vozes.

Como Sorento já havia chegado, Io e Bian não pararam nem por um minuto e até mesmo Thétis estava atendendo algumas solicitações, ele não teve uma chance real de abandonar aquele barco, não até agora.

Em algum momento havia decidido que não deixaria Kanon avulso naquela noite. Um desagradável aperto no peito era o sinal de que estava incomodado pelo contexto geral das atitudes do ruivo para com seu homem. E o movimento de oferecer uma bebida tinha sido a gota de água! Evitou a mesa para não ter que ser ele a levar o intento a seu…

O que Kanon era seu mesmo? Não vinha ao caso, de qualquer forma. E então Sorento… Ãhn… Sempre o ranhento Sorento todo perfeitinho fizera as vezes de cupido etílico!

Passou rápido para a parte interna sem dar chance ao Krishna, o barman, de lhe empurrar mais nenhum pedido e deslizou rumo ao quartinho dos funcionários. Ignorando o olhar suplicante que Kasa lhe lançou da cozinha.

Sorento apresentou na mesa a conta e a máquina de cobrança oferecendo a Camus a opção de crédito ou débito sem se abalar pela assustadora palidez do ruivo, nas poucas palavras ditas pôde finalmente detectar um sotaque agradável na entonação do homem que há pouco tempo exalava intenções sexuais por todo ambiente, mas, que nesse momento apenas demonstrava estar interessado em partir o quanto antes.

— Em alguns minutos retorno para acompanhá-lo, por gentileza esteja preparado.

Disse retirando parte das garrafas vazias e planejando seus próximos movimentos.

***

Aparentemente a mesa estava bem entrosada.

Eles demoraram alguns segundos para perceber a presença de Isaak. Agora livre do avental e vestindo suas roupas de sempre. Camisetas de bandas obscuras e jeans puído e justíssimo. Kanon e Hyoga riam como se conhecessem desde sempre e o elo principal na mesa era o recém chegado. Um ser resplandecente, ponderou, o tipo de homem sol.

O rosto de Kanon se iluminou quando se deu conta de que Isaak finalmente tinha encerrado o turno. Ele trazia mais um copo de soda italiana para Hyoga, sua forma de se desculpar pelo que viria, estava decidido a estreitar sua ligação com o geminiano, e o amigo teria que entender. Cumprimentou a todos de forma charmosa.

Hyoga teve a impressão de que a noite ainda estava longe de acabar. Apesar de toda tensão e esquisitice havia, no fim das contas, inesperadamente se divertido nesse tempo em que estava na companhia de Kanon e Milo. Descobriu que ambos tinham primos em comum e que um destes se casaria em breve. Achava interessante quando encontrava outras pessoas que mantinham contato com os amigos de longa data, como ele fazia com Isaak, por exemplo.

Sondou o primo de Kanon e não encontrou nada que desabonasse, era a bem da verdade uma pessoa bem agradável, de conversa fácil que demonstra interesse no que era dito pelos outros e não deixava a mesa cair em nenhum silêncio constrangedor.

Belo contraponto a todos os outros, não que Kanon ou Hyoga tivessem temperamentos sombrios, apenas não eram assim tão expansivos. E ele, Isaak, passava a maior parte do tempo em provocações ligeiras e ironias, nem sempre percebidas por todos, portanto, uma conversa leve era de certa forma um refresco para sua rotina.

O fluxo melodioso de Sorento pelo salão, atendendo a todos com distanciamento e elegância, ele se aproximando com a máquina de cobrança da mesa do ruivo. Isaak suprimiu uma careta, o garçom arrumadinho conseguia o irritar sem na verdade fazer nada além de existir, isso não era um bom sinal, bem sabia. A movimentação fluída do flautista entre as mesas funcionou como uma pontada aguda nas suas entranhas. Descansou seu olhar sobre o geminiano. Ainda que a ligação deles fosse potente e erótica, Kanon lhe transmitia uma tranquilidade que desconhecia até então.

Lhe ocorreu que o ideal talvez fosse mesmo mudar de ambiente, e assim se concentrar somente no seu grego.

— Vamos para outro lugar? — propôs sem aviso.

Os outros homens na mesa aceitaram sem grandes embates.

Apenas Hyoga parecia reticente, refletiu que mesmo encantado o ideal era se recolher, conforme seu plano inicial.

— Isaak, este é Milo, meu amigo, quase primo. — disse Kanon, ele não estranhava nenhuma atitude do jovem finlandês, afinal depois de horas pegando no pesado qualquer um desejaria sumir o quanto antes do local de trabalho — Precisamos organizar uma despedida de solteiro.

— Kanon, você está me apresentando pela segunda vez já! — riu o grego de olhos azuis. O restante da mesa o acompanhou. Milo pegou o copo de Hyoga finalizando o conteúdo, o rapaz apertou os olhos sem esconder sua satisfação.

Com um gesto de mão chamou um garçom e logo o solicito Io estava na frente deles.

— Boa noite, posso ajudá-los em algo mais rapazes?

Isaak cobriu a boca para não rir da atitude prestativa. O jovem apenas deu de ombros e piscou para Hyoga. Milo tomou a frente mais uma vez:

— Estamos bem servidos, pode fechar a conta por gentileza. — ele disse cordial, mas suas palavras foram acompanhadas por uma nota de advertência muito sutil.

Hyoga mordeu o lábio para nada comentar, estava corado e seus olhos traem seu divertimento. Io concorda e se afasta prometendo retornar em seguida. Antes que chegue ao caixa, Sorento passa por ele e verifica discretamente a comanda em suas mãos.

Seguindo rumo a mesa de Camus. Assim que viu a aproximação do garçom o ruivo virou o último gole de cerveja engolindo o líquido dourado como se fosse uma grande pedra.

— Os cavalheiros da mesa para onde o Senhor enviou a taça de conhaque estão de saída. É mais prudente, que não deixe o Imperador ao mesmo tempo, tendo em vista que deseja passar despercebido. Quer conhecer a cozinha?

A cada vez que o garçom pronunciava a palavra “senhor” Camus sentia seu estômago se contorcer, pela ironia empregada pelo rapaz e também por estar realmente incomodado com a maneira como a presença de Milo o tinha afetado, desestabilizando uma noite de apostas aparentemente certeiras. Apenas concordou com a cabeça e acompanhou o rapaz, vendo que outro garçom, no qual nem conseguiu reparar, estava na mesa do sósia de Saga acertando a conta. Seu Ex parecia entretido em uma conversa bem animada, recheada de olhares e toques sutis, com o loirinho ninfeto.

Por uma fração de segundo percebeu que Milo levantava os olhos e se virou bruscamente apressando o passo.

***

Estranho…— Milo teve a impressão de ver um vulto de vasta cabeleira ruiva passar em velocidade recorde em direção a outra parte do bar. — Esse tom de ruivo… Não pode ser! — pensou.

Ficou curioso, pois lembrava que o doador de conhaque era um ruivo, mas não chegou a descobrir quem era. Sentiu um sinal de alerta tocando em sua mente e teve o ímpeto de olhar com mais atenção, contudo, foi impedido ao ouvir a voz de Hyoga chamando seu nome e ao sentir um leve toque no braço. Ao que parece iriam para outro lugar, só não sabia para onde. E no fundo não se importava muito, desde que o aquele rapaz encantador fosse. Rapidamente o garçom voltou com a máquina de cartão e os três fizeram menção de pagar a conta, sendo Milo e Hyoga vencidos pela insistência de Kanon. O russo ainda tentou argumentar, mas foi detido por uma piscadela marota de Milo.

— Deixa ele… — Milo sussurrou no ouvido de Hyoga — Ele quer sair logo daqui…

Hyoga sentiu os pêlos da nuca eriçarem ao sentir o hálito do grego em seu pescoço.

Deixo tudo o que você quiser… Quando quiser… — Pensou mudando de posição na cadeira colocando a mochila no colo. Milo percebeu a reação do rapaz e sorriu internamente.

***

Seguindo o garçom por um corredor que não havia notado antes Camus acalmava as batidas de seu coração com respirações curtas. Inspirava e expirava pequenas quantidades de aviltamento. Protegido, ele começou a raciocinar que possivelmente estava exagerando.

Não devia nada a Milo! Nem antes e muito menos agora.

Mas sentia o calor da humilhação ardendo em suas faces costumeiramente pálidas. Um pouco recuperado voltou a analisar a figura do garçom, Sorento, um nome interessante para um rapaz interessante. Não parecia italiano, mas em um mundo globalizado, quem podia afirmar qualquer coisa?

O rapaz abriu uma porta que dava para um pequeno cômodo, mobiliado com alguns armários metálicos onde claramente se viam adesivos com os nomes dos funcionários , uma mesa e duas cadeiras, uma arara de roupas e ganchos onde aventais se apoiavam displicentemente. Camus ameaçou sorrir quando o garçom voltou a falar:

— Me aguarde aqui.

Saiu fechando a porta e o ruivo se encostou na parede. Cobriu os olhos com uma mão e sentiu a bexiga reclamando. Precisava desesperadamente urinar e agora que a tensão diminuiu essa urgência estava lhe tirando o foco. Notou outra porta onde se destacava uma placa brega de tremendo mau gosto decorada em motivos náuticos que indicava o banheiro dos funcionários. Seu semblante se iluminou. Finalmente alguma sorte!

Correu para lá e nem se deu ao trabalho de fechar a porta.

***

Já do lado de fora do bar Milo seguia na frente caminhando rumo a seu carro, que havia estacionado um pouco a frente na rua mesmo. Hyoga caminhava próximo dele dividido entre a timidez parcial e a vontade de rir causada pela vergonha alheia protagonizada por Kanon e Isaak.

Os dois pareciam crianças, se esbarrando ou subindo um nas costas do outro. Era a primeira vez que via Isaak tão genuinamente feliz. Discretamente checou a silhueta de Kanon. Formavam um par bonito. Teve que conter um suspiro que acompanhou o pensamento: Esse homem é perfeito!

— Um gato não? — Milo direcionou o comentário discretamente a Hyoga ao perceber o olhar dele para Kanon.

O rapaz ficou um pouco sem jeito com a abordagem, mas percebeu que Milo não havia se incomodado com o olhar, pelo contrário parecia estar se divertindo.

— Kanon sempre fez sucesso. Mas nunca o vi assim. — Fez um gesto com a cabeça indicando o casal que parecia fazer um esforço para se conter.

— Posso dizer o mesmo sobre Isaak… Conheço ele o suficiente para saber que tem algo diferente.

Encararam-se sorrindo e desviaram o olhar ao ouvir a gargalhada alta que Kanon deu como resposta a alguma coisa que Isaak havia dito. Milo destravou o carro e abriu a porta do passageiro para Hyoga. O rapaz pareceu ponderar por alguns segundos olhando a porta traseira do automóvel.

— Vai por mim… Você não vai querer sentar lá atrás com aqueles dois. — Falou rindo e olhando para uma das mãos de Kanon que parecia repousar no traseiro de Isaak.

— Acho que não… — Hyoga entrou no carro e colocou o cinto, ouvindo a porta de trás abrir e Isaak entrar sendo seguido por Kanon.

— Então senhores, para onde vamos? — Milo questionou ao entrar no carro e colocar o cinto.

— Pode seguir para a nossa casa, Hyoga te explica o caminho…

E foi a última coisa que Milo ouviu antes de ver pelo retrovisor o jovem garçom puxar Kanon pelo colarinho da camisa e iniciar um beijo de tirar o fôlego até mesmo de quem assistia.

Nossa… Tirou a sorte grande primo… — Pensou um surpreso e porque não excitado Milo, ao ajustar o retrovisor no intuito de dar mais privacidade ao casal e ligando o rádio do carro.

— Parece que você será o meu navegador. — Olhou para Hyoga antes de dar partida no carro.

— Creio que sim… — Falou com certo divertimento na voz e corado com o início de pegação que se desenrolava no banco de trás. — Esses dois só vão servir para guiar um ao outro mesmo.

— Bom… Se você quiser, pode ir me guiando também, sem problema algum. — Milo falou retirando o carro da vaga e deixando implícita a ambiguidade da frase.

— E por acaso existe alguém que não queira? — Falou olhando para o grego que mantinha a atenção na direção.

Milo desviou rapidamente o olhar do trânsito e notou um corado Hyoga que segurava a mochila no colo e o mirava com certa ansiedade. No banco de trás os sons característicos de beijos e sussurros podiam ser ouvidos. Suspirou.

— Você querer é o que importa! — Um sorriso de canto se desenhou em seus lábios — Qual é o melhor caminho?

***

No banco de trás do carro de Milo dois homens se equilibram e contorcem em movimentos coordenados onde se encaixavam de forma surpreendente em espaço tão limitado. Kanon era muito alto e de quando em quando seus joelhos acertavam os bancos do motorista e do passageiro arrancando risadas de Isaak e ligeiros olhares de Milo pelo retrovisor.

— Acho que eles vão ficar constrangidos… — Kanon sussurrou no ouvido de Isaak enquanto beijava seu pescoço.

— Foda-se! — Suspirou e sentiu Kanon puxá-lo para se sentar em seu colo.

— Olha essa boca… — Kanon falou de forma sacana. Apertando o corpo do rapaz.

— Quer ver o que eu posso fazer com boca?

— Ah, Isaak, eu quero ver tudo que você pode fazer… E não só com a boca.

O garçom abafou o riso e voltou a beijar Kanon. Eles se davam bem! Muito bem, era verdade. E não só na cama. Por mais que tivesse começado a noite relutando em ter algo mais do que prazer com aquele homem, as investidas do sujeitinho ruivo, tinham mostrado que ele já queria muito mais do que uma foda.

— Vamos ficar aonde? — Isaak sussurrou

— Como? — Kanon apertava as nádegas do jovem enquanto sentia uma mão passeando em seu abdômen

— Como o que? Vamos para a minha casa ou a sua? Ou você pretende fazer aqui mesmo, com platéia? Não acho má ideia.

— Isaak… — Kanon mordeu o pescoço do rapaz o fazendo soltar um gemido alto e sensual — Sua casa… Está mais perto. Preciso de você.

E com essa declaração o Isaak jogou qualquer pensamento contrário embora. Também precisava de Kanon. E muito. Nessa noite não abriria mão disso. — Quanto a Hyoga? Bem, ele que lute!

***

Hyoga apertou a mochila, percebeu que mantinha a boca entreaberta há algum tempo, respirou fundo e deu as coordenadas para a casa que dividia com Isaak. Preferia estar indicando outros caminhos para o grego, mas por hora, precisavam chegar em casa antes que o casal no banco de trás protagonizasse um pornô que desestabilizaria a audiência; ou que ele próprio fizesse algo comprometedor. Tentou se concentrar no caminho.

As risadas abafadas de Isaak eram desconcertantes.

As últimas palavras ditas por Milo, no entanto, ocupavam seus pensamentos. Ele queria. Provavelmente convidaria o rapaz para subir, ou quem sabe beber algo… Não sabia ainda, os planos de estudar estavam adiados. A única certeza naquele momento era a de que ainda estava muito cedo para se despedir do grego.

***

O barulho se assemelhava ao de uma torneira generosamente aberta. Camus teve que apoiar um dos braços na parede enquanto se aliviava. Primeiro sentiu a vida deixar o seu corpo, segundos depois um grande alívio, moveu a mão para finalizar sua tarefa quando uma voz desconhecida rosnou na porta do banheiro as suas costas, isso fez um arrepio gelado subir por sua espinha e provavelmente levou seu membro a encolher dado o susto:

— Puta merda! Quem diabos é você e por acaso nunca ouviu falar em fechar a porta?

Chapter 6: Berço da inspiração

Chapter Text

Milo fez a curva um pouco mais fechada do que seria o indicado, mas os sussurros que se transformaram em gemidos carregados de luxúria e sofreguidão o estavam desestabilizando.

Começava a sentir as mãos suarem e por mais que o ar condicionado do carro estivesse no máximo, parecia que o próprio inferno tinha subido e se apoderado do veículo.

Evitava olhar para Hyoga, pois o rosto corado, a boca entreaberta e a língua que procurava trazer algum tipo de umidade aos lábios, não ajudavam em nada na sua tarefa como motorista. Soltou o ar pela boca ao ouvir a voz rouca de Kanon murmurar alguma coisa que fez Isaak soltar um dos gemidos mais sensuais que já tinha ouvido.

Eu vou deixar esses dois no motel mais próximo e depois levo o garoto em casa.

Cogitou seriamente a possibilidade, quando percebeu que Hyoga se mexia desconfortável no banco e abraçava a mochila como se fosse algum tipo de tábua de salvação.

Milo tentou se concentrar na notícia que tocava no rádio do carro mas para seu desespero a voz do repórter foi trocada pelos primeiros acordes de Killing Moon.

Puta merda! E essa agora… A música envolvente e sexy pareceu ter aumentando o desejo do casal no banco de trás, e a tensão entre os dois homens no banco da frente. Milo freou o carro no sinal vermelho e percebeu segurar o volante com uma força fora do normal. Precisava se agarrar a algo.

Hyoga apenas observava o rosto másculo e bonito se contorcendo em expressões que poderiam ser definidas como de prazer contido. Os lábios sendo mordidos, o ar preso que era liberado de maneira pesarosa, o movimento de engolir que fazia o pomo de adão subir e descer e alguns fios do volumoso cabelo que se colavam no pescoço devido ao suor.

Ok, não restam dúvidas. Eu quero esse homem…

O estudante pensou no momento em que colocou as mãos sobre a que Milo movimentou em direção ao painel, onde pretendia desligar o rádio.

O escorpiano desviou o olhar do trânsito e encarou um corado e sensual Hyoga.

— Deixa rolar… — Hyoga falou baixo e fitando intensamente os olhos azuis de Milo.

— Como você quiser… — O motorista falou mantendo o olhar, só desviando quando ouviu o carro atrás deles buzinar indicando a abertura do sinal.

Passou a língua nos lábios antes de recolher a mão e engatar a marcha para sair com o carro. Hyoga acompanhou o movimento e se deu conta que nunca havia achado tão excitante uma troca de marcha.

***

Não sabia se pelo efeito da bebida ou por tudo que tinha acontecido até então, Camus estagnou ao ouvir a voz. Ao invés de se recompor e guardar o membro que estava tão inibido quanto o dono, permaneceu na mesma posição.

— Você é surdo ou o que? Guarda essa merda antes que eu chame a segurança! E quem caralhos deixou você entrar aqui? — Um irritado Kaza falava um pouco mais alto que o normal, emudecendo ao sentir uma mão em seu ombro.

— Fica calmo, Kasa. Fui eu que trouxe ele. — Sorento falou com aquela voz melodiosa capaz de acalmar todo tipo de fera.

— Pois deveria ao menos avisar para o sujeito fechar a porta! Não é todo mundo aqui que gosta de rola. — Pronunciou mais calmo olhando com desprezo de Camus para Sorento.

— Muito bem observado, caro cozinheiro. Agradeço muito pelo apontamento, e certamente o senhor Camus vai lembrar dessa lição por muito tempo.

Ao ouvir a voz de Sorento, o ruivo se recompôs, lavou as mãos e parou na porta do banheiro se sentindo mais humilhado do que envergonhado.

Tinha saído com o plano perfeito: caçar, capturar uma presa e usufruir da captura. No final tinha perdido seu tempo com o sósia de Saga, sido humilhado pela mesa digna de comercial de margarina norueguesa e por último estava levando bronca de um cara ridiculamente feio e que nitidamente não sabia apreciar uma bela rola.

Fracasso!

Kasa se retirou do quartinho depois de pegar uma touca de cozinha e deu uma última olhada para Camus. O ruivo sustentou o olhar tentando manter o pouco da dignidade que ainda restava. O cozinheiro saiu.

— Vamos. A mesa causadora de infortúnios já foi dispersa. — Sorento falou aparentemente se divertindo com a situação.

Camus tencionou dizer algo mas o olhar do rapaz foi o suficiente para que desistisse. Não havia chances ali, não mais! Seguiu Sorento fazendo o caminho de volta e sendo acompanhado até a entrada do bar.

— Espero que tenha apreciado sua noite no Imperador. — Sorento falou com nítido deboche.

— Posso apreciar mais… — Pronunciou o ruivo em sua última tentativa.

— Algumas coisas devem ser apreciadas com moderação senhor… Camus. Acredito que assim como a lição que Kasa passou, essa também seja uma que o senhor deva recordar mais vezes. — Sorriu enigmaticamente.

— Agora os garçons dão lições nesse bar? — Demonstrou a irritação despejando sua frustração no flautista.

— Nosso lema é: Sua satisfação é nosso prazer. Sendo assim, além de ajudar os clientes a passarem despercebidos, também fornecemos pequenas pérolas de sabedoria, que podem ser recompensadas ou não. — Sorento lançou um largo sorriso aguardando o entendimento da última parte.

Camus voltou a ficar lívido e retirou da carteira algumas notas e deu como gorjeta ao garçom.

Era realmente a droga de um homem interessante, mas ao que parecia desde o início já havia percebido o tipo de pessoa que o francês era.

Camus saiu do bar, sendo observado por um sarcástico Sorento, pegou o celular com o intuito de chamar um carro pelo aplicativo. Destravou o aparelho e observou que não havia nenhum sinal de Shaka. Maldito indiano! Sabia que o amigo não tinha culpa de nada, mas ele precisava culpar alguém, e a autorreflexão ainda não era uma atitude que pretendia desenvolver. Ao menos por hora.

 

Sorento deslizou rapidamente para o interior do bar. Na sala dos funcionários de volta ao seu armário, guardou com cuidado a quantia em um envelope que foi colocado entre uma discreta sobrecapa de um livro robusto no fundo de seu armário, fechou a porta metálica a cadeado.

Esperava poder mudar o rumo de sua rotina em breve. E toda e qualquer economia para ele, atualmente, era importante.

Alisou o avental e retornou ao salão.

A noite, de trabalho, estava longe de terminar.

***

Shaka agradeceu educadamente ao motorista e desceu do carro em direção a casa do namorado. Era um bairro tranquilo e residencial, porém um pouco afastado do centro da cidade no qual se encontravam os bares e prédios comerciais. Provavelmente, esse era um dos motivos da diminuição da incidência de moradores. Ao menos não havia vizinhos nas próximas quatro casas ao redor.

Caminhou até a varanda abrindo a portinhola e tocando a campainha. Verificou o celular uma última vez, dando um suspiro cansado. Camus não havia dado nenhum sinal. Talvez tivesse imaginado e o homem na entrada do Imperador não fosse Milo.

Existiam muitos loiros sarados e resplandecentes por aí, não é?

Não, não era, e ele sabia disso.

Também existia a possibilidade do sinal do celular estar fraco e a existência do ruivo ter acabado em tragédia, por não ter conseguido o contatar. De qualquer forma, no dia seguinte saberia.

Passou a mão pela franja e levantou a cabeça quando ouviu o barulho da chave sendo girada na porta. Estranhou a penumbra que podia ver pelas janelas da casa e conteve um gemido ao ver que um Shura completamente nu abria a porta e sorria maliciosamente.

— Olá, Rubio, senti sua falta…

Ignorando toda sua educação e polidez, Shaka não aguardou ser convidado, empurrou o namorado para dentro da casa e fechou a porta com um baque. Também tinha sentido saudades e precisava do acolhimento do seu espanhol com urgência. Em nenhum outro lugar se sentia em paz como na companhia de Shura.

***

Milo reduziu a velocidade, estavam em um bairro residencial e ao que tudo indicava próximos ao prédio no qual os dois rapazes moravam. Hyoga apontou o local e o grego foi parando o carro, estava terminando de estacionar quando ouvir um clique na porta de trás.

— Milo… — Ouviu a voz de Isaak e olhou para trás, vendo que Kanon já estava do lado de fora do carro — Cuida dele.

Arregalou os olhos e foi seguido no movimento por um corado Hyoga que parecia de alguma forma ter desviado todo o sangue do corpo apenas para o rosto. Ainda tiveram tempo de ver Kanon abaixar levemente o corpo e acenar sorrindo, antes de ser puxado bruscamente por um apressado Isaak.

Um clima de pura tensão se instaura dentro do carro.

Hyoga tinha a intenção de convidar Milo para fazer algo, mas com as palavras de Isaak se viu desorientado.

Milo ainda não havia refletido a respeito, mas pretendia ao menos pedir o telefone do mais novo e quem sabe combinar um encontro somente entre eles.

Obviamente estavam flertando um com o outro, mas aquilo, bom aquilo colocava um xeque mate naquela paquera. O russo sentiu o olhar do escorpiano sobre si e retribui. Encararam-se por algum tempo.

Apenas as respirações podiam ser ouvidas.

Milo suspirou, sendo acompanhado por Hyoga. Permaneceram por alguns segundos naquela contemplação até que sentiram o rosto suavizar e caíram juntos em uma gargalhada nervosa. Aos poucos o riso que preenchia o carro foi ficando mais leve e dissipando a aura de tensão.

Milo colocou novamente as mãos na perna de Hyoga como um reflexo e o estudante ficou observando o rosto do grego enquanto ouvia a risada gostosa. O escorpiano percebeu e aos poucos foi parando de rir fazendo menção de tirar as mãos das pernas do russo, sendo impedido ao senti-lo colocar as duas mãos sobre a sua.

— Vamos pra onde? — Hyoga perguntou rompendo a timidez.

— Podemos ir para a minha casa. Tenho filmes, música, comida e bebida. — Sorriu largamente.

— Está ótimo! — Retribuiu o sorriso.

Espero que também tenha uma cama… — Hyoga pensou ainda olhando para Milo. Por alguns segundos teve a impressão que o grego podia ler sua mente, ao observar um brilho diferente perpassar aquele olhar.

Milo deu a partida no carro e se encaminhou para o seu apartamento, sentindo uma sensação que já não fazia parte de sua vida há alguns meses. Sentiu a expectativa e a ansiedade da volta daquele sentimento. Não da forma angustiada como havia experienciado em seu último relacionamento. Mas carregado da perspectiva de se sentir desejado e principalmente querido…

Durante todo o caminho o que se ouvia era a música que tocava no rádio. Hyoga pensava na sincronicidade daquela seleção que era apenas de músicas que pareciam agradar a ambos. Milo fazia o caminho confiante, ainda mordendo os lábios ocasionalmente.

Não demorou muito e estavam em uma vizinhança um pouco diferente.

Um bairro novo, prédios baixos, mas aparentemente planejados. Eles serpenteavam pelas ruas até que entram em uma e finalmente estavam em um destes edifícios. Logo o mais velho estaciona em sua vaga de garagem. Quando o carro estava devidamente parado ambos respiraram fundo e se olharam caindo novamente na risada.

Afinal, a situação era essa: ambos encantados mas ainda completos desconhecidos.

Claro que conversaram no bar sobre a infância de todos de maneira geral, música e até signos. Mas ainda era pouco, não era?

Milo não esperava conhecer alguém legal tão cedo, ou em tempo algum se fosse completamente sincero, o tombo e a pancada dos quais teve que se recuperar em seu último relacionamento ainda eram feridas cicatrizando.

Ninguém que se envolve minimamente consegue sair ileso, ou igual, de um relacionamento. A convivência, a intimidade dividida e as experiências em par sempre acrescentam e tiram coisas dos indivíduos.

No caso de Milo ele sentia que havia adquirido muito, mas nem tudo era leve e saboroso.

Era o seu segundo namoro de verdade. Ele nunca namorou mulheres, desde muito cedo entendeu que gostava de garotos.

Sempre sofreu muito assédio da ala feminina do universo, mas isso para ele nunca teve apelo e sedução.

Seu primeiro namorado, Dante, foi ainda no ensino médio. Com direito a ir juntos na festa de formatura com ternos combinando. Foi um relacionamento relativamente saudável, com cenas de ciúme e bilhetinhos de amor e algumas brigas que ultrapassaram os empurrões.

Mas, com a chegada da faculdade Dante foi estudar na Itália, onde tinha família, assim sendo eles perderam pouco a pouco o contato. Claro que o fim foi dramático, para os padrões de dois moleques que descobriram tudo juntos, mas passou.

Seu "primo" Kanon foi peça bastante importante nisso tudo, desde se assumir até o consolar quando levou o pé na bunda e acreditava que sua vida estava acabada.

Kanon foi o primeiro da família a sair do armário; acabou por preparar o terreno e assim facilitar sua vida até certo ponto.

De sua parte Hyoga sempre teve namoradas, aliás engatou um relacionamento no outro. Fato pelo qual era constantemente provocado pelo amigo Isaak, que jamais se prendia a ninguém. Contando com a última poderia dizer que teve 4 namoradas.

Sendo Erin a primeira ainda no Ensino Fundamental e o namoro, terminando com a garota se mudando de cidade. Mas, uma vez aberta a porteira o menino bonito e educado conheceu Freya com quem ficou pouco mais de 2 anos, em pegação desenfreada mas sem que ela jamais permitisse os avanços que os hormônios do russo tanto exigiam. De tantas brigas e pouco sexo terminaram e em uma festa ele conheceu Geist, tão disposta a desbravar as fronteiras da sexualidade quanto ele. Ficaram juntos por quase 3 anos. Mais até se ele contasse as idas e vindas. Tudo entre eles funcionava às mil maravilhas. A exemplo de tantos outros relacionamentos, este também não resistiu a entrada na faculdade, a avalanche de novidades e a distância por ela estudar em outro estado.

Hyoga demorou um pouco para iniciar o curso superior, trabalhou e estudou muito para finalmente conseguir uma bolsa de estudos.

Assim, o caminho estava aberto para Pandora, veterana no curso de Ciências da Computação; ambiente competitivo e predatório; que cravou os olhos no novato no primeiro dia e com quem ele acabou se envolvendo em um relacionamento conturbado e passional que durou todo primeiro ano da faculdade. Estavam no segundo semestre de seu segundo ano. Ou no quarto período como muitos preferem contar.

Foi por insistência e por intermédio de Pandora que ele se envolveu na confusão que resultou no fim do relacionamento de ambos e no levante de questões sobre sua sexualidade.

Ele não aceitou de pronto, mas atualmente sabia que participar de um ménage provavelmente foi a melhor proposta que ela trouxe para o relacionamento deles.

Por outro lado foi também o que os levou ao fim. Já que transar com outro cara havia abalado a ambos com muito vigor… Muito vigor mesmo.

Perdido em divagações não percebeu o olhar do grego sobre si por alguns momentos.

— Vamos? — Convidou Milo antes de sair do carro.

Ele se segurou para não comentar o rubor do convidado. Ele mesmo precisaria de uma mochila para seu colo se não se colocasse em movimento logo.

Hyoga tirou o cinto rapidamente o seguiu.

— Você está com fome Hyoga? — Subiram pelo elevador até o oitavo andar.

— Estou sim!

— Eu também, posso preparar algo, ou improvisamos uns sanduíches. Acho que tenho pizza congelada…

— Eu aceito qualquer coisa, fica tranquilo.

Chegaram a porta do apartamento 85. Era um lugar pequeno, funcional e aconchegante.

O visitante se sentiu bem naquele espaço, viu que Milo tirava suas botas e começou a imitar o gesto. O dono da casa sorriu mais uma vez.

Hyoga sentia que o frio em sua barriga havia se tornado o gelo polar. Com certeza aquele apartamento dispunha apenas de um quarto e olhando disfarçadamente o sofá não seria o indicado para um homem de sua altura, que dirá para Milo que era pelo menos 10 cm mais alto. Refreou o pensamento. Da onde ele tirou que dormiria em qualquer outro lugar que não o sofá?

— Deixa suas coisas onde você quiser Hyoga. Não tem muito o que conhecer aqui, a cozinha está junto com a sala como você pode ver, a porta vermelha é o banheiro e a outra ao lado dela meu escritório, mas podia chamar de armário pois é minúsculo, do outro lado é meu quarto.

Hyoga observou que a maior parte da sala era ocupada por uma grande estante que subia pela parede recheada em parte por livros e discos de vinil. Havia nela dois porta retratos tombados, mesmo curioso ele nada comentou. Deixou a mochila em um canto que julgou não atrapalhar a passagem.

O estudante se aproximou da estante e começou a observar os livros, que além de numerosos constavam em diferentes idiomas.

Da cozinha Milo acompanhava os movimentos do rapaz, enquanto pegava duas long neck de cerveja na geladeira e verificava as pizzas congeladas. Não possuía o hábito de jantar em casa, então, normalmente tinha a sua disposição congelados, massas e pão para eventuais sanduíches. Viu o jovem puxar um dos livros e olhar o conteúdo com a testa franzida.

— É grego. Quase herança de família. — Falou chamando a atenção do estudante e estendendo a garrafa.

— Tem outros idiomas ali… — Hyoga aceitou a cerveja e fez um pequeno brinde, batendo a garrafa na de Milo.

— Tem alguns… — Bebeu um gole da bebida — Eu sou tradutor. Então, ali tenho alguns livros que eu traduzi e outros no idioma original.

O jovem sentiu-se ainda mais atraído. O homem à sua frente não era apenas estupidamente bonito, mas também era inteligente, educado, espirituoso e pelo que pôde perceber até o momento um simpático anfitrião.

Apertou a garrafa entre os dedos. Pela primeira vez em sua vida se sentiu com sorte.

Milo cravou os olhos mais uma vez no amigo de Isaak.

O conhecia há poucas horas e já estava lá com o rapaz em sua casa, algo totalmente fora de sua curva comportamental. Ele não incluía as pessoas em sua vida, em sua família ou em sua casa de forma leviana.

O frescor de Hyoga o intrigava. Sentiu a inspiração fluindo por baixo de sua pele, vontade de escrever...

Mas, não faria isso agora. Tinha outras vontades a saciar antes, a fome, a sede e… Estava curioso sobre o desenrolar daquela noite inesperada.

Naquele momento, entretanto, organiza os utensílios no balcão para poderem desfrutar da pizza que já estava preparada para ser colocada no forno. Bebeu um longo gole de sua cerveja. Estava convicto de que independente do que viesse a acontecer valeria a pena essa noite com Hyoga. Era revigorante conhecer alguém aberto e que demonstrava, apesar da aparente timidez, que se agradava de sua companhia.

Droga, ele queria muito beijar aquele cara!

Nesse momento o outro rapaz ergue os olhos do livro que analisava e sorri para ele, abertamente. Milo retribuiu o gesto.

Há quanto tempo não recebia um sorriso genuíno?

Sentiu seu coração se aquecer.

Chapter 7: Aquele momento dourado

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Shaka estava aconchegado no peito de Shura e sentia as mãos fortes do espanhol passando delicadamente pelo seu cabelo. Acabava sempre se surpreendendo com a delicadeza que um homem com aquele porte conseguia ter.

— Algo de errado, Rubio? — Shura questionou ao ver Shaka apertar os lábios em um gesto nervoso.

O indiano suspirou e levantou a cabeça encarando os escuros olhos verdes de Shura. Aquele homem era seu porto seguro. O único com quem se sentia sinceramente a vontade para ser ele mesmo, sem as amarras sociais e as que impunha a si próprio.

— Não, meu bem… Só estou um pouco preocupado.

— Camus? — Questionou sério fazendo um carinho na bochecha de Shaka.

— É assim tão óbvio?

— Rubio… Você somente se preocupa com poucas coisas nesta vida, porque de resto consegue controlar todas as outras, e esse seu amigo libertino é uma delas. — Sorriu.

— Ah Shura… — Suspirou se aninhando mais ao namorado e sentindo ser abraçado mais forte. — Aquele ali não tem jeito e eu não sei mais o que fazer…

— Já pensou em não fazer nada? — Viu Shaka franzir a testa. — Shaka, você sabe que eu amo você, seu jeito e tudo que forma a pessoa que você é. Mas, já parou pra pensar que talvez, mais do que ajudar o Camus, você apenas queira ter a sensação de que está arrumando algo que está bagunçado? Talvez por achar que tem parte da culpa do caos.

Shaka ponderou por alguns minutos. Acaso outra pessoa tivesse dito tudo aquilo, teria refutado da forma mais impertinente e arrogante que conseguia. Mas quem falou foi Shura, e os deuses sabiam como aquele homem o conhecia e se preocupava com ele. Nenhuma das palavras do espanhol eram destituídas de algum sentido e jamais proferidas à toa.

— Talvez você tenha razão…

— Amanhã você liga pra ele e vê se continua vivo, ou se precisamos arrumar os dizeres da lápide: “Aqui jaz Camus, um puto desnaturado, mas um amigo amado”. — Shura falou em um tom divertido o que fez Shaka rir.

— Ah Shura… Eu te amo, sabia? — Shaka ria olhando apaixonado.

— Sabia sim. — O espanhol o puxou fazendo Shaka sentar em seu colo.

Começaram um beijo apaixonado e cheio de desejo. Amaram-se mais uma vez, e sem culpa Shaka se entregou aos prazeres e ao acalento que só o namorado era capaz de proporcionar. Por hora, Camus tinha sido esquecido. Apenas por hora, afinal, um virginiano sempre precisa organizar alguma coisa.

***

Pela primeira vez em muitos meses Milo teve de volta a sensação de “borboletas no estômago”.

O que era no mínimo engraçado, levando em conta que além do nome, não possuía grandes informações sobre aquele jovem.

Em alguns momentos se sentia cansado de sua própria intensidade. Como não costumava fazer nada pela metade, o ato de se apaixonar muitas vezes acaba assustando o alvo de seus sentimentos. Até mesmo Dante havia se sentido um pouco acuado pelo fervor dos sentimentos do grego. Contudo, como estavam se descobrindo juntos, o jovem italiano acabou se acostumando e percebendo os benefícios de alguém que se entrega de corpo e alma a tudo aquilo que o cerca. Com Camus, as coisas haviam sido mais doloridas, quiçá traumáticas. Não se arrependia de ter investido no francês tarado. Realmente amou aquele homem e acreditou que em algum momento, poderia ser correspondido, mesmo que a verdade se revelasse a cada segundo daquela convivência.

Milo terminou por perceber que esperava algo que jamais chegaria, e por acreditar que merecesse mais do que o francês ofertava.

Mesmo assim, não foi menos dolorido e desolador.

E por mais que tivesse prometido a si mesmo que iria com calma, priorizaria sua vida profissional e jamais se deixaria levar por alguém que quisesse apenas seu corpo, estava ali, com aquele garoto deslumbrante, tímido e ironicamente sexy, o ofertando um sorriso sincero e reconfortante. Ainda acreditava que precisava ir devagar, mas aquele olhar, o rosto corado e a mania que Hyoga tinha de ficar passando a língua nos lábios, estavam tornando difícil a tentativa de não beijar aquele rapaz. Sorveu o restante da garrafa de cerveja em um único gole. Estava com sede, mas não era necessariamente daquela líquido que precisava. Respirou fundo.

— Vou colocar no forno uma marguerita. Pode ser? — Milo questionou desviando o olhar daquele sorriso, mais especificamente daquela boca e olhando para a pizza.

— Claro, Milo. Já disse que qualquer coisa pra mim está bom, de verdade.

Não querido, não se contente com qualquer coisa.

O anfitrião pensou colocando a forma de pizza dentro do forno e aproveitando para soltar um pouco do ar que estava retido em seus pulmões. Ao que parece, autocontrole era mais difícil que podia imaginar.

Em paralelo Hyoga tentava conter sua ansiedade.

Estava engatinhando nesse novo capítulo de sua sexualidade e tinha ali, logo no terceiro ato, o mais impressionante exemplar de homem que provavelmente já viveu. Decidiu ajudar o anfitrião a organizar o local no qual iriam comer. Como tratava-se de uma cozinha estilo americana, Hyoga achou por bem colocar os pratos e talheres na bancada e ajustar os bancos nos quais sentariam.

Não sabia mais onde guardar suas mãos que basicamente se guiavam sozinhas na direção de Milo. Conseguiu reunir o equilíbrio necessário para perguntar onde estavam os pratos e passou a se ocupar daquela tarefa.

Num dado momento o ambiente completamente caseiro e íntimo atingiu a ambos. E mais uma vez riram.

— Hyoga, quantos anos você tem?

— Em janeiro completo 22… E você?

Janeiro estava bem longe, mas era uma maneira de diminuir a óbvia diferença de idade entre eles, ponderou Milo, antes de responder:

— Em novembro completo 26.

Por volta de 4 anos de diferença, não era tanto. Foi o pensamento que ambos dividiram sem nada pronunciar.

— Quer outra cerveja?

Milo perguntou já abrindo a geladeira de onde tirou mais duas garrafinhas. Estendeu uma ao convidado.

Hyoga se aproximou para pegá-la e seus dedos se esbarraram. Eles brindaram mais uma vez e beberam se olhando. A todo momento, Milo achava encantador o rubor que via estampado no rosto do estudante, que por sua vez percebeu que aparentemente estava se agarrando a muitas coisas no intuito de manter controle de seu corpo e de sua timidez. Primeiro a mochila, agora a garrafa de cerveja.

Hyoga não era ingênuo, muito pelo contrário. Sabia o que queria e quem queria. Porém, a timidez era um traço de sua personalidade, e nesse momento, lutava internamente para mais uma vez não romper com ela e beijar os convidativos lábios de Milo.

Na ânsia de ser ver ocupado o russo, acabou bebendo um gole maior e uma gota da bebida escapou, escorrendo pelo canto de sua boca. Antes que ele executasse mais uma vez o movimento que vinha capturando toda a atenção do grego, e recolhesse a bebida, sentiu a atrevida língua de Milo passeando languidamente por sua boca e fazendo o favor de recolher a gota de cerveja. O autocontrole havia sido perdido, por ambos.

O momento dourado, aquele segundo antes do beijo, quando você vê pela última vez o outro antes de fechar os olhos, sente seu cheiro e a sua aproximação, foi entre eles leve e natural.

Eles se olharam assim tão de perto e o suspiro de Hyoga precedeu suas mãos puxando Milo pela cintura. O dono da casa afundou as mãos naqueles cabelos macios, sentindo a respiração do mais novo misturada com a sua.

As garrafas foram colocadas em segurança no balcão por sabe-se lá por qual entidade, ambos absortos na contemplação e desbravamento daquele beijo que desejaram por toda a noite. Estavam imersos e interrompiam aquele encontro faminto apenas para buscar ar, sempre sorrindo. E foi sentindo o calor da excitação, o acalento do carinho e do encantamento mútuo, que provaram, mordiscaram e sorveram os sabores de ambos, que se misturava ao gosto da bebida que acrescentava mais volúpia ao beijo.

Permaneceram ali por muitos minutos, as garrafas esquecidas suando no balcão e as respirações se tornando cada vez mais arrastadas.

Então, o timer que Milo responsavelmente havia acionado apitou. Sem aquilo a pizza provavelmente se tornaria um torrão de carvão no forno.

E eles riram mais uma vez quando o grego fingiu irritação com o utensílio e virou-se para verificar o forno. Hyoga pegou sua garrafa e sorveu um gole. Pensou no quão irônico era ele que evitou beber no início da noite, pois planejava dormir bem para passar o fim de semana estudando, estar agora na casa de um deus grego bebendo e beijando sem pudores.

Estava calor! Afastou-se o suficiente para sentar em um dos bancos altos que ficava de um dos lados do balcão. Agradecendo mentalmente a pessoa que havia criado aquele estilo de cozinha, pois assim, poderia disfarçar a ereção que despontava em seu baixo frente.

Milo olhou a pizza no forno entre suspiros e pensamentos indecentes. Contudo, não queria fazer nada às pressas. Não dessa vez.

Sempre se jogava de cabeça em suas relações, românticas ou não, e decidiu que precisava conhecer melhor aquele rapaz, mesmo que seu corpo parecesse já ter obtido todo o reconhecimento necessário.

Tirou a pizza do forno pensando na dualidade que era querer ficar perto de Hyoga e ao mesmo tempo, tentar disfarçar o desejo que despontava. Já havia percebido que o russo era tímido e não queria aumentar o embaraço dele. Ou, só não queria naquele momento, atiçar mais o jovem.

Milo deposita a pizza na bancada.

— Vamos jantar?

— Claro! Não vai se sentar? — Hyoga olhou para o banco ao seu lado.

Milo sorriu maroto, pensando nos sentidos que podia atribuir aquela pergunta e sentiu um comichão que indicava que seria mais prudente permanece do lado oposto do balcão.

— Vou ficar aqui mesmo. Fica mais fácil de pegar as cervejas.

Hyoga estreitou os olhos, assoprou um pouco o alimento fumegante e mordeu uma fatia da pizza. Imaginava se aquela desculpa, porque sim, aquilo era uma desculpa esfarrapada, era uma tentativa de ocultar o mesmo “problema” pelo qual ele passava. Afinal há pouco ele pode perceber claramente que ambos estavam animados com o contato.

De frente um para o outro, o russo viu Milo morder os lábios antes de comer um pedaço de pizza, e se pegou pensando em como em uma mesma noite passou a achar trocas de marcha e pizzas congeladas muito excitantes.

Que mais mudaria em sua perspectiva agora que conheceu Milo?

***

Camus, no banco de trás do carro que chamara por aplicativo e que o levava para sua residência revisava seus contatos telefônicos na esperança de encontrar alguém minimamente interessante que pudesse estar disponível naquele horário.

Não havia! Torceu o nariz e guardou o celular no bolso da calça. Teria que se contentar com resolver sozinho seu desejo desamparado.

Um desperdício! Ele sentia, por menos que quisesse admitir, um grande cansaço. Acreditava em sua abordagem, mas tendo uma personalidade originalmente introspectiva era uma demanda de energia considerável que despendia em noites de caçada.

Esse era um dos motivos que fizeram com que mesmo livre de Milo ele tenha saído tão pouco nos últimos meses.

O trajeto termina, educadamente se despediu do motorista, deixa o carro e entra no edifício. Não há porteiro. Segue ao elevador e pressiona décimo primeiro andar. evita encarar seu reflexo no espelho que decora uma das paredes do elevador. Eram apenas 2 apartamentos por andar e ele se dirige a primeira porta do lado esquerdo 111. Alcança suas chaves no fundo do bolso e adentra seu templo.

Sim, para Camus sua casa era um templo. Pouquíssimas pessoas já haviam sido convidadas para desfrutar daquele espaço. As últimas sendo Milo e Shaka.

Torceu o nariz ao lembrar do amigo. Verificou mais uma vez o celular. Tinha certeza absoluta de que o indiano o procuraria, mas até aquele momento nenhum sinal.

Deixou o corpo cair em seu sofá espaçoso e abriu o aplicativo de paquera que usava em momentos críticos.

Ficou observando as fotos e passando para o lado os perfis um atrás do outro, rejeitando a todos, sua expressão um enigma.

***

O apartamento era pequeno, a ideia de Isaak de despachar Hyoga, em suas próprias palavras, realmente tinha suas razões. O único cômodo com tamanho razoável era a sala. Eles se desgrudaram por poucos momentos quando Isaak foi a seu quarto em busca de lubrificante e Kanon observou seu entorno.

Eram dois quartos com cama de solteiro e guarda roupas, estreitos e idênticos segundo o garçom. Uma cozinha pequena e sala e banheiro desproporcionais com o restante. Isaak retornou com a bisnaga entre os dedos e um sorriso inexplicavelmente ainda mais safado.

— Aquele Ruivo queria te consumir a noite toda…

— Pois é, mas, olha só onde eu estou…

Kanon tirou a camiseta do outro e começou a mordiscar-lhe a pele clara, um contraste com a sua própria, bronzeada. De joelhos ele aproveitava a barriga plana de Isaak que gemia manhoso, enquanto buscava retomar o assunto.

— Sim, você está aqui e eu que vou comer essa bunda gostosa… Mas, me diz, da onde você conhece aquele cara?

O grego, que havia aberto e baixado as calças de Isaak não se dá ao trabalho de responder.

Está concentrado matando sua vontade do cheiro e do sabor que desejava voltar a sentir há dias. Kanon mama naquela rola como se sua vida dependesse disso. Deliciado e enlouquecido com as reações de Isaak. O anfitrião, por sua vez, decide aproveitar o fenomenal boquete que recebe da tenra e experiente boca de Kanon, ainda assim, no fundo de sua mente segue incomodado com as atitudes do Ruivo que assediou seu homem a noite toda.

Provavelmente esse fluxo de pensamento poderia ser creditado a sua pouca idade. Isaak tinha apenas 20 anos. Mesmo dedicado a sua apetitosa tarefa, passeando suas mãos por cada milímetro de pele que pudesse alcançar, Kanon percebe que o rapaz não está completamente presente naquele momento. Obviamente isso o incomoda. Afasta sua boca sonoramente, saliva visível e pergunta sem rodeios:

— Você não está afim?

Isaak leva alguns segundos para focalizar no homem ajoelhado devotamente a sua frente.

— Eu te trouxe para a minha casa. Porque faria isso se não estivesse afim?

— Você parece estar pensando em outra coisa. Estou aqui quase tirando sua alma pelo pau e você não parece estar curtindo…

— De onde tirou isso? Você quer que eu faça o que? Te olhe igual ao ruivo?

— Mas que porra Isaak — Kanon levantou — Ainda esse cara. Que merda! Eu estou com você!

— Não estou questionando isso. Só quero saber de onde você conhece ele? O cara parecia já ter ganhado uma dessas suas mamadas.

Kanon sentou no sofá, passando a mão nervoso pelo cabelo.

— Jura para mim que no meio do sexo você quer falar de um cara que eu nem conheço?

— Meu cu que você não conhece! Não sou idiota, Kanon. Ninguém come com os olhos com tanta propriedade um corpo que nunca viu sem roupa! Um gato daqueles. Lógico que você conhece. O cara passou a noite toda te secando.

O mais velho olhou consternado para Isaak, observando que mesmo no meio de uma briga o pênis do garoto não desanima. Vantagens da juventude. Pensou vagamente chateado.

— Pois estou dizendo que não conheço. Vem cá… — Bateu no sofá ao seu lado — A gente não precisa discutir por isso. Nem faz sentido. Vai me dizer que não sentiu a minha falta? Prefere ficar falando de um psicopata ruivo do que se divertir?

Isaak ponderou. Jamais admitiria mas tinha sentido saudades daquele homem, só precisava saber qual a relação dele com aquele ruivo gostoso. Só isso! Não era muito! E há cada momento em que Kanon se negava a falar, ficava mais irritado.

Kanon levantou do sofá, aproximou pacientemente, colocando uma das mãos no rosto de Isaak.

— Para com isso. Eu estou aqui com você e para você.

Puxou o rapaz que se deixou levar e iniciou um beijo faminto e desesperado. Kanon era um homem paciente, mas aquela crise de ciúmes desmedida estava testando seus limites. Passou a beijar o pescoço de Isaak descendo os beijos pelo peito, barriga e voltando ao membro que a pouco estava sugando com tanto vigor.

Fez com que o rapaz deitasse no chão e tirou a própria camisa, voltando sua atenção a rola que independente da situação se manteve em riste. Retirou a calça de Isaak que estava apenas abaixada, e passou a lamber não só o membro, mas também as bolas e afastando as pernas do mais novo, desceu sua língua provando de todo aquele corpo, como se aquele rapaz fosse algum tipo delicioso de doce que precisava para viver.

Levantou os olhos e viu que Isaak acompanhava seus movimentos, mas o olhar parecia vazio.

— Eu quero muito me enterrar em você… — Sussurrou sensual se acomodando entre as pernas de Isaak.

Aguardou alguma resposta, mas continuava sendo observado pelo olhar vazio.

— Isaak? — Chamou se afastando um pouco. — Caralho, Isaak você está aqui comigo ou não?

O rapaz se assustou com o tom de voz do outro. Nunca tinha visto Kanon falar daquele jeito.

— Estou, claro que estou!

— Pois não parece. — Levantou-se vestindo a camisa que tinha jogado no sofá — Estou aqui te lambendo inteiro, doido para te comer e você parece a merda de um peixe morto com olhar vidrado! Não vai me dizer que ainda tá pensando na porra do ruivo que eu vou achar que você queria estar fodendo com ele.

— E você não queria? — Sentou dando um sorriso sarcástico. — Acho pouco provável que não quisesse, o cara era lindo!

— Eu só posso estar pagando por algum pecado, só pode. Caralho, Isaak, eu não conheço aquele cara e se conhecesse que diferença faria? Eu terminei a noite com ele, por acaso?

— Não, mas porque eu intervi.

— Não, seu imbecil, porque eu quis ficar com você! Ou você está achando que eu estou aqui só porque você decidiu? Eu faço escolhas também, meu jovem. Talvez, essa não tenha sido a melhor delas.

Kanon se arrependeu no segundo seguinte do que havia dito ao ver a expressão no rosto de Isaak. Toda a conversa o tinha ofendido, mas o que ele disse pareceu bater bem fundo para o garçom.

— Não foi isso que eu quis dizer… Eu…

— Sai da minha casa! — Isaak decretou pondo-se de pé, sem qualquer pudor, apontando para a porta.

— Isaak, calma…

— Sai da porra da minha casa, Kanon! Não quero te ver mais aqui. SAI!

Kanon se assustou com o grito que o jovem deu e recolheu seu casaco que havia deixado jogado em um canto qualquer, naquela ânsia de se despirem. Caminhou até a porta e parou girando a chave.

— Isaak… Se eu sair desse jeito…

— Eu quero mais é que você se foda! — Riu debochado — Quem sabe até com o tal ruivo.

Kanon deu um soco na porta e olhou para Isaak antes de girar a maçaneta e sair:

— Você é um moleque!

Isaak se jogou no sofá colocando as mãos no rosto, assim que ouviu a porta bater.

Que merda que eu fiz?

Pensou se deixando cair no sofá e focando o nada.

Chapter 8: Cerre seus punhos e feche os olhos

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Kanon permaneceu olhando para a porta fechada sem acreditar. A discussão havia escalado vertiginosamente, em um momento sentia o sabor do paraíso e no outro estava completamente sozinho. A tristeza se insinuou em seu corpo mas foi repelida. Não podia acreditar! Se afastou alguns passos e retornou depois de bater com os punhos fechados em suas próprias coxas. Regressou a porta do apartamento. Sentindo uma angústia que fazia seu peito arder. E irritação. O geminiano estava infinitamente irritado.

Droga! Não podiam terminar essa noite assim…

Apoia a testa na porta e chama mais uma vez:

— Isaak?

Sua voz traiu o amontoado de sentimentos que lhe atravessavam o peito. Vê, por baixo da porta, quando a luz da sala é apagada. Se cala. Tinha também algum orgulho, não tinha? Atravessou a cidade e fez o primo ir até o Imperador só para encontrar com Isaak, empurrou Hyoga para os braços de Milo e focou toda sua energia em Isaak e mesmo assim… Fechou os olhos desanimado. Talvez fosse pedir demais esperar maturidade do jovem garçom, mas esperava empatia… retribuição de seus tão óbvios sentimentos.

Arrumou sua postura e resolveu deixar o prédio.

Não pretendia permanecer nem mais um minuto por lá. Determinado desceu os lances de escada.

***

Nenhum dos dois lembrava como haviam chegado até o sofá.

No balcão seguiam em pares abandonadas fatias de pizza mordidas parcialmente e garrafas de cerveja esquentando.

No sofá Hyoga estava deitado por cima de Milo. Os corpos agarrados se esfregando, beijos e toques de reconhecimento e desejo. Quase nada era dito além de elogios curtos entre sorrisos, suspiros e gemidos suaves. Estavam indo, dentro do que era possível naquele contexto, relativamente com calma. Seguiam vestidos em trajes desalinhados, mas sem os calçados. Mãos passeavam por toda pele que pudessem alcançar. Toques leves, apalpadas e apertões. Lambidas, chupões e mordidinhas. Pupilas dilatadas e vozes roucas de desejo.

A timidez ao que tudo indicava havia abandonado Hyoga, que com habilidade intrigante retirou o cinto e abriu a calça de Milo, que suspirando recebia o carinho atrevido próximo a sua virilha e por cima ainda da cueca em seus pelos pubianos. Ele arranhava as costas de Hyoga por baixo da camiseta e recebe beijos e chupões no pescoço e na orelha. Nesse momento o russo falou:

— Milo… Como você prefere?

Estava se tornando cada vez mais complicado para o anfitrião organizar seus pensamentos de forma razoável, já que nesse momento o rapaz já lhe tomava a carne quente em uma mão enquanto voltou a beijar sua boca com renovado entusiasmo.

A química entre eles tinha um efeito profundo e alarmante. O clima carregado de luxúria e respeito, ternura, era algo que desnorteava Milo em algum nível. As atitudes de Hyoga desconstruíram uma primeira impressão de que fosse um rapazinho ingênuo. Aquele homem podia corar durante uma conversa no bar, mas, a timidez não impedia seu ímpeto e apetite.

Ao que tudo indicava Hyoga já havia navegado bastante por outros corpos.

Gemiam sem encerrar o beijo. Hyoga mordeu o lábio inferior de Milo e abandonou sua boca para iniciar uma trilha de beijos com destino certo em seu corpo. Se afastaram brevemente e ambos tiraram suas camisetas. O contato da pele ansiosa por toques, os sons e o cheiro inequívoco que produziam deixava ambos entorpecidos e os guiava nessa prazerosa descoberta.

Milo se apoiou nos braços e observou o russo que não desviava o olhar tocar seu membro com adoração, distribuir beijos em toda extensão, lamber a cabeça e então abocanhá-lo virando os olhos no processo. Milo pensou que teria um AVC dado o espasmo que acometeu seu corpo. Estava sentindo um prazer indescritível. Tinha que se esforçar para segurar seu orgasmo e manter os olhos abertos, queria gravar na memória aquela imagem divina…

Planejava puxar o mais novo para um beijo quando algo começou a incomodá-los. Passou algum tempo até eles pausassem percebendo que era o celular de algum dos dois vibrando.

Hyoga mantinha uma mão abraçando o membro de Milo de forma possessiva, mas ambos se olharam um pouco apreensivos.

O receio de que algo de ruim pudesse ter acontecido assaltou a dupla e eles silenciosamente concordaram em verificar seus aparelhos.

O celular que tocava já na sétima chamada era o de Milo.

***

Depois de inutilmente tentar chamar um carro de aplicativo e de se dar conta de que naquele bairro não conseguiria um táxi, mas, talvez tivesse que lutar por sua vida e suas pregas, Kanon considerou assustado que teria que apelar. Ele até engoliu o orgulho e ligou para Isaak. Telefone desligado. Pensou em ligar pro irmão, mas não sabia nem se ele estava na cidade. Não queria ouvir sermão.

Sua última esperança, que calculou estar acordado, era Milo. Na derradeira tentativa se assusta ao escutar uma voz completamente rouca e sexy do outro lado da linha:

— Kanon, eu espero que alguém tenha morrido!

— Ainda não. Mas em breve isso pode se tornar realidade.

— Mas o que foi afinal?

— Isaak me chutou para fora da casa dele.

— Pega um táxi.

— Jura Milo? Genial, por que será que eu não pensei nisso antes? Ah, me lembrei! Pelo jeito não existe a porra de um táxi por aqui nesse horário. Sinto… Sinto mesmo ter interrompido, mas, cara aqui é sinistro. Fico te devendo uma. Vem me buscar?

— Engraçadinho. Fica me devendo a bun… Espera só um pouco.

Ouviu duas vozes abafadas. Um obviamente irritado Milo voltou a falar resoluto e não aguardou resposta antes de desligar.

— Segura as pontas. Estamos indo para aí.

Kanon desligou e observou apreensivo que possuía apenas 10% de bateria no celular. Olhou em volta.

Por mais que não soubesse dizer de onde, sentia que era observado.

***

Na casa de Milo, ele e Hyoga se encararam por alguns segundos ainda sem reação. Estavam desalinhados, seus corpos indecisos entre se acalmar ou exigir o desafogo do prazer estavam construindo juntos até há pouco.

A interrupção de Kanon e a notícia de que ele e Isaak haviam se desentendido desconcertou um pouco os dois rapazes.

Hyoga apertou as mãos de Milo.

— Vamos resgatar o Kanon… E quem sabe um dia a gente ainda ri disso?

Assim que falou seu rosto ficou muito vermelho. Milo o puxou para um abraço e depositou um beijo no topo de sua cabeça. Mesmo frustrado, naquele instante além do desejo sentiu grande ternura e admiração por Hyoga.

— Vamos. Mas antes preciso ir no banheiro. Vou usar o do meu quarto, se precisar pode ir naquele…

Apontou mais uma vez a porta vermelha e foi. No interior de seu quarto Milo se dirigiu ao banheiro anexo e abriu o chuveiro o mais gelado possível. Enfiou a cabeça embaixo do jato de água travando os dentes. Deixou-se lá por poucos momentos respirando fundo. Fechou o registro e enrolou uma toalha na cabeça. Depois poderia se preocupar em desembaraçar e pentear os cabelos. Tirou o excesso de água e vestiu outra camiseta que pegou de seu armário.

Saiu do quarto e Hyoga já o aguardava relativamente recomposto, vestido e calçado, e com sinais de que também havia lavado seu rosto.

O russo checava no próprio celular por alguma eventual mensagem. Ergueu o rosto quando Milo se aproximou estendendo a mão e entregou o aparelho como hipnotizado.

Milo sorriu e digitou seu número, salvando o contato como “Milo”.

— Pronto. Agora você tem meu contato, se quiser me ver novamente é só me procurar.

Entregou o aparelho e se abaixou para calçar os sapatos. Poucos segundos depois seu telefone vibrava, retirou rapidamente e viu na tela a seguinte mensagem de um número desconhecido: “Eu quero".

Sorriu para Hyoga salvando o número. Terminou a tarefa e ergueu-se puxando o outro jovem para um beijo. Suspirou antes de dizer rente a orelha do mais baixo:

— Vamos antes que eu desista dele…

Hyoga apenas concordou. Estava inebriado. Pegou suas coisas e partiram.

***

Na mente sonolenta de Shaka ele teve a impressão de ouvir a voz de Shura sussurrando. Estaria ele irritado com alguém? Abriu os olhos embaçados pelo sono… Tentou se erguer, mas estava tão cansado. Mudou de posição na cama e tocou o lado ocupado pelo espanhol. Estava frio. Fechou os olhos para se concentrar no significado daquela informação mas voltou a adormecer. Na manhã seguinte ele provavelmente não se lembraria desse momento como algo fora de seus sonhos.

Pouco depois Shura retornou para cama, sua expressão contrariada enquanto depositava o celular na mesinha de cabeceira. Permaneceu de olhos abertos, opacos, rumo ao teto.

***

Camus encarava o aparelho celular desalentado. A luz da imagem na tela lançava sombras azuladas em seu rosto. Desligou o celular e o deixou sobre o sofá. Caminhou até seu quarto e tirou suas roupas. Dobrando-as e colocando sobre uma poltrona. Dirigiu-se ao banheiro de sua suíte e observou sua figura no espelho.

Apertou os lábios quando sentiu uma fisgada em seu baixo ventre.

Apressou-se em alcançar sua banheira. Abriu as torneiras e colocou-se dentro dela enquanto sentia lentamente a água morna abraçar seu corpo.

Tombou a cabeça para trás. Ele quase podia ver aqueles cabelos loiros emaranhados em seus dedos. Gemeu enquanto tocava seu próprio corpo.

Sufocou o nome do outro homem em sua garganta, recusou-se a abrir os olhos.

Foi intensificando os movimentos em seu membro com firmeza, como gostava. A urgência corroía seu juízo, como em um pesadelo delicioso ele ouvia a voz do outro rente a sua pele. Sentia o fogo daqueles olhos… Sua garganta queimava pelo esforço de não gritar, não respirar.

Gozou em um espasmo tão violento que bateu os tornozelos vigorosamente, repetidamente no chão da banheira. A água espirrando com seu movimento. Um misto de alívio e culpa. Como detestava o remorso… Como desprezava sentir-se errado.

Sentiu algumas lágrimas quentes se formando em seus olhos e se afundou na água.

Tinha que afogar esse sentimento, não havia mais espaço em sua alma para sofrer…

***

Através das cortinas gastas que adornavam a janela do seu quarto Isaak acompanhava todos os movimentos de Kanon na calçada do outro lado da rua. Ele escolhera um ponto iluminado, em frente ao prédio de aparência antiga e quase fabril, cuja fachada era ornada por tijolinhos. Andava de um lado para o outro, mas sempre dentro da parca iluminação que o poste lançava sobre a rua. Antes havia passado um tempo no telefone, olhando para os lados e se assustando com o mínimo ruído. Em outra situação seria um quadro cômico, mas não agora. A última coisa que o garçom conseguia enxergar era algum tipo de humor na situação. Isaak sabia que ele dificilmente conseguiria um táxi naquela parte da cidade tão tarde.

Vivia em um bairro de universitários e trabalhadores de chão de fábrica, não teria também ninguém rodando em aplicativos por aquelas bandas no meio da madrugada e o transporte público encerrava as atividades a meia noite. Sentiu vontade de descer e trazer o homem de volta para sua casa, seus braços. Estava arrependido e assustado por suas atitudes.

Em nenhuma circunstância havia sentido algo tão denso e tóxico.

Seria isso ciúme? Se perguntava engolindo em seco. Sempre foi ele o cara a rir das cenas de ciúmes das namoradas de Hyoga, a depreciar qualquer demonstração de possessividade perdendo o interesse por todos os casos que já mantivera quando tentavam em suas próprias palavras o colocar em uma coleira.

Ainda sentia em sua pele a boca de Kanon. Nunca antes experimentara algo tão avassalador. Perdeu o controle quando o pensamento de que o grego pudesse ter servido tão gostosamente ao ruivo do bar se alojou em sua mente. E por mais que racionalmente soubesse que não importava, não conseguia deixar de lembrar do olhar invasivo e cobiçoso. Mesmo que as atenções de Kanon estivessem voltadas para ele, só conseguia atentar para o fato de que ele já havia despendido seu tempo com aquele ruivo indecente. Conseguia até mesmo imaginar o homem ajoelhado pagando um boquete suntuoso para o ruivo que mantinha o sorriso malicioso e o olhar pervertido. Estremeceu mediante o pensando.

Algo estava errado. Simplesmente desconhecia essa faceta de si mesmo. E queria se afastar dela muito mais do que do homem que havia colocado para fora de sua casa.

A vergonha fazia suas faces arderem pelo calor que delas vertia. Não esperava a esse horário estar sozinho. Abraçava o próprio corpo pela falta que sentia de Kanon.

Estava confuso.

Honestamente mal se lembrava da última vez em que houvera se sentido assim tão desamparado. Era um exagero. Ele se lembrava muito bem do acidente. Tocou a cicatriz inconscientemente...

Afastou o pensamento enquanto acompanhava um carro estacionar e Kanon se aproximar da janela do motorista gesticulando. Parecia aliviado.

Isaak sentiu uma dor quase física no peito. Quis gritar, envergonhado ele quis… Apenas gritar.

Kanon caminhou para o outro lado do carro, logo Hyoga desceu. De cima o quadro era interessante. O carro escuro. Cabelos loiros levemente flutuando ao vento.

Na sua alma iam e vinham sensações e conflitos. Se afastou da janela antes que fosse visto. Kanon estava seguro. Hyoga em instantes entraria em casa. Se enfiou na cama estreita, apertou o olho e imitou a respiração compassada do sono.

Sentia que estava perdendo o pouco controle que construira para sua diletante existência.

***

Ao contrário do que se poderia imaginar, o clima dentro do carro durante o trajeto para o resgate de Kanon, foi agradável e tranquilo. Os dois homens acreditavam que repousaria sobre eles a nuvem do desejo não consumado, contudo, ao invés disso, sentiam o calor da antecipação pelo que ainda estava por vir. Nada mais aconteceria naquele dia, porém, a troca de telefones e a afirmativa acerca da vontade de se ver, deixava em aberto um leque de possibilidades, e todas elas, na perspectiva de Milo seriam prazerosas e interessantes.

Hyoga ligou o rádio do carro e mais uma vez foram brindamos com uma seleção de música que agradava a ambos. Conversavam sobre amenidades tentando extrair mais informações um sobre o outro e se agradando de tudo que descobriram.

Martelava em suas mentes os possíveis motivos da interrupção, mas nenhum dos dois ousou dizer algo. A amizade que sentiam pelos envolvidos falava mais alto que a necessidade de especular.

Sentiram um pesar ao perceber que estavam próximos a casa de Hyoga e já conseguiam avistar um homem alto que andava de um lado para o outro, amparado pela fraca luz de um poste, nitidamente nervoso e que olhava para os lados como se aguardasse o ataque de alguma criatura noturna. Riram da cena mal sabendo que a criatura mais angustiante era a que se escondia em meio as cortinas e se sentia dilacerar pelas próprias atitudes. Isaak não era nada mais que um rabisco de si mesmo.

Milo parou o carro ao lado de Kanon, que mesmo que estivesse esperando o veículo ficou alguns segundos olhando.

— Pode vir aqui gostosão, eu pago bem pelo programa. — Milo riu sendo seguido por Hyoga um pouco mais comedido.

Kanon se aproximou contrariado se inclinando na janela ao lado do estudante.

— Você não teria cacife para pagar ou aguentar um programa comigo, Milo!

— Está vendo isso, Hyoga? Interrompo minha noite pra resgatar ele e nem um programa eu ganho.

O mais novo sorri olhando para os dois homens e retira o cinto. Com olhos brilhantes e expressão divertida olha para Milo e faz menção de dizer algo quando se sente puxado e abraçado pelo grego que sussurra em seu ouvido:

— Mesmo com o que aconteceu eu adorei a noite. Espero que possamos repetir, dessa vez sem interrupção. E Hyoga… Eu gosto de muitos jeitos. Sentir você dentro de mim sem dúvida será um deles.

O jovem corou violentamente, ouvindo a risada gostosa de Milo em seu ouvido e sentindo um beijo em seu pescoço. Suspirou o nome do grego e apertou seu corpo com força no rápido enlace.

Apartaram o abraço e Milo teve vontade de guardar aquele momento para posteridade, uma vez que o rapaz estava deslumbrante com a face rubra.

Contudo, quando pegou o celular, viu Kanon abrindo a porta do carro e segurando para Hyoga. O mais novo também já fazia menção de sair. O momento havia passado. Outros viriam.

— A gente se vê Milo. — Sorriu do lado fora do carro.

— Pode contar com isso.

Hyoga cumprimentou Kanon que retribuiu e entrou no carro. Milo aguardou o rapaz entrar em casa, soltando um suspiro e dando a partida no carro.

— Milo… Eu sinto muito. De verdade

Kanon olhava sem jeito para o primo que mantinha um ar sonhador.

— Bom… O que não tem remédio, remediado está. — Deu de ombros. — E eu acabei me divertindo… Não tanto quanto gostaria. Tenho que te agradecer por ter me convidado, no fim das contas...

Kanon permaneceu em silêncio olhando para as próprias mãos.

— Vou te levar lá pra casa. Já comeu alguma coisa? — Milo questionou olhando para os dois lados da rua antes de ultrapassar um sinal.

— Milo! — Repreendeu o outro colocando as mãos no cinto de segurança.

— Ah sim Kanon, eu vou ficar parado nessa terra de Marlboro às três e tantas da manhã só para seguir as regras de trânsito. Vou sim... E você não disse se já comeu ou não.

— Não, não comi. — Suspirou — Eu não comi foi é nada!

Milo gargalhou com o tom de desgosto que sentiu na voz do amigo e com os subtextos daquela frase.

Depois tentaria entender o que aconteceu na casa de Isaak, naquele momento apenas queria voltar para casa.

Chapter 9: Eu conheço a sensação

Chapter Text

Hyoga suspirou encostando a porta de sua casa. Vislumbrou a penumbra da sala e sorriu. Por algum motivo não conseguia parar de sorrir. Uma sensação boa havia se apossado de seu corpo e de sua mente. Parece que tudo que conseguia fazer no momento era sorrir, suspirar e lembrar de Milo.

E quando as memórias do breve tempo que passaram juntos vinham a tona sentia o rosto esquentar e uma fisgada aguda em partes de seu corpo que infelizmente foram negligências.

Tudo bem… Temos tempo.

Pensou animado indo a cozinha para pegar um copo de água em meio a escuridão. Mais cedo quando Isaak o havia convidado para encontrá-lo no bar e dividirem o carro de aplicativo, a única coisa que pensou foi em chegar em casa mais rápido e sem o desconforto do sacolejar do transporte público. Durante boa parte da noite estava entediado e pensando no tempo que perdia por estar no bar barulhento, já que Isaak teve que estender seu turno por algum motivo…

No fim, havia conhecido um grego absurdamente gostoso, gentil, carinhoso e com o pau mais lindo que já tinha visto na vida. Hyoga soltou um risinho ao lembrar dos dois no sofá.

Bebeu de uma única vez o copo de água que segurava.

Pena que Kanon e Isaak tinham se desentendido. E falando nisso, o que diabos tinha acontecido com eles? O rapaz cogitou a possibilidade de bater na porta do quarto do amigo e perguntar o que tinha acontecido, mas desistiu em seguida. Conhecia aquele homem há tempo suficiente para saber que quando se incomodava com algo o melhor era deixá-lo se entender consigo mesmo.

Isaak era um amigo maravilhoso, mas uma pessoa até certo ponto difícil.

E como Hyoga já era mestre naquele curso que era conviver com Isaak, afastou o pensamento. Por mais que se esforçasse, não conseguia pensar em nada que levasse o amigo a expulsar um homem como Kanon de sua casa. Ainda mais depois da pegação desenfreada que presenciou no carro.

Franziu a testa quando uma ideia lhe ocorreu. Balançou a cabeça ignorando tal pensamento. Isaak não era aquele tipo de pessoa. Hyoga já tinha sido, em alguns momento, mas não o amigo finlandês. Jamais que Isaak sentiria ciúmes de alguém, não, de forma alguma. O rapaz encheu novamente o copo de água e parou a meio caminho da boca sussurrando para si mesmo:

Isaak estava com ciúmes?

A ideia proferida pareceu tão absurda quanto o pensamento em si. Terminou de beber a água, lavou o copo deixando no escorredor e foi para o seu quarto. Olhou para a porta do quarto do amigo e conteve a vontade de bater.

Hoje, iria dormir embalado pelas lembranças mais ternas e excitantes de Milo.

***

Kanon permanecia pensativo e sério olhando a paisagem enquanto Milo dirigia, ultrapassando os sinais e correndo mais do que o habitual. O horário avançado e a escassez de pessoas na rua, tornavam o trajeto menos seguro do que o normal e o grego mais novo só queria chegar em casa. Vivo de preferência. Olhava de esguelha para o amigo, taciturno sentado ao seu lado e sentia certa pena dele. Kanon tinha se dado ao trabalho de tentar enganá-lo só para se encontrarem naquele bar, e rapidamente havia percebido que era por causa do jovem Isaak.

Geralmente se deixava levar pelas artimanhas de Kanon, já que quase sempre acabavam sendo benéficas a ambos. Não foi o caso dessa vez. Finalmente chegou em sua rua e manobrou o carro para estacionar. Desligou o veículo, retirou o cinto e viu que o amigo permanecia olhando pela janela, contemplando o nada.

— Kanon, meu velho, vamos? — Colocou a mão no ombro dele.

— Sim. Desculpe a distração, eu estava pensando…

Milo sorriu de forma compreensiva e saiu do carro aguardando o amigo. Pegaram o elevador, subindo até o oitavo andar e assim que abriu a porta Milo já pegou o celular e começou a digitar freneticamente. Kanon esticou o pescoço e viu a mensagem endereçada a Hyoga “Chegamos. Boa noite!”. O mais novo guardou o celular sendo acompanhado pelo olhar enigmático de amigo.

— Quer comer alguma coisa? Posso esquentar essa pizza ou fazer uma nova. — Caminhou para a cozinha.

— Vejo que fizeram uma certa bagunça. — Sorriu sentando em um dos bancos da bancada.

— Nem tanto quanto eu gostaria. Topa a pizza?

— Agradeço Milo, mas estou cansado. Prefiro tomar um banho e deitar.

— Tudo bem. Vou pegar uma toalha e umas roupas pra você.

Voltou do quarto trazendo uma calça leve de algodão, uma camiseta branca e uma toalha da mesma cor.

— Peguei as roupas mais largas que eu tenho pra não ficarem tão apertadas em você.

Entregou a Kanon.

— Sempre gentil, esse moleque. — Bagunçou os cabelos de Milo.

— Kanon… Já falei pra não fazer isso! Ainda mais que nem desembaracei o cabelo na pressa de salvar sua bunda.

Kanon riu, o primeiro riso desde que tinha sido salvo de perder mais do que a noite.

Milo acompanhou o riso e começou a arrumar as coisas na cozinha enquanto o outro homem se dirigia ao banheiro.

Depois que ajeitou as coisas na cozinha, abriu o sofá cama e arrumou tudo para que o primo pudesse se acomodar. Cobriu com um lençol e deixou outro e uma manta fina além de 2 travesseiros para Kanon. Ouviu quando o outro desligou o chuveiro e da porta disse:

— Vou deitar, se precisar de algo se vira! — riu alto — Boa noite Kanon, se sinta em casa.

— Valeu, boa noite — Ouviu a voz de Kanon abafada do outro lado da porta.

Já no seu quarto Milo se jogou na cama e ficou abraçado ao travesseiro pensando em como sua noite havia se encaminhado de forma inesperada. Não conseguia tirar da cabeça os toques de Hyoga. Estava se sentindo um adolescente de novo. Seu corpo reagia com a energia e excitação daquela época.

***

Hyoga largou a mochila em um canto do quarto e sentou na cama para tirar os sapatos. Precisava de um banho. Ouviu quando Milo ligou o chuveiro no tempo em que o esperou na sala e conteve a vontade absurda de entrar naquele quarto e surpreender o grego. Suspirou, sentindo mais uma vez em seu corpo as sensações que as lembranças do corpo de Milo lhe causavam.

Pegou uma bermuda velha que usava para dormir e seguiu para o banheiro. Tirou as roupas colocando no cesto percebendo com desgosto que precisava lavar roupa. Essa semana a tarefa tinha ficado por conta de Isaak, mas achava melhor não perturbar o amigo por hora.

Entrou no chuveiro deixando a água correr por seu corpo. Fechou os olhos “Sentir você dentro de mim sem dúvida será um deles”, mesmo com a água morna sentiu seu corpo arrepiar ao lembrar da voz rouca e naturalmente sexy falando em seu ouvido. Suspirou o nome de Milo e abraçou a própria carne.

Repassou mentalmente o momento que vivenciaram no sofá, enquanto mudava o final e apertando seu membro se imaginava penetrando Milo, que mordia os lábios e gemia languidamente. Hyoga arfava, aumentando os movimentos e apoiando uma das mãos na parede do box em busca de apoio. Conseguia sentir o cheiro daquele corpo e o gosto da rola suculenta que havia experimentado. Sentiu o arrebatamento do orgasmo e os espasmos que se espalharam pelo seu corpo.

Entreabriu os olhos o suficiente para ver o resultado de seu prazer melando suas mãos e escorrendo um pouco pelo corpo. Respirou fundo, dando um sorriso em seguida, se apenas a memória daquele corpo era capaz de tal prazer, imagina consumar o que ficou em aberto. Terminou o banho, se enxugou vestindo a bermuda em seguida. Pendurou a toalha e voltou para o quarto. Pegou o celular que tinha deixado na mesinha de cabeceira e sorriu ao verificar a mensagem de Milo. Respondeu: “Gosto de quem avisa quando chega. Boa noite!”

Deitou na cama e soltou um último suspiro antes de fechar os olhos e cair em um sono tranquilo e cheio de sonhos.

***

Kanon veste as roupas de Milo, a camiseta ficou um pouco curta, mais justa do que usava cotidianamente, mas para dormir estava satisfeito. Não havia lavado os cabelos que prendeu em um coque alto. ele pendura a toalha no box do banheiro. Dobra suas roupas e coloca em uma das banquetas que dividem a cozinha e a sala do amigo. Vê a cama arrumada para ele e sorri de leve, estava enfim na casa de um amigo.

Não conseguia evitar pensar a respeito do que Isaak estaria fazendo naquele momento.

Seu aparelho celular estava apagado, a bateria finalmente arriada. Olhou em volta e viu que Milo havia deixado um carregador sobre a bancada. Deixou o aparelho carregando e olhou em volta. Não tinha sono. Passa os olhos pela estante, puxa alguns livros atento. Um ligeiro sorriso nos lábios bem desenhados, podia ver o nome do primo na ficha catalográfico indicado como tradutor. Sentiu um imenso orgulho pelo mais novo e mais do que isso uma espécie de orgulho grego. O sucesso de um deles refletia em todos, foi o que aprenderam naquela grande família da qual fazia parte. Ainda sorrindo, devolveu os livros ao seus lugares.

Como que guiados por uma energia externa seus dedos esbarram em um dos porta retratos e ele franze a testa. Ergue um dos objetos pensando que não se recordava de tê-lo baixado e então sente o impacto de um soco no estômago quase não tão metafórico.

Seu cérebro não consegue decodificar a informação contida naquela imagem.

Ele coça os olhos, queixo caído e olhos esbugalhados. Não pode ser verdade…

Mas era isso mesmo o que via, ergueu o segundo porta retratos e nele a fotografia deixava ainda menos espaço para dúvidas. Na primeira foto Milo e o ruivo do bar estavam sentados em um gramado lado a lado em uma tarde de sol, mochilas e livros por perto. Milo sorria radiante e o outro mantinha uma expressão serena, ainda que relativamente divertida. Na segunda estavam sentados, à frente deles uma mesa, provavelmente um restaurante e nela repousavam taças de vinho e uma garrafa pela metade. Milo, sorrindo e corado, tinha o braço repousado possessivamente sobre os ombros do ruivo que encarava a câmera desafiador, queixo erguido em quase enfado, ainda que tivesse os lábios ligeiramente curvados em um sorriso indecifrável. Formavam uma visão fascinante de contraste e beleza. Era inacreditável! Aquele era o ex namorado de Milo?

Tentou se lembrar do nome do psicopata do bar, algo francês. E o ex de Milo, se lembrava era francês. Mesmo que não tivesse essas informações; aquelas fotos não deixavam dúvidas.

Por que afinal nunca encontrou com Milo enquanto ele namorava o tal francês? Passou dois anos na Inglaterra, e no início do relacionamento Milo simplesmente desapareceu do mapa por meses. E desde que retornara, há quase um ano, o amigo estava sempre chateado até que terminaram o relacionamento e Kanon ficou sem nunca ver a cara do tal ex. Até agora. Merda!

Suas pernas fraquejaram relembrando o olhar incisivo daquele homem no bar, isso sem sombra de dúvidas significava que o ruivo o confundiu com Saga. Ou seja… Saga trepou com o namorado de Milo!

Devolveu as molduras para algo próximo da posição original em que as havia encontrado. Apertou os lábios e estalou nervosamente os dedos das mãos. "Saga… Como pôde?"

Estava transtornado.

Não conseguia acreditar no que estava diante de seus olhos. Sabia que Saga era… bom ele era difícil. O que a genética havia imposto de igualdade em semelhança, a vida tinha apartado em seus temperamentos. Sempre tinha sido muito mais amigo de Milo do que o irmão, e por mais que soubesse que o gêmeo era um hipócrita dissimulado, em parte talvez pela profissão, não conseguia acreditar que ele tinha feito aquilo de caso pensado. Não era possível que ele soubesse que o maldito ruivo era namorado de Milo! Quem sabe o destino não reservasse uma ironia final e ambos tivessem irmãos gêmeos. Quais seriam as probabilidades? De qualquer forma não conseguiria encarar Milo antes de ter essa história passada a limpo. No dia seguinte estava combinado um almoço entre os primos e amigos mais próximos para decidir finalmente a despedida de solteiro de Aiolos. Esperaria até algum horário em que pudesse se locomover pela cidade e acabaria com as dúvidas.

Seu irmão tinha explicações a prestar.

***

Existem pessoas que despertam bem humoradas e existem aquelas que parecem a encarnação do mau humor, como se acordar fosse o resultado de alguma invocação maligna. Milo em geral ficava em um meio termo gracioso, sonolento reclamando por cerca de 40 minutos antes de realmente despertar. Era algo que a maior parte daqueles que já presenciaram considerava em algum nível adorável. Naquela manhã em especial, ele acordou apenas feliz. Há alguns meses não se sentia tão bem disposto. Tudo parecia colorido e alegre. Levou um bom tempo para deixar seu quarto todo vaporoso e penteado. Planejava preparar um café da manhã para ele e o amigo, mostrar seu apartamento, grande conquista do último ano.

Mas qual não foi sua surpresa ao encontrar a casa vazia. O sofá cama arrumado e um bilhete sobre a bancada onde leu: "Meu bom, muito obrigado pelo resgate. Fico mesmo te devendo uma! Tinha um compromisso nessa manhã, nos vemos no almoço! Abraço, K."

Considerou a atitude do primo um pouco estranha, conhecia Kanon há tempo suficiente para saber que por mais apressado que estivesse, ele provavelmente teria tempo para dizer pessoalmente que tinha um compromisso. Vai ver era algo relacionado ao Isaak.

Preferiu esquecer, no famigerado almoço perguntaria ao primo que bicho o mordeu para sair como um fugitivo de sua casa. Pegou a roupa de cama que Kanon havia usado e levou para o quarto.

Tirou o celular do carregador desbloqueando o aparelho e visualizando a mensagem de Hyoga. Um sorriso instantâneo se formou em seus lábios. Parece que tinha mesmo voltado a ser um adolescente suspirando pelos cantos e sorrindo bobamente.

Gargalhou mediante a constatação e se pôs a digitar: “Mais um motivo pra você gostar de mim. Vamos jantar hoje. Quero te ver.” Milo mordeu os lábios, sentindo o estômago revirar em antecipação, mas não de forma desconfortável, muito pelo contrário. Sentia aquela euforia e ansiedade que preenche o corpo quando o encantamento e o desejo se fazem presentes.

Suspirou colocando o aparelho no bolso e voltando para a sala começando a preparar o café da manhã. Colocou o pó de café na cafeteira e fez um sanduíche, se acomodou no sofá apoiando a xícara na mesa de centro. Nesse momento seu olhar foi capturado pelos dois porta retratos que estavam em um ângulo estranho. Permaneciam virados, mas por algum motivo, naquele momento, a posição deles havia chamado sua atenção. Franziu o cenho, não recordava o momento em que fez aquilo. Sabia muito bem quais eram as fotos emolduradas e pela primeira vez, não sentia tristeza ao lembrar das situações que elas retratavam.

Deixou o sanduíche na mesinha de centro e caminhou até a estante. Levantou os dois porta retratos e os contemplou por alguns minutos. Nem tudo foi ruim… Sorriu melancólico com o pensamento. Pegou um dos porta retratos, abrindo a parte de trás e retirando a foto. Repetiu a mesma ação com o outro. Juntou as duas e deixou em uma caixa que guardava na parte de cima do guarda-roupa.

Voltou para a sala e encarou os dois porta retratos em pé e vazios, conseguia ver a simbologia que existia naquele gesto. Não sabia exatamente o motivo de ter adiado essa atitude, apenas havia procrastinado. Tornou-se importante, todavia, finalizar esse capítulo.

Havia expurgado a última lembrança de Camus em sua vida, e agora como aqueles objetos, aguardava as próximas memórias que formaria.

Voltou a sentar no sofá tomando seu café e sentindo um bem estar tão grande que seria capaz de contagiar qualquer pessoa ao seu redor.

Ou quase qualquer pessoa.

***

Ele preferia chegar bem cedo na academia, um ambiente rústico de simples austeridade. Gostava de treinar sem ter curiosos a sua volta. Nesta manhã às 6h00, o primeiro horário, já estava a postos distribuindo certeiros golpes de cotovelo, socos, chutes, caneladas e joelhadas. Se o saco de areia a sua frente fosse acaso uma pessoa, nela não sobraria um só osso intacto. Ele estava frustrado e era no Muay thai que descarregava religiosamente, por duas ou mais horas, em pelo menos três ocasiões semanais suas insatisfações. Além de manter sua figura sempre esguia e firme.

A noite anterior havia lhe arranhado o orgulho como há muito não sentia. E agora depois do árduo treino e uma merecida ducha deixava a academia faminto e tentando mapear algo de interessante para fazer com o restante do seu dia.

Caminhava pelas ruas desfilando leveza e indiferença. Roupas ajustadas escuras e sóbrias, bem cortadas, nada exagerado. Os cabelos lisos e recém lavados presos no alto da cabeça em um coque estilo samurai.

Muitos eram os pescoços que giravam para contemplar sua figura, por baixo dos óculos escuros Camus não se dava ao trabalho nem de girar os olhos.

O incômodo com o resultado da noite anterior e o que considerava como inaceitável, ter desabado sozinho na banheira cheio de sentimentalismos ainda se faziam presentes como um enjoo remanescente.

Muitas lojas ainda estavam abrindo suas portas e ele seguia desinteressado, até que em uma vitrine algo lhe chamou a atenção.

Não precisava olhar para a fachada da loja para saber que era a livraria na qual costumava tomar café. Era um dos poucos lugares da cidade que conseguiu unir dois dos seus prazeres, livros e um croissant decente. Empurrou a porta da loja sentindo o frescor do ar condicionado e subiu as escadas.

Primeiro tomaria seu café com calma e depois pediria ajuda com o livro que tinha visto na vitrine. Por mais desgosto que sentisse, não era incomum lembrar do loiro sempre que passava por ali. Ainda mais quando algo na vitrine o chamava a atenção.

Odiava admitir, mas ele preenchia parte de seus pensamentos. E em seu âmago tinha a ânsia de compensar todas as coisas que já havia feito. Sendo assim, o tal livro, mais precisamente uma HQ, seria um bom presente de desculpas. Pediu o croissant e um cappuccino, recebendo risinhos e vendo que as atendentes cochichavam umas com as outras. Abriu seu melhor sorriso de predador, mesmo que nada ali lhe causasse um real interesse.

Caminhou até umas das mesas mais afastadas e comeu tranquilamente seu desjejum, olhando a tela do celular e franzindo o cenho por ainda não ter recebido nenhuma mensagem. Guardou o aparelho e desfrutou do cappuccino e suspirando ao comer o croissant, era realmente muito bom. Conseguia entender a ideia de compensar a ausência de sexo em comida, mesmo que não fosse a sua concepção de equivalência. Terminou de comer, devolveu a bandeja ao balcão, recebendo mais risinhos e desejos de “volte sempre”.

Desceu as escadas como uma elegância ímpar e olhou ao redor.

Aparentemente não haviam muitos funcionários naquele horário. Avistou um rapaz de costas, vestia o colete da loja e de onde pôde observar tinha uma bela retaguarda. Aquilo junto com o café, deu um pouco mais de animação ao seu dia. O rapaz parecia organizar uma estante com guias turísticos, e Camus se aproximou:

— Bom dia, será que você poderia me ajudar com um livro da vitrine? — Usou seu tom mais charmoso, finalmente tirando os óculos escuros.

Teve a sensação de ter ouvido um suspiro, talvez uma bufada, sinal claro de irritação, antes do rapaz se virar e dizer:

— Pois não, senhor. Qual seria o livro?

Camus sentiu a cor escapar de sua face e a manhã que se desenrolava relativamente tranquila se tornar o prelúdio de um pesadelo.

— Mas que diabos você está fazendo aqui?

O outro homem apenas sorriu mecanicamente, deixando os guias na estante e cruzando os braços.

Parece que vivia em uma droga de cidade pequena.

Ou seria apenas mais uma ironia do destino?

Chapter 10: Olhe bem profundamente

Chapter Text

Camus estava boquiaberto, olhando o belo homem que permanecia de braços cruzados e com o sorriso de relações sociais que havia presenciado na noite anterior.

O universo só podia estar fazendo algum tipo de chacota com ele. Compensação kármica, pensou ouvindo a voz irritantemente macia de Shaka em sua cabeça.

Não era possível que ele também trabalhasse ali. Acaso teria que reviver a humilhação e o abandono na noite anterior por mais quanto tempo?

Não era o tipo de homem que se dava por vencido, mas estava cansativo demais vivenciar a avalanche de sentimentos que o tomaram há alguns horas.

— Eu trabalho aqui senhor… Camus. — Sorento respondeu sorrindo educadamente.

Camus engoliu seco, aquele mesmo sorrisinho de sadismo soft, o tom de voz entojado e a pose de superioridade. Ah como tinha vontade de dar uns tapas naquele homem! Uns bem dados só pra quebrar essa postura. Uns tapas umas mordidinhas…

Pensou sorrindo maliciosamente, o que foi claramente observado por Sorento que se mantinha impassível.

— Por acaso você não dorme? — Camus perguntou debochado olhando para o próprio relógio.

— Se assim o fizesse poderia jurar que estou no início de um pesadelo. — Alargou o sorriso.

O sorriso morreu nos lábios de Camus e ele pigarreou; possuía mais de uma abordagem, era apenas questão de equalizar a correta; tentando recuperar o controle da situação:

— Gostaria de ajuda com um livro da vitrine. Você poderia me ajudar?

— É sempre uma satisfação ajudar o senhor. Venha… Me mostre qual o livro.

Sorento caminhou até a vitrine sendo seguido por Camus, que mais uma vez olhou o agora livreiro de cima a baixo. Apontou para um quadrinho que estava em pé junto de outros publicações do mesmo estilo. O livreiro torceu os lábios.

— Por acaso é um presente ou é para o senhor mesmo?

Camus franziu o cenho com a pergunta, mas decidiu não questionar, ao que parece o rapaz estava realmente tentando fazer seu trabalho.

— É um presente… Por quê?

— Posso fazer uma sugestão? — Aguardou a concordância do cliente para prosseguir — Esse quadrinho que o senhor pretende comprar não é de muito bom gosto, digamos assim. Ou melhor, ele atende a um público bem específico. Então, a não ser que o senhor tenha certeza que a pessoa vai gostar, aconselho pedir um selo de troca no produto.

O ruivo ponderou por alguns segundos. Não queria entregar um presente de desculpas que acabasse indicando outra coisa.

— Ok, Sorento. Qual seria a sua sugestão?

— Venha comigo. — Caminhou até a sessão de quadrinhos. — Já que escolheu uma HQ, imagino que a pessoa em questão goste. Sugiro essa daqui. — Tirou um livro grosso de capa dura da estante e entregou a Camus.

— Aqui? — Perguntou rindo em seguida.

— Sim. A premissa dela é abordar a passagem do tempo, mas de uma maneira fora da curva. Nas páginas da HQ ao invés de você acompanhar a vida das pessoas, a grande protagonista é uma sala de estar e suas mudanças durante centenas de milhares de anos. Você vai vendo a construção, a degradação e as pessoas que passaram por aquele ambiente, só que simultâneo. Aqui… — Abriu as páginas da HQ e começou a mostrar - Essa criança por exemplo… — Apontou para uma cena — Ela começa esse movimento de cambalhota em 1987 e em 2001, outra criança termina. Percebe?

Camus sorriu sinceramente virando as páginas do livro.

— É uma bela forma de falar sobre a passagem do tempo, as mudanças e permanências. Sem contudo ser óbvio. Acredito que seja um belo presente tanto pela temática que é cara a todos nós. Quem nunca pensou sobre o tempo e suas implicações? E também pela arte do material que é uma obra prima.

Sorento terminou seu discurso e ficou olhando o ruivo que ainda sorria e folheava o livro. Ele fica mais bonito quando sorri assim, sem nenhum tipo de máscara. Pensou enquanto observava o francês e admitia que a pele de alabastro se sobressaia naquela roupa escura e que os cabelos ruivos, de um tom muito peculiar, mesmo presos, pareciam transformar o castanho daquele olhos em um vermelho intenso. Olhos de coelho. Sorriu.

Percebeu que o ruivo tinha uma bolsa de academia nos ombros, e que mesmo que não ornasse com o restante do visual, não era o suficiente para deixá-lo menos elegante e altivo. Definitivamente, era um homem irritantemente bonito! Pendurado na bolsa tinha um par de luvas. Sorento ficou intrigado, não imaginava que ele lutasse. Tudo bem que aquele corpo não seria mantido com a quantidade de cervejas que o ruivo havia bebido na noite anterior, mas em nenhum momento passou pela cabeça dele que ele praticasse algum esporte.

Interessante!

Camus desviou os olhos do quadrinho, no intuito de demonstrar seu agrado com a sugestão e viu que era atentamente observado pelo garçom-livreiro. O olhar do rapaz repousava sobre as luvas de Muay thai.

— Também gosta de lutar? — A pergunta foi feita em um tom de malícia e ambiguidade.

Sorento suspirou. O sorriso verdadeiro tinha sumido da face do ruivo. Vem fácil, vai fácil. Sabia muito bem o tipo de luta a qual o outro estava se referindo.

— Sou versado em outro tipo de arte senhor… Camus. — Sorriu polidamente.

Camus o encarou por alguns segundos apreciando a resposta. Pensou em dizer algo mais, porém, recordando que suas investidas na noite anterior foram rebatidas com precisão cirúrgica, decidiu por repensar sua estratégia. De todas as opções vigentes essa parecia ser, afinal, a menos problemática.

— Você parece familiarizado com o livro, faz tempo que tem ele?

— É uma leitura fascinante, mas não possuo um exemplar, li aqui na loja. Algo mais em que possa ajudá-lo?

Mais uma vez Sorento foi brindado por um sorriso honesto e devastadoramente belo. E teve que finalmente conter um ligeiro tremor. O ruivo talvez não soubesse, mas fora do personagem caçador era muito mais impressionante e arrebatador. O agora livreiro aguardou alguma resposta recheada de terceiras intenções, mas apenas recebeu um meneio de cabeça.

— Obrigado, por hoje é somente isso, vou dar mais uma olhada pela loja. Mas sua ajuda foi preciosa.

O livreiro sorriu ao perceber a sinceridade nas palavras do ruivo e caminhou entre as estantes retomando seu trabalho. Sempre existia alguma coisa para arrumar.

Camus sorriu enigmático acompanhando o jovem se afastar. Permaneceu um tempo com o livro indicado em mãos acompanhando o último esvoaçar de cabelos até perder Sorento de vista. Olhou para a estante e pegou outro exemplar do mesmo livro. Com um um sorriso maroto e um olhar quase divertido dirigiu-se ao caixa.

Sorento viu pelo canto do olho a passagem do ruivo que hoje não parecia tão psicopata e deu de ombros.

Camus fez o pagamento dos livros, pedindo que ambos fossem embrulhados para presente, contudo, sem o selo de troca. Comprou também dois cartões e escreveu uma mensagem dentro de cada um deles, pedindo para que as embalagens fossem identificadas. Isso feito, guardou um dos livros dentro de sua bolsa e saiu com o outro na mão.

— Com licença…

Sorento olhou confuso. O que mais esse homem pode querer?

— Pois não? O senhor precisa de mais alguma coisa?

— Na verdade sim. Duas para ser exato. Primeiro, queria saber se existe mais algum lugar randômico no qual eu possa te encontrar. Assim o susto fica menor.

— Humm… Aulas particulares de flauta.

Camus ficou ligeiramente vermelho, mesmo que a frase não tenha sido pronunciada com nenhum tom de malícia ou ambiguidade. Entendeu um pouco tarde o que o rapaz quis dizer com “Versado em outra arte”, mas agora sabia que sua face entregava o rubor e seguiu com a abordagem.

— Entendi. Quem sabe um dia…

— E a segunda coisa?

— Ah sim… — Camus esticou o pacote de presente. — Para você.

Sorento ficou um tempo olhando a mão esticada antes de pegar o objeto com movimentos quase vacilantes.

— Obrigado pela dica… Até a próxima, Sorento. — Piscou charmoso.

O livreiro balançou a cabeça negativamente mediante a ininterrupta tentativa de flerte e aguardou a saída de Camus abrindo a embalagem de presente em seguida. Sorriu abertamente ao ver um cópia da HQ que havia indicado e retirou o livro do embrulho.

Um cartão caiu no chão, quando abriu a capa do livro e ele leu a mensagem: “É sempre bom pensar nas implicações do tempo e em suas mudanças. Quem sabe assim, você não muda a ideia errada que deve ter sobre mim e eu deixo de configurar seus pesadelos. Obrigada pela sugestão. Camus.”

Depois do nome tinha um número de telefone.

Sorento guardou o cartão dentro do livro e encaminhou-se até o seu armário para guardar o presente. Ele é mais interessante do que eu imaginava. Fechou o armário sorrindo e voltou ao salão a tempo de ser abordado por uma família e o sorriso sincero se tornar um suspiro cansado.

***

Não encontraria adjetivos para nomear a última noite. Nada educado ao menos. Estava envergonhado, emputecido e principalmente com tesão. Tesão e tristeza eram uma combinação adolescente demais para ele. Sabia ser ainda jovem, mas sua alma, bem… Possuía uma alma velha. Velha e raivosa.

Percebia já há algum tempo a movimentação pela casa. Ou apartamentinho.

Pelos sons pode mapear que Hyoga levou as roupas para a lavanderia do prédio, tinha lavado o banheiro, provavelmente voltou da lavanderia. Fez uma vitamina, lavou louça e recentemente saiu novamente.

Podia quase ver a alegria dele escorrendo feito porra e glitter pelas paredes. Queria se alegrar pelo amigo, mas não conseguia, pelo menos não enquanto estava sozinho no seu quarto sem nenhuma necessidade de fingir estar tranquilo e desinteressado.

Deitado de lado na cama observava que a parede do quarto, carecia de alguns reparos, tão quanto sua alma. A intranquilidade do sono não havia ajudado a organizar as ideias sobre o que tinha acontecido na noite anterior. Só era nítido que parecia ter protagonizado uma das cenas de ciúme mais ridícula que se poderia noticiar, mesmo que não conseguisse admitir isso. Tudo aquilo o incomodava profundamente!

Não gostava de perder o controle das situações nas quais se inseria, muito menos das relações que travava com outras pessoas. Mas Kanon, tinha sido um singularidade desde o primeiro encontro. Por mais que a princípio tivesse optado por não mergulhar no oceano que era aquele homem, quando percebeu já estava sentindo ímpetos de desfazer no murro o sorriso de um certo ruivo desagradável. Estava cansado!

Ao menos parecia que Hyoga tinha aproveitado a noite.

O Pato era um bom amigo, não tinha do que reclamar, mas ele… Bom, Isaak não tinha chegado a nenhuma conclusão sobre suas atitudes na noite anterior e comparar seu estado de espírito com o do amigo não era algo animador.

Abriu a porta do quarto e sentiu o cheiro de limpeza. O amigo não tinha apenas lavado o banheiro. Ele arrumou toda a residência. Um pequeno sorriso. "Hyoga deve estar mesmo muito contente para incorporar a dona de casa zelosa!".

Confirmando que estava sozinho foi ao banheiro e depois de aliviar todas as suas necessidades biológicas tomou um banho.

Tentou não bagunçar nada. Voltou para o seu quarto e se vestiu com uma bermuda de tecido tactel verde escura e uma camiseta branca. Arrumou sua cama e abriu a janela. O dia estava quente, uma brisa fresca, entretanto, deixava o clima muito agradável.

Ligou seu celular. Logo os avisos de ligações perdidas e mensagens brilharam na tela: uma ligação perdida de Kanon, poucos minutos depois que o mandou deixar a casa. Suspirou.

As mensagens: uma de Thétis reforçando que não deveria se atrasar e agradecendo pelo apoio na noite anterior. A segunda era de Bian contando que estava com sua parte das gorjetas coletivas e que lhe entregaria mais tarde.

Nesse momento escutou a porta da entrada sendo aberta por Hyoga. Caminhou até a sala onde viu o amigo tirando frutas, verduras e mais algumas coisas de uma ecobag. Aparentemente tinha voltado da feira.

— Bom dia, Isaak. — Hyoga cumprimentou com um sorriso. — Quer que eu prepare algo para você comer?

— Olha só… Ganhei uma mãe ou uma esposa de uma hora para outra? — Questionou mal humorado.

Hyoga olhou o amigo por alguns minutos analisando o rosto cansado e chateado do outro.

— Mãe ou esposa eu não sei. Mas um amigo você sempre teve. Quer conversar?

— E desde quando falar vai resolver alguma coisa?

— E não falar vai?

Isaak se deu por vencido, sendo seguido por Hyoga sentaram no sofá da casa.

— Não sei muito bem o que dizer… Ou como dizer…

— O que te fez colocar o Kanon para fora? Achei que você queria aquele homem mais do que tudo. Estavam quase transando no carro mesmo.

— E eu queria… Quero… Ah Hyoga… Não sei se isso de desabafar vai dar certo! Você sabe que não faz muito o meu feitio. — Sorriu entristecido. — Acho que prefiro comer alguma coisa e quando estiver melhor comigo mesmo a gente conversa.

Hyoga suspirou, passando a mão pelos cabelos. Isaak era difícil, mas aquela amizade era muito valiosa.

— Como preferir. Vou preparar algo pra você comer.

— Valeu… Mas… E você e o Milo? Tem um tempo que não vejo tanta animação vindo de você, meu caro Pato.

Hyoga revirou os olhos com o apelido besta, e se empenhou em fazer uma vitamina enquanto contava o que tinha acontecido na noite anterior. Mantendo os detalhes mais íntimos, claro. Isaak ouviu a história com sincera curiosidade, um pouco de culpa por ter interrompido indiretamente o momento de Milo e Hyoga e quem sabe uma pitada de inveja. Não inveja da pegação, mas da presença de espírito e cumplicidade entre aqueles dois que haviam literalmente acabado de se encontrar pela primeira vez na vida. Acaso não fosse sua crise… Ainda negava que pudesse ter sido uma crise de ciúmes, estaria acordando ao lado de Kanon e tomando o café da manhã com ele.

Suspirou. Aquele grego maldito o faria enlouquecer!

***

As batidas violentas na porta entraram lentamente na mente imersa no sono do homem que se esparramava entre lençóis sedosos. Uma tela em mais de um tom de preto para o corpo escultural. Uma estátua grega. De beleza a fazer inveja para qualquer habitante do Olimpo. Saga dormia nu. Abriu os olhos.

Às vezes se perguntava qual o motivo de pagar uma taxa de condomínio obscena se em mais de uma ocasião os vizinhos de seu apartamento se comportavam como se aquele luxuoso prédio fosse um cortiço vertical. Pela penumbra do quarto sabia que era ainda bastante cedo.

Alcançou o pesado relógio de pulso dourado que repousava em sua mesinha de cabeceira e confirmou sua impressão. Cedo!

Levantou-se impulsionado pela irritação direcionada ao ser abusado que ousava espancar sua porta. Antes de deixar o quarto pegou um robe negro e se vestiu com ele, cobrindo seu quadril e deixando parte do peito a mostra. Caminhou rápido, mas sem correr. Abriu a porta sem verificar o olho mágico e foi como se deparar com um espelho. Um espelho que te deixa menos elegante, é verdade, mas o ar de descuido de Kanon também tinha seu charme.

— Tudo isso por saudade?

Sorriu de forma a transmitir que era ameaçador e amistoso ao mesmo tempo, uma equação somente alcançada por Saga.

Kanon encarou seu gêmeo, mais velho 3 minutos e 33 segundos. E sem sorrir apenas decretou:

— Preciso de respostas. É urgente.

O gêmeo mais velho abriu espaço para que o outro adentrar sua morada e com uma sobrancelha arqueada perguntou enquanto fechava a porta após a entrada do irmão.

— Aconteceu algo com os velhos? Falei com minha Mãe há dois dias e estava tudo bem!

"Minha Mãe"... Kanon se conteve para não repetir estas palavras cuspindo desdenhoso.

— Não é sobre eles.

— Nesse caso você podia ter esperado até o almoço, não Kanon? Eu preciso de todas as minhas horas de sono. Trabalho pesado a semana toda. Vida de advogado não é mole não...

— Não dormi quase nada também, por isso serei breve. Preste atenção: cabelo liso, longo e ruivo, num tom bem escuro de vermelho não cobre. Quase tão alto quanto a gente, pele clara, magro e muito muito bonito. Sabe de quem estou falando?

— Hunmmm… — Saga o olhou sem entender por alguns segundos e então seu semblante se iluminou — Francês, certo? Nossa! Vocês se conhecem?

Kanon quase literalmente murchou na sua frente e Saga estranhou a reação do irmão.

— Quando você ficou com esse cara, Saga? Me responde sinceramente, como foi esse relacionamento e da onde você conhece ele?

O gêmeo mais velho notou que aquelas respostas pareciam importar genuinamente ao irmão. Kanon torcia mentalmente para ser algo recente. Algo bem recente.

Saga, por sua vez, mapeava quais seriam as motivações que levaram a aquela conversa randômica. A noite com o ruivo havia sido intensa e deliciosa, mas já fazia tanto tempo, realmente não era de seu feitio ficar remoendo encontros exclusivamente pontuais.

— Me explica o motivo do interrogatório. Não estou gostando das suas expressões.

— Pelos Deuses, meu irmão, por favor responda!

Saga jamais admitia ser pressionado, mas sentia em si a angústia do irmão. Não era homem de tirar conclusões precipitadas e julgou que o caminho mais rápido para receber suas respostas seria fornecendo as que Kanon solicitava. O tal homem parecia, afinal, fazer parte de algum enredo importante para seu irmão mais novo. Ele só não conseguia prever qual, afinal até onde se lembrava o tal ruivo era provavelmente alguém da área das Artes; afinal por qual motivo estaria em uma vernissage tão seleta?

Não eram muitos os convidados. Ele mesmo havia conseguido apenas 2 convites e os passara para o irmão que agora o pressionava.

— Por volta de 3 anos atrás? Talvez menos, bem provável mas não tenho certeza exata da data apenas puxando pela memória, foi em um evento de lançamento de um dos artistas plásticos que a firma representa, o sueco, Nyman, aquele das rosas… Aliás, deixei na sua portaria dois convites, mas claro ninguém compareceu! Enfim, nessa vernissage conheci o Francês, honestamente não me lembro se ele era artista ou merchant. Me pareceu carregar um pouco no sotaque, mas pode ser que fosse pelo prosecco ou pelo vinho. — Saga adquiriu um olhar sacana e sorriu coçando o queixo como se tivesse rememorando momentos bem sórdidos — Era um cara interessante e culto. Passamos uma noite bem… Única juntos. Mas não trocamos contato. Nunca mais encontrei com o sujeito, tão pouco o procurei. Entretanto, confesso que valeria a pena. Agora me explica. O que aconteceu?

— Você lembra do nome dele?

— Me lembro. Não falo mais nenhuma palavra antes que me explique que merda está acontecendo. Estou me irritando.

— Eu dei os ingressos para o Milo, estava tudo muito corrido com as questões do mestrado e da minha viagem naquela época… Achei que ele pudesse aproveitar…

Kanon se apoiou no sofá muito pálido.

Parecia que de alguma maneira a culpa pelo que tinha acontecido era sua. Ele sabia racionalmente que não, mas sentia um peso enorme sobre seus ombros. Meses depois daquela noite ele também havia sido traído e a dor demorou muito tempo para cicatrizar. Às vezes ainda se perguntava se havia cicatrizado completamente.

Essa situação era imensamente desconfortável.

Saga fez um gesto com as mãos para que ele se sentasse, mas que continuasse falando. Não conseguia decifrar o que se passava no interior do mais novo e a miscelânea de reações em seu rosto estavam tornando aquele momento ainda mais inquietante.

"O que raios tinha o Milo a ver com essa confusão?" Refletiu aguardando a argumentação do irmão.

O mais novo obedeceu e respirando fundo pronunciou de uma só vez:

— Saga, você passou uma noite com o namorado do Milo!

— Mas… É… O que?!

Foi a resposta do advogado enquanto sentia suas pernas fraquejarem e o coração acelerar.

Chapter 11: Os mais básicos ingredientes

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Shaka se espreguiçou felinamente esticando os braços, e vendo que o lugar na cama ao seu lado estava vazio.

Lembrou vagamente de ver Shura resmungando durante a noite, mas não deu importância, provavelmente era só mais um dos sonhos vívidos que tinha com alguma frequência. Sentou na cama bocejando e caminhou nu até o banheiro da suíte. Tomou um banho lavando os longos cabelos loiros com o shampoo que Shura sempre comprava para ele por “Gostar do cheirinho do seu cabelo”, pegou a escova de dentes que deixava reservada na casa do namorado, meticulosamente fez sua higiene dentária e depois penteou com cuidado os cabelos. Abriu o armário em busca da gaveta de roupas que deixava ali. Apertou os olhos ao perceber que haviam mais roupas do que espaço. Começou a maquinar uma forma de deixar aquilo mais organizado sem ter que pedir outra gaveta a Shura, quando sentiu um cheiro doce vindo da cozinha. Vestiu uma camiseta azul e uma bermuda branca e se encaminhou a cozinha.

— Que cheiro delicioso é esse?

Sorriu ao ver Shura vestindo uma bermuda vermelha e um avental de cozinha.

— Olá, Rubio. Dormiu bem? — Beijou Shaka sentindo o aroma do cabelo recém lavado.

— Muito! Shura… Não me diga que você está fazendo bolo de especiarias?

— Não sei.

— Shura! — Shaka fingiu irritação.

— Você falou para eu não te dizer. — Sorriu servindo um copo de chá. — Tentei calcular mais ou menos o tempo para ficar pronto quando você acordasse. Mas…

— Mas nada. Você é perfeito, sabia?

Shura sorriu sem jeito e pigarreou, a reação não escapou ao olhar atento de Shaka. Mas estava acostumado a ver seu espanhol sem jeito toda vez que recebia um elogio. Aguardou ansiosamente o bolo ficar pronto e comeu um generosa fatia ainda quente, sendo observado por um enigmático Shura.

— Sua gaveta está um pouco cheia, não é?

— Um pouco… — Tentava falar com a boca cheia de bolo. — Vou dar um jeitinho.

O espanhol serviu mais um pedaço de bolo ao namorado cujo os olhos brilhavam mediante a guloseima. Sempre se espantava com o fato daquele homem tão certinho e educado, esquecer os modos na frente de um pedaço de bolo. Gostava das peculiaridades de Shaka.

— Não se preocupe com isso. Já deixei mais duas gavetas e uma parte do guarda roupa reservada para você. — Shura falou bebendo um gole de café.

— Ora, amor, daqui a pouco será mais fácil eu me mudar logo pra cá. — Shaka sorriu.

— Não seria má ideia…

Shaka parou de comer o bolo e ficou observando o espanhol que tinha um meio sorriso parcialmente escondido pela caneca de café.

— Shura… O que você disse?

— Que não seria uma má ideia você se mudar pra cá.

— Você está falando sério?

— Rubio… Eu sempre falo sério. Mas pelo que eu vejo você ficou abalado demais — riu — Termina primeiro de comer o seu bolo e se em algum momento você achar que vale a pena conversamos sobre isso é só me avisar.

Shaka sorriu largamente e voltou a sua árdua tarefa de eliminar todo o bolo de especiarias daquela casa. Não podia negar que já havia pensando mais de uma vez em sugerir que eles vivessem juntos. Porém, sempre voltava atrás na ideia ao perceber que o espanhol parecia gostar de viver só. De todo modo, ele também gostava de sua liberdade e de ter as coisas do seu jeito. Em contrapartida, eles se davam tão bem. De qualquer forma, não precisava responder nada agora. Nem em momento nenhum. Shura tinha deixado isso claro. E era uma das coisas que gostava naquele homem de rosto sério e modos contidos. A forma como ele respeitava seu tempo de decisão.

Pensaria no assunto, mas não agora. Nesse momento estava empenhado em uma tarefa muito mais gostosa.

***

A casa limpa, a brisa fresca… Era um sábado definitivamente agradável.

Entregou a vitamina e uma porção de ovos mexidos a um pensativo Isaak. Tentava controlar o máximo possível seu estado de espírito, para não deixar o amigo mais chateado do que ele já aparentava. Porém, não estava conseguindo manter dentro de si a felicidade que irradiava mediante o encontro da noite anterior. Ao mesmo tempo em que tentava conter suas emoções, permanecia preocupado com Isaak. Sabia que não adiantaria insistir, quando ele estivesse pronto, certamente contaria o que tinha acontecido para enxotar Kanon no melhor estilo cão sarnento. Acho que ele não enxotaria um cachorro doente… Pensou despejando um restinho de vitamina em um copo e bebendo.

— Quer dizer então que o Milo te chamou pra sair de novo? — Isaak questionou dando uma generosa garfada nos ovos.

— Uhrumm… Mandou mensagem perguntando quando eu tinha tempo livre.

— E quando seria?

— Hoje, ué… — Deu de ombros.

— Olha só… Achei que você iria passar o fim de semana estudando. — Falou debochado.

— Posso estudar um pouco hoje e um pouco amanhã.

Isaak terminou de comer os ovos e sorriu mediante o leve enrubescer de Hyoga. Ao menos alguém ficou feliz…

— E já sabe o que vão fazer?

— Ainda não… Eu só respondi que estava livre hoje… Ele ainda não viu a mensagem.

— Entendi. Bom… Eu preciso trabalhar. Ao menos não tenho que me preocupar com você sozinho em casa, em um sábado à noite, com a cara enfiada em algum livro.

— E em algum momento você já se preocupou com isso, Isaak?

— Olha… Com alguma frequência.

Hyoga sorriu ao perceber que o outro dava o primeiro sorriso não carregado de sarcasmo e deboche. Torcia para que as coisas de ajeitassem da melhor forma possível, mas no momento, só conseguia focar seu pensando na resposta da mensagem que aguardava ansiosamente.

***

O lugar escolhido para o encontro dos primos e amigos foi uma lanchonete frequentada por eles desde a adolescência.

Era um ambiente despojado onde se serviam apenas 4 opções de sanduíche há três décadas além de refrigerantes, fritas, café, panquecas e milk shake e era isso. Para fugir da mesmice do bairro de imigrantes em que cresceram, eles em muitas ocasiões se encontraram na tradicional lanchonete de funcionamento 24 horas antes e depois das aventuras juvenis.

A decoração remetia às Diners norte americanas dos anos 50.

Um ambiente gasto no passado, havia passado por uma ótima reforma, liderada por Aiolia; em projeto pro bono; e mantinha o estilo mais arrojado sem perder o ar rústico e acolhedor.

Eles se sentavam sempre na última ilha da esquerda. Em uma mesa larga e grande, ladeada por dois bancos. Um nicho perfeito que já acomodou 10 garotos em outros tempos, mas onde hoje aqueles homens poderiam destoar. E assim seria se considerada fosse apenas suas aparências. Um grupo de homens bonitos, altos e fortes chamaria a atenção, não fosse os sorrisos nostálgicos, a quantidade absurda de lembranças que aquele lugar invocava e o fato de a maior parte dos funcionários dali além da proprietária terem visto a todos eles crescer.

Apenas Aiolia não mantinha os cabelos longos, sendo também os seus num tom de castanho que oscilava em nuances acobreadas e de dourado antigo. Como os outros tinha a pele bronzeada, traços másculos e físico impressionante.

Uma mesa com quatro deuses gregos, seria uma maneira de descrever a situação. Cada um deles, no entanto, se esforçava para manter as aparências. Milo pela ansiedade da descoberta de novas sensações no início incerto de um novo capítulo em sua vida, Aiolia pela responsabilidade em organizar um evento marcante que agradasse ao irmão por quem tinha verdadeira adoração, Kanon pelo nó na garganta que ficou de brinde após os acontecimentos da última noite e Saga por ainda estar lidando com a certeza de um erro antigo que nem ao menos soubera que cometia.

E lá estavam eles, o escritor e tradutor Milo, ao seu lado o arquiteto Aiolia, a frente deste o advogado Saga e ao seu lado o biólogo marinho Kanon.

— Precisamos convidar outros amigos do Aiolos, não concordam? Saga você também é amigo do Shura, não? — Perguntou Aiolia entre uma batata frita e outra. Ele era muito regrado com a alimentação, mas esse encontro merecia sair um pouco da linha.

— Ele sempre foi mais amigo do Aiolos, mas tenho o contato sim. Mando uma mensagem para ele. Mais alguém?

— Amigos de verdade ou todas as pessoas com quem ele conversa e conta da própria vida? — Riu Milo para descontrair.

— Seu irmão avisou se vem, Milo? — Aiolia aproveitou a deixa para perguntar. Kardia com certeza tentaria transformar o encontro em um caso de esbórnia. Não havia como negar.

— Mais fácil Saga saber dele do que eu… — suspirou. — E aí Saga, seu sócio vai aparecer?

Saga que estava mais quieto do que seu normal pareceu se sobressaltar quando ouviu seu nome na voz de Milo.

Nunca foi amigo tão próximo de Milo, essa parte tinha ficado com Kanon, ainda sim nutria afeto pelo menino magricela que corria de um lado pro outro em outros tempos, analisou brevemente que havia se tornado um rapaz bonito e forte. "Uma merda ter cedido a tentação que foi aquele francês gostoso!" Pensou incomodado, mais até do que gostaria de admitir. Tinha plena consciência que não possuía uma culpa real naquela situação. O bendito do ruivo, esse sim tinha uma culpa cabal naquilo tudo. E por mais que estivesse se consumindo internamente, tinha clareza das responsabilidades compartilhadas naquela situação.

A cada gesto ou palavra de Milo ele lembrava de algo insanamente erótico da noite passada com o ruivo há tanto tempo.

Assim, se viu confuso com as sensações revividas e aquela nova plantada recentemente em sua mente.

Ele ainda estava ruminando as informações que o irmão tinha compartilhado mais cedo. Não se considerava a pessoa mais ética do planeta, mas sabia bem das implicações que ter transado com o então namorado do primo; mesmo que não fosse primo de sangue e que ele e Milo nunca tenham sido especialmente próximos, ou que ele não tivesse a par dessa informação naquele momento; poderiam trazer para toda dinâmica familiar e entre os primos. Especialmente às vésperas do casamento de Aiolos! Quando a maior parte da família estaria reunida. Barulhenta, intrometida e calorosamente reunida.

Podia imaginar o escândalo e o drama!

Além de sentir algo inesperado que só podia ser… Pesar? Talvez… Culpa? Bom, não havia espaço para dúvidas, o irmão tinha tirado uma foto dos porta retratos que encontrou na casa de Milo e ao ver a imagem Saga apenas aquiesceu aceitando que havia mesmo fodido o namorado do primo.

Qual a chance daquele homem ter também um gêmeo? Ínfima. Inexistente.

Kanon percebendo o momento esquisito, com o sempre eloquente irmão mantendo uma pausa abobalhada retomou a fala:

— Conversei com Julian e como temos algum tempo podemos decorar o ambiente e passar o slide que Aiolia está produzindo no telão que tem lá. Ele disse que está reservada a parte superior do bar para nosso encontro, mas temos que confirmar logo para ele organizar sua equipe e também poder comparecer. Normalmente somente eventos fechados ficam naquele espaço. Só não podemos destruir o local. O que não seria o caso, certo? Estou te encaminhando os contatos e você confirma tudo com ele Aiolia…

Julian era amigo de Kanon desde a faculdade, apesar de não serem da mesma turma, mas já conhecia os outros de algumas ocasiões. Ele também era de família grega, mas sempre viveu em outra região da cidade, a região dos mais abastados. Apesar de formado na mesmo curso do gêmeo mais novo havia direcionado sua área de atuação, vinha de uma família tradicionalmente rica e atualmente era dono de um bar: Imperador. Ele conhecia os outros primos, tendo como todos imenso carinho pelo noivo.

Saga se mantivera olhando seu celular, absorto recuperando também a compostura.

— Kardia não consegue vir hoje, mas no dia da festa com certeza comparecerá. Podíamos convidar o Dohko, apesar de ser parente da noiva é extremamente divertido! E é bom de copo! Ele e Aiolos são amigos — Saga parecia ter recuperado a presença de espírito.

— Muito bem. Kanon você fecha com o Julian o espaço e pelo menos duas pessoas para ajudar com as bebidas? Só para reforçar já que vocês são mais próximos, vou entrar em contato com ele. Bem lembrado sobre o Dohko, vou ligar para ele ainda hoje, se quiser me passar o contato do Shura eu falo com ele também — Aiolia disse encarando Saga que concordou já enviando o contato do espanhol por mensagem, o irmão do noivo registrava tudo em seu bloco de notas do celular digitando de forma impressionantemente rápida — Kanon, tudo bem convidarmos os primos mais velhos?

Kanon bufou, Defteros sempre pegou no seu pé, mas enfim… Não se viam há alguns anos e os chatos eram primos dos outros também.

— Sim, por mim sem problemas.

— Senhores, creio que temos tudo decidido. — Anunciou um sorridente Aiolia — Aiolos vai casar!

Os outros se entreolharam sorrindo. Brindaram com refrigerantes e milk shakes.

Permaneceram lá por mais uma hora entre gargalhadas e provocações relembrando momentos marcantes da inconsequente juventude. Estavam cada um à sua maneira animados e ansiosos com a promessa de se reverem na despedida de solteiro.

***

Por mais que tentasse, a ânsia da organização não lhe abandonava e foi só findar o magnífico bolo de especiarias que já se via agoniado para organizar a tal gaveta de roupas. Shura conseguia ver a angústia desmedida no olhar do namorado e se divertia com a inquietação causada pela ausência de uma separação nítida e eficiente das roupas por cores e funcionalidade.

Prontificou-se a lavar as louças para que o indiano pudesse enfim, tirar aquele peso dos ombros e seguir sua vida. Por alguns segundos Shaka ficou entre a lavagem da louça, que deveria ser feita primeiro pelos copos e depois seguir com os demais utensílios, visando não deixar um cheio de gordura rançoso. Embrulhava o estômago só de imaginar beber água em um copo cheirando a gordura. E a solução era tão simples, organização na lavagem.

Porém, lembrou da gaveta abarrotada de roupas e da sorte que tinha por ter conseguido mais espaço. Além disso, Shura já estava fazendo a lavagem do jeito correto. Não completamente, pois deveria ariar melhor as panelas, constatou ao observar o fundo de um que estava disposta para ser lavada. Mas não diria nada… Por enquanto.

Deu um beijo longo no namorado antes de ir para o quarto, dando um tapa no traseiro redondo do espanhol que gargalhou mediante o ato.

Tirou todas as roupas da gaveta e colocou sobre a cama, pensando em qual seria a melhor forma de organização.

Shura costumava separar as suas por estação e uso. Era uma boa organização, tinha que admitir. Na verdade, precisa dar o braço a torcer sobre uma série de coisas. Essa era a primeira vez que se entregava tanto a um relacionamento. Nos demais, sempre mantinha sua pose altiva e o “nariz pro alto”, como sempre ouvia Camus falar. Com aquele espanhol era diferente.

Ficava a vontade comendo bolo e falando de boca cheia, ignorava os hábitos alimentares pouco ortodoxos do namorado e acima de tudo, se sentia completo e feliz. Não lembrava de já ter experienciado isso, a quebra de suas barreiras. No começo tinha vontade de mandar aquele homem para o inferno. Não estava acostumado a ter seu ciclo de proteção ultrapassado. Inclusive, acreditava piamente que era intransponível. E em um passe de mágica se viu loucamente apaixonado por um dos homens mais sérios que já conheceu. E até mesmo essa seriedade era um charme.

Adorava ouvir a gargalhada tão incomum aquela personalidade, presenciar os meio sorrisos e sentir o calor daquele corpo. Suspirou.

Não havia organizado nada.

Olhou para o guarda roupa aberto, ouviu o espanhol cantarolando uma música em sua língua natal e sorriu. Nunca em toda sua vida tinha tomado alguma atitude impulsiva. Até mesmo quando era criança, escolhia meticulosamente a cor do lápis que utilizaria para pintar seus desenhos. Ornando com perfeição todos os degrades possíveis em uma casinha com árvore. Então, se existia algum momento em que deveria agir de forma atípica seria agora, com aquele que trazia seu lado humano à tona. Sorriu, deixando o quarto com passos decididos, antes colocando as roupas de qualquer jeito dentro da gaveta.

— Vamos morar juntos!

Sua voz saiu mais alto do que gostaria, assustando um distraído Shura que cantarolava trechos de “La barca”, fazendo com que ele deixasse um dos pratos que lavava cair dentro da pia. Felizmente a louça não quebrou e Shaka agradeceu mentalmente pela nova leva de pratos de melhor qualidade que havia dado ao namorado. Focando finalmente na reação dele ao lembrar o que havia dito segundos antes.

— Rubio… — Shura o olhava surpreso.

— O que foi? Já desistiu? — Torceu o nariz mediante a reação.

— Claro que não. Só não esperava tanta agilidade. — Sorriu.

Shaka enrubesceu já se arrependendo do que havia feito. Por isso que não se deve tomar atitudes impulsivas, por isso… Elevou mais ainda o nariz olhando desafiador para Shura, que permanecia sorrindo enquanto lavava as mãos.

— E quando você muda?

— Huunf… — Fez um muxoxo — Espero que saiba que gosto de organização...

— Sim, claro… — O espanhol tirou o avental de cozinha.

— E eu não gosto de sujeira também…

— Entendido… — Aproximou-se felinamente.

— E eu separo as toalhas de banho entre cores, conjunto e para as visitas... — Observava a aproximação de Shura — Também não gosto de barulho… — Sentiu um frio na espinha ao mirar o sorriso do outro — E como uma quantidade considerável de doces… Além disso…

— Além disso… Eu amo você, Rubio. E todas as peculiaridades dessa sua cabecinha metódica.

Por mais que estivesse observando a movimentação, Shaka soltou o ar que havia prendido ao sentir as mãos do espanhol em sua cintura, e sentir aquela respiração tão perto de si. Não havia jeito, estava condenado. Também amava aquele homem!

Fechou os olhos aguardando o beijo que não tardou a vir. Quando percebeu já estava no quarto, com o espanhol sentado em seu colo, movimentando-se devagar. Não sabia dizer quando tiraram as roupas e muito menos como haviam se preparado. Só conseguia sentir, e querer cada vez mais o calor daquele corpo, o prazer e a paz que ele trazia. Gozou dando um gemido alto que fez Shura sorrir, sendo levado ao prazer pouco depois pela boca hábil de Shaka. Aconchegaram-se na cama. Um ruga despontava da testa do indiano. O espanhol se sentiu nervoso por alguns minutos, suspirando aliviado em seguida.

— Quer terminar de arrumar as roupas?

— Sim, muito! Eu joguei tudo dentro da gaveta. E agora estou aqui pensando que elas devem estar todos amassadas e você sabe, né? Roupa amassada não traz bons fluídos.

— Ainda mais para um casal de recém casados…

— Isso, ainda mais… — Shaka olhou inseguro para Shura — Vamos mesmo fazer isso?

— Oras, achei que já estava certo. Já até te dei um presente de casamento…

Shaka riu alto abraçando o namorado em seguida. Aquele impulsividade tinha que valer a pena. Suspirou, lembrando das roupas e levantou de supetão abrindo o armário, buscando a tábua de passar. Shura colocou as mãos atrás da cabeça e permaneceu nu, olhando um enérgico Shaka, passando todo seu vestuário e recolocando no guarda roupa. Detalhe, também completamente nu.

É… Este casamento será ótimo!

Shura sorriu malicioso ao ver o namorado de costas abaixando para guardar algumas roupas no fundo da gaveta.

***

Milo voltou para casa o mais rápido que pode, ele realmente queria esperar até mais tarde e levar Hyoga para jantar e fazer algo legal, mas parecia realmente ter voltado para a adolescência. Não conseguia tirar da cabeça os momentos que haviam passado.

Olhou em volta, como se procurasse por algum sinal, seu olhar se demorou no sofá e ele aceitou que não queria mais esperar.

Digitou rapidamente em seu celular e enviou antes que se arrependesse: “Você está ocupado?” a resposta não tardou: “Nada que eu não possa adiar”

Sentiu um arrepio correndo por toda sua coluna.

Podia se impor ou perguntar… Escolheu a segunda opção, enviou a mensagem: “Quero te trazer para casa e jantamos mais tarde, posso?” e aguardou a resposta, que foi quase imediata: “Ótimo. Estou esperando!”.

Seu coração disparou. Teve vontade de pular de tanta alegria.

Riu de si mesmo, escovou os dentes, conferiu seus cabelos no espelho, pegou as chaves e partiu.

Chapter 12: Tente segurar um pouco mais

Chapter Text

Kanon estava realmente cansado por conta da noite mal dormida, da avalanche de sensações e pela descoberta de quem era afinal o ruivo psicopata: Camus.

Sua tendência era sempre a de achar que todas as pessoas potencialmente possuíam algo de bom nelas, mesmo que no fundo ou reservado a somente poucos privilegiados. Imaginava que o tal francês devesse ter suas qualidades, mas em nenhum cenário conseguia pensar em um só motivo para que ele fizesse algo para magoar seu amigo!

Milo era uma pessoa muito querida por ele, óbvio que como todos tinha seus defeitos e ranhetices, mas era o caçulinha da turma, sempre teve adoração por aquele moleque.

E lhe partia o coração pensar no que mais o tal ruivo pudesse ter feito à ele.

Essa lanchonete era relativamente próxima de sua atual morada e Kanon agradecendo todos as caronas oferecidas resolveu voltar a seu apartamento caminhando.

Saga deixou claro que jamais teria ficado com o francês se soubesse que ele era ligado a alguém que conhecia e por quem nutria afeto. Ele foi bem específico, demonstrando mais uma vez o quanto tinham noções diferentes de fidelidade e lealdade.

Pelo menos atualmente.

Antes da Inglaterra e daquele demônio com quem se envolveu por lá Kanon também pensaria de forma parecida com a do irmão. Quem sabe a empatia somente surgisse quando era possível se colocar no lugar do outro, ou mais… Quando se via no outro um igual.

Acaso não houvesse sido humilhado e sistematicamente enganado será que teria tanta revolta ao descobrir uma traição tão antiga de um homem que nem fazia mais parte da vida de Milo? Trazer esse assunto a tona não seria jogar o primo e o irmão em uma situação para qual nenhum dos dois estaria de livre e espontânea vontade?

Amava seu irmão, mas, era de conhecimento geral que Saga se considerava pertencente a uma casta superior.

Para ele todos os aspectos de sua aparência, personalidade e experiência apenas comprovam essa ideia. Era advogado por ser superior, era bisexual por ser superior… Tudo nele era uma expressão dessa ideia. E sua ética se baseia nessa verdade acima de tudo.

A história do ruivo, de um jeito bem perverso, o tinha ajudado a tirar o foco de Isaak.

Mas agora, nesse momento em que não havia ainda se decidido se contaria ou não o que sabia a Milo o espaço para que o garçom caolho deliciosamente perturbador retornasse ao topo de seus pensamentos se dava.

Não tinha nada planejado. Precisava se ocupar. Chegou em casa e sua gatinha veio correndo o receber na porta do apartamento 3.

Era uma vira latinha dominante, uma mini pantera negra de imensos olhos amarelos.

Ele morava em um prédio baixo e estreito em uma rua tranquila. Eram apenas três amplos apartamentos e as melhores reuniões de condomínio do mundo.

No primeiro apartamento moravam um casal, quer dizer ele acreditava que eram um casal, dois homens elegantes e bem discretos. No segundo uma mulher, personal trainer e dançarina pelo que ele sabia. Ela tinha dois gatos.

E no terceiro ele e sua companheira felina, Deusa.

Deusa era uma magrela agitada, muito atlética e que ocasionalmente adorava colo.

Tudo que ele precisava naquele momento. Claro ela estava um pouco irritada pelo tempo em que ele passou fora de casa, mesmo que provavelmente tenha dormido por todas aquelas horas.

Kanon cuidou das coisas práticas de Deusa, limpou a caixa de areia, trocou a água e ligou novamente a fonte da gatinha além de colocar um pouco de ração na sua vasilha.

Depois abriu sua varanda e ficou lá olhando para longe. Não queria pensar em Isaak naquele momento, mas se detestava ainda mais quando sua mente o traía com lembranças daquele patife inglês.

Seus pensamentos se encaminharam para Milo e mais uma vez ficou inquieto.

Deusa passou por ele e subiu na sacada protegida por tela se espreguiçando antes de lhe dar as costas e se ajustar em uma posição deselegante para mais uma soneca, desta vez ao sol. Observou a gata toda aberta com a barriga para cima. Sabia que se a tocasse agora levaria uma patada. Era tudo simples com ela. Sentia um turbilhão se formando em seu íntimo.

Resolveu ligar para Julian, precisava sair de casa.

***

Hyoga tinha acabado de sair do banho quando chegaram as mensagens de Milo, ele teve que se conter para não comemorar como uma daquelas animadoras de torcida de filme teen. Respondeu sem se preocupar que parecesse ansioso, ele estava, não havia como negar. Tão pouco se importava, sentia que não havia a menor necessidade de joguinhos com Milo. Era tudo muito concreto, palpável e real com ele.

Os livros e anotações sobre sua escrivaninha teriam que aguardar. Tinha sonhado com aquele homem desde o momento que botou os olhos nele. não não parecia que fora apenas na noite anterior. ele sentia que precisava logo voltar para os braços de Milo e divergindo de seu comportamento regular ele seria irresponsável com os estudos, que jamais negligenciava, e não perderia a chance de passar quanto tempo o grego tivesse disposto a compartilhar com ele.

Ainda que seja uma boa metáfora; dizer que borboletas passeavam pelo estômago de Hyoga naquele momento era muito pouco.

Não dava conta do alvoroço em seu ser.

Quando recebeu as mensagens de Milo ele ficou exultante. precisava logo dar um fim ao tormento que a ausência daquele homem que a bem da verdade nem conhecia estava trazendo ao seu sempre sereno cotidiano.

Mentira. Não era uma pessoa serena, mas podia com algum empenho se atribuir o título de centrado. Pelo menos de estudioso. Ao contrário de Isaak que apesar do sono desregrado, da aparente desatenção sempre consegui ir muito bem em todas as disciplinas, Hyoga necessitava de horas de leitura e fixação de conceitos e exercícios práticos.

Para ele estudar demandava energia. E era por saber de suas dificuldades, especialmente por conviver tão próximo de um geniozinho que ele sempre dedicava boa parte do seu tempo aos estudos.

Mas não hoje. A expectativa de encontrar com Milo fez com que ele voasse pelas escadas, antes disso apenas avisou o amigo que estava de saída e que só lhe telefonasse em caso de vida ou morte. Isaak que estava jogado no sofá ouvindo música em seus fones de ouvido lhe devolveu um gesto encorajador um tanto obsceno.

Todos sabiam o que aconteceria. entretanto, apenas ele tinha noção do quão era ansiado este momento. Uma questão de afirmação de sua própria identidade. Nos braços de Milo ele se sentiu livre e convicto.

Se nas experiências anteriores foi plantada em sua alma uma dúvida, que lhe gerava bastante angústia, com o grego ele sentia apenas a mansidão aconchegante da firmeza, permeada pela escalada louca do desejo é verdade.

Lembrou-se de seu espanto quando foi tocado pelo amante de Pandora, sim naquele primeiro momento ele ainda não possuía um nome que valesse ser citado, mas mesmo lá, naquele instante relativamente distante, o toque havia tirado do eixo um Hyoga apoiado em certezas. Um jovem que se considerava tão bem resolvido que poderia topar participar de uma aventura sexual tão ousada.

E quando se beijaram ele soube. Não aceitou de imediato, mas soube que aquele sim era o jeito certo para si. Depois disso buscou reencontrar aquela sensação. E conseguiu, ainda que houvesse também sofrido um revés por isso. Então resolveu ser cauteloso e vinha sendo.

Até a noite passada, quando pode finalmente tocar a perfeição, superando qualquer prospecto que pudesse conceber.

E agora aquele homem estacionava logo ali. Foi arrancado de suas reflexões pelo sorriso que brilhava mais que o sol.

Entrou no carro e se inclinou para beijar o rosto do motorista, que percebendo sua intenção apenas moveu o rosto e lhe capturou os lábios mordendo de leve antes de insinuar sua língua maravilhosa boca adentro. Não aprofundou tanto o beijo, mas foi o suficiente para cobrir as faces de Hyoga de vermelho e não lhe dar a menor chance de escapar de seus encantos. Milo sorriu se afastando e passando o polegar pelo rosto corado do russo.

— Estou muito feliz em te encontrar.

Aquelas palavras poderiam significar ainda mais? Concordou com a cabeça por falta de confiança em sua voz. Sentiu um pouco de medo, era muito cedo para se apaixonar.

Mas quem conseguia mudar o curso desenfreado de um jovem coração?

***

Por mais que preferisse passar todo o final de semana na presença daquele homem tão incomum, com quem havia decidido popularmente juntar as escovas de dente, precisava urgentemente voltar para sua casa. Não havia planejado passar a noite e parte do dia todo fora, sendo assim, suas plantinhas deviam estar sedentas por água e luz. Estava se martirizando internamente por não ter cumprido seu ritual de aguar todas elas, movimentá-las na melhor posição para pegar os fracos raios de sol da manhã e bater aquele papo esperto, somando todos os elementos para plantinhas saudáveis e felizes. Torceu o nariz, sentado no banco traseiro do carro de aplicativo, ao imaginar como levaria todas as plantas que praticamente tornavam sua casa uma selva.

Espaço não seria um grande problema, uma vez que, Shura morava em uma casa ampla, possuindo varanda e um quintal nos fundos. Como vou fazer essa mudança? Coçou o nariz arrebitado, imaginando se poderia dar alguma das plantinhas para algum amigo. Não teria coragem, ninguém saberia cuidar daquelas fazedoras de fotossíntese como ele.

Desceu do carro ao chegar na portaria de seu prédio e adentrou o local usando uma calça de linho verde musgo e uma bata branca. Os cabelos presos em um rabo de cavalo baixo e óculos escuros. Em uma das mãos, uma ecobag com a roupa usada no dia anterior devidamente dobrada e pronta para lavagem.

Cumprimentou o porteiro do prédio com o meneio de cabeça, e recebeu outro em troca do senhor que parecia hipnotizado por algum jogo de futebol que passava na tv chuviscada. Entrou no elevador, olhando inconscientemente para o espelho e sorrindo ao notar que iria casar.

Nunca tinha sido contrário a ideia de contrair matrimônio com alguém, mas para ser sincero consigo mesmo, nunca se imaginou encontrando alguém com paciência suficiente para lidar com… Suas peculiaridades, como dizia Shura.

Ouviu o som do elevador indicando o sexto andar e desceu.

Caminhou alguns passos até sentir seu corpo inteiro congelar. Agradeceu mentalmente os óculos de sol, caso contrário seu olhar trairia o assombro e a admiração que a figura estática emanava.

Era um homem comprometido e amava seu namorado, porém, não era cego e muito menos imune às benevolências do destino no que dizia respeito a aparência de Camus.

O ruivo de cabelos em um tom de vermelho tão atípico, que o fazia ter a sensação que eram únicos, estava encostado à sua porta, com aquele sorriso de canto de boca, olhos mortalmente ameaçadores e suas indefectíveis roupas escuras.

Engoliu seco.

Por mais que estivesse acostumado, era sempre uma surpresa quando encontrava aquele homem, com aquela postura. Aquele olhar excruciante, em um misto de raiva, frustração e tesão. Sim, não importava o alvo, os olhos de Camus sempre refletiam tesão. E isso não era de todo o mal, admitia. Mas tornava um tanto intimidadora a convivência com alguém que parecia estar te comendo com o olhar a todo instante. O convite que via estampado naqueles olhos aparentemente castanhos, mas que podiam oscilar tranquilamente entre tons de escarlate, deixava-o desnorteado. Por mais que tivesse a plena consciência que não passava de mais uma das várias máscaras que o Francês usava.

Lembrava da época em que aquele olhar refletia sinceridade e carinho. Tinha saudades deste tempo, não tanto por si, mas pelo outro. Deve ser difícil manter um personagem vinte e quatro horas por dia.

Rapidamente lhe ocorreu que talvez nesse ponto não fossem tão diferentes. Quantas não foram as ocasiões em que se pegou em algum nível também interpretando um papel de si mesmo? Era no mínimo inquietante que apenas nos momentos mais desgostosos e irritantes ao lado de Camus sentisse liberta sua faceta mais detestável, o que lhe rendia exaustão e sossego posteriormente. Afastou os pensamentos… Jamais estaria preparado para se debruçar sobre isso.

Soltou aos poucos o ar que havia prendido involuntariamente ao esquadrinhar aquele corpo aparentemente feito de mármore e jogou seu belo narizinho para o ar.

Maldizia internamente o dia em que avisou na portaria que Camus tinha passagem livre até o seu apartamento.

Havia pensando no amigo durante o tempo que permaneceu na casa do namorado, mas a recepção de sinal telefônico no local não era das melhores. Além disso, o espanhol era absurdamente compreensivo, mas não queria abusar dessa faceta falando sobre seu amigo ruivo depravado. Sabia melhor do que ninguém que tudo tinha um limite. E não almejava ultrapassar os de Shura e criar um conflito entre os dois.

Retomando sua costumeira postura de altivez e superioridade, fazendo emanar uma aura quase divina, caminhou até a porta de seu apartamento.

— Vejo que continua vivo. — Shaka falou calmamente.

— Ou isso, ou sou um fantasma que veio te assombrar.

— Você já me assombra o suficiente em vida, Camus. Venha… Entre. Deixe os sapatos onde você já sabe que deve.

O francês alargou o sorriso e entrou no apartamento. Shaka suspirou se afastando, sabia como eram raros aqueles sorrisos verdadeiros… Envaidecido decidiu por nada dizer, tratou de organizar as coisas de acordo com o que havia planejado.

Camus olhou em volta se sentindo acolhido pelo lar de Shaka. Por mais que soubesse que não podia cobrar, ainda gostaria de saber porque aquele indiano medito a Buda não respondeu suas mensagens e muito menos foi em seu socorro. Por outro lado, ainda que azucrinante estar com Shaka era definitivamente melhor do que sem ele. Era seu único amigo, não?

Executa a rotina para adentrar o templo do sexto andar, tirou os sapatos e dirigiu-se ao lavabo para higienizar as mãos. Shaka parecia entretido com sua mini floresta.

O silêncio nunca havia sido um grande obstáculo, assim Camus aguardou.

Considerou que era sua vez de dar o braço a torcer e nesse ambiente controlado, apenas na presença do amigo, faria isso de bom grado.

Na noite anterior ao se perceber sozinho, com a surpresa pela chegada de Milo, havia vivenciado um desamparo que o levou a reconsiderar algumas suposições e posicionamentos. A mais importante delas é a de que estava melhor sozinho. Que piada!

***

Abriu a porta do luxuoso apartamento, agradecendo aos Deuses por finalmente estar de volta ao seu santuário.

O encontro com o irmão e os primos não foi de todo ruim.

Por mais que não tivesse muito em comum com o irmão, além do óbvio vínculo genético, amava aquele reflexo rebelde que era Kanon.

E isso jamais poderia ser questionado por alguém.

No entanto, não era a figura fraterna que lhe preocupava, mais sim Milo.

O caçulinha daquela gangue grega formada pelo grupo de primos. Justiça seja feita, não era e nem nunca foi tão chegado ao garoto. Milo era exageradamente intempestivo, caloroso em demasia e intenso até cansar! Sempre foi assim.

E como Saga não era uma pessoa dada a paciência para os arroubos sentimentais, sempre preferiu a companhia de Kardia, o irmão mais velho.

Kanon, por sua vez, parecia dedicar uma paciência homérica com aquele garoto e andava pra cima e para baixo sendo seguido por ele. Nunca entendeu muito bem aquela relação, ou melhor dizendo, não entendia como o irmão preferia perder tempo com um pirralho do que com as festas e putarias que organizavam na juventude. Kanon sempre foi estranho!

De qualquer forma, sabia que só estava protelando o real motivo de sua inquietação: tinha comido fervorosamente o namorado de Milo. Ah meus amigos, e como tinha! Foi correspondido com desespero e entrega…

Um sorriso largo, cheio de dentes e absolutamente safado ornava seu rosto ao lembrar do ruivo. Milo tem bom gosto! Pensou tirando a roupa, permanecendo apenas com uma cueca boxer preta, jogando-se em seguida no sofá.

Durante o almoço havia refletido sobre sua ausência de culpa naquela questão.

Era um excelente advogado, e poderia com grande tranquilidade se isentar de toda a responsabilidade, afinal, como poderia ser réu em um crime que sequer sabia que estava cometendo? Sabia que circunstancialmente era possível, mas naquele caso em específico a lei não se aplicava. Ali a ignorância havia sido sua aliada! E poderia ter continuado assim, se não fosse Kanon e aquela amizade irritante que possuía por Milo. Ao menos ele havia acreditado que não treparia com o namorado do primo de forma deliberada.

Pelo menos isso…

Colocou um dos braços em cima dos olhos, tentando a todo custo ignorar o sentimento desconfortável que crescia dentro de si. Poderia atestar perante qualquer um que não possuía culpa, mas não sabia se manteria a firmeza diante do olhar sempre afetuoso de Milo. Infelizmente, gostava daquele menino. Por mais que não fossem parceiros de aventura, tinham um elo de convivência e carinho que os unia. Além do afeto indiscutível que nutria por Kardia, que era seu sócio, e que mesmo não gritando aos sete ventos devotava adoração ao irmãozinho.

Jamais mencionaria o assunto. Não achava coerente remoer um caso de mais ou menos três anos, com o único intuito de informar ao outro sobre os chifres que enfeitavam sua cabeça. Sua única preocupação era Kanon e seu senso de dever com Milo.

Sendo honesto, não era difícil admitir que o primo mais novo era adorável e que seria improvável que alguém o desprezasse.

E nesse ponto, não conseguia concatenar os motivos do ruivo para a tal traição...

Também não estava interessado nisso.

Só queria organizar sua cabeça e colocar sua melhor “cara de advogado” e voltar a encarar o primo sem rememorar a voz sexy, os gestos sugestivos e o olhar de tesão incontido daquele ruivo gostoso!

Apenas queria voltar a sua superioridade, sem sentir pesar por suas atitudes, apenas isso.

Sentou no sofá, pegando o celular do bolso da calça que havia deixado em um canto qualquer.

Olhou o aparelho em busca de um número, fazendo em seguida a chamada. Sabia que não chegaria a nenhuma conclusão e que no momento, algo semelhante a culpa criava domicílio em algum canto de seu cérebro. Isso posto, o máximo que poderia fazer para minimizar sua aflição seria proporcionar ao mais novo uma grande diversão, e era a essa missão que se dedicaria naquela ligação.

Alheio a qualquer outra forma de desculpas que não resvala, desenrola-se pelo sexo ou pela penitência, na medida em que ambos se completam, Saga fazia o melhor que conhecia para tentar remediar o sofrimento que sabia que imputaria ao primo no momento em que Kanon abrisse boca.

Porque sim meus amigos, ele tinha certeza que o gêmeo não conseguiria omitir muito tempo a informação do pequeno sol, que chamavam de familiar e esperava ao menos ter o atenuando o suficiente para não se queimar tanto, quando a fúria de Milo recaísse sobre si.

***

Isaak chegou ao Imperador um pouco antes de seu horário de entrada. Ficar em casa estava o deixando cada vez mais agonizante em remoer a noite anterior. Pouco depois da saída de Hyoga ele percebeu desgostoso que sua playlist raivosa tinha dado lugar a uma bem melancólica e esse foi o impulso que precisava para se trocar e deixar sua casa rumo ao bar.

Sábado costumava ser sempre um bom turno, muitas gorjetas e enredos para entreter sua mente. Distrair seus sentidos. Precisava se cansar. Então ajudar nas atividades que preparam o bar antes da abertura lhe renderia esse cansaço extra além de quem sabe alguns trocados.

Assim depois de se trocar ele passou a organizar com Io as mesas e cadeiras pelo amplo salão.

Logo, a gerente Thetis apareceu vinda do andar de cima, parecia satisfeita e ligeiramente surpresa com sua presença. Estava bastante animada por conta de um evento que aconteceria dentro de alguns dias no bar.

— Meninos, algum de vocês tem interesse em trabalhar em um evento fechado daqui a 20 dias? Servir um grupo de cavalheiros em uma despedida de solteiro? Temos duas vagas, pensei em Sorento, pois ele sempre pega todos os eventos. Alguém?

— Estou fora — Isaak se prontificou a dizer, realmente atender um bando de almofadinhas não era algo que pensasse poder lidar sem acabar criando algum problema maior para si mesmo.

— Eu topo! — Io disse empolgado na sequência.

A gerente digitou algumas coisas no seu celular e sorriu para eles.

— Confirmado então Sorento e Io. Depois eu passo maiores detalhes.

Piscou para eles e seguiu em direção a cozinha.

Nesse momento a movimentação nas escadas que davam acesso ao piso superior chamou a atenção dos rapazes que voltaram a organizar as coisas.

Da parte superior desciam Julian Solo, o proprietário do bar e outro homem, como atraído por uma força metafísica Isaak não conseguiu desviar o olhar.

Lá estava seu tormento grego, sorrindo e cheio de intimidade com seu empregador.

Travou os dentes, seu único olho arregalado, realmente estava condenado.

Chapter 13: É disso, que tudo se trata

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Durante o trajeto ele havia capturado a mão de Hyoga e não mais a soltou, assim de dedos entrelaçados havia trocado as marchas e nos poucos instantes em que precisou usar as duas mãos no volante, Hyoga deixou a sua aguardando apoiada pacientemente em seu colo. Chegando ao prédio de Milo subiram de mãos dadas e o gesto parecia sempre ter estado lá para os dois.

Esse nível casto de ternura agradava a ambos, mas estando uma vez na intimidade que a porta fechada da casa de Milo oferecia a deixaram de lado. Tomou seu lugar uma volúpia avassaladora. Ninguém poderia dizer que haviam atrasado esse momento por menos de 24 horas, os gestos e os sons davam a entender que há muito tempo esperavam por estar nos braços um do outro.

As roupas e os calçados foram sendo deixados pelo caminho. E como na noite anterior não saberiam dizer como ou enquanto tempo chegaram àquele momento: deitados, misturados marcando em saliva, mordidas e beijos um a pele do outro. É claro que mesmo agora eles sorriam e se preocupavam constantemente em agradar o parceiro, mas a aura geral era completamente erótica. Estavam mapeado até onde poderiam chegar, reconhecendo o terreno para obter e proporcionar prazer. Eram generosos e exigentes.

Milo percebeu como Hyoga se curvava a cada vez que lhe tocava a base da coluna e as coxas e trabalhou nas carícias sem deixar de beijá-lo de tempos em tempos. Hyoga provava do pescoço de Milo e lhe arranhava as laterais do peito. Beliscou seus mamilos delicadamente. Iniciou sua descida. Sabendo que seria mais uma vez presenteado com um boquete fabuloso Milo se ajeitou na cama para observá-lo.

— Eu quero ver você — Disse enquanto tirava com a mão os cabelos de Hyoga de seu rosto.

O mais novo sorriu enquanto percorria com a língua o caminho descendente, seguindo uma trilha natural de pelos aloirados do umbigo de Milo até a felicidade. Depositou um beijo delicado na base do membro, passou seus lábios por toda a extensão e então encarou Milo.

Olhos escurecidos.

— Não feche os olhos então, estou a sua disposição. Me diga do que gosta. Tudo que eu quero é te agradar Milo.

O grego precisou respirar fundo. Não conseguia entender o motivo, mas ao que tudo indicava o outro rapaz parecia sim saber fazer tudo do seu agrado…

— Apenas… Continue…

Confiante e sem desviar os olhos do rosto de Milo, que estava se é que era possível ainda mais bonito, Hyoga passou a manipular o falo pulsante e então o abocanhou iniciando a sucção em tudo que podia conter em sua boca. Os gemidos de Milo se tornaram mais roucos. Hyoga afastou a boca apenas para comandar:

— Fala comigo.

E Milo seguiu o comando automaticamente:

— Hyoga… Isso é perfeito… Hunmmm… Você… Você vai me matar assim… Ahh Hyoga… Continua…

Essa tortura perdurou por alguns momentos, até que os gemidos de Milo subiram alguns decibéis. Nesse ponto a entrada do grego já estava sendo magistralmente preparada e ele movia o quadril lentamente rebolando. Então ele apenas ordenou puxando o rosto do russo.

— Não quero mais esperar.

A imagem de Hyoga descabelado, de boca entreaberta, lábios vermelhos e inchados, a milímetros de seu pau, inclusive sua saliva brilhando no membro eram demais para Milo. Ele teve que fechar os olhos e usar todo seu autocontrole. Era real demais, intenso.

— Hyoga… Não me faça implorar...

Não foi preciso mais nenhuma palavra. O mais novo já estava deitado sobre ele, segurando os dois membros juntos, em um movimento muito suave, enquanto falava ao seu ouvido:

— Você tem camisinha, lubrificante?

É claro que Milo tinha, mas se assustou pois não havia nem cogitado pedir que o outro usasse preservativo. Só podia estar enlouquecido!

Camus sempre fizera questão e ele tinha transado sem camisinha quantas vezes em sua vida? Esse garoto realmente o tirava do eixo. Abalado apenas apontou a primeira gaveta da mesinha de cabeceira, onde já tinha deixado os ítens estrategicamente colocados.

Hyoga se inclinou para buscá-los e ele se aproveitou desse momento para meio agachado buscar com a boca o membro do amante que lindamente apontava para cima. Todo conjunto do russo era harmonioso e sua beleza tirava o fôlego de Milo. O rapaz segurou os objetos com firmeza gemendo. aproveitou por alguns momentos e então determinado empurrou Milo que o olhou satisfeito.

— Eu quero você!

Disse resoluto. Milo apenas sorriu. Hyoga vestiu a camisinha, espalhou lubrificante em sua mão e depois no próprio membro e na entrada apertadinha que piscava de ansiedade.

Eles se posicionaram de forma que pudessem se olhar durante todo o tempo. E mais uma vez ficaram impressionados com a simetria e o encaixe. Como se seus corpos já se conhecessem… E estivessem retomando uma dança já efetuada por eles em algum passado indeterminado, entretanto, que pudesse ainda estar na memória muscular de seus corpos.

Desejosos foram lentamente aumentando o ritmo. Olhares, mãos, dentes, lábios e línguas exigindo mais contato. E o som das peles batendo em uma melodia ardida que os deixava extasiados, acompanhando o elevar de suas vozes graves. Seus corpos brilhavam pelo suor que decorava a pele. Cabelos colados na nuca e na testa. Sorrisos e palavras desencontradas.

Quando Hyoga sentiu ter encontrado o ponto macio que detonaria com maior intensidade o orgasmo de Milo fez um esforço sobre humano para insistir no toque ritmado com força suficiente para que o parceiro despencasse no abismo do prazer. Virando os olhos Milo gozou, o membro apertado entre os dois corpos vibrando. Os dedos e as mãos encravados nas nádegas de Hyoga.

Ao sentir toda pele de Milo se arrepiando e a pressão sobre seu pau intensificada Hyoga não mais se conteve e num urro arremeteu mais algumas estocadas profundamente até que acompanhou o outro rumo ao orgasmo avassalador. Convulsionaram. O ar e o som estagnados. A vista turva.

Permaneceram abraçados mesmo com a respiração descompassada. E então mais uma vez voltaram a rir.

— Milo, isso foi maravilhoso!

Hyoga estava mesmo espantado. Não tinha palavras. Milo o encarou e também sentiu medo. O mesmo medo que assaltou o outro quando estavam deixando sua casa mais cedo. O puxou para mais perto, como se fosse possível acalmar sua inquietação e disse com os lábios entre seus cabelos.

— Foi sim… Foi perfeito.

***

Aguardou pacientemente o fim de toda aquela rotina e acompanhou os movimentos fluidos empregados em ações cotidianas. O amigo sempre fora de uma leveza ímpar. Shaka era o tipo de pessoa que imprimia perfeição e graça em todas suas atitudes. Sendo em alguma medida relaxante observar sua movimentação, por mais que muitas vezes suas manias extraírem parte do prazer da análise.

Quando Shaka finalmente deu-se por satisfeito e pousou os olhos sobre ele, Camus mais uma vez sorriu.

Um sorriso verdadeiro e caloroso. Algo que o indiano não presenciava há uns bons anos. Isso fez com que um sorriso também surgisse em seu rosto e eles se contemplavam em silêncio por alguns segundos. Faziam parte um da vida do outro há bastante tempo. Isso tinha que valer para algo, não?

— Quer beber algo Camus? Chá gelado? Água ou suco?

Shaka preferiu quebrar aquele encantamento. Precisava ser prático, era assim que sempre foi e assim continuaria.

— Pode escolher por mim, sendo gelado ficarei satisfeito.

O anfitrião preparou um chá gelado para ambos, voltando segundos depois com uma bandeja na qual apoiava dois copos. Camus guardou rapidamente o celular e Shaka torceu o nariz. Já deve estar metido em outro rolo. Sentou no sofá ao lado do amigo, com o corpo virado na direção dele.

— Então… Como foi a noite? — Shaka questionou bebericando o chá.

— Sinceramente? Exatamente do jeito que você previu. Você tinha razão, Shaka… Acho que sempre tem, afinal de contas.

O indiano fez um esforço para não engasgar com a bebida e sustentou o olhar decidido que vinha do outro. Mesmo quando eram jovens estudantes, Camus era avesso a ideia de concordar com outras pessoas. Apreciava a certeza que possuía de estar sempre correto, assim como o loiro que agora o encarava com a testa franzida e um ar de desafio, como se tentasse descortinar a trama intrínseca naquelas palavras. Camus em contrapartida, tinha plena convicção do peso de sua afirmativa, ainda mais para alguém que o conhecia de tempos imemoráveis, que percebeu terem um peso maior do que ousava admitir.

Aproveitou o momento, sabendo que a mente de Shaka estaria se desdobrando em diversos cenários e justificativas, buscando de forma metódica a melhor combinação de palavras para reiniciar o diálogo. Obviamente, de maneira ácida e certeira. Abriu a bolsa que tinha deixado ao seu lado e tirou um saco plástico vermelho, entregando ao pensativo indiano.

— Passei naquela livraria que você gosta…

— Aquela do croissant verdadeiro? — Shaka colocou o copo dentro da bandeja e se ajeitou no sofá.

— Essa mesma… — Camus riu — Comprei para você. Espero que goste.

Shaka arqueou uma sobrancelha, analisando com precisão aquele sorriso e as atitudes do ruivo. Sabia que estava exagerando, não era a primeira, e sabia que não seria a última em que se presenteavam sem motivo algum, mas mesmo assim… Tem algo diferente.

Desviou o olhar abrindo o saco plástico e vendo um embrulho de papel reciclado. Retirou o presente do saco, deixando no colo enquanto dobrava a embalagem plástico, fazendo quase uma dobradura.

Camus sorriu, o loiro ainda tinha o hábito de dobrar os sacos plásticos e os guardar, mesmo que preferisse bolsas recicláveis. Olhou curioso para a embalagem rompendo o lacre com certa ansiedade, retirou o livro de capa dura e mirou a capa sorrindo genuinamente. Camus acompanhou o sorriso e chegou mais perto de Shaka, que já não estava mais percebendo seus movimentos, uma vez que ficou intrigado com o livro. Abriu a primeira página e viu um cartão escrito na caprichosa letra de Camus:

“Ao que parece o tempo não foi generoso comigo. Não saberia dizer se ele realmente é com alguém. A única coisa que eu sei, é que assim como o “personagem” dessa história, você permanece aqui em diferentes momentos, e espero que assim continue. Desculpe por todo o trabalho e obrigado por não desistir de mim. Com carinho, Camus.”

Shaka relia o cartão freneticamente, tentando encontrar alguma coisa ali que desabonasse o texto e que o ajudasse a segurar a máscara que usava com maestria.

Sobressaltou-se ao sentir as mãos de Camus sobre as suas e olhou para ele. A dúvida implícita naquele olhar, sendo rebatida pela ternura que via nas orbes avermelhadas. Respirou fundo, enlaçando o pescoço do ruivo e sorrindo, sentiu a retribuição do abraço e o calor que sabia que Camus possuía. Escondeu o rosto na curva do pescoço do ruivo ao constatar que por mais que tentasse, nada havia mudado. Detestava a ideia de se despir, mesmo que metaforicamente, para outra pessoa.

Atribuía tal faceta apenas a Shura, ignorando o que vinha antes. Sentiu as mãos do amigo afagando seus cabelos e torceu o nariz com a cena que se desenrolava em sua sala.

Ao mesmo tempo, sentia conforto e familiaridade naquele aconchego. Estavam juntos, de um jeito ou de outro um, na vida do outro, há tanto tempo.

— Tenho consciência que um livro não é suficiente para expurgar tudo que fiz até aqui… Só espero que você aceite como um começo.

— Camus… — Shaka olhou para o amigo — Tudo precisa de um começo.

Sorriam como na época em que se conheceram, quando faziam planos sobre o futuro e os percalços da vida adulta ainda não havia os calejado. Shaka pousou uma das mãos pelo rosto do ruivo, vendo-o fechar os olhos.

Correu o olhar pela face de Camus se detendo em... O alarme soou.

Abaixou suas defesas por alguns segundos e já perdia a capacidade de analisar a situação. Não podia se dar ao luxo de um descuido tão grosseiro. Inadmissível. Não sou esse ser patético!

Desvencilhou-se do abraço e ao contrário do que se poderia imaginar, não captou nenhuma reação de surpresa por parte de Camus. Eles se conheciam. Sabiam a essência um do outro, e o trabalho primoroso que executavam na construção de suas personas. Ajeitou o longo cabelo loiro, arrumando a franja, recolocou o cartão dentro do livro, fechando em seguida e depositando na mesa de centro, próximo a bandeja, mas não o suficiente para que algum respingo caísse. Jamais estragaria um livro. Respirou fundo e encarou o amigo. Este continuava com o mesmo olhar e o sorriso. Aquilo o incomodava.

— Agradeço pelo presente, Camus. Assim que terminar de ler te conto o que achei.

— Ótimo! Vou aguardar. Bom… Você acabou de chegar, deve estar querendo tomar um banho e relaxar. Vou te deixar em paz. — Levantou do sofá pegando sua bolsa.

Shaka abriu levemente a boca, na intenção de dizer algo, mas fechou em seguida, levantando e acompanhando o amigo até a porta. Destrancou a fechadura e deu passagem ao ruivo. Ficaram de frente, medindo-se, avaliando um ao outro, as mudanças e permanências e concluindo internamente que algumas coisas não mudavam. Não importa o tempo que passasse.

Camus estendeu a mão em um cumprimento, que foi aceita por Shaka.

Despediram-se com um “Até logo” e o indiano fechou a porta. Encostou na madeira e respirou fundo. Por mais que algumas coisas não mudassem, isso não queria dizer que precisavam viver na superfície. Afinal, o que mais era o homem, além de um miserável amontoado de carne e segredos?

***

Qualquer um que acompanhasse os dois homens descendo a escada, teria apenas uma certeza na vida, algumas pessoas realmente eram agraciadas com beleza. A altivez e o ar de realeza de Julian, contrastava com imponência e quase desleixo de Kanon. Ambos eram indiscutivelmente belos, cada um a sua forma. Talvez a Grécia realmente produza alguns deuses.

Conversavam animadamente até findarem os degraus e Julian olhar em volta sua voz educada e solene se fez ouvir em seguida:

— Onde está Thétis? — Julian perguntou assim que alcançou o fim da escadaria.

Isaak permaneceu em silêncio. Io respondeu rapidamente:

— Ela acabou de seguir para a cozinha Senhor Solo.

— Obrigado. — Agradeceu altivo e voltando-se para Kanon usou um tom um pouco mais macio — Vou conversar rapidamente com minha gerente e já retorno. Fique a vontade.

Nesse momento demonstrando cortesia e uma sabedoria que até então Isaak não esperaria dele, Io se afastou para a parte mais distante do salão, passando a se manter ocupado por lá.

Um clima de tensão e tesão palpável se instaurou entre os dois.

Ambos pensando no que dizer, formulando as frases, mas sem conseguir externalizar o que tanto almejavam. Isaak sabia que o tempo era curto e que havia pisado na bola. Ainda não estava convencido de que tinha sido tomado apenas por ciúmes, mas não era idiota em acreditar que um homem como Kanon ficaria sozinho esperando sua boa vontade.

Além disso, queria muito transar. Seu corpo reagia aos menores olhares daquele homem e sempre que via o grego de pé, lembrava do quão prazeroso era escalar aquele corpo. Decidido e confiante, como sempre tentou se apresentar ao mundo, resolveu tomar a dianteira, uma vez que, Kanon parecia entretido com as próprias mãos. Provavelmente avaliando se deveria ou não dar espaço para alguma aproximação.

O garçom sorriu malicioso ao imaginar formas de ocupar aquelas mãos grandes e de dedos longos. Sentiu um arrepio, era melhor agir.

— Kanon… — Sua voz saiu decidida — Nós precisamos conversar. Eu sei que minha atitude na última noite não foi… A melhor…

— Para o dizer o mínimo — Kanon suspirou — O que deu em você?

— Sinceramente? Nem eu sei. Só quero pedir desculpas. E eu não sou muito de fazer isso.

— Isaak… — O grego sorriu se aproximando — Agradeço seu pedido de desculpas, mas você me colocou pra fora da sua casa, de madrugada, em uma rua sem nenhum tipo de transporte. Assalto seria o menor dos meus problemas ali…

— Eu sei, Kanon… — Desviou sem jeito o olhar.

— Já que você sabe, esse pedido de desculpas deveria ser mais elaborado. Não acha?

Isaak sentiu uma pitada de malícia na voz do grego e o encarou, vendo o sorriso safado que conhecia tão bem ornar o rosto de Kanon.

— E o que você sugere? — Isaak entrou no jogo.

— Não sei. Você que está se desculpando.

— Ah Kanon… — Aproximou-se estreitando os olhos.

Kanon havia planejado dar um pouco mais de trabalho ao mais novo, tinha ficado absurdamente irritado e acima de tudo ofendido com a falta de consideração, para dizer o mínimo. Mas seguindo o roteiro padrão, desde que conheceu Isaak, nada acontecia da maneira como planejava. Sua vida estava sendo dirigida pelas vontades e desejos daquele garoto, e quando ouviu o pedido de desculpas, resolveu jogar seu orgulho as favas e aceitar de bom grado o que lhe era oferecido.

Sabia que estavam no trabalho de Isaak, mas não se importou nem um pouco em se aproximar dele abaixando o suficiente para deixar o ouvido na altura da boca dos mais novo, esperando ouvir os planos para o pedido de desculpas. Aquele rapaz conseguia transformar as palavras mais sujas em uma poesia erótica digna de grandes autores, e tudo que Kanon queria naquele momento, era estar em um sarau comandado por Isaak. Queria apenas ser comandado por aquele rapaz?

O garçom abriu um sorriso ao perceber a aproximação e em sua mente as cenas mais quentes já começavam a se formar, regradas por gemidos, sussurros, urros e frases entrecortadas, que fariam a pessoa mais casta se contorcer em desejo. Respirou fundo, sentindo o perfume de Kanon, mas com desgosto e uma bufada irritada se afastou rápido. O grego franziu o cenho e Isaak apontou discretamente com um movimento de cabeça. Julian estava voltando.

— Kanon, podemos? — Julian tentava soar como se pedisse, mas sua voz tinha o tom de uma ordem.

— Vamos. — Olhou para Isaak. — A gente conversa depois. Eu te ligo hoje.

Isaak concordou com a cabeça, dando um meio sorriso. Julian olhou discretamente do amigo para o funcionário e percebeu o desejo naquela troca de olhares. Mediu o “garoto caolho” de cima a baixo e com um arquear de sobrancelha constatou que Kanon tinha bom gosto. Estranho era o fato de nunca ter reparado no garoto. Também, o que poderia dizer, não costumava olhar com muita atenção para os seus subalternos, erro que pretendia remediar o mais breve possível.

Os dois homens saíram do bar iniciando uma conversa de aparência agradável, o garçom os acompanhou até perder de vista e retomou a arrumação de algumas mesas.

Estava se sentindo menos irritado consigo mesmo e excitado com a possibilidade de estar com Kanon e dentro dele.

Apenas uma coisa o intrigava: Julian Solo estava me secando?

Pensou enquanto coçava o queixo e ria disfarçadamente. Achava pouco provável que aquele almofadinha estivesse mesmo olhando pra ele. Caso estivesse certo, bom…

A perspectiva de desfazer aquele ar de superioridade não soava ruim.

Balançou a cabeça, juntando duas mesas e pensando no que faria com Kanon. Devia ao grego um ótimo pedido de desculpas. Tinha alguma ideia do que podia fazer.

Chapter 14: Todo o paraíso está em seus braços

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Fato que poucos ousam contestar é o vigor da juventude, especialmente quando este é alimentado pelas chamas de uma semente apaixonada. Nem todas as paixões superam o primeiro encontro, qualquer amargurado bem o sabe, mas o primeiro encontro de Milo e Hyoga fora interrompido e talvez dado a isso eles estavam tão decididos a não deixar passar essa oportunidade de servirem-se do encontro entre seus corpos e corações acelerados.

Então se alimentaram famintos um do outro por um tempo indeterminado e em algum momento, com três preservativos usados e devidamente amarrados repousando na lixeira do banheiro da suíte de Milo e após um banho muito sensual estavam lá novamente os dois na cama desarrumada, dedos entrelaçados pensando no que poderiam servir a seus corpos famintos também de alimento objetivamente.

Anoitecera há pouco e seus estômagos, agora que os instintos mais carnais estavam relativamente controlados, davam mostras de reclamarem por motivo justo.

Mesmo isso era motivo de risada para eles que se vestiram acabando por decidir comer falafel em uma carrocinha completamente exaltada por Milo como a melhor de toda a cidade. Como ficava na avenida da praia eles poderiam caminhar um pouco e pensar no que fariam depois.

Nenhum dos dois tinha intenção de encerrar o encontro em breve.

Encantados e surpresos não paravam de se contemplar e a verdade do que tinham compartilhado ainda se depositava vagarosamente no interior de cada um deles.

Era aquele momento de tentar se conhecer, de compartilhar aos poucos pequenas partes de si para que que o outro pudesse decidir se valeria a pena ou não ficar.

O passeio foi importante, porém curto, logo a vontade de se entregar novamente aos prazeres viciantes recém descobertos sobrepujou a curiosidade sobre saber mais da vida que cada um deles levava.

Se apaixonar pode sim ser assustador, mas no fim o que vale mais a pena? Mergulhar de cabeça ou tocar delicadamente a água?

Sabendo que o líquido precioso e imprescindível a vida esconde o futuro sempre incerto a todos, de um jeito ou de outro, seria mais fácil decidir?

***

No elegante e reservado restaurante em que costumava jantar com frequência, Julian apreciava lentamente uma taça de vinho de ótima safra enquanto observava as expressões do amigo passearem de forma cíclica entre o consternado e adorável.

— Ao que tudo indica seu telefonema pouco tinha a ver com a saudade de um velho amigo, eu no caso. E sim com a presença de um certo subalterno caolho no meu humilde estabelecimento.

Ergueu ligeiramente a taça e o queixo sem deixar de encarar o amigo. Kanon acompanhou o gesto admirando sua elegância e discreta eloquência.

Quando falou sua voz denotou sinceridade e uma nota de resignação.

— Eu não tinha como saber que você dava as caras no Imperador em um sábado a tarde Julian, e até onde era de meu conhecimento ele só entraria para trabalhar um pouco mais tarde. De toda forma você me conhece o suficiente para saber que não sou dado a esse tipo de rodeio e joguinho.

— Sim… Porém não sabia que era afeito as delícias dos jovenzinhos também. Meus parabéns pelo achado! Diamante bruto…

— Não seja grosseiro, não combina com você! Estava me sentindo solitário, não tenho muitos amigos nessa cidade.

— E aquele seu primo gostoso?

Perguntou Julian sorrindo. Kanon deu de ombros e girou os olhos:

— Qual deles?

Os dois caíram na risada. Realmente Julian sempre fez questão de pontuar seu assombro positivo com a beleza dos familiares do amigo.

— O primo postiço. Mas tem razão, os outros também merecem o título. Estou feliz que a despedida será no meu bar. Quando você me ligou, tinha acabado de falar com Aiolia, por isso passei pelo Imperador, quero que tudo saia perfeito. Aiolos sempre foi gentil comigo. Além de ser bem gostoso!

Julian finalizou com um suspiro teatral. Kanon pensa em reclamar do comentário, mas não teve tempo, o garçom se aproxima para anotar os pedidos e ele deixa que Julian escolha pelos dois. Sua mente retorna a última conversa com Isaak e sente um misto de antecipação e decepção com sua própria fraqueza. Saber-se nas mãos de uma moleque não facilitava sua vida. Foi tirado de seus devaneios pela voz macia e imperativa de Julian.

— Ainda não disse o motivo pelo qual não procurou o caçula postiço. Sempre achei que eram amigos. — Julian falou ao finalizar o pedido.

— Não estou entendendo a insistência nisso. Você também é meu amigo. Por acaso ficou insatisfeito com o convite?

Kanon bebeu um gole da taça de vinho que estava a sua frente, observando o amigo que parecia inspecionar a prataria desinteressado.

— De forma alguma. Apenas intrigado. Aquém de qualquer vínculo de amizade que possuímos, sempre notei sua predileção pela companhia do garoto. Por isso, soou contraditório que em um momento de solidão recorresse primeiro a mim e não ao… Milo, é esse o nome. Nome bonito por sinal, sempre achei.

Kanon se sentiu desconfortável com o rumo da conversa. Possuía uma amizade longa e sólida com Julian e exatamente por isso, o outro parecia saber que existia algo errado com ele. A linha de raciocínio não estava de todo equivocada, o que não queria externalizar é que não tinha condições de ficar a sós com Milo depois da recente descoberta e acima de tudo, ainda não sabia como ou se contaria ao mais novo sobre Saga e Camus. Chamou Julian não como uma segunda opção, mas como alguém que estava fora de todo o eixo de confusão e drama que lhe sufocava nas últimas horas. Esperava que o tiro não saísse pela culatra, e que não tivesse que rememorar todos os seus problemas mediante o olhar inquisidor de Julian Solo.

— Também acho um nome bonito. Mas acredito que ele esteja ocupado no momento. E você sabe muito bem o quanto a família pode ser sufocante para mim, vez por outra. É tão estranho assim eu querer sua companhia? Pensei que o Sr. Solo tivesse abandonado suas inseguranças quanto a minha pessoa.

Julian o encarou dessa vez sem qualquer reserva. Era um homem bonito, cabelos claros e finos que flutuavam como uma moldura etérea ao redor de seu rosto de traços másculos. O nariz grego aristocrático, boca generosa e olhos de um azul acinzentado que invocavam mistérios abissais. Ele sempre aparentou ser mais novo do que era, mas naquele momento seu olhar demonstrava o extremo oposto disso.

— Você sempre terá em mim um porto seguro Kanon. Eu jamais darei as costas para aqueles que me ajudaram quando eu precisei.

Sustentaram sem palavras por algum tempo aquele olhar significativo como rememorando antigas passagens da história daquela amizade. Eram amigos há bastante tempo e entre eles muitas vezes as palavras se fazem desnecessárias. Kanon quis dizer o mesmo, que era grato pelo auxílio do amigo quando foi ele a atingir o fundo do poço, mas não ousaria quebrar aquele momento.

Julian decretou o fim do silêncio mais uma vez sorrindo elegantemente e iniciando uma conversa leve sobre seus planos para a despedida de solteiro de Aiolos. Kanon sentiu-se feliz por estar ali.

Não tinha o direito de se esquecer o quanto era rodeado por pessoas boas. Apesar das aparências e de seus teatro muitas vezes estrategicamente frívolo ele sabia o quanto Julian podia ser leal e devotado.

Logo o jantar foi servido e seguiram por algumas horas apenas apreciando a companhia um do outro.

***

Já era final da tarde quando Camus retornou a sua residência. Entrou no espaçoso apartamento, deixando os sapatos na área de serviço anexa a cozinha, e a bolsa dentro do guarda roupa de seu quarto. Tomou um banho rápido, apenas para relaxar e trocar de roupa. Vestindo apenas uma bermuda preta, de tecido leve. Soltou os cabelos longos e sentou no sofá munido de uma long neck de cerveja.

Ligou a televisão, zapeando pelos canais, mas não encontrou nada que prendesse sua atenção. Desligou o aparelho e decidiu colocar uma música. Bem melhor. Pensou ao ouvir os primeiros acordes. Pegou um maço cigarros que guardava apenas para os momentos extremos, e foi para a varanda do apartamento munido de sua long neck e do fumo entre os dedos.

Sentou em um dos bancos da varanda, e a contragosto admitiu a si mesmo que ficou mais tempo do que gostaria em pé, na frente da porta da casa de Shaka. Não achou que ele demoraria para voltar, seja lá onde estivesse. Afinal, ele sempre fora extremamente cuidadoso com a mini floresta que mantinha em sua casa. Provavelmente, estava na casa do espanhol com quem namorava. Percebeu que ele não vestia as mesmas roupas do dia anterior, logo, só poderia estar na casa do tal Shura. Isso lhe causava um certo desconforto, afinal, o loiro poderia não ter atendido suas ligações deliberadamente. O que não poderia condenar de toda forma.

No fim, o que importava é que havia entregue o presente e o pedido de desculpas, que esperava ter sido imbuído de toda a sinceridade que queria passar. A última noite, e principalmente o final dela tinha desbloqueado finalmente as últimas portas que se mantinham fechadas na mente do francês. Ele precisava mudar, queria mudar… mas era tão difícil.

Jamais seria a pessoa que foi um dia, até porque recairia em um retrocesso.

A soma das experiências e das vivências configuram aquilo que nos tornamos, e não é possível excluir o que já aconteceu como forma de resetar seu ser. O que poderia fazer, era aprender a lidar da melhor forma possível e tentar ser uma pessoa menos nociva. Por mais que ainda não estivesse totalmente preparado para admitir, a convivência com Milo o ajudou a perceber certas coisas sobre si mesmo, e a voz embargada do ex pronunciando de forma dolorida e seca que ele deveria procurar ajuda profissional, apenas corrobora o que Shaka dizia a todo momento.

Quando o relacionamento chegou ao definitivo fim, decidiu procurar a tal ajuda, muito mais para jogar na cara de todos que era algo inútil, do que por acreditar na eficiência do tratamento. E sem comunicar a ninguém, já estava há alguns meses fazendo terapia. Contudo, apenas na noite anterior, ao chegar em sua casa e sentir todo o desespero, culpa, desalento e solidão que permeia sua vida, foi que conseguiu mensurar parte do que ouvia durante as sessões.

O processo como um todo vinha se arrastando em ritmo que julgou a princípio lento. Quantas sessões em pouco falou e ouviu a voz do terapeuta menos ainda? Com o passar do tempo, nem saberia dizer com precisão quando, foi começando a compartilhar. Primeiro algumas reclamações e comentários ácidos. O terapeuta nunca o interrompia, o que era gratificante, mas em todas as vezes que se prontificou a falar pontuou citando partes do discurso do próprio Camus informações e revelações.

Pouco a pouco ele foi adicionando questionamentos e fazendo paralelos entre situações aparentemente banais e distintas. Surpreendendo com sua perspicácia. E direcionando o ruivo a reflexões.

Logo Camus estava mais disposto a falar, o que em muito o surpreendeu, mas sentia como se os encontros semanais fossem seu momento de descarregar na fala todo seu enfado e desconforto.

Bom, no dia seguinte teria consulta e dessa vez teria que dizer que o tão comentado processo terapêutico, ainda que no seu caso lento e arrastado parecia estar dando frutos. Estranhamente após o devastador momento na banheira algo diferente e quem sabe novo estava em curso em sua mente.

Ansiava, incrivelmente, pela possibilidade de poder falar sobre isso e quem sabe assim aliviar ainda mais seu peito da pressão excruciante projetada em si mesmo.

***

Sorento chegou no bar já cansado. Havia dormido ridiculamente pouco antes de seu turno na livraria e depois disso conseguiu cochilar por mais 2 horas antes de se deslocar novamente para outra jornada de trabalho noite adentro. Pelo menos o acesso ao bar era relativamente tranquilo, praticamente em uma linha reta de metrô até sua casa. Sendo esta um modesto quarto com banheiro nos fundos de um apartamento antigo que ele alugava de um jovem estudante de medicina que conheceu pelos anuncios de vagas e quartos no campus antes de trancar a faculdade de administração.

O valor cobrado era justo e o local limpo, arejado e tranquilo, tudo o que ele precisava nessa fase em que estava tentando se reerguer na vida.

Além disso podia cozinhar e havia privacidade e um certo ar de lar de verdade por lá.

O apartamento ficava no térreo e além do seu quartinho, antiga dependência de empregada, possuía sala e cozinha amplas, 2 suítes uma do estudante de medicina e outra do seu irmão mais velho que pouco ficava por lá, além de lavabo, área de serviço e um quintal fofo, para o qual davam algumas das janelas e o onde o jovem proprietário cuidava de diversas plantinhas vistosas além de uma pequena horta de ervas e temperos.

Sorento era feliz morando lá. O sossego de fechar a porta e poder ficar despreocupado.

Ele conseguia estudar flauta e ler com calma. O quartinho era arrumado com esmero. Seus poucos pertences sempre impecáveis. E assim nessa rotina puxada estava conseguindo salvar algum dinheiro. O plano era assim que possível deixar toda a antiga vida para trás.

Ele se dava bem com o proprietário, Shun, um rapaz descendente de japoneses e algo mais que ele não sabia, educado, asseado, extremamente organizado e muito culto.

Mal podia esperar para voltar para casa! Com sorte o irmão de Shun estaria fora no dia seguinte e ele poderia tocar um pouco...

Estava terminando de guardar suas coisas no armário quando ouviu a porta ser aberta. Nem precisava se voltar para saber quem entrava.

Reconhecia pelo cheiro aquele abusado, infelizmente ele tinha um ótimo olfato. Notas de sabão de coco, gengibre e maresia. Tudo permeado com um fundo adocicado de Isaak, sem palavras para explicar. Perdia a paciência que não podia desperdiçar quando aquele homem se aproximava.

Apertou os lábios e passou uma mecha dos cabelos claros e castanhos para trás se preparando para o que viria. Não tinha nenhuma intenção de ficar mal humorado por conta das investidas de Isaak. Mas o outro não dava trégua. Provavelmente sua vida deveria ser tão ou mais desinteressante do que a do flautista, o que lhe parecia certamente impossível, tinha visto o garçom caolho deixar o bar na noite anterior acompanhado de uma interessante safra de belos loiros. Ergueu o nariz. Precisava trabalhar.

— Pelo que tudo indica o senhorito deu um jeito de não se atrasar hoje.

— Meus parabéns pela perspicácia, Isaak.

A verdade é que Sorento raramente se atrasa, mas na noite anterior simplesmente acabou dormindo demais por exaustão. Sua jornada era no mínimo tripla. Mas que tinham a ver com isso as outras pessoas? Observou o outro garçom dos pés a cabeça e notou que estava um pouco inquieto, mas decidiu nada comentar. Estava cansado e assim que acabasse esse turno queria voltar para seu cantinho e dormir o máximo possível de horas.

Isaak umedeceu os lábios acompanhando seu olhar e tombou o rosto como considerando.

Quando falou sua voz parecia um pouco diferente da que costumava usar com o flautista.

— Sorento...

Bian adentrou a sala nesse momento, vinha caminhando rápido, de seus fones de ouvido era possível perceber as batidas de algum sucesso pop. Se ele percebeu a tensão preferiu não comentar.

O silêncio ocupou todos os espaços naquele cômodo, a conversa truncada acabou.

Sorento deixou o ambiente e Isaak se dirigiu ao banheiro. Com a porta fechada apoiou a testa contra a madeira. Odiava agir como um idiota, apenas não conseguia se conter, especialmente com Sorento. Talvez por que ele fosse todo certinho, não combinasse com aquele ambiente ou com aquela vida, talvez por que ele estivesse sempre tão certo e intimidante. Bateu a cabeça na porta de leve.

Ainda precisava se resolver totalmente com Kanon, não podia ficar perdendo o foco.

Aguardava ansioso a ligação de Kanon para que pudesse apagar da memória de ambos seu erro grosseiro da noite anterior e acima de tudo, compensar o grego da forma mais prazerosa possível. Por mais que estivesse um pouco disperso, conseguiu levar seu turno de trabalho de forma eficaz o suficiente para dedicar reparo a Sorento. Que percebia expor sorrisos forçados e conter suspiros cansados ao ouvir certos comentários em algumas mesas que atendia. Isaak tinha noção do próprio valor, contudo, sabia que não era um atrativo imediato para a grande maioria. Sorento, ao contrário, tinha todos os atributos que se podia desejar em um possível amante, logo, não era incomum, ver o garçom torcendo o nariz em uma irritação contida, e em dias como hoje, em que Isaak percebia o cansaço do outro, era quase cruel fazer com que ele lidasse com os predadores do bar Imperador.

— Posso atender a mesa dez.

Isaak falou próximo ao ouvido de Sorento que estava de costas colocando os drinks em uma bandeja. Fechou os olhos ao ouvir a voz do outro. Estava cansado. Sinceramente cansado. E seu olhar demonstrava a estafa física pela qual passava. Encarou sério a face de Isaak e percebeu a sinceridade da proposta. Com um suspiro e um meneio de cabeça entregou a bandeja ao outro garçom.

— Obrigado, Isaak. Te devo uma. Atendo a mesa quinze e a dezesseis no seu lugar.

Isaak deu de ombros pegando a bandeja e se dirigindo a fatídica mesa com os tais predadores. Nem de longe eram páreo para ele. E sabia que em dias normais, também não seriam para Sorento, mas o homem parecia realmente exausto e não custava tentar ajudar um colega de trabalho.

Por mais que contivesse a vontade latente de cobrar o favor.

A noite seguiu em um companheirismo sutil, a qual ambos agradeceram internamente. E ao findar o expediente, apenas pegaram sua parte da gorjeta coletiva e se despediram como o habitual, sem palavras ou cortesia. Retirando sua roupa do armário e atravessando a porta de ferro abaixada até a metade, deixando no interior da loja apenas a gerente, e os funcionários responsáveis pelo caixa.

Sorento respirou fundo o ar da noite, calculando o tempo de sono que tinha.

Isaak olhou o outro com curiosidade e graça, mas teve sua atenção capturada pelo som do celular. Percebeu que havia algumas chamadas perdidas e duas mensagens de Kanon.

Sorriu, perdendo o momento em que Sorento o olhou e começou sua caminhada até a estação do metrô.

Respondeu as mensagens informando que estaria de folga no dia seguinte e que poderiam se encontrar. Guardou o aparelho e se dirigiu ao ponto de ônibus. Olhou o relógio de pulso e percebeu que ainda conseguiria pegar a última condução. Correu até o ponto sorrindo, sentindo o vento no rosto e a antecipação do encontro com o grego gostoso que transpassa seus pensamentos nas últimas semanas.

Chapter 15: Você sabe o motivo

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Kanon tentou ligar mais uma vez para Isaak antes de desistir.

A sensação de se considerar um idiota ameaçou seus pensamentos, entretanto ele manejou raciocinar que o garçom deveria estar muito ocupado por ser noite de sábado.

Acabou esticando com Julian por mais algumas horas em uma badalada e exclusiva Casa noturna. Dançou até às duas da madrugada entre drinks e boas lembranças do passado. Então cansado também do assédio de desconhecidos decidiu dar a noite por encerrada. Julian estava agarrado em uma jovem de longos cabelos castanhos e não se incomodou com sua partida.

Do lado de fora o vento frio da madrugada ajudou a despertar seu corpo, ainda anestesiado pela quantidade obscena de álcool ingerida. Conferiu a mensagem recebida no celular.

Isaak teria folga no dia seguinte.

Isso seria um sinal para fazer um esforço de se acertarem? E do outro rapaz, o que ele deveria esperar? Não tinha muito ânimo para situações como a da noite anterior.

O furor juvenil podia ser delicioso, mas também cansativo. Lembrou-se de Milo e Hyoga e foi forçado a admitir que a questão com Isaak não era somente a idade.

Ele e Hyoga deveriam ter basicamente a mesma idade. Milo também não era assim muito mais velho que eles. Essa constatação causou um alvoroço em sua mente.

Provavelmente há alguns anos ele não ficaria tão desgostoso com a cena protagonizada por Isaak, se irritaria com certeza, mas no fundo sabia que um Kanon alguns anos mais jovem possivelmente se veria excitado e instigado com aquela palhaçada. Entretanto, era um homem vivido, que já bebeu sua parcela de amarguras e considerava merecer navegar em águas mais tranquilas.

O que estava fazendo com a sua vida, afinal?

Já podia calcular a ressaca que teria no dia seguinte, estava definitivamente velho demais para acompanhar Julian em suas noitadas.

Havia, todavia, conseguido afastar por um tempo sua inquietação. Ao menos enquanto estava no interior daquele estabelecimento luxuoso; assim, a noite podia dizer que tenha sido um sucesso. Fez sinal para um táxi, em breve estaria em casa, dormiria com a Deusa e lidaria com a vida depois…

***

Já era algum momento da madrugada quando Milo despertou sentindo os beijos de Hyoga em suas costas. Pela primeira vez em sua vida lhe ocorreu que pudesse estar ficando velho, pois temeu não dar conta do fogo daquele rapaz aparentemente tímido e que no primeiro olhar ostentou certo distanciamento que poderia ser classificado por alguns como frieza.

De qualquer forma sorriu, o alívio por se ver correspondido e o desejo que o outro demonstrava faziam com que ele se animasse de qualquer forma. Mas, o corpo, bem, o corpo tem seus limites.

Quando os lábios do mais novo atingiram a base de sua coluna Milo que já há algum tempo gemia teve que falar entre uma risada e um gemido.

— Nossa desse jeito eu não aguento andar amanhã Hyoga…

Seu corpo foi girado e ele ficou de barriga para cima, Hyoga sentou sobre seu quadril se movimentando insinuante. Ao mesmo tempo passou a subir os beijos e chupões pelo abdômen do grego. Em seguida o beijou, profundamente. Mordeu o queixo de Milo de leve antes de falar ao seu ouvido:

— Pensei em tentar de outra forma dessa vez, mas você vai precisar ter paciência comigo pois nunca fiz assim antes… Você quer?

Milo o encarou intensamente. Estava de alguma maneira emocionado por Hyoga querer tentar, por ele aceitar recebê-lo em seu corpo sendo que nunca antes havia feito isso.

Tudo entre eles estava caminhando de forma diferente de todas suas experiências anteriores. Naquele momento ele não se perdeu em reflexões.

Tinha algo realmente muito mais importante e saboroso em mente.

***

Como alguém que estava se afogando e consegue finalmente colocar a cabeça fora da água, buscando por ar desesperado ele acordou completamente deslocado da realidade.

Os cabelos colados no rosto e na testa suada. Respirou fundo ainda sem se localizar.

Ele conseguia se lembrar dos olhos opacos, da voz na sua orelha comandando. Como pode algum dia chegar a amá-lo?

Certa vez ouviu que as pessoas só vão até onde permitimos. E o sabor de sangue em sua boca naquela ocasião levou muito tempo para desaparecer.

Quanto tempo leva até nos perdermos de nós mesmos?

Até odiar com tanta veemência o próprio reflexo que se faria qualquer coisa para apenas tirar aquela sensação, aquele sabor de sua vida? Destilar amargura em geral era fruto de estar imerso nela.

O aperto no peito, a solidão. Abraçou os próprios joelhos.

O peso da solidão de Camus o estava sufocando.

Tudo que estava a seu alcance; a intenção de mudar de romper o ciclo; ele estava tentando. Mas a solidão, ele não saberia dizer se alguém poderia adivinhar como se sentia, mas apenas gostaria de ser diferente.

Ergueu o rosto para o teto.

Todos usam máscaras, o terapeuta havia lhe dito, são de fato uma necessidade para que possamos conviver em sociedade. Entretanto, não podemos nos tornar a máscara, perder a matéria que torna cada um o indivíduo único, o potencial de suas escolhas, sua trajetória única, sua essência, de verdade.

Camus lamentava, sabia ainda ter pela frente um bom caminho antes de suportar a própria companhia o suficiente para não querer explodir tudo a sua volta.

Não conseguiria voltar a dormir, decidiu se preparar para mais uma vez abrir a academia com o raiar do dia… Estancou. Era domingo! O dia crítico para os angustiados solitários. Retornou a cama, pegando o celular. Não faria mal rever aquelas fotografias… Só mais uma vez.

Empurrou para o fundo de sua mente o alerta de que era perigoso demais insistir nessa tortura auto infligida de desejar o impossível.

Na segunda conversaria com terapeuta, sentia que finalmente estava disposto a mudar e mais ainda, sentia que a mudança se avizinhava, era urgente. Mas não nessa madrugada. Por hora ele se entregaria mais uma vez ao prazer e a culpa solitária que rever aquelas imagens de um passado enterrado e de um futuro que jamais se deu lhe inspiravam.

***

Uma sensação de tranquilidade e bem estar apossou-se de seu corpo assim que distinguiu a fachada da casa. A caminhada do metrô até a residência era de certa forma agradável, e podia ser dar luxo de sentir a tranquilidade de viver em um bairro relativamente seguro, tão seguro quanto a vida urbana permite, claro.

Pegou as chaves dentro do compartimento frontal da usada, porém bonita e conservada bolsa carteiro de couro que carregava no dia a dia. Uma das poucas coisas que tinha carregado de sua vida anterior, além dos dissabores, traumas, refinamento e graciosidade. Por mais que fosse desagradável admitir, a vida que levava antes da atual tinha seu saldo positivo, mas na hora do pagamento diário a conta não fechava e o déficit era sempre maior, tanto pra si quanto para todos ao seu redor. Girou a chave no trinco e abaixou a maçaneta, a porta abriu.

A casa estava envolta em completa escuridão, sorriu, estava sozinho. Entrou, tirando os sapatos e deixando em um cantinho da porta, onde repousavam três pares de chinelos, calçou o que lhe pertencia e foi até a cozinha. Contrariando a arquitetura contemporânea, a casa na qual morava tinha uma divisão nítida de cômodos, não sendo adepta do tal conceito aberto. O que o agradava de todo modo, gostava da privacidade de espaços separados e bem delimitados.

Adentrou na cozinha abrindo a geladeira e tirando uma caixa de suco de morango, e um pedaço de queijo. Pegou o pão que ficava sempre guardado em um suporte no centro da mesa da cozinha, e esquentou junto com o queijo em uma frigideira.

Comeu o jantar com gosto, era sua segunda refeição no dia. Não sabia dizer como não acabava desmaiando, ou passando mal, mas ficava tão absorto no trabalho e na sua rotina de idas e vindas, que comer não se tornava uma prioridade, ao menos não uma que lembrasse. Até porque, entre alimentar-se e dormir, a segunda opção sempre parecia mais atraente.

Constatou o quão cansado estava ao terminar de lavar a louça que havia usado e sentir o pescoço estalar, ao movimentá-lo em um gesto de relaxamento. Secou o prato e o copo colocando-os no armário da cozinha.

Trancou-se em seu quarto e deu um longo suspiro, sim, estava em casa.

A sensação de segurança o abraçou, não como o faria um amante, mais sim uma mãe zelosa, ou um familiar querido. Nesse ponto, sabia distinguir bem a sensação, afinal, reconhecia sua existência há menos tempo do que gostaria de admitir.

Por mais que comparasse aquela sensação ao do alento de um familiar, não tinha a real ideia da comparação, talvez o aconchego materno em sua tenra infância, aqueles momentos duraram tão pouco, a marca ficou gravada em sua alma apesar da brevidade. Talvez, fosse mais correto comparar o que sentia a noção de pertencimento e aceitação que se tem ao estar na companhia de um amigo sincero, pois era assim que sentia na companhia de Shun e até mesmo de Ikki.

Por mais que não conhecesse o rapaz há muito tempo, só foi experienciar a tranquilidade de ser quem era depois que passou a viver naquela residência.

Durante mais tempo do que gostaria de reconhecer, interpretou um personagem, o que fez com que afastasse pessoas que poderiam ter desempenhando um papel importante em sua vida, antes mesmo de realmente conhecê-las. Na maior parte do tempo, acreditava que estava bem no meio de seu teatro, o filho bonito, elegante e bem educado do dono de um grande indústria farmacêutica.

Obviamente iria herdar os negócios da família, e gerir o império que os avós haviam construído e o pai edificado com mãos de ferro.

Educação para tal coisa certamente tinha. Além dos internatos, viagens, cursos e toda a sorte de conhecimento que o dinheiro pode comprar, Sorento, era naturalmente sagaz, aprendia com facilidade e sabia se adaptar bem às situações.

Só fraquejou no momento em que soube que jamais seria aceito pelos pais.

Sabia de sua orientação sexual há muito tempo, frequentou escolas masculinas, o que lhe deu um boa perspectiva sobre assunto. Porém, seguindo a discrição latente de sua personalidade, não tornou público em um primeiro momento sua predileção pelo mesmo sexo.

Nunca teve um namoro de fachada. O que sabia irritar absurdamente seu pai e levantar suspeitas sobre o único herdeiro do Império Sirene.

De toda forma, isso não o impediu de ter seus amantes, namorados e de se apaixonar. Durante algum tempo, pareceu um bom esquema. Começou a repensar os caminhos de sua vida ao findar o penúltimo período da faculdade de Administração e se dar conta de que não queria ter uma vida infeliz como a de sua mãe.

Sim, o dinheiro era algo bom, trazia facilidades. Não possuía a ingenuidade daquele que alegava aos quatro ventos que ele não era responsável pela felicidade. Poderia não comprar o sentimento, mas facilitava absolutamente a vida de qualquer um, e paz, esse era um sentimento que lhe trazia alegria.

Como nunca foi impulsivo ou temerário, elaborou um plano. Conseguiu um lugar pra morar, uma quantidade inumana de empregos, mas com horários relativamente compatíveis, trancou o curso que empurrava com a barriga, sendo apenas uma exigência do progenitor e comunicou publicamente aos pais sua orientação sexual.

No fundo, acreditava que seus planos eram um grande exagero e que não havia necessidade de tanto. Estávamos no século XXI e o pai era um homem esclarecido, não teria nenhum grande arroubo ao saber que o filho era homossexual.

Descobriu da pior maneira possível que aparentemente não importa quanto tempo passe, o preconceito, a ignorância e o medo, ainda suplantam o amor.

Foi colocado para fora de casa com a roupa do corpo e poucos bens. Só para emergência já tinha deixado tudo separado, e sentiu um aperto no peito e vontade de gritar, ao perceber que conhecia mais do que gostaria a índole do pai.

Não contou de imediato sua história a Shun, mas depois de pouco tempo de convivência percebeu que o rapaz era dentre todas suas qualidades, um ótimo ouvinte e uma pessoa muito amorosa. E até mesmo Ikki, que parecia viver pelo mundo a maior parte do tempo, o recebeu melhor do que boa parte de sua família durante todos esses anos.

Suspirou, colocando a bolsa em cima da cadeira da escrivaninha e retirando o livro que guardava dentro dela. Sorriu.

O último ano não estava sendo fácil, a rotina tripla de trabalho, deslocando-se entre a livraria, o Imperador e as aulas particulares de flauta, ocupando praticamente todos os dias de sua semana, o deixavam exausto, mas admitia que a vida estava no mínimo mais interessante.

Lembrou do ruivo com ares de psicopata e sorriu. Sabia que aquele homem interpretava o tempo todo um papel perigoso, um ator reconhece o outro. Ao menos ele parecia abandonar em alguns momentos sua encenação, isso era bom.

Colocou o livro na estante de seu quarto, que possuía outros exemplares de literatura e alguns sobre estudo musical. Foi tomar um banho. Mesmo sendo pequeno, o quarto era confortável e funcional, atendendo às necessidades de privacidade e tranquilidade que tanto precisava. Findou o banho vestindo uma bermuda leve e uma camiseta, roupas típicas de dormir e deitou na cama. Soltou um suspiro longo de alívio e relaxamento.

Estava sem casa!

A sensação ainda era um pouco estranha para si. Tinha sim uma casa, seu canto. Esperava conseguir mudar sua rotina no próximo ano, ocupar-se de terça a domingo era algo muito cansativo, ainda mais quando trabalhava em mais de um turno, mas sabia ser necessário. Fechou os olhos, repassando alguns eventos do dia, mas sem força para focar em qualquer um deles. Já havia colocado o celular para recarregar e ajustado o despertar.

No dia seguinte abriria a livraria, ao menos era sua folga no Imperador e poderia descansar depois do trabalho. Deitou de lado, abraçando um dos travesseiros da cama e sentindo o cheiro gostoso dos lençóis limpos.

Estava em casa, pensou sorrindo antes de ser vencido pela exaustão e cair em um sono profundo e reparador. Não tão longo quanto gostaria, mas suficiente para que aguentasse um novo dia e seguisse em sua rotina, tendo certeza de suas escolhas, afinal, por mais difícil que o dia fosse, no final, sempre voltava para o calor e aconchego de sua casa.

E ele sabia o quanto isso era valioso.

***

Permanecia de olhos fechados aguardando o momento em que finalmente seria arrastado para o mundo dos sonhos, mas para seu desespero a caminhada parecia mais longa do que gostaria.

Por muitos anos a insônia foi sua companhia noturna, por mais que o corpo se cansasse e o cérebro pedisse um basta, não conseguia se desligar. Repassava os momentos do dia em clara angústia procurando os erros e os acertos, programando suas próximas atitudes e falas, em uma vã tentativa de roteirizar sua vida.

O caos o incomodava, a ausência de ordem e ritmo, a vida em si lhe causava grande desconforto quando não se desenrolava do modo que orquestrará. Sempre ouviu que era preocupado demais, exageradamente perfeccionista e insanamente metódico. De certa forma, não tinha como refutar essas críticas, por mais que acreditasse que eram absurdamente exageradas.

Os afeitos a desordem que se banhasse nela.

Não era seu caso, preferia navegar por águas cristalinas, sabendo de sua profundidade e para onde ia, e era exatamente por isso que não conseguia relaxar o suficiente para dormir. Sabia estar adentrando em águas nunca antes exploradas por ele, e acima de tudo, sentia o ímpeto de se jogar em um mar conhecidamente turbulento. Os anos de meditação e técnicas de relaxamento, que haviam ajudado a aplacar a insônia, de nada pareciam servir. Não conseguia parar de pensar na insensatez de ter aceitado a sugestão de viver na mesma casa que Shura. Tinha consciência de seus sentimentos pelo namorado, mas não conseguia parar de pensar em como aquilo tinha sido fora de sua curva comportamental.

Não decidia nada por impulso e assim o fez. Por vários anos comprou sempre a mesma marca de chá, por não querer ter a experiência negativa de comprar uma nova e se decepcionar. Culpando-se por não ter investido no que sabia ser o certo. E agora, simplesmente, decidiu dividir sua vida com outra pessoa. Lógico que tinha todos os motivos para a sua decisão, enumeradas caprichosamente em sua lista mental, mas ela servia apenas para justificar aos curiosos e não a si mesmo.

Ele sempre precisava de mais explicações do que as demais pessoas. Sempre precisou.

De qualquer forma, iria se mudar, mesmo que alguma coisa martelasse em sua mente. Aquela voz chatinha que fica lá no fundo do nosso cérebro, gritando, esperneando e querendo ser atendida.

Shaka era a encarnação da eficiência no que dizia respeito a ignorar o som daquela voz. Era eficiente em praticamente tudo na verdade, menos em silenciar a si mesmo.

Respirou fundo, abrindo os olhos e mirando o teto branco de seu quarto. Iria se mudar, certamente que iria. Estava feliz com a decisão e tinha certeza que o sentimento era recíproco da parte do namorado, porém… Sempre existia um “porém”, e ele não queria pensar nisso. Nunca queria. Não deixava margem para duplas interpretações, era sempre seguro e estava sempre certo. Não estava? Lógico que sim.

Na segunda feira entraria em contato com uma empresa de mudança e já poderia começar a organizar suas coisas. Havia falado mais cedo ao telefone com o namorado, e ele entendeu sua preocupação com suas plantinhas, sugerindo os mais variados espaços da casa nos quais elas poderiam ser dispostas.

Gostava da cumplicidade de Shura para com as suas peculiaridades. Inclusive, gostava do eufemismo que ele usava para enumerar suas nóias e maluquices. Ficava mais calmo depois que conversava com ele, quase conseguia se desligar, mas… E lá estava o maldito “mas”.

Ainda sim, preferia manter seu apartamento vazio. Pensou em alugar o local e conseguir uma renda extra. O imóvel permaneceria mobiliado, já que não havia necessidade de levar muitas coisas para a casa do namorado, e poderia gerar um bom dinheiro. Mas, não conseguia imaginar outra pessoa vivendo em sua casa, mexendo em suas coisas, bagunçado tudo e não imprimindo o mesmo cuidado e zelo que ele.

Ao menos era isso que repetia a si mesmo. Shaka era mestre na arte do auto convencimento, precisava ser no final das contas, para manter a face de conhecedor de tudo e todos. “O grande julgador”, como Camus gostava de dizer.

Sentou na cama contrariado, só queria dormir, porém o sono não chegava e muito menos a tranquilidade que almejava. Decidiu fazer um chá e ver se a bebida quente acalentava seu coração e espírito.

Levantou da cama, arrumando os lençóis em seguida. Não importa se voltaria a deitar, uma cama precisa estar sempre arrumada. Caminhou até o banheiro e se olhou no espelho, o longuíssimo cabelo preso em um coque alto e displicente, apenas para evitar os nós que surgiam nos fios quando dormia com eles soltos, o rosto cansado, e mesmo assim belo. Vestia uma camisa larga demais e comprida demais para seu corpo. Sabia ser de Shura. A roupa havia ficado em sua casa, em uma das primeiras vezes em que tinha trazido o até então, caso aleatório, para dormir com ele. Depois do sexo, ainda sonolento, Shaka levantou da cama e apenas vestiu a primeira coisa que viu.

 

— Ficou bem em você, Rubio… O que não fica, não é mesmo?

 

Lembrava da voz e do carregado sotaque espanhol, o tom leve de quase brincadeira e o sorriso de lado que sabia ser incomum naquele rosto sempre sério.

Naquele dia percebeu que estava apaixonado. E sabia todas as implicações e complicações daquele sentimento.

Balançou a cabeça sorrindo de leve com a lembrança e escovando os dentes. Terminou, se olhou mais uma vez no espelho e saiu do banheiro desligando a luz e caminhando até a cozinha. A cortina da sala estava aberta e as luzes da cidade entravam pela janela, deixando o ambiente em meia luz. A claridade foi suficiente para o indiano reparar no objetivo deixado em cima de mesa de centro. Sentou no sofá pegando o livro em seguida. Suspirou, se encostando e mirando uma das plantas que ficava próxima ao sofá.

Ah Camus… O que eu faço com você? — Shaka pensou cansado.

Já não bastasse sua vida ainda tinha que se preocupar com a dos outros. Ao bem da verdade, Camus fazia parte de sua vida, era um dos aspectos dela. Possuindo mais importância do que o próprio gostaria de admitir. Abriu o livro e releu o cartão. Ninguém pode dizer que o francês não é bom com as palavras. Sorriu ao lembrar do rosto aparentemente sincero e dos sorrisos verdadeiros. Queria tanto que o amigo melhorasse. Ao menos parecia que ele estava tentando. Só não queria se deixar enganar, por vezes Camus dizia estar tomando um rumo, só para em seguida adentrar outro vórtex de luxúria e devassidão.

Acreditou que o francês tomaria jeito quando começou a namorar com Milo. Gostava do rapaz risonho e alegre, mas nem toda aquela energia havia conseguido contagiar aquela mente doente. Conversou várias vezes com Milo pedindo paciência e ouvindo suas queixas, até que chegou um ponto em que não podia mais pedir nada ao grego.

 

— Shaka… Se você não conseguiu, como eu conseguiria?

 

Recordou a última conversa que teve com Milo. A frase dita em um misto de tristeza e algo mais que não soube precisar no momento.

No fundo sabia o que era, só não gostava de pensar sobre aquilo. Sabia que alguns pensamentos deveriam permanecer guardados.

Deixou o livro no sofá e foi fazer o chá. Voltou depois de alguns minutos, acendeu a luz e pegou o livro. Não conseguiria dormir mesmo. Melhor seria se distrair com alguma coisa.

Achou o presente peculiar, e conseguia enxergar todas as entrelinhas expressas nele. Com um último suspiro cansado, olhou a primeira página e sorveu um pouco do chá. No dia seguinte começaria a empacotar algumas coisas e pensaria melhor sobre alugar ou não o imóvel. Já que havia tomado aquela decisão, iria ao menos por uma vez, se jogar em algo sem suas grades de segurança.

Mirou mais uma vez uma de suas plantinhas: Queria tanto que você estivesse aqui!

Pensou antes de iniciar a leitura.

Chapter 16: O elemento que é o tudo

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Acordou com o som estridente da música que havia colocado em seu celular para despertar.

Costumava programar o aparelho para tocar música clássica, mas o som aumentava seu estado de relaxamento e por vezes não surtia o efeito necessário.

Descobriu a tal música através de Isaak, ele parecia gostar de um estilo rock mais pesado e em um dia qualquer, enquanto trocava de roupa no quarto de funcionários do Imperador, o outro garçom entrou munido de seus fones e com o volume da música tão alto, que o som escapava por eles. Depois de um tempo, Isaak guardou suas coisas e Sorento não conteve a curiosidade de perguntar o que ele ouvia. Ao contrário do que esperava, a resposta veio tranquila e sem nenhum tipo de sarcasmo. Ele inclusive se ofereceu para apresentar novas músicas, do mesmo estilo. Mesmo estranhando a cortesia, Sorento agradeceu e gravou o nome da música.

Isaak era uma pessoa difícil de entender, e sendo muito sincero consigo mesmo, não estava no melhor momento para tentar desbravar a mente tortuosa e primal daquele garoto.

O que menos precisava nesse momento, era de mais problema, drama e incerteza.

Ainda sonolento, pegou o aparelho na mesa de cabeceira e desligou a música.

Olhou o relógio e soltou um muxoxo de irritação. Eu só queria dormir… Pensou cansado, sentindo no corpo o peso dos intermináveis dias de trabalho. Olhou a tela do celular mais uma vez, verificando que era domingo.

Ao menos hoje não precisava ir ao Imperador. O sábado já tinha sido estressante o suficiente, e mais uma vez, tinha que admitir que quando queria Isaak conseguia ser uma pessoa amável… Talvez amável fosse exagero. Mas ele era no mínimo gentil. De qualquer modo, divagações sobre o colega de trabalho não pagariam seu aluguel e muito menos suas contas, sendo assim, o melhor que poderia fazer era levantar logo.

Levantou da cama e ficou ainda alguns minutos sentado olhando para o nada. Teve a impressão de ter ouvido alguns sons na casa, mas podia ser sua mente cansada pregando uma peça. Dando um longo suspiro, levantou e seguiu para o banheiro. Tomou um banho gelado, contando que a água causasse desconforto suficiente para espantar o sono, e se assustou ao perceber que poderia dormir em pé no banheiro caso não se policiasse. Saiu do banho, enrolou uma toalha na cintura e escovou os dentes.

Suspirou ao olhar seu reflexo no espelho.

Não possuía mais o rosto de um herdeiro, alguma coisa havia se perdido ali, mas gostava muito mais do olhar cansado que carregava agora, o que soava incrivelmente irônico até para ele mesmo. Saiu do banheiro assim que terminou de escovar os dentes e pendurou a toalha. Vestiu uma calça preta e uma blusa social rosa clara, que havia ganhado de presente de Shun. Dobrou as mangas da blusa, arrumou sua cama, pegou sua bolsa carteiro e saiu do quarto. Fechou a porta de seu esconderijo, seu quase pilar de sustentação e seguiu para a cozinha. Conforme se aproximava conseguia identificar a voz macia e gentil de Shun e os resmungos de Ikki. Sorriu sem perceber.

— Bom dia, Sorento! — Shun falou animado fritando alguns ovos.

— Bom dia, Shun… — Sorriu para o rapaz — Ikki… — Meneou a cabeça e sentou ao lado dele.

Ikki correspondeu o comprimento e sorriu de leve. Sorento conteve o sobressalto, era tão raro ver Ikki sequer esboçando um sorriso que ficou surpreso. Provavelmente, ele tinha passado a noite com Pandora e estava de muito bom humor. Na verdade, todos ali pareciam estar animados. E ele sabia identificar muito bem o motivo de toda a agitação. Sexo.

— Hoje vai para a livraria, né? — Shun questionou colocando um prato em frente a Ikki que olhava o celular desinteressado.

— Sim… Ao menos saio cedo, vou conseguir dormir um pouco.

— Você tinha que fazer alguma coisa para se divertir. — Ikki falou enquanto parecia procurar algo no telefone.

Sorento levantou uma sobrancelha confuso. Desde quando Ikki se preocupava com sua vida? Além de Shun, não sabia haver nada nessa vida que prendesse a atenção do rapaz de compleição séria e cabelos escuros. Ao que tudo indicava, nem mesmo Pandora, a namorada com quem ele vivia agarrado, era tão bem quista.

— E você tem alguma sugestão, Ikki? — Sorento questionou bebendo um copo de café servido por Shun.

— Sugestão eu tenho várias. — Ikki levantou os olhos do celular — Mas, acho que você sabe do que precisa.

Sustentaram o olhar por algum tempo até que Sorento soltou uma sonora e divertida gargalhada, Ikki voltou a olhar para o celular contendo o riso e Shun observava a cena sem entender muito bem, mas genuinamente feliz pelo ambiente familiar.

— Você tem razão Ikki, eu sei do que preciso.

— Ótimo! Não acho que terá problemas com isso. Irmão, já estou indo. Vou passar a noite na casa da Pandora. — falou um tanto sério — Talvez volte amanhã.

— Ok… Se cuida. Manda um beijo para Pandora.

Ikki deu um sorriso sacana que passou despercebido por Shun, mas que foi acompanhado por Sorento. Olhou da forma mais discreta possível para o irmão do senhorio e pensou: Pena que é hétero… Uma lástima mesmo… Tão gostoso! É… Eu preciso transar.

Ikki era um homem extremamente bonito e atraente, infelizmente não tinha os mesmos interesses que Sorento.

Contudo, nunca demonstrou nenhum tipo de aversão ou desconforto com a orientação do flautista. O que poderia causar estranheza devido a postura de macho alfa que o outro ostentava. Sabia ser só tipo, mas na primeira vez em que viu o irmão de Shun, achou que iria rememorar toda a humilhação e tristeza pela qual havia passado em sua antiga casa. Às vezes o destino trás grandes surpresas!

— E você vai ficar em casa hoje, Shun?

— Vou sim. A June vai vir para cá. Vamos ver uns filmes… Ela anda bem cansada por causa do trabalho. Parece que aquela empresa não tem muita preocupação com horários e afins… Fico preocupado.

— Entendo. É engraçado ver um futuro médico falando sobre horários. — Sorriu.

— No meu caso foi escolha, no dela é só falta de organização da tal empresa mesmo.

— Nesse caso, faça sua namorada relaxar e aproveite a tarde. Devo chegar lá pelas 16h30 ou depois. — Levantou da mesa.

Sorento recolheu o prato e a xícara que havia usado e fez menção de lavar a louça no que foi impedido. Agradeceu e já estava na porta calçando os sapatos, quando recebeu um pacote de biscoito amanteigado das mãos de Shun.

— Assim você come alguma coisa na hora do seu intervalo. Você quase não come Sorento. Depois vai ficar doente.

Sorento guardou o pacote de biscoitos nitidamente feliz, não lembrava de alguém já ter realmente se preocupado com ele. A família nem sempre possui a mesma carga genética que a nossa.

— Obrigado, Shun. Vou comer sim. Pode ficar tranquilo. Até breve…

— Até… E Sorento… Ficou ótima a camisa.

Despediram-se com um sorriso. Sorento começou sua caminhada em direção ao metrô bendizendo a sorte que teve depois de todos os problemas que havia passado. Ao que parece, realmente existiam males que vinham para o bem.

***

Abriu os olhos e percebeu que o sono não havia em nada restaurado suas forças. Dormiu segurando o aparelho celular, no visor uma das fotos que olhou a exaustão, buscando o conforto, mas terminando por se entregar ao prazer solitário ao imaginar que poderiam estar juntos. Olhou seu estado geral e se sentiu deplorável.

O aparelho apitava indicando o status da bateria. Fazendo um esforço sobre-humano levantou e plugou o celular no carregador, percebendo que já passava do meio dia. Não costumava dormir tanto assim, nem mesmo quando bebia. O que de certa forma não fazia tanta diferença pra ele, já que possuía uma tolerância a bebida que faria inveja em qualquer deus nórdico.

Puxou os lençóis da cama com certo desgosto e jogou tudo no cesto de roupa suja. Entrou no banheiro mais sério que o de costume, prendeu os fios ruivos em um coque alto e adentrou o box. O corpo já estava desnudo, a roupa manchada de sua própria vergonha, estava embolada nos lençóis que havia colocado para lavar.

Deixou a água cair por seu corpo, não era um fã de banhos quentes, o que sempre o fazia lembrar de Milo, que parecia querer escalpelar a pele toda vez que se banhava. Sorriu de leve, diminuindo a temperatura do chuveiro. Era mais afeito a água em temperatura natural, por assim dizer. O banho foi rápido, apenas para limpar o corpo e clarear os pensamentos. Infelizmente a academia estaria fechada, mesmo que aquele não fosse o horário que considerasse ideal, tinha consciência de que precisava extravasar sua inquietação de alguma forma.

Em outros momentos, certamente sairia para caçar e resolveria momentaneamente sua ânsia de companhia e calor, agora, mesmo que de forma embaçada conseguia entender que precisava de algo mais duradouro. Encontros de uma noite não seriam mais a sua solução. Abriu a cortina do quarto e viu que o dia estava nublado. Sendo assim, poderia aproveitar para fazer uma corrida, sentir o vento no rosto, enquanto desbravava alguns quarteirões não parecia uma má ideia.

Vestiu um dos shorts que costumava usar na academia, uma camiseta e manteve o coque. Olhou o celular e o aparelho possuía carga suficiente para tocar algumas músicas.

Saiu de casa em jejum, no caminho de volta poderia comer alguma coisa. Chegou na entrada do prédio e trancou o portão, colocou os fones de ouvido e iniciou a corrida.

Imprimia um ritmo rápido com o intuito de esquecer os últimos dias, quem sabe até os últimos anos. Precisava conter a vontade excruciante de ligar para ele e esclarecer tudo. Explicar suas atitudes e pedir perdão. E acima de tudo, despejar tudo que estava guardando durante esse tempo. Mas sabia que jamais poderia fazer isso, ele estava feliz e não ia estragar aquilo. Já que ele não pôde trazer felicidade ao outro, não era espírito de porco o suficiente para estragar o que estava sendo construído. Mais do que isso, ainda não estava bem o suficiente para se julgar merecedor de confiança. Já traíra as expectativas dele por mais de uma vez, não queria fazer de novo.

No mais, precisava continuar seu tratamento.

Não via a hora do domingo acabar e conseguir conversar com seu terapeuta. Achou graça ao notar que agora sentia necessidade das sessões que antes o causavam tédio e enfado.

Correu até sentir o ar faltar aos pulmões, e respirou o ar fresco, quase gelado daquele dia. Era hora de voltar. Continuava inquieto, uma sensação de vazio, mas não adiantaria passar o resto do dia correndo. Voltou pra casa caminhando, tentando se distrair com a paisagem local e ouvindo uma playlist mais relaxante.

Cortesia de Milo, da época em que ainda namoravam e o grego gostava de organizar as músicas do celular do ruivo. O namoro acabou, mas Camus não mexeu na organização, não havia motivo pra isso. Admitia que era muito bem feita.

Tomou café em uma padaria próxima a sua casa e subiu para seu apartamento com um saco de pão e o restante do café em um copo. Colocou as coisas na cozinha e ligou o celular no carregador mais uma vez. O relógio marcava uma e meia. Não havia passado tanto tempo quanto gostaria.

Suspirou cansado.

Estava exausto de se sentir perdido e acima de tudo . Ao menos no dia seguinte poderia ocupar sua mente com o trabalho e com voz irritante e macia de Shaka perguntando sobre os relatórios dos medicamentos. Não conseguia se ver livre do amigo nem no trabalho, já que ambos eram farmacêuticos na mesma indústria. Pelo menos posso perguntar o que ele achou do livro. Camus pensou sentindo um estalo em sua mente. Tinha uma vaga ideia do que poderia fazer para ocupar o resto da tarde. Era arriscado e talvez não desse em nada, mas ao menos parecia seguro o suficiente para todos os envolvidos.

***

Caso acreditasse em algum tipo de divindade, Sorento estaria agradecendo a ela nesse momento e prometendo todas as ofertas e oferendas possíveis. O dia tinha sido incrivelmente tranquilo e pacato. E era disso que ele precisava nesse momento.

Passou o dia bocejando e organizando a bagunça que tinha sido deixada pela equipe anterior, para sua felicidade os poucos clientes que o abordaram eram de uma educação e simpatia ímpar, e não pediram nada absurdo. Alguns só queriam dicas de livros e estavam abertos as mais variadas sugestões, e outros só queriam saber se o título que buscavam constava naquela loja.

Todos os dias podiam ser assim. Pensou enquanto entregava um volume de “Contos de horror do século XIX”, a uma cliente.

O dia seguia tão tranquilo que passou a acreditar que em algum momento algo terrível iria acontecer, não era comum passar um dia de trabalho incólume. Já tinha adquirido experiência suficiente no trato com o público, para saber que probabilidade de um dia sem imprevistos era quase nula.

Contrariando suas previsões funestas o dia seguiu em relativa paz, conversou com os colegas de trabalho, com Mime em especial, outro musicista que estava naquela loja para complementar a renda.

Organizou os livros, verificou algumas fichas de clientes que haviam feito encomendas com ele e tirou seus quinze minutos de intervalo quando notou o movimento quase inexistente na loja.

Subiu para a copa e pegou uma xícara em seu armário, lembrando dos biscoitos que havia recebido de Shun. Abriu a bolsa sorrindo e retirou o pacote dali. Entrou na copa e encheu a xícara de café, abrindo a embalagem e comendo um dos biscoitos. Nossa… São realmente bons. Valeu, Shun!

Um sorriso divertido ornava seu rosto ao lembrar da gentileza do amigo. Sim, Shun não era apenas seu senhorio, havia se tornado seu amigo, um dos melhores que poderia ter encontrado em seu caminho. Até mesmo de Ikki não podia se queixar, por mais que não fosse tão presente, sabia que podia contar com ele, assim como contava com Shun. Pensando em Ikki, lembrou da animação dele e do irmão mais novo durante o café, e da insinuação bem acertada do moreno. Ikki era observador e Sorento nunca tinha levado ninguém para casa, por mais que ambos já tivessem deixado claro que não haveria problema nenhum nisso. A casa também era dele. Mesmo que na prática não fosse, na teoria Shun fazia questão que o flautista se sentisse como parte daquela família. E ele conseguia.

Tirou o celular do bolso do colete e ficou olhando para a tela do aparelho. Mordeu mais um biscoito e desbloqueou o telefone. Mexeu durante alguns segundos no celular buscando alguma coisa. Parou em um aplicativo e o abriu.

Olhou ao redor, não tinha ninguém na copa. Não que estivesse com vergonha, mas seria desconfortável ser interrompido enquanto procurava por futuros encontros em um aplicativo.

Olhou a hora no celular, ainda tinha uns cinco minutos de intervalo, começou a passar o dedo pelo aparelho rolando as imagens e lendo os perfis. Alguns pareciam atraentes, mas o perfil era tão sofrível. Já estava recorrendo a um aplicativo para arrumar um encontro, ao menos que fosse com alguém por quem conseguisse nutrir o mínimo de interesse que não apenas o sexual. Não esperava romance, ou algo mais além de uma noite, mas também não precisava se envolver com alguém que possuísse o QI de uma porta.

Faltando um minuto para terminar seu intervalo encontrou alguém que parecia interessante. Olhou a foto, a descrição do perfil… Parece satisfatório… Pensou clicando na foto do rapaz e guardando o celular. Precisava voltar ao trabalho.

Guardou suas coisas e desceu. Mais tarde verificaria se o interesse foi mútuo.

Continuou seu trabalho até que percebeu com grande alívio que o expediente havia terminado. Registrou sua saída na máquina de ponto e guardou o colete no armário e o crachá na bolsa. Com um aceno despediu-se dos colegas e saiu da loja estranhando a silhueta que parecia estar travando uma enorme batalha interna sobre entrar ou não no estabelecimento. Franziu o cenho ao abrir a porta da loja e encontrar um nitidamente confuso e embaraçado Camus do lado de fora. O dia estava calmo demais para ser verdade.

— Posso ajudar em alguma coisa senhor… Camus? — Sorriu de lado, mantendo a sobrancelha erguida.

— Neste momento, só você pode me ajudar Sorento. — Camus falou sincero se aproximando do flautista.

— E no que posso ser útil?

— Primeiro, gostaria que parecesse de me chamar de senhor e segundo… Será que podemos conversar?

Sorento avaliou o homem que tentava mascarar a inquietação por detrás do sorriso estranhamento sincero.

Dessa vez, os fios ruivos estavam soltos e voavam na direção do vento, mantinha os óculos escuros mesmo em um dia nublado, e as roupas pretas que já havia reparado serem de predileção dele. Conteve um suspiro quando Camus tirou os óculos e pôde perceber mais do que gostaria naquele olhar. Aquele homem era solitário.

De tal forma que jamais poderia ter imaginado.

Em certa medida lembrava um pouco a solidão que já sentiu, mas parecia ser diferente, mais intrínseca. O olhar e o sorriso o desarmaram. Não queria problemas para a sua vida, mas naquele momento, Camus não parecia o tipo de questão que poderia evitar.

— Claro, sempre podemos conversar. Caminhe comigo até o metrô.

— Não gostaria de parar em outro lugar?

Sorento o olhou com o canto do olho e começou a andar.

— Quis dizer um café ou algo do tipo.

— Imagino o que você quis dizer, Camus. Mas o máximo que estou disposto no momento e andar até o metrô e depois até minha casa. Estou exausto!

— Você não descansa muito não é?

A pergunta continha um tom de genuína curiosidade, o que de certa forma surpreendeu o flautista que continuava na defensiva. Camus era mesmo um mistério.

— Não tanto quanto gostaria. O presente fez sucesso?

— Sim… Acredito que sim. — Sorriu — Vou saber maiores detalhes amanhã.

— Espero que a resposta seja positiva. Além disso, obrigada pelo livro Camus. Fiquei… Sinceramente feliz.

O sorriso de Camus se alargou e Sorento involuntariamente prendeu a respiração ao notar que sem sombra de dúvidas, ele deveria distribuir esse tipo de sorriso por aí.

— Que bom! Quer dizer que já não configuro mais seus pesadelos? — Riu.

— Quem sabe… Ao menos começou a sair deles. — Acompanhou o riso.

— Já é um começo… — Camus colocou uma mexa do cabelo vermelho atrás da orelha — Me falaram esses dias que tudo precisa de um começo.

— Concordo. Precisamos partir de algum ponto.

— Sorento… — Camus parou a caminhada avistando a entrada do metrô. — O que você pensa sobre mim?

O flautista se espantou com a perguntando, parando de frente para o ruivo e não conseguindo mascarar o assombro.

— Ora Camus… Eu não tenho muitas informações para deduzir algo sobre você.

— Mentira! Claro que tem. Com o que você tem, o que diria sobre mim?

— Bom… — Respirou fundo — Você me parece estar a maior parte do tempo atuando. O predador quase psicótico não parece o mesmo cara que comprou um livro comigo. E muito menos o homem com quem estou conversando agora.

— E qual deles você prefere?

— Sem dúvida o que sorri com sinceridade genuína, sem o intuito de seduzir todos os seres viventes ao redor. Esse tem mais capacidade de conquistar amantes… Ou amigos, que o homem que acobertei no Imperador.

Camus sustentou o olhar do jovem à sua frente e percebeu que ele lembrava alguém, não fisicamente, mas os modos e o jeito de se expressar. Já havia percebido isso.

— Obrigado, Sorento. — Sorriu retomando a caminhada.

— Não por isso… — Olhou para Camus — É sobre esse tipo de sorriso que eu falava. — Comentou chegando na entrada do metrô. — Agradeço a companhia até aqui.

— Eu que te agradeço. Quem sabe na próxima você não toma um café comigo.

— Quem sabe…

Virou na direção dele para se despedir e ao mirar os olhos conflituosos, tirou um caderno e uma caneta de dentro da bolsa, anotando alguma coisa e guardando tudo em seguida.

— Quando quiser conversar pode me ligar. — Entregou o papel a Camus.

O ruivo olhou o número por alguns segundos, sorrindo em seguida e anotando no celular, sob o olhar atento de Sorento.

— Então quer dizer… — Sorriu malicioso.

— Quer dizer que para isso, a resposta continua sendo não… Mas não desgosto de nossas conversas. Você é um homem interessante Camus, só quero saber o quanto.

Sorento sorriu, virando de costas e caminhando até o metrô. Camus ficou parado, o sorriso bobo nos lábios acompanhando o caminhar elegante do homem que parecia transitar por todos os ambientes nos quais se encontrava.

Esqueceu de perguntar como nunca o tinha visto na livraria e quais seus dias no Imperador. Na verdade, não falou nada do que havia planejado. Mas a conversa saiu melhor do que esperava. Respirou fundo e decidiu voltar a livraria, já que estava por ali, poderia matar seu tempo de forma produtiva e prazerosa. Quer dizer que sou um homem interessante? Por essa não esperava.

***

Deusa decidiu que o melhor lugar para dormir eram as costas de seu humano.

Ela calmamente procurou o melhor posicionamento, girando sobre seu próprio eixo e quando encontrou o ângulo adequado, seguindo seriamente sua lógica felina, tateou a carne firme levemente avaliando que tipo de força deveria empregar. Isto decidido tratou logo de iniciar uma vigorosa massagem, movimentos de sovar massa de pão, soltando um pouco suas garras, afinal o resultado final deveria ser macio.

Essa movimentação foi trazendo Kanon a consciência. Até o ronronar da gata parecia agressivo aos seus ouvidos.

Ressaca definitivamente era um castigo infernal.

Ele resmungou, sendo sumariamente ignorado, percebeu então que o ronronar irritante era seu celular vibrando. Demorou longos minutos para encontrar o aparelho. A cabeça latejando com a luz que entrava pela porta da varanda, claro que foi idiota o bastante para se esquecer de fechar as cortinas. A gata se esparramou no lugar antes ocupado por ele aproveitando o calor residual.

Kanon encontrou o celular e olhou o celular com a vista ainda turva. Atendeu antes que a pessoa do outro lado desistisse.

— Alô, Milo?

— Não. Oi Kanon, é Isaak… Te acordei?

Kanon apertou os olhos com força voltando a olhar a tela do celular, tudo confuso, voltou a falar:

— Isaak, ei… Eu estava acordando já — mentiu — Tudo bem com você?

— Sim… Kanon, eu posso ligar outra hora se estiver te atrapalhando…

— De jeito nenhum! Não me atrapalha. Estou acordado já. Você… Quer vir para cá e podemos conversar?

Escutou o sorriso de Isaak do outro lado da linha como se pudesse vê-lo e sentiu um frio na barriga começar a surgir. Seria possível que aquele moleque o tivesse nas mãos tão entregue?

— Estação do Parque Central, não é? Você me encontraria na catraca do metrô… Daqui uma hora?

— Sim, Perfeito! Te pego lá em uma hora. Qualquer mudança me avisa!

— Ok…

— Até logo!

Kanon desligou e passou a mão pelos cabelos. Em 10 minutos de caminhada estaria lá.

Precisava tomar banho, um comprimido para a dor de cabeça e quem sabe beber um suco. Ou vários.

Seu corpo vibrava de antecipação. Nem queria pensar se havia sido precipitado ou não. Precisava se afundar novamente em Isaak, depois pensaria em como resolver sua vida. Ergueu-se maldizendo a ideia de tentar acompanhar o ritmo de Julian na noite anterior.

Maldizendo a idade e principalmente sua estupidez.

Arrancou as roupas e se enfiou embaixo de um jato de água gelada. Mal pode segurar um gritinho.

Odiava água gelada. Porém, naquele momento era o que precisava. Se esfregou vigorosamente, lavou os cabelos e escovou os dentes. Depois do banho se trocou, e observou no espelho as olheiras em seu rosto.

Respirou fundo e se preparou para encontrar Isaak, era hora de acertarem as contas.

Chapter 17: Recheando sua alma

Chapter Text

Eles passaram praticamente o dia todo alternando contemplação, sexo, risadas e carinho com diálogos e pequenos contos da vida de cada um.

Hyoga ficou sabendo que a família de Kanon e de Milo eram tão próximas e amigas que todos cresceram como primos, mas não eram realmente familiares. Soube do casamento que logo aconteceria e que Milo estava animado para usar roupas de festa, que inclusive tiraria medidas ou algo assim nesta semana.

Ateve-se a imaginar como ele provavelmente ficaria irritantemente lindo em roupas de festa. Ouvia a tudo atentamente enquanto tocava eventualmente o rosto, as mãos ou os cabelos do grego que estava contente e surpreso com alguém que se interessasse por suas “palestras” como costumavam reclamar os ex namorados. Milo era uma pessoa expansiva, gostava de conversar, de ouvir sobre as experiências dos outros também, o lado curioso costumava dar as caras de forma suave, entretanto, mesmo sem saber como explicar estava se sentindo tão à vontade e cheio de vontade de saber tudo sobre Hyoga.

Hyoga lhe contou sobre sua família, o Pai era filho de russos e japoneses, a Mãe russa.

E ele era o resultado perfeito dessa mistura. Milo se pegava intrigado investigando os traços harmoniosos, olhos grandes, puxados e claros, cílios escuros, sobrancelha farta e um mistério a cada expressão.

Hyoga era esse tipo de pessoa serena e elegante normalmente mas que faz trezentas caretas por palavra quando estava realmente à vontade.

Algo bem interessante se comparado ao aparente distanciamento que ele demonstrou no bar.

Milo tomou conhecimento que o rapaz era emancipado desde os 17 anos, que perdeu a Mãe em um acidente de carro no início da adolescência e que neste mesmo acidente tanto ele quanto Isaak haviam se machucado bastante. Milo pensou que era daí provavelmente que o outro rapaz havia herdado a cicatriz, mas não perguntou. Soube que Hyoga dedicou a maior parte da sua vida a ginástica olímpica e que assim como ele amava nadar.

Eles falaram de música e descobriram aí sua maior afinidade: todo tipo de rock que Milo adorava era em algum nível também apreciado por Hyoga.

Eles prolongaram o encontro por horas, ouvindo diversos discos da coleção de Milo, contando dos shows que tiveram a oportunidade de ir, da banda que Isaak e Hyoga tiveram há alguns anos.

Entre eles tudo acontecia leve e intenso. Estavam contentes.

Sabiam que em algum momento teriam que quebrar aquele encantamento caseiro, a pequena bolha que criaram em poucas horas transformando a casa de Milo em um ninho de carinho, safadeza e camaradagem na medida certa para os dois.

Tinham suas obrigações e o relógio não espera ou acompanha o ritmo dos corações encantados pela descoberta de alguém especial.

***

O caminho até a estação de metrô era tranquilo e relativamente movimentado para um domingo a tarde. As pessoas frequentavam o Parque Central, do qual a estação herdou o nome, da calçada ele conseguia sentir o aroma dos pastéis fritos, pipoca, algo assado com canela e outras gostosuras. Sua barriga reclamou e lembrou-se dos ensinamentos de Kardia: “Para curar ressaca só comendo algo gorduroso e bebendo muita água, mas o ideal é nem beber se você for um maricas!” — Sorriu ante a lembrança e ajeitou os óculos escuros no rosto.

Milo e o irmão eram muito diferentes na personalidade, mas não fosse a diferença de idade de 8 anos poderiam facilmente também passar por gêmeos. Os cabelos do mais velho eram mais escuros e quem sabe mais lisos, mas os olhos, eram os mesmos. Franziu os seus ante a lembrança do quão eram expressivos os olhos das pessoas daquela família.

A descoberta que fizera na madrugada de sexta ainda estava como pendência, algo que o desagradava. No entanto, naquele momento existia uma questão em aberto que precisava resolver.

Na noite anterior quando viu Isaak sentiu um bola na barriga grande demais para residir em seu corpo.

Era uma mistura de raiva e desejo. Algo que o instiga e ofende.

Quis pela primeira vez descer uns tapas fortes naquele rosto impertinente, mas o sorriso o desarmou. Mais uma vez quis arrancar as roupas que cobriam o corpo firme, muito mais forte do que era sugerido pelo porte esguio.

Maldito moleque gostoso! Kanon se recriminava, era um homem adulto, caralho!

E Isaak? Isaak era um menino, começando a trilhar um caminho que ele já havia abandonado por preguiça. Por ter tirado daquela rebeldia tudo que podia.

Seu desejo por Isaak era também o desejo de recuperar parte do que perdeu quando o foco de seus estudos e pesquisa foi o protagonista de sua vida, não só acadêmica.

Saga o chamava de nerd, ele ostentava o título sem problemas, sempre gostou de estudar, sempre foi curioso, jamais foi um exemplo do clichê nerd, a bem da verdade.

Era um homem alto, bem apessoado e tinha porte atlético. Foi essa mistura e seu entusiasmo despretensioso que haviam chamado a atenção da maior parte das pessoas com quem se envolveu, ao contrário do irmão, ele não se julgava pertencente a nenhuma casta superior. Mas muitos foram os que o consideravam um troféu a ser conquistado.

Com Isaak era diferente, ele era tão alheio, tão distante desses critérios. Parecia até entediado com suas atenções.

E a compatibilidade entre eles, apesar ou talvez por todas as diferenças, tendo aí a idade como a mais óbvias delas, foi impressionante e abrasadora.

Isaak estava lá, encostado displicentemente na parede clara, já do lado de fora da estação. Vestido todo de preto, mãos nos bolsos da jaqueta, os cabelos segurando o brilho do sol, castanhos claros, pontas coloridas em um verde desbotado. Óculos escuros e um meio sorriso que faria qualquer um lhe oferecer a outra face sem motivo aparente.

Eles se cumprimentaram com um abraço. O cheiro da jaqueta de couro entrou em suas narinas e Kanon sentiu que talvez não pudesse se controlar. Ele por acaso queria?

Soube que estava rendido assim que partiram o abraço. Isaak era tão bonito que provavelmente o mundo não o comportaria sem aquela cicatriz.

Kanon gostava de cicatrizes, pintas, sardas e qualquer marca na pele. Aos seus olhos Isaak era perfeito. Uma cilada, mas ainda assim perfeito.

Retornaram pelo mesmo caminho com Isaak contando como faziam semanas que não dormia tão bem. Ao lado da entrada do Parque os aromas chamaram novamente a atenção de Kanon e ele convidou o outro para que parassem em uma barraca para comer algo.

Decidiram-se pelos pastéis e ambos aprovaram o recheio generoso de uma banca tradicional daquele ponto.

O mais velho adorava refrigerante de limão e eles dividiram uma garrafa sorrindo e acompanhando os movimentos um do outro no ir e vir do gargalo da garrafa.

Assim que a refeição terminou eles se encaram por alguns segundos e Kanon fez questão de lhe apertar a mão antes de direcioná-lo de volta ao caminho de sua casa, dessa vez com o passo bem mais apressado.

No prédio o portão e a porta nunca foram abertos com tanta pressa. As escadas subidas de dois em dois degraus. Isaak acompanhava a tudo com um sorriso enigmático.

Uma vez no terceiro andar a porta nem havia sido aberta e Kanon já puxou Isaak para um beijo exigente e desesperado. Suas mãos ergueram o garçom e com uma habilidade surpreendente ele abriu a porta e estavam finalmente em casa.

Deusa deitada na parte mais alta de uma prateleira ergueu os olhos e soltou um bocejo entrecortado por um miado gritinho fino.

Sem descolar a boca de Isaak seu dono sorriu.

As roupas foram dispensadas no caminho para o quarto. Eles se soltavam o suficiente apenas para dar espaço para os movimentos que eram indispensáveis para o acesso completo de pele contra pele.

Os gemidos de Isaak eram uma orquestra para as vaidades de Kanon, cada nota, cada tom perfeito para atirá-lo ao inferno em danação eterna.

A oração era muito simples:

— Kanon, me come gostoso… Faz de mim o que você quiser, por favor me fode!

Quem em sã consciência resistiria aquele nível de safadeza dita na voz do anjo vingador celestial mais impuro?

Kanon sabia que não importava a posição, ali seria sempre ele quem estava fodido.

O favor interrompido na última sexta foi retribuído e enquanto Isaak se engasgava nas avantajadas dimensões do pau do grego, ele se aproveitava da diferença de altura para lhe alcançar sem preâmbulos a entrada com os dedos esticando um braço. E lá brincava cada vez mais ousando ouvindo os gemidos quase sufocados de Isaak. Trouxe os dedos ao rosto e sentiu o cheiro doce dele, lambeu com vontade antes de reiniciar sua tarefa. Isaak passou a rebolar exigente.

— É isso que você quer meu putinho? Ãhnnn Isaak… Como você é quente!

O mais novo ergueu os olhos para ele nesse momento e os dois sorriram em meio a aquela cena bagunçada. Kanon estava uma barra de ferro de tão duro, puxou o outro para um beijo e sentiu aquelas mãos mapeando todo seu corpo. Então, ergueu o corpo dele novamente e teve seu quadril enlaçado pelas pernas longas e fortes. Isaak era relativamente pesado, mas naquele momento cada detalhe dele parecia mais uma pincelada de perfeição aos olhos do grego.

O levou assim, as ereções apertadas entre eles até a cama. Manejou alcançar ao lado de sua cama na mesinha um preservativo que Isaak fez questão de abrir e colocar nele com muita delicadeza e carinho. Se beijaram sem interrupção até que Kanon sentou-se na lateral da cama e Isaak se encaixou ali abrindo suas nádegas com suas mãos. Kanon afundou o rosto na sua nuca e lhe mordeu o ombro.

Coube ao garçom guiar aquela empreitada e ele foi lentamente aceitando aquela deliciosa e ansiada invasão. Kanon paciente e contido aguardou distribuindo carinhos, registrando cada cicatriz em sua memória, sentindo sua constituição firme e a maciez de seus pêlos claros.

Palavras desencontradas, pele arrepiada.

Isaak não parava de repetir o nome dele, dizer que o queria, que era estava a sua mercê.

Quando os movimentos começaram o gemido de Kanon tornou-se mais animalesco.

A desenvoltura de Isaak sempre o impressionou, um frescor selvagem e lindo.

Ele apertava, quicava e rebolava como se estivesse possuído, mas sua voz seguia mansa, manhosa, cheia de malícia sim… Mas carregando algo que apenas enlouquecia Kanon de forma desconcertante.

As carnes eram apertadas sem dó, alguns palavrões começaram a decorar o quarto, o cheiro de suor, saliva e sexo inebriava a ambos.

Isaak apertava o próprio sexo, em uma mão deixando a cargo dos movimentos de Kanon o estímulo ali. E então gozaram. Numa explosão completamente simétrica e assustadoramente vigorosa.

Um tempo depois se aninharam na cama ainda recuperando o ar. Isaak buscou o rosto de Kanon para que eles se encarassem e quando falou sua voz carregava uma sinceridade até então desconhecida:

— Kanon, me perdoa por ter sido um babaca, você não merecia… Eu… Eu senti ciúmes. Merda!

Sufocou no peito a vontade de dizer o mais importante. Num impulso Kanon calou a ambos entre beijos carregados de desejo e conversas incompletas.

Se resolviam no contato, no orgasmo. De novo e de novo.

***

Suspirou fechando o livro. Ficou tão entretido na leitura e acabou não percebendo a passagem das horas e consequentemente o amanhecer. Ponderou que seria mais prático apropriar-se do leve torpor que a noite insone causava em seu corpo e se deixar levar para a terra dos sonhos, contudo, isso confundiria seu relógio biológico e causaria problemas na noite seguinte.

Por mais que o corpo cansado e as olheiras fossem um chamariz para a cama, decidiu manter-se desperto e com isso tentar regularizar seu sono.

Shaka guardou o livro na pequena estante que tinha na sala e sorriu passando o dedo pela lombada. Tinha sido uma bela leitura e um gracioso presente. Precisava admitir, Camus sabia ser surpreendente. Em muitos aspectos diga-se de passagem.

O relógio marcava um pouco mais de dez da manhã e o virginiano tratou de ocupar-se para colocar em prática sua ideia de organização onírica.

Tomou banho, vestiu uma roupa leve, caminhou até a feira que tinha próxima de sua casa, comprando além de legumes, verduras e frutas, os diversos temperos que tanto gostava.

Ao retornar para casa cuidou da rotina de bem estar de suas plantas e faxinou todo o apartamento meticulosamente. Riu ao constatar que sua próxima faxina seria na casa que dividiria com Shura. Sentiu um embrulho no estômago, metade antecipação e a outra receio. Já tinha decidido os prós e contras de tudo aquilo e não continuaria a remoer as mesmas coisas.

A convicção da infalibilidade de suas decisões era inabalável.

Ocupou mais da metade do dia em seus afazeres, conseguindo terminar de cansar o corpo e a mente.

Terminou de encher uma caixa com as roupas que já poderia deixar empacotada, visando a mudança, quando parou um pouco para descansar e olhou pela janela do quarto.

Avistou no gramado do prédio um gato branco e gordo, possuidor de trejeitos preguiçosos e que parecia se refrescar com a brisa que soprava. Os pêlos voando e o felino bocejando. Shaka sorriu, cogitando a ideia de adotar um bichinho. Teria que ensinar o novo companheiro a não molestar suas plantas, claro, e também precisaria instaurar uma rotina de escovação, corte de unhas, vacinas e etc.

Balançou a cabeça rindo da ideia. Não sabia ao certo o que Shura pensava sobre animais de estimação.

Tinha a impressão que o espanhol não se incomodaria em ter em sua casa um gatinho, mas poderia ser um pouco espantoso um aumento familiar tão rápido. Vai ganhar um marido e um filho em menos de um mês. Shaka riu e pegou o celular. Sentia saudades de Shura. Apenas aquele homem era capaz de fazer com que o sempre centrado e prático virginiano, divagasse sobre os assuntos mais corriqueiros e banais.

***

Toda vez que Hyoga abria os olhos percebia que a luz que entrava pela janela estava diminuindo. Passou o domingo todo com Milo na casa dele e quando o grego o trouxe para a sua o convidou a entrar. Uma vez lá, claramente acabaram se entregando sem escapatória aos prazeres que retiravam um do outro, deles dois.

Houve tempo de ler a mensagem em que Isaak o avisava que estava com Kanon e pedia para que ele levasse sua mochila na manhã seguinte para a faculdade. E depois disso qualquer pudor que pudesse advir da possibilidade de que o garçom chegasse em casa se perdeu.

Assim, enquanto abafava seus gemidos mordendo seus lençóis, sentia Milo se afundando cada vez mais em si. As mãos fortes deixaram muitas marcas em suas carnes. E agora a sinfonia de sôfregos gemidos testavam sua lucidez. Passou brevemente por sua cabeça a certeza rompida com Milo de que ele jamais se entregaria dessa forma. O homem alto, gentil e sedutor chegou na sua vida mudando todas as perspectivas. Chegou sem convite, sem aviso, arrebatador. A derradeira reviravolta da reviravolta dele; o ex hetero convicto se dava mais uma vez, agora se via de quatro em sua própria cama, sendo firme e docemente possuído. Vermelho, suado, delirante e muito satisfeito.

Milo puxava seu corpo com força, mas apesar disso mantinha um cuidado perceptível em seus movimentos, buscava lhe dar prazer e isso emocionava Hyoga de forma perturbadora.

Desabaram na cama sorrindo. Se ajeitaram os dois de barriga para cima respirando fundo. Mãos dadas. Tudo aconteceu muito rápido entre eles, mas pela experiência de vida que já angariaram, sabiam reconhecer que aquilo era algo diferente. Milo amarrou o preservativo, deixando de lado aquela evidência. E voltou-se para o dono da casa:

— Me manda embora?

— Se eu pudesse te segurava aqui comigo…

— Que estamos fazendo Hyoga?

— A gente… Está se conhecendo?

A risada solta de Milo ecoou no silêncio do apartamento. Puxou o outro para um abraço. Tirando delicadamente os cabelos loiros do rosto do russo.

— Gosto do seu jeito de pensar. Que delícia te conhecer!

Hyoga ficou olhando para ele. Nada disse e apenas sorriu de leve. Tinha receio de estragar aquele momento. Era tudo muito novo.

— Hyoga… Eu quero te conhecer ainda mais, gostaria de te ver de novo… Sabe, esse fim de semana foi bem atípico para mim. Não quero que seja apenas algo para recordar. Estou adiando, talvez deva ir, não quero mais te atrapalhar, lembro que disse no Imperador que precisava estudar.

— Não me atrapalha em nada! Você quer me conhecer? Fica comigo essa noite então. Não faz ideia de como quero que fique…

E lá estava novamente o rubor. As faces coradas do mais novo faziam explodir em Milo incontáveis sensações além da luxúria. Ele sentia ganas de cuidar daquele rapaz, de nunca mais tirar os olhos dele, isso também o confundia. Mesmo sendo relativamente experiente ele costumava sempre se envolver com homens mais velhos, onde era ele na maior parte das vezes o guiado, ao menos no raiar do envolvimento e temia onde poderia se meter ao estar tão cativado por um rapaz claramente iniciando sua jornada de descoberta da sexualidade.

Ele admitia que Hyoga era desenvolto e corajoso e que em nenhum momento havia vacilado ante a qualquer de suas demonstrações de afeto, mesmo quando estiveram em público, mas conhecia muitas histórias de homens que caíram na desgraça de se enamorar por um “indeciso" ou por alguém afim de experimentar uma aventura diferente, mas não assumir as implicações que um relacionamento entre homens, inevitavelmente, traria.

Hyoga, por sua vez, não demonstrou nem por um segundo indecisão, receio ou preconceito. Somente isso já o deixaria mais instigado. Milo conseguiu encontrar em tão poucas horas calor e entrega tão intensas quanto as suas. Algo que julgou que talvez nem ao menos voltasse a ter em sua vida. Seu último relacionamento o havia desgastado muito. Ainda que estivesse bem resolvido com isso, aquela sensação residual de derrota as vezes retornava.

Mas com Hyoga, o que era aquele homem? Eles se deram bem ao primeiro olhar. Os beijos eram cada vez mais inacreditavelmente deliciosos e o sexo… Ele se sentia no paraíso, nenhum detalhe do corpo de Hyoga ou de sua pegada podiam ser descritos como menos que perfeitos para ele. Era tão espetacular e primoroso que ele sentia medo.

Irracional, mas era isso.

Hyoga observava atento às mudanças na expressão de Milo, uma sombra que lhe passou pelos olhos.

— Milo, não sei se deveria dizer isso… Eu quero muito te conhecer também e espero que você não se assuste mas…

— Diga.

Milo aumentou a intensidade do toque, já estavam mais uma vez se inflamando. O grego passou a sussurrar no ouvido de Hyoga, que já estava completamente arrepiado e mais uma vez excitado.

— Me diz o que quer de mim Hyoga…

— Quero você.

— Também quero você.

Era o que conseguiam dizer naquele momento. O essencial: a verdade.

***

Estava sentado em um dos bancos altos que deixava próximo ao balcão da cozinha. As luzes da casa estavam apagadas e a noite já caia. Habitualmente não acendia as luzes a menos que tivesse uma visita ou fosse ler alguma coisa. Gostava de ficar no escuro, sempre gostou. Desde a infância, chocava os pais com a ausência do medo em manter-se no escuro, contrariando o padrão comportamental das demais crianças.

A bem da verdade, nunca foi uma criança típica. A compleição séria o acompanhava desde a tenra idade, e os pais jurariam para qualquer um, pronunciando no carregado sotaque espanhol que ele já tinha nascido com o rosto impassível e o olhar pétreo. Nessas horas, Shura sorria, imaginando a si mesmo como o bebê mais emburrado da maternidade.

Talvez fosse verdade, provavelmente não, mas gostava dos exageros de seus pais.

Não saberia precisar o momento em que sentou naquele banco, mas certamente acompanhou o despertar da noite, já que ainda mantinha os óculos de leitura no rosto e lembrava de ter começado a formatar alguns dos intermináveis arquivos do trabalho, com o intuíto de adiantar a si mesmo e se poupar um pouco da ausência de organização da empresa.

Depois de algumas horas, tomado pelo tédio, pensou em fazer um café. A cafeína sempre o ajudava a recuperar um pouco da disposição. Colocou o pó na cafeteira e aguardava, quando viu o celular vibrando em cima da bancada.

Desbloqueou o aparelho e mirou as mensagens. Acabou perdendo-se naquela tarefa, e estava desde então sentado na bancada, olhando para o celular.

Um sorriso atípico brindou seu rosto ao ver a foto do namorado piscando na tela do telefone indicando uma chamada.

Atendeu de pronto. A felicidade estampada na voz. Alargou o sorriso ao saber que Shaka já estava arrumando suas coisas e ouviu com atenção a narração em tom quase épico de todas as atividades que o indiano havia executado no dia, inclusive como tinha conseguido barganhar com o feirante a compra de uma suculenta abóbora.

— Posso fazer um doce de abóbora para você. Um colega no trabalho me deu a receita uma vez. Abóbora com coco. — Shura falou contendo o riso.

— Você faria isso? Sério?

O tom de Shaka era quase infantil, muito diferente do que costumava usar no dia a dia. Era o tipo de tom que empregava apenas na presença de Shura, ou ao se comunicar com ele.

— Claro, Rubio. Vem no pacote casamento. Todos os doces que você puder comer. — Sorriu.

— Olha que se eu tinha dúvidas elas acabaram agora. — Riu.

— Você tem dúvidas? Não quero te forçar a nada.

— E não está forçando. Foi só modo de dizer.

Shura ouviu o som da risada do outro e a continuação da narração acerca da rotina dominical mais atribulada da qual já teve notícia. Pegou-se gargalhando ao ouvir Shaka cogitar a adoção de um gato, ignorando a existência dos cães, não por desagrado pelos caninos, mas por achar que os gatos têm uma personalidade mais compatível com a dele. Deixaram o assunto adoção em aberto e o loiro desligou informando que precisava dormir. Despediram-se de forma carinhosa e Shura suspirou pensando que em breve acordaria todos os dias sentindo o cheiro gostoso que desprendia dos cabelos e do corpo do namorado.

Amava Shaka, nenhuma dúvida quanto a isso.

Sentiu o celular vibrar mais uma vez e olhou para o aparelho. O sorriso morreu nos lábios que ele mordeu contendo um suspiro cansado, apesar disso seus olhos brilharam por alguns segundos. Tirou os óculos de leitura deixando-os na bancada e apertou a junção entre os olhos.

Respondeu a mensagem e permaneceu olhando para o nada.

Enclausurado em uma escuridão muito maior do que a de sua casa. Uma que o acender de luzes não conseguiria minimizar.

Chapter 18: Bombeia através de suas veias

Chapter Text

O início da semana passou veloz, Milo quase não teve tempo livre, envolvido com a tradução de um conjunto de documentos técnicos solicitados com urgência pelo cliente.

Trocou algumas mensagens com Hyoga, também ocupado com faculdade e trabalho, mas só conseguiu dormir tranquilo quando entregou tudo que fora solicitado desde segunda de manhã.

E agora já era quinta e ele sentia muito a falta do russo. Nessa tarde, entretanto, tinha o compromisso marcado com o alfaiate, últimos ajustes do traje do casamento. Estava decidido a tentar encontrar com Hyoga ainda hoje. Precisava daqueles beijos para manter sua sanidade. Falou com o irmão no telefone, ele já tinha feito a prova da roupa no dia anterior, tinha até encontrado com Saga e Kanon.

Milo deveria ter ido também, mas foi forçado a desmarcar para finalizar o trabalho.

Repassou mentalmente o que precisava fazer para ajeitar as coisas na sua casa. Escreveu uma mensagem para Hyoga, por mais que a ideia de chegar de surpresa parecesse atrativa a seus olhos sabia de antemão e por experiência própria que nem todos se agradam de surpresas e ainda não conhecia o outro rapaz bem o suficiente para afirmar qual seria sua reação.

Traçou toda a tarde em sua mente: resolveria as questões no alfaiate, depois passaria em sua lanchonete preferida pegaria alguns lanches e seguiria para encontrar Hyoga quando este deixasse seu trabalho às 20h00. Levaria o rapaz para jantar em casa, já que ele mencionou que estava cansado e não podia dormir tão tarde e ficaria um pouco lá com ele. Parecia roteiro adolescente!

Durante esses dias imerso em um trabalho com prazo curto, ele teve pouco tempo para se perder nas lembranças do fim de semana.

Agora, revisitava a mesa do bar, o interior do carro, sua casa, o passeio pela praia e a casa de Hyoga…. Pensando bem ele tinha encontrado com aquele russo encantador apenas duas vezes e apesar disso coletado algumas lembranças bastante agradáveis. Era pouco, muito pouco para tamanho efeito! Já sentiu frio na barriga.

A quem queria enganar?

Pelos Deuses não conseguia tirar o sorriso da cara só por lembrar de Hyoga!

***

A sessão de segunda feira havia sido catártica. Tantos nós sendo desfeitos na sua mente que Camus pensou que toda sua psiquê se esparramava em seu colo, enquanto encarava o terapeuta, escutava uma voz quase desconhecida saindo de si. Raciocinava em uma velocidade diferente.

E falou, como nem sabia ser capaz. O rompante de palavras e conclusões se entrelaçando como se estivessem desde sempre passeando pela sua boca, aguardando apenas o sinal para brotarem sem ele saber como barrá-las.

Ele sempre foi um homem perspicaz, mas agora se dava conta de que passou boa parte de sua vida adulta se enganando. Compensando de forma tóxica uma ausência que desconhecia.

No fim do encontro estava desconcertado.

Ficou abalado a semana toda. Aqueles que apenas o conheciam do ambiente de trabalho pouco ou nada perceberam em seu comportamento. Ele permanecia sério, centrado e objetivo, mas para alguém perceptivo a ele como Shaka, com certeza o olhar profundo e o leve encurvar nos ombros que sempre desfilavam em postura ereta irrepreensível seriam notados.

Justamente por isso Camus tentou se manter discreto, sem dar muita oportunidade ao amigo de lhe abordar.

Era de seu conhecimento que precisava compartilhar com o loiro sua empreitada na terapia, escondeu isso dele por meses, primeiro pois não acreditava na eficácia do tratamento e posteriormente por se ver imerso nas conclusões e revelações que chegava sobre si mesmo, ante as orientações de seu terapeuta.

Sabia também que precisava também conversar com Milo, só de imaginar a mágoa que causou ao ex sentia seu peito constrito.

Cada um tem um caminho para alcançar sua própria redenção.

Ele não se sentia mais disposto a carregar o cadáver putrefato do homem que construiu e estripou e que hoje usava o rosto que mal reconhecia como seu, não seria mais aquilo, não conseguia, queria viver. Lembrava da leveza, do sabor da leveza… Estava disposto a sofrer para se curar. Ser livre da mácula sórdida que seu passado acrescentava a todas as suas experiências.

Precisava se lembrar antes de poder esquecer, seguir em frente.

O processo de desconstrução era árduo, pesaroso, mas segundo ouviu apenas se sentir desconfortável já era um indício da consciência que abafou sistematicamente por anos.

Camus ajeitou os óculos e concentrou-se no relatório que digitava. Seu trabalho não podia conter erros. E ele também não. Agora que identificou algumas de suas atitudes como negativas precisava com urgência se redimir. Pela sua saúde mental…

Mesmo que isso não dependesse apenas dele. Apertou os lábios.

Tenta concatenar as ideias quando batidas suaves a sua porta lhe chamaram a atenção. Ele se ergue.

Era Shaka. Com um movimento de cabeça o convidou a entrar.

— Seu ramal está com algum problema?

Shaka perguntou já investigando aquele pequeno ambiente discretamente. Seus olhos recaíram sobre o aparelho desconectado da linha telefônica, ergueu uma sobrancelha, reconectou o telefone e só então desceu sua análise sobre o ruivo.

Camus aguardou satisfeito, estava acostumado com olhares muito mais invasivos e mesmo obscenos, então, a apuração do homem à sua frente lhe causava a reconfortante sensação de humanidade, que ele aproveitou sedento. Olhar para o amigo também não poderia jamais ser considerado desagradável, então tratou de se agarrar ao pequeno deleite daquela companhia empertigada e sempre esbanjando irritadiça elegância.

— Qual o problema Camus?

“Eu sou um bosta” — foi o que lhe ocorreu responder.

No entanto, não gostaria de encarar um sermão dedicado a esse aspecto nada cativante de si. Sabia que o loiro tinha diversos pontos de concordância com essa afirmação, provavelmente seria eloquente em usar outros adjetivos, mas ainda assim pouco poderia dissertar em defesa de sua postura.

A terapia ajudava a entender os mecanismos que o levaram a tomar determinadas posições em sua vida, mas isso não quer dizer que o peso, a culpa, o ressentimento e a vergonha simplesmente deixavam de povoar suas reflexões. Certamente ele também aprendia lentamente ao compreender o seu lugar nessas dinâmicas a também se perdoar, a não se julgar de forma tão severa ao ponto de apenas desistir de tentar buscar outros caminhos, como havia sido por muito tempo. Essa junção era exaustiva. Importante acima de tudo, mas lhe sugava as energias. Dessa forma, em alguns momentos precisava de algum isolamento.

No trabalho isso só era possível com estratégicas e táticas que impedissem os colegas de importuná-lo.

O ramal desligado havia funcionado por boa parte da semana, já que ele acabou por resolver as pendências internas via intranet e e-mail corporativo, funções destes subterfúgios, bem aplicadas. Já havia, percebido um ou outro olhar de Shaka, quando se cruzaram pelos corredores ou em alguma reunião, mas como sabia da dedicação do outro aos prazos e sua total dedicação a todos os menores detalhes de seu trabalho e dos relatórios subsequentes, conseguiu de alguma forma se esquivar.

Mas naquela quinta feira a tarde soube que enfim teria que encarar qualquer que fosse a amplitude entre desprezo e fúria que o virginiano lhe dedicasse.

Ele abriu e fechou a boca algumas mas não encontrou nenhuma palavra.

Shaka franziu sua expressão tentando mapear algum motivo para isso. Um comportamento incomum para o ruivo com toda certeza. Shaka cogitou tocar a testa do francês para checar sua temperatura, mas refreou o gesto, dizendo apenas:

— Podemos tomar um café ou jantar hoje, se você quiser… E conversamos, que acha?

Aguardou a resposta ajeitando o crachá da empresa e pensando em enviar uma mensagem para Shura, sabia que nessa noite o namorado tinha um compromisso, por isso, seria o momento ideal para que não perdesse a oportunidade também de desfrutar da companhia do espanhol.

— Não sei Shaka, estava planejando jantar em casa hoje, minha geladeira está cheia e não estou afim de ver muitas pessoas.

— Ótimo Gaetan, eu vou com você e posso cozinhar. Assim você me conta que diabos está acontecendo. Combinado?

Camus sentiu que seu coração falhou uma batida. Havia muito tempo que ninguém o chamava pelo primeiro nome. Sentiu o rosto corar. O amigo o encarou por alguns instantes, antes de deixar a sala sem mais nada ser dito.

O ruivo olhou as horas em seu relógio, tinha algumas horas pela frente para se acalmar.

***

Mesmo que na teoria exista uma regra para a passagem do tempo, Shura acreditava que na prática, algumas semanas passavam em uma noção de temporalidade diferente. Avisou previamente no trabalho, que precisaria sair no horário planejado pois possuía um compromisso inadiável. Era irônico, para não dizer deprimente, a necessidade de comunicar na empresa que tinha que sair no horário para o qual foi contratado. Ao menos não encontrou grande oposição. Ao findar o expediente, guardou suas coisas, desligou o monitor do computador e registrou o ponto de saída. Parou em frente ao elevador aguardando e ouvindo a conversa dos demais colegas. O papo prosseguiu até chegarem ao térreo e ele parou em frente a portaria do prédio aguardando Aiolos. Balançava o corpo em contida ansiedade, quando sentiu o cheiro característico da fumaça de cigarro perto de si. Olhou para trás e viu um dos colegas de trabalho encostado na parede do prédio.

— Aceita? — O homem estendeu o cigarro ao observar o olhar de Shura.

— Até queria… Mas não acho uma boa ideia. — Encostou ao lado dele na parede.

— Nunca é uma boa ideia, mas não quer dizer que não devamos... — Encarou os olhos esverdeados.

Shura sustentou o olhar, avaliando aquela íris que oscilava de cor deixando a nítida impressão de estar encarando um par de olhos vermelhos. Já há algum tempo, parecia ter desenvolvido uma certa dificuldade em negar os convites feitos por ele, por mais que internamente soubesse de sua insensatez. E mais uma vez, contrariando suas atitudes habituais, via-se prestes a aceitar mais uma das sugestões daquele homem de cabelos grisalhos. Estendeu a mão para pegar o cigarro, preso no sorriso sarcástico, quando avistou o carro de Aiolos adentrando a rua.

Recolheu a mão na mesma hora Santo Aiolos, sempre de prontidão, pensou enquanto se afastava em direção ao carro.

Parou na porta do veículo, recebendo um sorriso largo de Aiolos e um mais contido, mas não menos animado de Aiolia que estava sentado no banco de trás

— Entra logo, Shura, não quero chegar muito tarde no alfaiate. Ainda tenho coisas para organizar da despedida. — Aiolia falava com uma animação quase juvenil.

Shura sorriu abrindo a porta do carona e sentando. Cumprimentou Aiolos com um abraço e apertou as mãos de Aiolia, que indicou que o cumprimentaria melhor quando descessem do carro. Shura deu uma última olhada para a calçada do prédio, antes de Aiolos sair e avistou o colega de trabalho terminando de fumar o cigarro e lançando a ele um último sorriso seguido de uma piscada, antes de jogar a bituca no chão e começar a caminhar. O espanhol recostou no banco do carro, dando um longo suspiro.

Aiolos olhou rapidamente para o amigo e franziu a testa.

— Problemas no trabalho? — Aiolos perguntou olhando Shura de esguelha.

— Você não faz ideia. — Suspirou passando a mão pelos cabelos. — Mas, me conta e esse casamento hein? — Sorriu mudando de assunto.

Aiolia não perdeu a deixa e começou a falar sobre todos os preparativos da despedida, da festa e até mesmo da lua de mel que estava ajudando a organizar. Sua fala sendo acompanhada por Shura, que o olhava pelo retrovisor e virava o corpo de quando em quando para o banco de trás.

Apenas Aiolos parecia alheio a toda aquela conversa, olhando pensativo para Shura. Podia ser um homem alegre e empolgado, alguns diriam quase até juvenil, mas não era bobo. Havia percebido a troca de olhares entre Shura e o homem com pinta de mafioso. Conhecia aquela espanhol há tempo suficiente para identificar seus olhares, e podia afirmar que não gostava do que havia presenciado.

O caminho até a alfaiataria foi tranquilo, recheado de risadas e arroubos irritados de um Aiolia que se desmembrava em contar seus feitos e ligar para Julian, confirmando detalhes da despedida. Chegaram ao destino, Shura e Aiolia saíram do carro, e esperaram na porta do estabelecimento por Aiolos que tinha ido estacionar.

— Agora eu entendi por que você veio no banco de trás. Acho que você tem mais pastas do que os organizadores profissionais de casamento. — Shura brincou ajudando Aiolia com as pastas, enquanto ele guardava o notebook.

— Não seja exagerado… Eu só quero que dê tudo certo… Meu irmão merece. — Enrubesceu levemente.

— Nisso eu concordo com você. E o tal cumprimento direito que você iria me dar quando saíssemos do carro?

Aiolia gargalhou e abraçou Shura, tinha um tempo que não via, o desde sempre, melhor amigo de Aiolos. Quando era criança chegou a sentir um certo ciúme do espanhol e das atenções que o irmão dispensava a ele. Depois, quando mais velho, percebeu que Aiolos tinha sido um dos poucos que haviam permanecido ao lado de Shura depois que ele assumiu sua orientação sexual. Sentiu mais orgulho do irmão, pois por mais que tenham vindo de uma família tradicional, isso nunca atrapalhou seu senso de amizade e lealdade.

Gostou mais de Shura, ao perceber que por baixo do rosto sempre sério e do jeito pouco espontâneo existia um cara gentil e que acima de tudo confiava piamente em seu irmão e amava sua família.

— Achei que nunca encontraria uma vaga. — Aiolos falou chegando em frente à loja. — Opa também quero abraço! — Passou o braço pelo pescoço dos outros dois.

— Vamos logo que eu preciso terminar de falar com o Julian…

Aiolia se desfez do abraço entrando na loja sendo seguido pelos dois mais velhos.

— Ele não perde essa energia? — Shura comentou contendo o riso.

— Nunca. Meu irmão, né. — Deu de ombros.

— Acho que essa é toda a explicação.

Identificaram-se na recepção e em poucos minutos foram encaminhados para a sala de prova de roupas. Um ambiente decorado em tons escuros, requintado e acolhedor.

Aiolia fez uma piadinha sobre como tirar medidas de calças de terno, remetendo a alguma série de TV que ele tinha visto e conseguiu arrancar risadas até mesmo de Shura.

Os ajustes foram feitos por alfaiates muito profissionais, a recepcionista não se privou de olhar escondido os três belos homens vestidos em roupa de festa.

Inclusive precisava admitir que todos os anos naquele trabalho tedioso, estavam sendo pagos em uma semana. Nunca tinha visto um desfile de homens tão bonitos e tão diferentes entre si em tão pouco tempo. Até mesmo os gêmeos, conseguiam parecer diferentes e cada um com seu grau de charme e graça.

Voltou para recepção ao perceber a movimentação. Aiolia foi o primeiro a colocar suas roupas e bombardeou a recepcionista com as mais variadas perguntas, que versavam principalmente sobre a lista minuciosa de todos que já tinham ido fazer a prova de roupa. A moça corava, mas dava todas as informações.

Shura e Aiolos ainda permaneciam vestindo seus respectivos ternos, aguardando a afirmativa do alfaiate para se trocarem.

— Ficou bonitão, hein espanhol. — Aiolos gracejou.

— Olha quem fala. Acho que a Seika casava agora, só de te olhar… Pensando nisso… Tira uma foto minha? — Pegou o celular que havia deixado dentro de sua mochila no provador de roupa.

— Desde quando você é adepto a fotos? — Aiolos brincou se posicionando para tirar a foto — Faz uma pose sexy.

— Aiolos! — Shura ralhou com falsa irritação.

— Ué… Qual o objetivo da foto, então?

Shura riu pegando o celular e olhando a foto, mordeu de leve os lábios e enviou uma mensagem para Shaka encaminhando a foto. Ficou alguns segundo olhando para o aparelho, ponderando se mandava mais uma mensagem, quando ouviu a voz de Aiolos em um tom pouco usual:

— O que está acontecendo, Shura?

— Como assim?

— Não se faça de desentendido. A gente se conhece quase que uma vida toda. O que está havendo?

— Nada Aiolos… Eu só vou me casar também. Shaka e eu decidimos morar juntos. E achei que seria legal mandar uma foto pra ele, só isso.

— E você precisa desse olhar tão contemplativo para enviar uma foto ao seu futuro marido?

— Você está exagerando Aiolos…

— Talvez. Você está feliz com essa decisão?

— Claro que estou. Eu que sugeri. Não achei que o Shaka fosse topar. Ele é todo metódico. — Sorriu — Gosto disso nele. O pessoal do trabalho até decidiu fazer um “Chá de casa” pra mim. Será amanhã. — Balançou a cabeça.

— Bom… Se serve de consolo também não achei que a Seika iria aceitar o meu pedido.

Os dois rapazes começaram a rir sendo interrompidos pelo alfaiate indicando que poderiam trocar de roupa. As cabines ficavam uma ao lado da outra e Aiolos ouviu Shura cantarolando.

— Shura… Quem era o cara do cigarro? — Aiolos questionou sentando no banco dentro de sua cabide.

— Como?

— Você precisa fazer uma lavagem no ouvido, ou o que? Quem era o cara de quem você saiu de perto quando cheguei? Alto, cabelos grisalhos, roupa social, fumando um cigarro e preciso admitir, muito bonito e com cara de perigoso.

Shura soltou uma gargalhada com a descrição, o que deixou Aiolos mais incomodado.

— É o Ângelo, um colega de trabalho.

— E vocês se conhecem há muito tempo?

— Desde que entrei nessa maldita empresa. Ele é o responsável pela TI e outras partes de manutenção. — Shura saiu do provador — Agora qual seu interesse no italiano?

— O interesse não é bem meu… — Saiu do provador ao ouvir a voz de Shura do lado de fora — Seria mais seu mesmo.

— Não entendi.

— Claro que entendeu. Você acha prudente casar com alguém, destinando aquele tipo de olhar a outro? E pelo que percebi é recíproco.

— De qual olhar você está falando?

— O que eu vi você lançando ao cara quando entrou no carro.Tive a nítida impressão que vocês preferiam sair dali juntos.

— Você está exagerando. Eu acho sim ele um homem bonito e atraente, mas… — Suspirou — E é isso.

— Entendo. Shura… — Colocou a mão no ombro do espanhol — Você sabe que eu te amo, e quero o melhor pra você. Você sempre foi de pensar bastante antes de tomar suas atitudes, acho que talvez, esse seja o melhor momento para colocar esse hábito em prática. Fora isso… Estou sempre aqui pra você. Quando quiser, é só me procurar.

Shura sorriu e tencionou dizer alguma coisa, quando ouviram a voz de Aiolia chamando os dois. Terminaram de pegar suas coisas e se encaminharam para a recepção.

Aiolos engatou na conversa, juntamente com irmão, deixando a recepcionista mais encantada.

Shura tirou o celular do bolso e se afastou um pouco encarando o aparelho. Olhou a foto que Aiolos havia tirado, e suspirando a enviou para outro contato. Mordeu o lábio inferior ao ver que a mensagem já estava sendo respondida. Sorriu largamente, o rosto levemente avermelhado e um brilho indefinido no olhar. Percebeu a chegada de um conflito em seu peito e sufocou a sensação.

Preparava-se para responder a mensagem, quando Aiolos o chamou para irem embora.

Poderia deixar a resposta para depois, ainda tinha tempo. Além disso, tinha acabado de ver a mensagem de Shaka informando que sairia com Camus. Logo, também estava livre para estender sua noite.

***

Isaak equilibrava uma bandeja especialmente pesada quando pensou ter escutado a voz de Kanon na entrada do bar. Controlou seu instinto inicial de voltar-se na direção, mas não podia vacilar com a tarefa que executava. Sua percepção de profundidade era um pouco diferente da das pessoas que enxergam com dois olhos. Ele tinha passado metade de sua vida se habituando a determinadas características específicas de ter apenas um olho, uma delas era saber manter seu foco. Depositou uma a uma as louças que retornava para a cozinha no lugar indicado, lá os ajudantes limpavam detritos e iniciavam a lavagem de copos, talheres e outros. O rapaz que executava a função, Jabu sorriu para ele, que retribuiu brevemente.

Era uma noite agitada. Voltou ao salão em tempo de ver que não havia se enganado. Kanon estava lá com Julian Solo e um outro homem que ele não conhecia.

Será que Kanon só vive cercado de homem gostoso? Não é possível! — pensou observando o rapaz alto, vestindo roupas descoladas de grife e de cabelos curtos anelados em um tom que não soube identificar, castanho claro? Os três pareciam bem íntimos e trocavam sorrisos e camaradagem.

Poucas vezes tinha presenciado o grego tão à vontade descontraído, rindo solto dessa maneira, era uma espontaneidade que ele reservava aos amigos mais próximos, aqueles que considerava família como Milo.

Mesmo quando estavam juntos, arrancar esse tipo de sorriso dele era sempre um presente para o jovem garçom, era isso, não podia ignorar, de certa forma apesar da intensa atração entre eles e da majestosa liga que tinham juntos ainda estavam se conhecendo.

E naquela noite ele estava trabalhando e Kanon era amigo próximo do dono do bar, portanto era um cliente ou convidado do patrão e ele não poderia dar atenção a apenas um cliente, salvo solicitado pela gerência. Ficou intrigado com a presença de Kanon lá mais uma vez...

Talvez não tivesse muito a oferecer a aquele homem.

Ele era um jovem de 20 anos, que levava a faculdade de qualquer jeito pois tudo lhe parecia fácil demais e trabalhava de garçom para que seu pai não criasse expectativas sobre seu futuro profissional. Às vezes se sentia mesmo um moleque perto do estável e bem sucedido profissional que era Kanon.

Em algumas situações as diferenças entre eles ficavam mais agudas, balançou a cabeça afastando o pensamento.

Observou rapidamente o grupo mais uma vez. Nesse momento o grego abraçou o homem de cabelos curtos pelos ombros e os três riram alto.

Sentiu seu estômago se contrair. O sangue correndo mais rápido por seu corpo.

Havia parado no meio do caminho e ao se dar conta disso desviou o olhar do lugar onde aqueles homens conversavam de forma tão entrosada.

Sua atenção foi atraída por um cliente, que gesticulava, em uma das mesas que eram de sua responsabilidade.

Precisava ter foco, sua noção de profundidade era diferente, não podia esquecer.

Chapter 19: Você bebe do céu

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Sua casa era seu templo, mas, não era necessário nenhum olhar atento para perceber a influência do convidado na maneira minimalista em que tudo era organizado.

Não foi preciso dizer para o loiro se sentir à vontade, mesmo em momentos em que estavam brigados era assim que Shaka se sentia na casa de Camus, pleno e senhor.

Ele escolheu o sofá e as cortinas, além da cor das paredes.

Se dependesse de Camus a cor mais clara a figurar na decoração seria cinza, ou no máximo gelo, que Shaka apelidara de branco sujo na época.

O caminho para lá havia sido bem tranquilo, eram poucas estações de metrô e eles passaram o trajeto imersos cada um em suas considerações. Agradável com certeza. Entretanto, assim que a porta se fechou não havia como evitar por muito tempo os questionamentos de Shaka. Camus estava preparado. Ou pelo menos assim dizia a si mesmo repetidamente. Lavou as mãos e foi buscar um vinho, precisava beber.

Levou para o convidado uma taça e deixou a garrafa ao alcance dele no balão.

— Quero cozinhar… Para o que vou preparar o rosê seria o indicado, mas sei que você prefere tinto. — entregou a taça e brindaram com suavidade.

Shaka mexeu o líquido delicadamente e de olhos baixos aspirou o aroma antes de erguer os olhos encarando Camus e sorver um gole.

— Obrigado, é maravilhoso.

Camus sorriu milimetricamente.

Desviou o olhar e seguiu para a cozinha, colocou o avental e prendeu os cabelos em um coque no alto da cabeça, que prendeu com um elástico. Dobrou a manga da camisa até o cotovelo, lavou as mãos novamente e abrindo a geladeira passou a separar os ingredientes.

Na sala Shaka o observou por alguns instantes antes de colocar mais vinho em sua taça e virar-se para analisar os quadros que adornam a parede. Acertou o nivelamento de um deles com os dedos. Caminhou até a estante e passou a analisar os cds seguindo com os dedos em busca de algo que o interessasse. O gosto musical de Camus sempre foi fortemente influenciado pelos namorados, parecia até que ele não tinha uma preferência explícita. Por sorte Milo tinha certo bom gosto. Pensou antes de puxar uma das caixinhas.

Colocou para tocar o cd escolhido e munido de sua taça se encaminhou a cozinha. Camus parou brevemente a tarefa de tirar a pele de um pimentão vermelho e olhou para Shaka.

— O que foi? — O indiano questionou ao ver o olhar interrogativo do ruivo — Vai me dizer que não gosta da música? Seria no mínimo irônico já que você possui o cd.

— Não me incomodei com a música, só achei interessante a escolha vindo de você. Além do mais, ter alguma coisa não indica necessariamente que apreciemos aquilo. Algumas vezes pode ser só um resquício de algo que ficou.

Shaka encostou na parede da cozinha e mediu Camus de cima a baixo, estreitando os olhos, enquanto o francês voltava a delicada tarefa de retirar a pele do pimentão.

— O que está acontecendo, Camus? — Shaka questionou desencostando da parede e se direcionando a bancada.

— Como assim?

— Lembro de já ter dito a você que se fazer de desentendido não é uma atitude que combina com a sua pessoa.

— Recordo em detalhes da ocasião. — Camus torceu o nariz mediante a lembrança e passou a cortar o pimentão. — O que exatamente você quer saber, Shaka?

— Achei que já tida sido óbvio. O que está acontecendo com você? Talvez você tenha conseguido enganar as pessoas no trabalho e qualquer um menos atento. Agora a mim você não engana.

— Nada passa despercebido por esses seus olhos, hein. — Camus sorriu largando a faca e olhando para o amigo.

— Ao menos no que diz respeito a você, nada passa despercebido por mim, Gaetan.

Camus corou levemente sustentando o olhar quase inquisidor de amigo, mas que ao mesmo tempo demonstrava clara preocupação. Não sabia ao certo como ou por onde começar suas explicações, apenas tinha a certeza que não poderia ficar procrastinando aquela conversa, afinal, umas das várias características que apreciava em Shaka era exatamente o jeito prático e direto. Respirou fundo.

— Acho que hoje em dia só você me chama assim.

— Talvez… Nem Milo?

— Raramente. Acho que virei o “Camus” mesmo. Ele me chamava pelo primeiro nome quando as coisas estavam bem, o que era raro. Acho que criei mesmo duas pessoas para viverem em mim. Ao menos é o que o meu terapeuta diz.

— Como? — Shaka sentou em dos bancos que ficavam próximos a bancada. — Terapeuta?

— Sim… Mas antes de falarmos sobre isso, você se incomodaria de cortar alguns queijos que tenho na geladeira? Cairiam bem com o vinho e você não fica tanto tempo sem comer.

Shaka pensou em refutar exigindo que o amigo iniciasse as explicações, mas tinha consciência que aquele seria um momento complicado para Camus e que talvez ele estivesse elaborando a melhor forma de se expressar. Não faria mal dar um pouco mais de tempo a ele. Além disso, não abominava a ideia de petiscar alguns queijos.

— Incômodo algum.

Abriu a geladeira pegando uma fatia de queijo Gouda, Suíço, Gruyere e Emmental. Dispôs os queijos sobre uma tábua que pegou em uma das gavetas, enquanto ouvia o som dos legumes cortados por Camus.

— Nunca vou entender esse fascínio dos franceses por queijos e manteiga. — Shaka comentou enquanto lavava as mãos.

— Ora… — Camus riu do comentário — Outras coisas me fascinam além de queijo e manteiga. — Olhou para o amigo que lavava as mãos.

— Como o que por exemplo?

Camus sorriu e continuou olhando para o amigo que o encarou após lavar as mãos. Achou mais sensato deixar a pergunta no ar e sabia que Shaka era perspicaz o suficiente para entender alguns silêncios. O indiano retribuiu minimamente o sorriso e começou a cortar os queijos. Apenas o som da música e das facas era ouvido.

— Estou há alguns meses fazendo terapia… Mais precisamente pouco tempo depois do término com o Milo.

— Então alguma coisa do que ele dizia entrou na sua cabeça.

— Na verdade, muita coisa do que ele falava me alcançava, eu só não estava pronto para aceitar… Ainda não estou, na verdade. Muitas coisas ainda me escapam.

— Ao menos é um começo.

— Sim, um amigo me disse esses dias que tudo precisa de um começo.

Ambos sorriram, Shaka terminou de cortar os queijos e se pôs a lavar a faca e a tábua. Secou e guardou os utensílios em seus devidos lugares.

Sempre se surpreendia com o fato de Camus nunca ter mexido na organização que ele tinha elaborado para a casa do amigo. Não que suas organizações fossem dignas de qualquer tipo de questionamento, mas achou que em algum momento o ruivo mudaria as coisas de lugar. Pegou um pote com alguns palitinhos de petiscos e deixou ao lado do prato no qual dispôs os queijos. Espetou um deles e comeu, repetindo o movimento, mas dessa vez levando até Camus. O francês automaticamente abriu a boca recebendo o petisco e encarando os olhos azuis de Shaka.

— E como está sendo esse começo? — Shaka questionou se afastando do olhar do ruivo.

— Turbulento… Demorei algum tempo para realmente entender, ou começar a entender o que ele dizia. Admito que a princípio era só uma forma de escarnecer das palestras do Milo… E das suas exigências também.

— E agora?

— Agora, eu preciso. Ajuda e… Me destrói de certa forma, mas acho que preciso destruir algumas coisas para construir outras.

— Sim, é mais ou menos esse o ciclo. E já decidiu quem você pretende destruir? Camus ou Gaetan?

— Acho que talvez um pouco dos dois… — Shaka encheu a taça de Camus e a própria — Ainda é difícil pra mim falar sobre isso Shaka. Espero que você entenda. Eu vou até onde consigo. — Bebeu um gole do vinho.

— Entendo, claro. — Mais uma vez deu um pedaço de queijo para Camus e comeu outro — Pretende falar com o Milo em algum momento?

— Não sei… — Camus suspirou — Realmente não sei…

— Seria uma boa ideia. Acredito que você tenha consciência que poderia ter vivido algo muito bom com o Milo.

— Tenho consciência que as coisas poderiam ter sido melhores. Eu poderia ter sido melhor com ele, mas em algum momento iríamos nos separar de qualquer forma. Viver compensando uma ausência não parece dar muito certo. Não acha? — Olhou intensamente para Shaka que parou a taça que levava a boca, desviando do olhar e bebendo o vinho.

— Acho que a terapia está mesmo te fazendo bem. Não sabe mesmo o que pretende fazer?

— Por hora, só gostaria de preparar seu jantar e curtir sua companhia.

Shaka ficou surpreso com a confissão sincera e corou. Agora conseguia entender um pouco melhor os momentos de sinceridade que Camus estava demonstrando, já que haviam se tornado tão escassos depois que ele passou a viver sob a égide de seu personagem. Já que o amigo estava fazendo esse esforço se desnudando pra ele, não haveria mal algum em pelo menos por algumas horas, também se desfazer de suas barreiras e ser ele mesmo.

— Shura e eu vamos morar juntos. — Shaka falou acompanhando as reações de Camus.

— Como? — Parou uma das frigideiras a alguns milímetros do fogo.

— Vamos morar juntos, casar, juntar as escovas de dente, como você preferir chamar.

— E isso do nada? — Colocou a frigideira no fogo, disfarçando a face contrariada.

— Não foi “do nada”. Já namoro há algum tempo com o Shura. Praticamente já vivia na casa dele… Foi um caminho natural.

— Nunca achei que você não se deixasse levar por caminhos naturais. Sempre achei que nessa sua cabecinha loura as coisas acontecessem de forma mais organizada.

Shaka observou Camus colocar os legumes em umas das frigideiras e começar a manusear o utensílio com grande destreza, misturando os legumes apenas com o movimento da frigideira. Pegou-se mais uma vez analisando minuciosamente os movimentos do ruivo e parando em seu rosto que parecia de certa forma contrariado. Franziu o cenho mediante as reações que estava captando do outro.

— Já preparou a sua mudança? — Camus perguntou colocando uma nova leva de legumes na frigideira.

— A maior parte. Provavelmente vou me mudar no final de semana.

— Vai alugar seu apartamento?

— Não… Por enquanto não.

Camus soltou uma risada abafada, um misto de desgosto com irritação. Mexia a frigideira com mais afinco que o necessário e se controlava para não deixar transparecer seus sentimentos, por mais que não estivesse obtendo um grande sucesso.

— Você vai se mudar, mas vai manter seu apartamento fechado? É isso?

— Sim, qual o problema? — Shaka pegou a garrafa de vinho vazia e colocou em um canto da pia.

— Tem mais no bar. — Camus apontou para o móvel.

— Não entendi o motivo da sua surpresa. — Shaka falou segurando outra garrafa de vinho, abrindo em seguida.

— Você não acha no mínimo estranho? Parece que de certa forma você acha que não vai dar certo e quer deixar o lugar ali para você voltar.

— Isso é ridículo, Camus. Agora que começou a fazer terapia está versado em analisar os outros.

— Shaka, você faz isso o tempo todo e até onde eu sei nunca fez terapia.

Ficaram em silêncio, cada um perdido em seus pensamentos. Camus olhava de esguelha para Shaka que por sua vez, encarava o ruivo com certo aborrecimento: O que diabos ele está pensando? Agora vai ficar analisando as minhas decisões. Nem com toda a terapia do mundo ele teria esse gabarito!

— Está pronto! — Camus decretou soltando um suspiro em seguida — Espero que você goste.

O ruivo o encarou com uma fisionomia desanimada e um sorriso triste, Shaka sentiu um aperto estranho no peito e uma vontade intensa de abraçar Camus.

Conteve todos os sentimentos. Por mais que tivesse decidido previamente baixar suas defesas, não era insensato para se deixar levar daquela forma. Camus poderia estar em tratamento e isso era um grande passo, mas ainda era o homem perturbado que ele tentava a todo momento ajudar.

Já estavam há anos naquela rotina e não era agora que iria fraquejar mediante um olhar entristecido, por mais que aquele olhar despertasse nele desejos muito bem guardados. Não iria ceder. Jamais!

Shaka se prontificou a arrumar a mesa enquanto Camus tirava o avental e organizava a louça para lavar depois. Em poucos minutos a mesa estava posta e sentaram-se um de frente para o outro. Degustaram a refeição em silêncio, apenas sobre os sons de aprovação do indiano mediante o prato de Ratatouille e a música que tocava ao fundo. Aquele estava longe de ser um prato sofisticado ou de difícil acesso, mas Shaka só comia quando ia a casa de Camus.

Por mais que não admitisse abertamente ao francês, gostava da forma como ele preparava a comida, na verdade gostava de analisar os movimentos precisos, a forma como ele manipulava a frigideira e sempre prendia os cabelos ao cozinhar.

Muito mais do que o sabor da comida, porque sim o prato ficava extremamente saboroso, gostava de acompanhar todo o ritual de preparação e intimamente relacionar toda aquela precisão em outras atividades.

Camus também permanecia em silêncio, preso na revelação de que Shaka iria viver com o tal espanhol. Em seu íntimo esperava que após a terapia fosse capaz de ter uma conversa sincera com o amigo e explicar tudo pelo que passou durante esses anos.

Sabia que sentia algo por Shaka, sempre sentiu. Mas achava o loiro certinho e altivo, quase perfeito e muito distante de si, e depois, começou a namorar com Surtr.

A influência de Surtr em sua vida, toda sua permissividade e… Nesse ponto, já não se julgava mais digno de sequer direcionar seu afeto ao amigo.

Lembrava do terapeuta dizendo que ele tendia a complicar demais as coisas, que poderia apenas ter declarado suas intenções ainda no período universitário, mas o loiro sempre parecia envolto em um pseudo aura divina. Sempre distante e inalcançável. Em parte a insegurança também tinha sido responsável pelo tom de suas atitudes, depois foi o vertiginoso processo de degradação com Surtr.

Camus suspirou pesadamente, bebendo o restante da taça de vinho e percebendo mais uma vez que a garrafa estava vazia. Nada fica preenchido por muito tempo.

Mesmo que estivesse satisfeito com a comida, Shaka continuava irritado com as alegações de Camus.

Morar com Shura era sim uma decisão pensado e organizada, por mais que também seguisse um fluxo natural. Não era? Lógico que sim. E não seria aquele francês que conseguiria nublar suas ideias. Não pretendia alugar seu apartamento pois não acreditava que os condôminos seriam cuidadosos, apenas isso. Não estou fugindo de nada. Shaka se surpreendeu com o próprio pensamento e assim como Camus percebeu que estavam sem vinho. Precisava da bebida escarlate naquele momento.

— Vou pegar mais vinho. — Shaka pronunciou encarando Camus que parecia perdido no fundo da própria taça.

— Não se levante. Eu pego.

Acompanhou os movimentos de Camus mais uma vez se recriminando por dedicar tanta atenção ao que dizia respeito a ele. Eram amigos, ele se preocupava, achava que o ruivo poderia ser uma pessoa melhor, ele já tinha presenciado o melhor dele. E era isso.

Ao menos era o que dizia a si mesmo para continuar refreando suas vontades.

Camus voltou com a garrafa de vinho e encheu a taça de Shaka, brindando o indiano com um sorriso.

— Gostou do jantar?

— Sim… — Shaka acompanhou o sorriso fixando o olhar nos lábios do ruivo.

— Fico feliz. — Camus voltou a sentar em seu lugar cruzando as pernas e apoiando um dos braços no encosto da cadeira — Ao menos fiz um último jantar para você antes do seu casamento.

— Não seja exagerado. Eu vou viver com o Shura, não sumir do país. — Bebeu um longo gole do vinho.

— Veremos até quando o espanhol não vai se chatear comigo… — Sorveu um pouco do vinho.

— Ele não tem motivo para tal coisa. Shura é muito compreensivo e ambos gostamos da nossa individualidade.

— Por isso vai manter seu apartamento?

— Ora Camus, você cismou com isso! Não consigo enxergar o quão atípico é isso.

— Não seria, caso já vivessem juntos há anos e estivessem em busca de privacidade. Mas, você ainda nem se mudou e já está querendo manter distância. Acho que casamento precisa de uma doação maior, não?

— E o que você sabe sobre isso? — Shaka encheu mais uma vez a taça de vinho surpreendendo Camus — Até onde sei você só teve dois relacionamentos longos. Um com um lunático e outro com um cara ótimo que você parecia fazer questão de destruir. O que você... — Enfatizou as palavras — Entende de doação? Faça-me o favor, Camus.

— Você esqueceu de mencionar o maior relacionamento que já tive e para o qual sempre me doei, mesmo que você não perceba.

— E qual seria essa relação tão duradoura?

— A nossa amizade. — Camus sorriu minimamente — Ou vai me dizer que ela não entra na categoria de relacionamento.

Shaka torceu o nariz, arrancando um sorriso maior de Camus. Adorava ver aquele narizinho empinado se mexer de forma contrariada.

— Achei que estávamos falando de relacionamentos amorosos…

— E o nosso não é? — Sorriu mantendo a taça nos lábios por mais tempo que o necessário.

— Não deixa de ser… — Shaka deu de ombros. Aquela conversa estava tomando um rumo perigoso. — Existem vários tipos de amor.

— Exato! Sempre me questiono: qual seria o nosso?

Camus acompanhou o rosto bonito e sempre sereno se contorcer rapidamente como que ponderando sobre a questão.

Não queria estragar a felicidade de Shaka, ainda mais agora que ele havia decidido casar com o namorado. Mas ao mesmo tempo, precisava resolver aquilo. Havia aceitado seus sentimentos, por mais que no fundo ainda trabalhasse com aquela ideia. Preferia esperar mais alguns meses, já que há poucos dias tinha começado a se libertar das amarras que criou para si, mas saber que o amigo estava dando um passo tão sério, só apressava sua necessidade de solucionar tudo.

Por mais que acreditasse na possível rejeição, não se sentia mais inclinado a viver apenas com as ilusões que criava para aplacar seus momentos de solidão.

Shaka abriu e fechou a boca algumas vezes articulando uma resposta que soasse convincente, muito mais para si mesmo do que para o outro. Precisava aplacar em todos os momentos sua necessidade de soar coerente. Formulava uma frase, quando ouviu os primeiros acordes de “Edge of the World” tocando. Sorriu.

— Eu lembro bem dessa música. — Shaka alargou o sorriso.

— Deve ser por que eu ouvia a exaustão na época da faculdade. — Camus tamborilou os dedos na mesa no ritmo da música.

— Você tinha uma camiseta com a capa do álbum, isso também ajuda na memória.

Camus deu um sorriso de canto e levantou parando na frente de Shaka e estendeu uma das mãos.

— Dança comigo? — Sorriu abertamente.

Shaka inconscientemente prendeu o ar e por mais que em sua cabeça um alarme estridente estivesse soando, apenas aceitou o convite e se deixou encaminhar para o meio da sala. Camus passou as mãos pelos braços do indiano colocando-os em volta do seu pescoço, o loiro apenas acompanhava os movimentos do ruivo, que colocou as mão em sua cintura, puxando-o levemente para mais perto.

Começou a guiar a dança, contrariando tudo o que envolvia aquela relação, na qual sempre se deixou guiar de bom grado pelas vontades do loiro em seus braços. Aspirou o perfume que saía dos longuíssimos fios loiros e fechou rapidamente os olhos. Shaka soltou o ar apenas para prender novamente ao ver Camus fechar os olhos e sorrir.

— Você ainda usa o mesmo perfume. — Camus comentou abrindo os olhos e encarando os olhos azuis que sempre pareciam exigir alguma coisa.

— Uso… — A voz saiu mais trêmula do que gostaria. — Você sempre foi bom ao escolher fragrâncias e não vi motivo para trocar.

— Parece que estamos sempre mantendo de uma forma ou de outra, as escolhas um do outro. — Deslizou uma das mãos para as costas de Shaka tirando um suspiro leve do outro — E você ainda não respondeu minha pergunta.

— Ora Gaetan… Afinal de contas o que você quer saber? — Shaka falou baixo aproximando o rosto do de Camus.

— O que você sente por mim. Não parece óbvio? — Colocou umas das mechas do cabelo do indiano atrás da orelha, mantendo a mão em seu rosto.

— Você sabe a resposta…

— Será que sei? — Passou o polegar na bochecha de Shaka deixando os rostos a milímetros de distância.

— Deveria saber… — Shaka soltou o ar aos poucos o olhar perdido nos lábios de Camus.

— Shaka… Não faz isso comigo… — Colocou a mão na nuca do loiro suspirando e ondulando o corpo no ritmo da música sendo acompanhado pelo amigo.

— Você tem todas as respostas que precisa. — Mirou os olhos de Camus — Sempre teve…

— Não quero fazer algo de forma equivocada… — Encostou a testa na de Shaka fechando mais uma vez os olhos.

— E o que seria? — Passou a ponta da língua pelos próprios lábios ao sentir o hálito de Camus e o cheiro do vinho.

— Beijar você.

Shaka estava ciente do jogo perigoso que vinham delineando nessa noite, porém, não previu que fosse tão longe, a ponto de Camus expor abertamente o que sempre esteve profundamente implícito entre eles.

Contrariando o desejo de todas as células de seu corpo ele congelou. Quem brinca com fogo se queima, não é o que dizem? Respirou fundo, aceitando que não estava pronto. Neste exato instante viu o arrependimento nublar os olhos de Camus. Seu coração apertou no peito, na garganta.

O que estavam fazendo? Não era a hora! Se afastou lentamente.

Camus assistiu a isso submerso no seu pior pesadelo.

Sem dizer nenhuma palavra Shaka pegou suas coisas e se dirigiu a porta do apartamento.

— Obrigado pelo jantar… E pela noite…

— Shaka espe…

Não conseguiu terminar a sentença, pois o indiano já havia fechado a porta.

Pensou em ir atrás dele, mas o que diria? Não foi ele que rompeu o contato. Parece que tinha se enganado.

As palavras trocadas, a afirmativa do outro. Nada daquilo era uma ilusão. Não podia ser! Jogou-se no sofá passando as mãos no rosto, uma vontade imensa de gritar, berrar, esbravejar toda a sua frustração.

Aquilo não podia estar acontecendo! Estaria tão desesperado para não saber ler os sinais? Foi tão honesto, tão claro…

Ser uma pessoa decente não era somente desafiador, era ser exposto por vontade própria a tudo que podia machucá-lo.

Rejeição amarga. Não havia jeito, estava acabado. Permaneceu imóvel, sombrio.

Chapter 20: Você nunca quer deixar escapar

Chapter Text

Shaka saiu o mais rápido que pôde do prédio, quase correndo até a estação de metrô. Parou em frente a estação recuperando o fôlego e reaprendendo a respirar.

Olhou para o céu estrelado e sentiu um nó na garganta. Colocou os dedos sobre os lábios, fechando os olhos e suspirando. Recriminou-se mentalmente. — Shura… Eu me esqueci completamente do Shura. Aaah Camus… O que você faz comigo?

Sentiu o vento da noite balançar seus cabelos. Precisava chegar em sua casa, seu santuário, e se acalmar, voltar a ser ele mesmo.

E por mais que tentasse pensar no rosto do namorado, a única coisa que vinha a mente era o sorriso e os olhos castanhos de Camus.

***

Não era uma quinta-feira tão movimentada, mas diversos grupos de jovens estavam no bar naquela noite.

É provável que o fim do semestre nas universidades tivesse algo a ver com isso. Sorento levou a conta até uma mesa que tinha atendido de forma custosa naquela noite. Sua semana como um todo havia sido como sempre puxada e a cada novo ciclo a falta de repouso suficiente cobrava dele cada vez mais empenho em não bufar com os clientes dos lugares onde trabalhava. Aqueles, no entanto, estavam empenhados em tirá-lo do sério com piadinhas e comentários homofóbicos mal disfarçados propositalmente em todas as vezes em que lá esteve. Felizmente eles partiriam em breve.

— Escuta aqui Florzinha, essa conta só pode estar errada! — Falou o homem num tom bem mais alto do que seria educado o que evidenciava claramente que havia ultrapassado seu limite no consumo do álcool.

Sorento respirou fundo já sentindo a tensão nos ombros aumentar. Não passou despercebido a ele o olhar malicioso do homem que reclamava da conta. Ele e mais dois amigos ocuparam aquela mesa desde o momento em que o bar abriu suas portas, mas, por mais que ainda fosse relativamente cedo a embriagues deles era evidente e talvez não fosse somente o álcool a estimular aqueles homens conjecturou reparando nas narinas irritadas do homem que o encarava. Eram tipos relativamente arrumados, jovens e fortes pareciam saídos desses filmes de irmandades e times de futebol americano.

— Não escutou? Chama o gerente aqui vai! Vai logo.

— Pois não, só um momento.

Sorento se afastou crispando os lábios e do outro lado do salão Io e Bian cruzaram olhares em um entendimento mudo.

Thetis estava próxima ao bar observando o salão como um todo quando foi abordada por Sorento que resumidamente lhe colocou a par de todo o contexto.

Ela evitou girar os olhos por mais que fosse sua vontade. Conferiu a conta e ouviu o garçom confirmar tudo que foi levado até a mesa em questão antes de seguir até lá e conversar com os barulhentos clientes.

Thétis era uma mulher bonita, poderia facilmente passar por modelo se tivesse esse interesse, era alta e elegante.

Caminhou até a mesa como se flutuasse sobre o chão. Atraiu diversos olhares. Nenhum destes tão ostensivo e desprezível quanto os que recebeu na malfadada mesa.

— Senhores, boa noite, soube que solicitaram a Gerência, em que posso ajudá-los?

Falou de forma educada e firme.

Um dos homens soltou uma risadinha baixa e o que havia sido grosseiro com Sorento a mediu de cima a baixo mapeando todas as curvas do corpo por baixo do elegante conjunto social sóbrio, camisa branca sobreposta por uma blusa fina e preta, mesma cor das calças. Seus cabelos loiros desciam até pouco abaixo dos ombros.

— Só tem florzinha trabalhando nesse bar? Pelo menos essa é mulher de verdade. — Os amigos riram de forma obscena.

— Revi a conta e está correta, somente as bebidas consumidas nesta mesa foram consideradas.

— Não pode estar certo. Não tem nenhum homem com quem eu possa conversar? Meu pai é amigo pessoal da família Solo e tenho quase certeza de que vi o Julian subindo por aquelas escadas mais cedo. Vai lá chamar ele, vai gostosa.

— Senhores, façamos o seguinte: esqueçam a conta. Solicito que deixem o Imperador agora.

Sorento ao lado de Thétis ergueu o queixo imperceptivelmente. Isaak que até o momento estava ocupado deixou uma bandeja no balcão do bar e se aproximou da mesa onde se desenrolava a discussão. Já que nesse momento as vozes se elevaram. Antes dele chegar viu que tanto Io quanto Bian já estavam a postos ao lado de Thétis.

O rapaz mais abusado fez menção de pegar no braço da gerente mas ela com um movimento de cabeça apenas liberou os dois garçons mais próximos para agir. Bian foi o primeiro a falar:

— Venham por aqui.

Os três homens se levantaram e um deles, pareceu se sentir muito seguro ao ver que era mais alto que Bian e decidiu empurrar Thétis.

— Nenhuma vadia vai me dizer o que fazer!

Io entrou na frente de Thétis e ela se afastou o suficiente para não ser atingida.

O garçom conseguiu neutralizar com presteza aquela agressão e torceu o braço do cliente brigão o imobilizando em questão de segundos.

— Covarde. — Disse entredentes aplicando força naquele aperto.

O homem soltou um urro de dor que reverberou por todas as partes do Imperador.

O segundo avançou sobre Bian que apenas se afastou e lhe passou uma rasteira, o homem visivelmente bêbado praticamente desmontou no chão. Tudo se deu simultaneamente.

A confusão se instaurou! De outras mesas algumas pessoas voltaram suas cabeças na direção da balbúrdia.

Sorento estava de olhos arregalados, nunca imaginou Bian e Io como boxeadores ninjas trocando socos com dois dos brutamontes.

O terceiro avançou violentamente sobre o flautista mas Isaak entrou na frente e recebeu ele um soco no rosto. Despencando no chão e levando Sorento junto.

Nesse momento Krishna que foi chamado por Thétis chegou e imobilizou este homem sem nenhuma dificuldade. Os homens foram encaminhados para a parte externa do bar.

A gerente pediu para que Sorento levasse Isaak para a sala dos funcionários e falou alto para que todo o salão ouvisse que lamentava a cena mas que o Imperador era uma casa acolhedora somente com aqueles que respeitavam as diferenças e anunciou uma rodada de chopp por conta da casa.

A maior parte das pessoas presentes aplaudiu entusiasmada e algumas universitárias a abordaram elogiando seu sangue frio.

A loira foi atenciosa com elas, mas seu olhar varreu todo o bar enumerando quantos chopps teria que ceder a todos os presentes. Acompanhava também a movimentação na entrada do bar e suspirou aliviada quando os funcionários retornaram demorando seu olhar com interesse genuíno na figura espetacular do barman. Agradeceu a atenção das estudantes e se encaminhou para o grupo de funcionários.

Os três que acompanharam os rapazes voltaram tranquilos e os outros clientes aplaudiram novamente. Receberam o gesto dos clientes cada um à sua maneira.

Bian riu charmoso fazendo uma reverência marota e piscou para Io que apenas sorriu discretamente.

Krishna agradeceu apenas com a cabeça e retornou ao bar, era um homem de pouquíssimas palavras, mas quando foi abordado pela gerente não pensou por um segundo e correu para acudir seus companheiros. Os três treinam muay thai — Arte marcial da qual o barman era mestre e instrutor.

Antes de retornarem a seus postos informaram a gerente de que foi preciso um pouco de firmeza com um dos briguentos, mas que ninguém havia se machucado gravemente. Krishna ouviu os agradecimentos dela e disse que estava a sua disposição. Ela corou. Os dois garçons se afastaram rindo cúmplices.

No quartinho Sorento tentava inspecionar o rosto de Isaak, um pequeno corte em seu lábio superior.

— Vou pegar gelo para você… Isaak por que fez isso?

— Obrigado seria algo mais adequado de se dizer.

— Eu sou grato! Mas não tinha nenhuma necessidade, sei me defender e pelo jeito mais do que você! Já tive aulas de defesa pessoal…

Isaak se levantou e foi até o flautista. Ainda estava se sentindo esquisito pela impulsividade, pelo soco que por sorte não tinha pegado tão certeiro e também por ter basicamente sentado no colo de Sorento quando caíram no chão, em uma posição extremamente constrangedora, já que instintivamente o flautista havia passado os braços ao redor do seu corpo.

— Eu não sei, tá bem? Mas parece que você já tem merda demais para lidar na sua vida. Eu tô acostumado a ter a minha cara estragada, nem foi nada.

— Isaak... — Sorento sorriu — Não acho que você deveria se acostumar a ter seu rosto estragado. Seria um desperdício… — Passou os dedos levemente no lábio machucado — Sou realmente grato pela sua atitude. Agora, fique aqui por alguns minutos enquanto eu trago o gelo. É o mínimo que posso fazer e gostaria que você permitisse.

O outro garçom sentiu um arrepio com o toque e aumentou o somatório de esquisitices do momento. Apenas concordou com a cabeça e aguardou pacientemente o retorno de Sorento.

Do lado de fora o flautista respirou fundo passando a mão pelos cabelos e ajeitando a roupa, não podia se deixar levar pelo calor do momento. Por mais que não precisasse de ninguém para defendê-lo tinha consciência que naquele momento, não sabia se teria o reflexo para desviar do soco. Tudo aconteceu muito rápido! Ele se surpreendeu ao ver Isaak entrando em sua frente. Mais ainda ao sentir o corpo do outro sobre o seu depois que caíram. Acabou abraçando o rapaz e tendo pensamentos pouco adequados ao momento pelo qual o estabelecimento passava. Certamente o furor do situação.

Cumprimentou os demais garçons indicando que estava bem e pediu a Krishna um pouco de gelo. O barman colocou o gelo em um vasilhame e entregou a Sorento juntamente com um pano de prato limpo. Thetis apenas observou e seu silêncio indicava que ele poderia continuar a cuidar do outro garçom.

Voltou ao quarto de empregados e encontrou Isaak no banheiro olhando o rosto do espelho. Parou atrás dele e seu reflexo dividiu espaço com o do estudante.

— Não está tão ruim assim… — A voz de Isaak saiu irônica mesmo que não fosse sua intenção. Força do hábito.

— Vem cá, deixa eu cuidar de você. Pode não ter sido tão ruim assim, como você diz, mas sem gelo vai inchar. — Sorento caminhou até o banco esperando Isaak.

— Não achei que um cara certinho como você saberia lidar com machucados de briga… — Sentou no banco olhando para Sorento.

— Você não sabe nada sobre mim, Isaak. Apenas supõe uma série de coisas pela minha aparência. — Colocou o gelo no pano encostando levemente no lábio de Isaak ouvindo um gemido de dor — Desculpe. Vou ser mais cuidadoso.

— Não precisa de tanta delicadeza. — Fez menção de tirar o pano das mão de Sorento, ao que foi repreendido pelo olhar do outro — Aposto que também supõe um monte de coisas sobre mim sem me conhecer.

— Acho que todos fazem isso. A diferença é que talvez eu seja um pouco mais observador e não me deixe levar tanto pela aparência.

— E você quer dizer o que com isso? Que sou um cara superficial ou algo do tipo? — Tirou o pano bruscamente da mão de Sorento.

— Não. — Suspirou encarando aquele único olho — Apenas que você acredita que sou algum riquinho engomadinho, que está nesse emprego só de passagem até ganhar o carro novo do papai. Posso? — Estendeu a mão pedindo o pano de volta.

— Durante algum tempo eu até pensei isso… Hoje só te acho um engomadinho mesmo. — Sorriu entregando o pano com o gelo — Mas não sou o cara fútil que você imagina. Eu percebo que você anda cada dia mais cansado, parece não dormir direito e está fazendo mais esforço do que o normal para ser paciente. Já te vi cochilando pelas cantos e quase errando alguns pedidos.

— Você repara bastante em mim, não acha? — Sorriu tirando o pano dos lábios de Isaak e levantando o queixo dele para olhar melhor — Não sabia que eu exercia tanto interesse assim.

— Eu ainda tenho um olho que funciona, não há como não reparar em você. — Deu um sorriso caloroso.

— Bom saber… — Soltou o rosto de Isaak — No momento é o melhor que podemos fazer.

Sorento levantou recolhendo as coisas sob o olhar atento de Isaak.

— Talvez você devesse pedir a Thétis para ir embora. Acredito que ela não vá se opor. E Isaak… — Mordeu levemente os lábios sorrindo em seguida antes de sair do quarto de empregados — Obrigado!

Isaak acompanhou a saída do colega de trabalho e ficou mais alguns minutos sentado no banco olhando para a porta. É… Parece que sou um fodido mesmo.

Levantou, batendo com as mãos em suas roupas para afastar qualquer poeira e aqueles pensamentos que não podiam florescer de jeito nenhum. Respirou fundo e voltou para o salão.

***

Hyoga ficou extremamente feliz quando avistou Milo o aguardando encostado no carro na porta de seu trabalho. Enquanto ele vestia jeans e um moletom fino, o grego estava elegante com uma camisa verde escura e jeans. Milo veste bem qualquer roupa, ficava muito bem em jeans e camiseta, e melhor ainda sem elas, pensou enquanto caminhava em sua direção.

Durante toda a semana, nas mensagens que trocaram ele sempre se via sorrindo de forma sonhadora, não era o seu normal, mas não estava inseguro.

De alguma maneira Milo lhe transmitia certezas que jamais havia sequer imaginado projetar em qualquer relação. Claro que se questionava, mas não chegava a fraquejar em inseguranças. Não era como em seus relacionamentos adolescentes, aquela intensidade angustiante e tão pouco como foi com Pandora que parecia só sentir satisfação ao adicionar alguma sujeira e muita incerteza em todas as camadas da convivência entre eles, culminando no fatídico ménage a tróis.

Bom, a melhor parte daquilo, sem dúvidas, tinha sido poder tocar outro homem, e não qualquer um mas exatamente aquele que o atormentou por semanas antes de ambos simplesmente decidirem que Hyoga era a peça que sobrava naquele relacionamento.

E assim eles passaram a ser o casal e Hyoga algo para deixar no esquecimento.

Indiscutivelmente uma fase esquisita. Ser preterido assim não foi de todo surpreendente da parte de Pandora. Arrumou a postura, as coisas da vida se acertam, como se lembrava da Mãe dizendo, nada acontece por acaso e agora ele tinha a oportunidade de conhecer aquele grego dos sonhos.

Milo observou todos os movimentos do outro rapaz muito tempo antes de ter sido avistado. Quando viu os olhos claros focando em si e o rosto impassível se modificando em um sorriso de júbilo seu coração palpitou.

Pelos Deuses não posso me apaixonar com dois encontros! O que sou, uma garotinha no colegial? — Ele pensou pouco antes de estar frente a frente com Hyoga.

Estendeu a mão para cumprimenta-lo e o rapaz riu o puxando para um abraço.

Qualquer dúvida que Milo pudesse ter quanto ao outro estar bem resolvido com sua sexualidade desintegrou naquele instante. Muitas pessoas jamais se expunham em seus locais de trabalho. Não que ele pensasse sequer em pedir algo assim para Hyoga, mas não podia negar que a atitude do russo o agradou em cheio. Ele era simplesmente elegante e natural em todos os seus movimentos.

Recebeu um selinho nos lábios e abriu a porta do carro para que o outro se acomodasse.

Deu a volta para ocupar o seu lugar e dentro do veículo trocaram então um beijo um pouco mais profundo. Saboreando mais este encontro e sorvendo o encantamento de perceber um no outro a mesma intensidade e expectativa de estarem juntos.

Nenhum dos dois percebeu que eram atentamente observados por uma figura parada do outro lado da rua. Um homem que não fez nenhuma questão em ocultar sua presença, mas foi ignorado por eles, que não tiraram os olhos um do outro nem por um segundo.

No carro os loiros conversaram durante o trajeto amenidades, com Milo fazendo propaganda dos lanches que estava levando para que jantassem, ele havia se lembrado de comprar também para Isaak que sempre chegava faminto do bar.

Chegaram rapidamente ao destino. Jantaram rindo e conversando sobre a semana.

A comida foi devorada com murmúrios de satisfação e muito elogiada.

Hyoga ficou provocando Milo com a notícia da despedida de solteiro. Ele falava para Milo cuidar para não acordar com uma tatuagem no rosto, ou com um tigre escondido no armário.

— Você não precisa se preocupar que não vou aprontar nada nessa festa.

Hyoga o encarou sem disfarçar sua surpresa. Temeu por alguns instantes ter interpretado mal o que ouviu. Abaixou os olhos tentando organizar o raciocínio.

— Milo, não acha que está um pouco cedo para me fazer esse tipo de promessa?

— Eu tenho certeza que é cedo! E tenho mais certeza ainda que vale a pena tentar mesmo assim. Se eu estiver errado preciso que me diga o quanto antes Hyoga. Olha para mim?

Hyoga o encarou e ele pensou que se afogaria naqueles olhos. Sentiu leveza e profundidade naquele olhar. Um universo de mistérios e a promessa de algo completamente novo. Não desviou o olhar. Engoliu em seco. Sentiu que suas mãos suavam e as esfregou nas laterais de suas calças. Se ergueu e ofereceu a mão ao outro que a aceitou também ficando de pé. Não acreditava no que estava fazendo.

— Hyoga, a gente está se conhecendo, mas eu não quero tirar os olhos de você. E eu… Droga Hyoga não quero olhar para os lados, só quero olhar para você! Desvendar tudo de você. Eu não sei qual é o seu feitiço russo, mas estou completamente nas suas mãos.

Hyoga ainda se espantava como Milo era lindo, precisava inclinar sua cabeça ligeiramente para trás para encará-lo, ele era tão alto, um homem feito, o que poderia ver de tão interessante em alguém tão sem graça quanto ele? Quer dizer, ele sabia que era bonito e que tinha lá seu charme, sempre atraiu as atenções femininas, mas, jamais imaginou que um homem como Milo, basicamente o padrão de beleza ambulante pudesse estar tão disposto a se envolver com ele assim de forma tão repentina.

Não entendia ainda como funcionavam os jogos de sedução entre homens. Suas experiências tinham sido tão breves. Também tinha sentido que seu corpo derreteria na primeira vez que transou com… Não, isso era passado. O que Milo estava propondo agora era um risco, mas valeria a pena.

Mesmo que se quebrasse inteiro valeria a pena.

Nos braços de Milo havia se sentido completo, entendido finalmente qual era o seu lugar no mundo. E ele aceitou, sim, aquele homem lhe deu a chance de ser verdadeiro, real.

— Estou com medo Milo… — murmurou.

Milo o abraçou forte beijando o topo de sua cabeça. Hyoga se aconchegou naquele abraço. Suspiraram ao mesmo tempo.

Tudo na racionalidade indicaria para que fossem com calma, não se conheciam, pouco haviam convivido. Porém o instinto os aproximava, se encontravam um no outro.

— Eu também estou. Estou apavorado…

— Então?

Ergueu o rosto o suficiente para que pudessem se olhar, Milo tocou seu rosto com carinho e ele fechou os olhos guardando na memória aquele toque. O grego respirou fundo.

— Então a gente tenta! Eu quero e você quer, já li que o tempo era relativo então… Assim será. O mais importante eu acredito que seja a disposição em tentar.

— Vamos ficar juntos Milo?

— É tudo que eu quero. Vamos sim! A gente vai decidindo juntos as coisas pelo caminho.

— Perfeito! — Hyoga sorriu passando a tocar o tronco de Milo com malícia — Quero conhecer mais um pouco de você na minha cama agora.

— Nenhuma objeção quanto a isso!

Eles riram e seguiram de mãos dadas para o quarto deixando tudo sobre a mesa para ser arrumado depois.

***

Aiolia e Julian estavam empolgados em vídeo conferencia com Kardia e Saga. Os quatro planejavam algumas surpresas para a despedida de solteiro. Além de uma viagem que pretendiam oferecer aos noivos como presente surpresa e haviam concordado em dividir as despesas. Sabiam que apesar de viver com conforto Aiolos por ser professor, assim como sua noiva Seika, não teriam condições de custear uma lua de mel digna de amigo, primo e irmão tão bem quisto por todos eles.

E na realidade todos gostavam da moça também, ela era mandona na medida certa, para manter o noivo na linha e confiante o suficiente para não sufocar ou limitá-lo. Aiolos sempre foi uma pessoa animada e expansiva.

Era o primeiro do grupo a realmente se casar e estavam genuinamente empolgados em garantir que tudo corresse bem.

Kanon se mantinha um pouco atrás dos amigos, ver a imagem do irmão trouxe de volta a inquietação com a informação que detinha a respeito do ex de Milo.

Percebia que projetava parte da dor que viveu por ter sido traído nesse impasse. Tinha consciência que eram situações com bem poucos paralelos, afinal, calculou, nem mesmo o ruivo psicopata ou Saga protagonizariam um espetáculo grotesco e cruel como o que viveu no passado ao flagrar o namorado exclusivamente "passivo" com uma mulher em sua cama.

Sofreu não somente pelo golpe humilhante e pela decepção. As palavras duras e ofensivas do inglês desgraçado vez por outra retumbavam em sua alma tentando esvaziar seu íntimo de dignidade.

Algumas pessoas possuíam uma habilidade singular com as palavras, diferente da eloquência. Meios para que elas fossem cortantes e mortais, para que deixassem marcas insolúveis.

Nunca fora uma destas pessoas, não que não soubesse se expressar, mas sua palavras jamais tiveram aquele poder perfurante e venenoso. Era algo que o agradava profundamente. Kanon entendia seu potencial destrutivo, mas carregava um pesar que talvez fosse derivado de outra existência que o empurrava a uma vida de atitudes médias, de busca de tranquilidade e sua versão de quietude.

Talvez o ideal fosse manter silêncio, Milo parecia ter superado aquele relacionamento, Saga não havia feito nada de caso pensado, o ruivo era obviamente perturbado… E por que teria ele que decidir algo sobre isso? Ahn! Maldita indecisão, que tormento!

Notou que os amigos passaram a cochichar enquanto ele se perdia em memórias e elucubrações, mesmo do outro lado da tela Saga o encarou como se pudesse ouvir seus pensamentos e ele piscou lentamente. Sentia falta do irmão.

A risada de Kardia encheu seus ouvidos. E sorriu também, os olhos de Saga brilharam em reconhecimento.

Julian e Aiolia debatiam detalhes. Confirmando a lista de convidados para a despedida de solteiro que seria dali alguns dias.

Passou a analisar as expressões do irmão de Milo.

Kardia e Saga tinham mais uma surpresa para a festa. Aiolia ponderou antes de aceitar, mesmo não tendo nenhuma chance de impedir o que viria. Aqueles advogados sempre conseguiam o que queriam!

Julian estava exultante. Foi então que perceberam alguma comoção no andar de baixo. Finalizaram a chamada de vídeo.

Aiolia olhou preocupado para Kanon:

— Parece briga...

— No meu estabelecimento? Inadmissível.

Julian já se preparava para descer. Os amigos o acompanharam, ele era um homem imponente, mas perto dos outros dois não impressionava tanto pelo porte.

Aiolia imediatamente assumiu um ar defensivo e seu olhar faria qualquer um se encolher. Kanon pensava em Isaak.

Desceram as escadas e lá embaixo o salão todo aplaudia.

Julian procurou Thétis com o olhar e a encontrou ao lado do bar, uma bandeja nas mãos que ela tratou de entregar para outro garçom.

Em poucos instantes ela estava na sua frente e agora teria que explicar tudo ao verdadeiro Imperador.

Chapter 21: Mas, você está tentando

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Feitas as apresentações, após Thétis informar o que havia acontecido Julian não poderia estar mais satisfeito. Ele gostou muito de saber como ela havia manejado a crise.

Ficou ainda mais agradado ao saber da prontidão com que sua equipe se uniu. Esse tipo de atitude fazia com que se sentisse um verdadeiro líder, ainda que quem comandasse aquele bar com firmeza e notável profissionalismo fosse sua Gerente.

Os três amigos gregos decidiram continuar seu encontro no bar propriamente dito, ou seja o térreo, eles estavam agora acomodados em uma das mesas do Imperador.

 

Isaak do bar conseguia divisar a cabeleira de Kanon e mais uma vez se pegou ligeiramente incomodado com a amizade dele com seu patrão. Não por ciúmes, tinha certeza, mesmo sendo lindo Julian Solo era certinho demais, não parecia o tipo de homem que chamaria a atenção do grego, quem sabe a de Sorento. Um bico se formou em seus lábios e ele condenou aquela linha de pensamentos enquanto sentia latejar o corte no lábio.

Ele organizava os pedidos em bandejas para os outros garçons enquanto repassava as comandas para a cozinha ou para o barman segundo a necessidade. Era uma atividade que exigia muita atenção, mas relativamente mais leve do que circular entre as mesas e carregar bandejas que muitas vezes desafiavam a lei da gravidade.

 

Sorento torceu o nariz ao perceber que Isaak não havia acatado sua sugestão e pedido a Thétis para ir embora. Ao identificar a mesa com alguns dos homens mais bonitos que já tinha visto, entendeu automaticamente o motivo das atitudes do garçom. Inconscientemente rolou os olhos, Isaak era mesmo um ser primal, contudo em seu âmago sabia que não podia tirar a razão do colega de trabalho. Reconheceu que a mesa composta pelos espécimes masculinos extremamente diversificados em porte e estilo estava entre as que deveria atender, e munido da sua melhor postura profissional ajeitou mais uma vez a roupa e se encaminhou até ela, afinal o patrão figurava entre os integrantes daquele trio. Aproximou-se parando entre os dois convidados, ficando de frente para Julian.

— Boa noite senhores. Senhor Solo. — Meneou a cabeça cumprimentando cada um dos presentes. — Bem vindos! Gostariam de fazer o pedido?

Os três homens sorriram mediante a formalidade e cortesia do funcionário. Julian deteve por mais tempo que o necessário o olhar em Sorento perguntando-se mentalmente por que diabos aquele homem trabalhava como garçom, uma vez que, era notório que o rapaz possuía um grau de instrução e refinamento acima do requerido pelo cargo, mas acima de tudo, como podia ter sido tão cego as jóias que tinha debaixo de seu nariz.

Talvez devesse acatar o conselho eterno de Kanon e olhar para frente e para os lados ao invés de para o alto, com seu nariz empinado.

— Sim… — Julian pausou sua fala esperando que o outro dissesse seu nome.

— Sorento. — Sorriu.

— Italiano? — Julian questionou ignorando os olhares divertidos de Kanon e Aiolia.

— Austríaco, senhor Solo.

— Podemos dispensar por hora as formalidades. — Sorriu charmoso. — Quero que meus amigos conheçam o melhor que o Imperador pode proporcionar, sendo assim, quais bebidas você sugere?

Sorento olhou para os três e lembrou claramente da taça de conhaque que havia servido ao parceiro de Isaak a pedido de Camus, na noite em que acabou por acobertar o Ruivo.

Sentiu um leve desconforto e ignorou, como costumava fazer com tudo aquilo que julgava ser um potencial desencadeador de problemas.

Já possuía questões demais para lidar, sendo assim, não havia a mínima necessidade de acrescentar mais uma.

De todo modo, não achou que repetir aquele drink seria a melhor pedida, mediante a situação na qual foi ofertado. Observou discretamente os homens identificando o estilo e possível personalidade a fim de indicar as bebidas mais apropriadas.

O homem de olhos verdes e cabelo curto parecia o tipo mais jovial, animado, caloroso e daqueles que mantém um paladar quase infantil. Mapeou mentalmente o cardápio do Imperador e sorrindo internamente elencou a opção que melhor combinaria com ele, dedicando sua atenção ao loiro alto e aparentemente íntimo de Isaak. Esse aparentava o tipo maduro, sério, mas levando em conta que havia se deixado levar pelos encantos do garçom devia existir alguma predileção pela rebeldia e por algo mais rústico e simples. Não simplório. Isaak jamais poderia ser relacionado a essa palavra. No arquivo vivo de sua mente lembrou das cervejas artesanais a venda no bar e fazendo sua escolha direcionou a atenção a Julian.

O patrão jazia elegantemente trajado e o olhando com certa atenção, como se estudasse seus movimentos. Não podia negar que ele não perdia em nada no quesito beleza, no que dizia respeito aos demais elementos da mesa, porém, definitivamente era o que possuía o maior grau de problemas intrincados em si.

Imaginou que o dono do Imperador ficaria satisfeito sorvendo uma bebida destilada.

Sua mente processou rapidamente as informações que havia coletado em sua observação e sugeriu o drink “da casa” para Aiolia, cerveja artesanal para Kanon e whisky para Julian.

— A priori qualquer um indicaria a mesma bebida para os três, contudo acredito que cavalheiros notoriamente distintos apreciariam degustar a particularidade de cada bebida enquanto desfrutam da companhia. — Sorriu aguardando.

Julian ergueu uma das sobrancelhas e sorriu de canto, enquanto Aiolia e Kanon apenas concordaram com o garçom.

— Está perfeito Sorento. Muito perspicaz sua observação. Traga por favor as bebidas. Em breve pediremos os aperitivos.

— Pois não. — Afastou-se da mesa em direção ao bar.

— Eficiente o rapaz. — Aiolia comentou.

— E muito educado. — Kanon completou.

— Interessante… — Julian murmurou.

Kanon e Aiolia gargalharam olhando para Julian que brindou ambos com um sorriso discreto e reiniciou a conversa sobre a festa de Aiolos. O clima entre eles era de celebração e a expectativa com a despedida transbordava descontração naquela mesa.

Sorento caminhou com sua elegância e leveza habitual chegando ao balcão dos pedidos e dando de cara com um irritadiço Isaak.

— Isaak, para a mesa 1, preciso por favor, de um “Imperador dos mares”, uma long neck de Hoegaarden e uma dose de Royal Salute sem gelo.

Isaak pegou a comanda com os pedidos e prendeu na parte de dentro do bar, onde ficavam as demais.

— Mesa interessante não acha? — Falou com sarcasmo.

— Imagino que pense dessa forma. Pelo que posso me lembrar o loiro alto é conhecido seu. — Sorento aguardava para levar a cerveja e o whisky.

— Não estava falando do Kanon. — Colocou a cerveja na bandeja.

— Folgo em saber que ele possui um nome. Loiro alto não é uma alcunha muito boa. — Olhou para Isaak que parecia desgostoso com algo. — Pelo que pude perceber os três são amigos…

— Não era a isso que eu me referia.

— Ao que se refere então? — Sorento questionou erguendo umas das sobrancelhas.

— As vezes me pergunto se você é sonso ou se faz de sonso por alguma questão ridícula de etiqueta social. — Isaak colocou o whisky na mesma bandeja que a cerveja e entregou ao flautista.

— E eu me pergunto se você planeja fazer algum sentido ou se aleatoriedade faz parte de você. — Pegou a bandeja e caminhou até a mesa.

Os três gregos conversavam animados sobre os detalhes da despedida de solteiro e Sorento notou que o homem de olhos esverdeados parecia o mais empenhado no assunto. Sorriu discretamente ao perceber que falavam sobre a festa na qual trabalharia e em qual seria a reação de Isaak ao receber a informação.

Pediu licença ao aproximar-se da mesa e dispor as bebidas. Kanon agradeceu ao receber a long neck e Julian encarou o garçom com um sorriso enigmático.

— Sem gelo? — Esbarrou levemente nos dedos de Sorento ao pegar o copo.

— Acreditei que seria sua preferência. Posso retornar com outra dose. — Manteve a postura segurando a bandeja vazia ao lado do corpo.

— De forma alguma. Estou surpreso apenas. Não imaginei que sua observação fosse tão… Aguçada. — Bebeu um gole da bebida sustentando o olhar.

— Os senhores desejam pedir os petiscos. — Sorento corou levemente, sentindo-se sem jeito pela primeira vez.

— Por enquanto não, obrigado. — Kanon falou percebendo o embaraço do rapaz.

Sorento pediu licença novamente e se afastou na mesa. Sentiu o rosto levemente quente e sabia que provavelmente estava corado. Não era um homem de se abater com facilidade, e muito menos enrubescer por qualquer olhar, mas um olhar de Julian Solo estava longe de ser banal. Balançou a cabeça no trajeto espantando o pensamento e torcendo para que a face voltasse a coloração habitual. Infelizmente ainda possuía o tom avermelhado quando chegou ao balcão para recolher o drink que encaminharia para a mesa 1.

— Gostaria de saber o que falaram naquela mesa pra te deixar tão envergonhado. Acho que nunca te vi corado e olha que já ouvi metade das escabrosidades que falam para você. — Isaak organizava uma segunda bandeja para outra mesa.

— Pelos Deuses Isaak, eles estão falando da festa de despedida de solteiro que será realizada na parte reservada da loja. Não precisa se preocupar tanto. — Deu de ombros. Refletindo que as vezes não eram necessárias palavras para se alcançar profundidade.

— E você ficou vermelho por isso? — Terminou de arrumar a segunda bandeja.

— E você está preocupado com a minha vermelhidão ou com o homem sentado naquela mesa? — Encarou pela segunda vez naquele dia o único olho verde daquele homem.

Isaak permaneceu em silêncio sendo encarado por Sorento, que suspirando já caminhava novamente para a mesa, equilibrando o drink na bandeja. Antes de se afastar completamente olhou para trás e viu que outro garçom ainda o encarava. Falou alto o suficiente para que ele pudesse ouvir, mas de forma que não fosse captado pelas outras pessoas:

— Aleatoriedade Isaak… Provavelmente só a aleatoriedade.

Continuou seu trajeto sentindo aquele único olho verde em suas costas, gostaria de ter algum tempo em sua vida para quem sabe desvendar a lacuna entre o sentido e a capacidade impressionante de ser randômico que existia naquele rapaz, mas infelizmente não se via disposto no momento.

Ainda mais quando o outro era alvo de alguém como Kanon. Que homem… Pensou e repreendeu imediatamente aquele fluxo mental. Manteria sua filosofia, sendo assim: Nada de procurar problemas.

E se viu mais uma vez, apenas naquele dia divagando sobre o colega de trabalho, e como já havia definido em momento anterior, aquilo não ajudaria a pagar suas contas. Dessa forma, dedicou sua atenção ao serviço resguardando-se de qualquer possível drama que pudesse se orquestrar ao seu redor.

 

Kanon mais uma vez tentava se integrar a conversa, mas sentia uma inquietação crescente. Reparou finalmente no rapaz que atendia a mesa e imaginou que provavelmente Julian fazia questão de só contratar pessoas bonitas para trabalhar em seu estabelecimento. Isso trouxe a memória de Isaak. Não haviam se falado durante toda essa semana. O fim de semana foi muito intenso. Se despedir de Isaak enquanto ainda tinha a presença dele em seu corpo dava a Kanon a falsa sensação de desapego. Por outro lado, esteve tão livre nessa semana, estava começando a escrever seu projeto de doutorado. E se dedicou a ler diversos artigos acadêmicos. Estudar sempre foi seu porto seguro.

Isaak parecia tão desinteressado com a faculdade… A química entre eles parecia se aprofundar. Por que aquele vazio não o deixava? Estavam há alguns meses nesse jogo. Se questionava se além do sexo teriam grandes afinidades. Buscou na memória por alguma afinidade. Literatura ou o Mar quem sabe?

Sorveu sua bebida grato pela escolha do garçom. Aiolia o encarava segurando o riso.

— Estávamos aqui imaginando o que se passava aí na sua cabeça. — Provou seu drink e fez uma careta — Bom, mas muito doce.

— Acredito que nosso querido Kanon estava passeando por suas memórias, quem sabe de um certo garçom?

— Como assim?

Quis saber Aiolia. Kanon sorriu baixando os olhos.

— Kanon está traçando um dos meus empregados. Não é isso?

— Não seja grosseiro Julian. Não te criei para isso — Ralhou Kanon e os três riram.

— Não é o tipo de serviço que oferecemos aqui no Imperador

— Oficialmente você quer dizer? — Aiolia sugeriu passando a mapear o ambiente.

— Aiolia, eu aprecio seu raciocínio malicioso, porém, não é nossa área de atuação mesmo. Quem sabe na festinha do seu irmão…

— Segundo nossos advogados favoritos este realmente não será um problema.

— Thétis separou duas pessoas da minha equipe para servi-los.

— Mesmo? Quem?

— Se interessou finalmente pela conversa Grandão? Deixe-me conferir — Julian desbloqueou seu celular e buscou a informação passando os dedos pela tela. — Vejam só, ela selecionou Io e o agradável Sorento. Esse primeiro não me recordo de quem seja… É o seu mocinho Kanon?

Aiolia rindo quase se engasgou com seu drink. Kanon girou os olhos mas não se impediu de sorrir também.

— Não sei quem é o seu funcionário Io, caríssimo Senhor Solo.

— Vamos resolver isso então. Aiolia me diz se gostou dos garotos e tudo mais!

Aiolia balançou a cabeça concordando fazendo uma expressão engraçada e um gesto de “nunca se sabe”. Julian fez um suave movimento com a mão e Sorento quase se materializou ao lado da mesa, ele obviamente estava designado a atendê-los. De longe Thétis sorriu internamente enquanto equilibrava uma bandeja e desfilava pelo salão atendendo as mesas.

— Pois não, desejam fazer o pedido dos petiscos? Já estou com o cardápio.

— Na realidade não, ainda que aprecie sua presteza, Sorento. Você pode por gentileza trazer Io aqui?

Sorento aquiesceu e virou-se para procurar o colega.

Io estava fechando o atendimento de uma mesa em outra parte do imenso salão. Era um rapaz bonito, ligeiramente mais alto que Sorento, compleição esguia e forte, olhos e cabelos castanho claros, presos em um rabo de cavalo displicente onde se destacavam as pontas caprichosamente coloridas num vibrante tom de violeta.

Ele costumava usar roupas justas e em seu visual se destaca uma série de tatuagens que estampavam seu braço esquerdo. Lembrava de já ter ouvido o rapaz explicando a Isaak que os desenhos retratam seis bestas mitológicas, o que acrescentava um ar quase místico aquela figura. Sorento observou o outro garçom, ponderando que realmente era uma paisagem bem agradável.

Sendo sincero consigo mesmo, precisava admitir que os clientes não elogiavam apenas o atendimento mas também o cenário como um todo. Aguardou que ele se despedisse do grupo que deixava o bar e se virasse para levar a máquina de cartões de volta ao caixa. Nesse momento Io o viu.

— Julian Solo solicitou sua presença na mesa onde está com seus convidados.

— Você sabe o motivo?

— Aparentemente ele está reunido com os responsáveis pelo evento no qual trabalharemos na próxima semana. Fora isso, sei tanto quanto você.

— Ah sim! Entrego isso no caixa e vamos lá.

Logo ambos se apresentaram ao empregador que nem tentou disfarçar sua expressão de surpresa. Kanon mordeu o lábio para não rir. Aiolia segurou o copo na frente do rosto.

Io decididamente era bem mais descontraído que Sorento, um jovem bonito de olhar intenso e sorriso fácil.

— Boa noite a todos — Cumprimentou Io de forma charmosa sem exageros.

Julian fez a anotação mental de mandar algum presente ou agrado para Thétis, ela realmente havia escolhido um time e tanto para comandar no Imperador.

— Esse é seu nome mesmo? — Julian perguntou com indisfarçada curiosidade.

Aiolia riu pensando no ausência de noção do proprietário e trocou olhares com Kanon que aparentemente pensou a mesma coisa. Ambos se concentraram na resposta do funcionário que em nada pareceu se intimidar.

Io ergueu uma sobrancelha e o olhou antes de responder com um sorriso misterioso.

— É um apelido carinhoso.

Até no rosto de Sorento um ligeiro sorriso escapou frente aquela resposta espontânea.

— Muito bem Io, gostei. Caros, este é Aiolia Íroas, o irmão do noivo e principal organizador do evento que receberemos na próxima semana. Aiolos, o noivo, é um amigo próximo e muito querido. O grandão aqui Kanon Chrysó ele é primo deles. Qualquer problema relacionado ao evento, em qualquer estágio de sua organização, ou durante seu desenvolvido, deve ser comunicado imediatamente a um dos dois. Compreenderam?

Ambos concordaram e permanecem aguardando as próximas instruções. Julian consultou disfarçadamente Aiolia que retribuiu o olhar sorrindo em seguida. Kanon percebeu a troca de olhares entre os dois; pois-se a reparar nos dois rapazes, imprimindo todo senso de discrição que havia adquirido em sua vida. Uma coisa não podia negar, o Imperador servia a todos os gostos, apresentando desde o gênio rebelde que era Isaak, até o estilo mais discreto e clássico de Sorento.

Já havia avaliado brevemente os outros funcionários e sabia que suas considerações eram embasadas.

Sobre o último, dedicou um olhar mais caprichoso ao garçom que parecia ser o responsável por sua mesa.

Definitivamente, o rapaz era muito bonito e se destacava dos demais. O jeito sério e cordial, a roupa mais formal, que trazia profissionalismo, mas ao mesmo tempo modelava muito bem o corpo esguio.

Kanon arregalou os olhos ao perceber que sua inspeção era acompanhada pelo olhar de Sorento, que sorria minimamente. Desviou seu foco e ouviu Julian dispensar os dois rapazes, indicando que em breve pediriam os aperitivos.

— E então? — Julian questionou terminando o copo de whisky.

— Excelente! — Aiolia exclamou divertido dando um sorriso sacana em seguida — Você tem ótimos funcionários. Agora entendi o Grandão aí.

Recebeu um olhar mortal do primo e levantou as mãos em sinal de rendição arrancando risadas dos dois. Por mais que quisesse, Kanon não conseguia ficar verdadeiramente bravo com nenhum dos homens daquela mesa. Eles eram sua família, algum nível de confusão, constrangimento e dor de cabeça sempre seria parte implícita nessa dinâmica valorosa, os amava profundamente.

A única coisa que o intrigava naquele momento era um sentimento que não sabia identificar muito bem, mas que se assemelhava a uma espécie de alívio. Não conseguia entender exatamente sobre o que e muito menos por que, mas parece que saber que Isaak não trabalharia na despedida o deixava mais à vontade. Provavelmente não queria que o garçom ouvisse alguma possível piadinha de seus parentes, mesmo que no fundo tivesse a certeza que nenhum deles colocaria em situação desconfortável alguém que fosse querido por ele. Sendo assim, permanecia incomodado com o sentimento impreciso e com o olhar flagrado por Sorento.

Virou a cabeça discretamente em direção ao bar e viu que Isaak mantinha-se ocupado e Io parecia falar alguma coisa que Sorento apenas concordava com a cabeça mantendo um sorriso discreto. Mesmo sem querer respirou fundo, atitude que passou despercebida por Aiolia, que parecia ter se acostumado a doçura do drink, mas não a Julian que mantinha um sorriso enigmático enquanto segurava o copo de whisky vazio.

 

Sorento afastou-se junto com Io que comentou brevemente a beleza dos homens antes de ser solicitado por outra mesa. Observou mais uma vez o trio e depois olhou para Isaak, talvez o problema do rapaz não fosse apenas sua pretensa aleatoriedade no final das contas.

Continuou a servir a mesa de Julian, levando em seguida os petiscos e demais bebidas requisitadas. Cada vez que ia até a mesa, percebia os olhares dos três homens e as diversas mensagens enunciadas por eles.

Em seu âmago gostaria de responder ao menos uma delas, mas sabia que não seria prudente e essa era sua palavra de ordem. Depois de algumas horas os homens pareciam prontos para se retirarem. Observou que ainda não havia terminado o expediente de Isaak e computou o nervosismo do garçom ao registrar a possível ida de Kanon. Parou em frente ao bar para deixar a bandeja com os copos sujos, uma vez que a conta havia sido cortesia de Julian. Encarava Isaak que arrumava as comandas com os pedidos, quando ouviu a voz imponente porém melodiosa do patrão atrás de si.

— Sorento… — Aproximou-se do garçom — Poderia por gentileza me informar o nome do rapaz que está no bar?

— Isaak. — Sorento falou baixo dizendo cada uma das letras com um certo pesar.

— Agradeço. — Virou-se para o bar — Isaak?

O rapaz paralisou sua tarefa e virou em direção a voz mantendo o semblante sério.

— Pois não, senhor Solo.

— Seu expediente está encerrado por hora. Não precisa se preocupar com a Thétis ou demais pormenores. — Fez um gesto vago com as mãos. — Sua companhia já está de saída e pode acompanhá-lo, abri exceção dessa vez.

Isaak pareceu ponderar por breves segundos olhando de Julian para Sorento, porém ao divisar a silhueta de Kanon levantando da mesa e lhe procurando com o olhar, sorriu para o patrão e começou a tirar o avental que usava, mas deteve-se ao ouvi-lo iniciar uma conversa com o outro garçom.

— Gostei muito de seu atendimento, Sorento. Preciso lembrar de fazer um elogio formal a minha Gerente. — Sorriu charmoso.

— Obrigado, senhor Solo. Fico satisfeito que o atendimento tenha satisfeito as expectativas do senhor.

— Sim, meu caro, você atendeu e superou as expectativas. — Caminhou para as escadas do segundo andar dando uma última olhada em Sorento.

O flautista só não corou pela segunda vez naquele dia pois ouviu um barulho no bar que captou sua atenção. Isaak saia pela porta lateral de acesso único aos funcionários, e parecia um tanto irritado, uma vez que, a força com a qual empurrou a porta gerou o ruído que chamou a atenção de Sorento.

Deu de ombros ignorando o fato, provavelmente era a pressa de encontrar Kanon, e quanto a isso, não podia julgá-lo.

 

Isaak pegou suas coisas no armário e se olhou no espelho do quarto de funcionários antes de sair. Estava nitidamente irritado e ao mesmo tempo excitado com a possibilidade de passar um tempo com Kanon. Não distinguia os dois sentimentos e muito menos queria se dar ao trabalho de parar alguns minutos para entendê-los. No fim, até a raiva seria benéfica quando empregada aos planos que já tinha formulado para o tempo que passaria com o grego. Era isso, não precisava se preocupar. Deixou o quarto de funcionários, caminhando em direção a Kanon, que o brindou com um sorriso largo. Retribuiu o gesto, sentindo o sorriso quase falar ao avistar Sorento atendendo um das mesas e assumindo a nítida postura defensiva. Não era problema dele, tinha planos muito mais interessantes para essa noite.

— Olá. — Kanon o cumprimentou charmoso. — O que houve com a sua boca?

— Explico quando sairmos daqui. Vamos?

Kanon estranhou a atitude e o tom irritadiço do outro. Uma motivação para isso quase tomou forma em sua mente, mas ele preferiu não alimentá-la. Era mais fácil para ambos não contrariar, já havia sentido na pele os arroubos da raiva de Isaak. Seguiu o rapaz para fora do estabelecimento.

Aiolia já entrava em um carro de aplicativo e apenas acenou fazendo um discreto sinal de “muito bem” com mãos. Balançou a cabeça sorrindo e estranhando o fato de Isaak estar andando mais rápido do que ele, ao que tudo indicava o garçom parece querer fugir do Imperador. Apressou o passo.

O que quer que fosse saberia depois. Agora só queria curtir e desfrutar mais uma vez dos prazeres que só a companhia daquele rapaz era capaz de proporcionar.

Chapter 22: É a jóia da vitória

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Milo estava esparramado no sofá da casa de Hyoga com o russo entre suas pernas, estavam abraçados enquanto tentavam decidir um filme para verem no cinema no fim de semana. Milo queria que fosse o primeiro encontro oficial deles. E que fosse perfeito. Hyoga respondia que seria perfeito de qualquer forma.

Estavam olhando no celular do mais novo algumas opções no momento em que a porta foi aberta.

Quando Isaak e Kanon entraram no apartamento encontraram os dois assim, nessa pose de incrível intimidade e carinho. Isaak não tentou evitar o sorriso que despontou em seu rosto, apesar de durante todo o caminho ter se mantido de cara fechada. Kanon veio com ele avisando que teria que ir embora cedo, com medo de perder o transporte. Passou por sua cabeça que o grego talvez pudesse ainda se ressentir com o que aconteceu na outra semana.

Kanon, por sua vez se esforçou para manter a boca fechada, quase verbalizou sua surpresa em encontrar com Milo ali, pelo jeito as coisas caminhavam velozmente entre aqueles dois.

Ambos sorridentes e com olhares brilhantes.

Pelos Deuses, mas seria possível? Parecia um filme adolescente campeão de bilheteria: Miloga o amor perfeito realizado em menos de uma semana. Fala sério que esse tipo de coisa existe? — Pensou Kanon em uma fração de segundo antes de se repreender.

Quase bufou enquanto entrava no apartamento, ralhando consigo mesmo, endereçou um sorriso esquisito a Hyoga e sua visita. Nenhum dos dois tinha culpa por ele não conseguir decifrar o que se passava na cabeça dura de Isaak.

— Boa noite casal! — Isaak disse divertido

Hyoga preparava-se para reclamar mas o toque de Milo em sua mão o conteve, ele sorria.

— Boa noite, chegou cedo hoje Isaak! Tudo bem?

— Sim, Hyoga rolou uma briga no bar e para variar fui o único a tomar na cara. — Disse apontando para o corte avermelhado que incha levemente seu lábio. Ele e Kanon entraram cumprimentando e tirando os casacos. — Então o amiguinho do Kanon achou que deveria me dispensar mais cedo…

— Isaak está mal humorado por motivos desconhecidos. Eu adorei que conseguimos nos ver pelo menos um pouquinho.

— Kanon, eu vou ficar mais um pouco — Milo consultou a hora no relógio — Se quiser carona… Posso aguardar até as 23h30.

— Vem Grandão, vem acabar com o meu mau humor e depois aproveita a carona.

Arrastou o grego até seu quarto e fechou a porta. Na sala o casal riu voltando a se aconchegar, já haviam transado e o objetivo agora era planejar o encontro oficial.

No quarto de Isaak ele se encontrava impaciente, puxava as roupas de Kanon sem muito cuidado. Tentando abrir as calças do loiro.

— Calma Isaak — Falou ao pé do ouvido do garçom e espalhando um arrepio por todo o corpo do rapaz. — Vamos conversar?

Isaak parou no mesmo instante e o encarou realmente surpreso, uma mão dentro das calças do grego e a outra lutando com seu cinto.

— Conversar? Agora?

Não deixava de ser adorável a expressão confusa do rapaz quando perguntou.

— Sim — Kanon beijava docemente todo o rosto de Isaak — Algo te incomoda e eu quero saber o que é. Você é muito gostoso Isaak… Mas também quero saber o que se passa nessa sua cabecinha rebelde.

O garçom piscou lentamente enquanto umedecia os lábios com a língua. Pousou ambas as mãos no quadril do mais velho puxando seu corpo de encontro a evidência irrefutável de sua excitação.

— Por qual cabecinha Kanon? As duas estão de acordo com a vontade de se afundar em você. Se você quiser a gente senta para conversar amanhã antes do trabalho, agora eu preciso de você Kanon… Vamos com isso e você não perde a carona do seu primo.

Kanon se abaixou para beijá-lo.

Não adiantava insistir na questão, acabariam se desentendendo e era frustrante demais quando isso acontecia. Tocar a pele quente de Isaak tinha esse efeito entorpecente sobre ele, no dia seguinte poderiam conversar agora só queria se sentir melhor, esquecer a confusão que ía na sua cabeça. No fim talvez fosse sensato deixar para conversar no dia seguinte. Calou o arfante Isaak com sua boca experiente e tratou ele mesmo de rapidamente desafivelar o cinto.

***

Sentia profunda tranquilidade e bem estar sempre que chegava em casa. Em parte por estar finalmente em seu reduto, em outra porque indicava o fim de sua jornada de trabalho.

A realidade era que sempre se desdobrou em várias tarefas, a vida de um herdeiro cobrava um tipo de preço.

E hoje, tinha consciência que era uma dívida que uma parcela significativa da população não se importaria em sanar, desde que recebesse a tranquilidade e o luxo em troca. Pelo menos por algum tempo, acreditava que qualquer um conseguiria ser feliz naquela vida, até concluir que a liberdade com grilhões não valia a pena. A bem da verdade, não sabia se existia outro tipo de liberdade.

Contudo, acreditava que a vida na qual estava era ditada por suas normas e sendo assim, escolhia seus grilhões. Trocou as diversas aulas que alternavam entre música, desenho, defesa pessoal e o que seu pai chamava de “utilidade para o futuro”, pelos diversos empregos que geram a renda necessária para seus encargos mensais e até mesmo para um pequeno acúmulo, que seria revertido em uma pós graduação em momento posterior.

Antes de tudo, Sorento era um homem organizado e tinha planos muito bem orquestrados para o futuro. Não era ingênuo a ponto de achar que as coisas se desenrolam exatamente como em seu planejamento. Mesmo que gostasse da sensação de controlar seu destino, sabia que muitas coisas fugiam a sua vontade.

De todo modo, estava feliz por chegar em casa e poder descansar antes do próximo dia começar. Pegou a chave no bolso frontal de sua bolsa carteiro, abriu a porta e sentiu seu estômago roncar. Colocou a mão na barriga e torceu o nariz mediante o barulho. Não lembrava exatamente qual tinha sido sua última refeição.

Os biscoitos que Shun havia ofertado já tinham acabado há algum tempo. Precisava concordar com o amigo e senhorio, naquela dinâmica de intercalar os diversos empregos acabava não comendo e tinha consciência que isso não era uma atitude prudente. E por mais que esse palavra encabeçasse suas ações, ao menos nesse ponto, ignorava seu jeito metódico e organizado e dava voz a sua estafa ao decidir que entre comer e dormir, preferia dormir.

Contudo, nesse momento, precisava urgentemente de algum alimento.

Estranhou ao ouvir o som da televisão e a leve luminosidade que clareava sutilmente a penumbra da casa.

Deixou seus sapatos ao lado da porta, trocando-os pelos chinelos e viu que um par de tênis repousava naquele canto. Sorriu minimamente e caminhou até a sala.

Encontrou Ikki deitado no sofá na sala, controle em mãos e a face que era quase sempre enigmática, dessa vez, possuía uma leve ruga na testa. Olhou para a televisão e percebeu que ele apenas trocava os canais sem se deter em nenhum programa específico.

— Boa noite, Ikki. — Sorento cumprimentou encostado no portal da porta.

— Ah… Boa noite, Sorento. — Ikki conferiu o relógio de pulso. — Chegou tarde.

— Ao que parece bares e livrarias não tem horários tão pontuais quanto eu gostaria. — Deu de ombros.

— Imagino.

Sentou no sofá olhando para Sorento.

Um silêncio recaiu entre os dois, mas não havia constrangimento ali.

— Vou preparar algo para jantar, você aceita? — Sorento perguntou se encaminhando para a cozinha, lavou as mãos.

— Você não comeu nada ainda? — Ikki questionou desligando a televisão e seguindo Sorento.

— Na verdade… Eu não lembro a última vez que comi. Mas deve ter algum tempo, já que meu estômago decidiu manter um diálogo comigo.

— Shun falaria horrores se soubesse disso.

— Por isso que você não vai contar. — Sorriu antes de abrir a geladeira. — Acho que vou fazer um sanduíche, quer?

— Não. Senta aí. — Apontou para um lugar à mesa da cozinha. — Vou preparar algo pra você. — Começou a abrir os armários e conferir os mantimentos.

— Não precisa Ikki. Um sanduíche será suficiente.

— Tenho certeza que não precisa. Em nenhum momento questionei isso, mas não me custa fazer... Macarrão! Além disso, também estou com fome. E já que você fica tanto tempo sem comer, acredito que algo mais forte vá te nutrir por mais tempo. Senta aí, acho que já ficou sua cota de horas em pé, senhor garçom.

Sorento fechou a geladeira e ficou algum tempo olhando Ikki pegar uma panela, encher de água, levar ao fogo e em seguida escolher o tipo de macarrão. Ao perceber o olhar do outro sobre si, Ikki apontou mais uma vez para a mesa e com um suspiro rendido Sorento sentou e acompanhou a preparação do alimento.

— Não sabia que você tinha dotes culinários, sempre vejo o Shun cozinhando.

— Eu sei me virar. A comida dele é melhor. — Ikki deu de ombros.

O garçom ficou quieto e pegou o celular para olhar possíveis mensagens ou qualquer contato que pudesse ter recebido enquanto estava em horário de trabalho. Torceu o nariz mais uma vez ao ver uma mensagem e escolhendo perfeitamente as palavras começou a responder. Ikki parou de cortar uma cebola que entraria no refogado e olhou Sorento entretido na tarefa de digitação. Pegou uma segunda panela e viu pelo canto do olho o garçom colocar o celular novamente na bolsa.

— Percebo que já resolveu suas questões ligadas à diversão. — Sorriu virado de costas colocando óleo na panela.

— É… — Sorento sorriu apoiando o queixo nas mãos, um dos braços sobre a mesa. — Em parte sim. A tecnologia tem suas vantagens… E seus problemas também.

— Ao menos valeu a pena? — Jogou a cebola na panela junto com o alho.

— No que diz respeito ao objetivo principal… Sim. Valeu a pena. No mais, continuo acreditando que não.

— Talvez não devesse se ligar apenas ao objetivo principal.

— Opinião pessoal ou apenas conselho genérico?

— A interpretação é livre.

— Entendo… Aconteceu alguma coisa, Ikki?

— Muita coisa acontece, Sorento. O que quer saber? — Riu sorrateiramente pegando o extrato de tomate e jogando na panela.

— Você parece preocupado. E até onde eu sei o Shun está bem, então…

— Você faz parecer que todos os meus dilemas giram em torno do meu irmão.

— E não giram?

Ikki olhou para a mesa, vendo Sorento sentado de forma displicente e sorrindo. Mesmo que não convivesse tanto com o inquilino, sabia que a postura leve não era tão comum quanto a pose séria, mesmo assim, o homem de cabelos castanho claro mantinha a elegância que parecia ser inerente a sua pessoa. Talvez Pandora tivesse razão e seu problema fosse sempre se fechar, não compartilhar seus pensamentos. Não aceitar seus sentimentos. Seu olhar escurece ligeiramente.

— Algumas vezes sim.

— Parece que nesse caso não… — O celular de Sorento apitou —Alguma coisa no trabalho? — Olhou o aparelho revirando os olhos em seguida.

— Não. — Ikki percebeu o revirar de olhos e arqueou uma sobrancelha. — Acho que é você que está com problemas.

Sorento avaliou Ikki mais uma vez e antes de responder colocou o celular na mesa virado para baixo. O japonês seguia cozinhando.

— Ao que parece, mesmo que o encontro tenha sido intermediado por um aplicativo, algumas pessoas não entendem a noção de apenas uma noite. Mas isso não chega a ser um problema.

— Você deixou isso claro ao rapaz em questão?

— Sempre deixo tudo claro, Ikki. Não gosto de deixar margem para nenhum mal entendido. Além disso, sempre prefiro evitar qualquer tipo de problema.

— Quem sabe, seja isso que está faltando pra você se divertir mais.

— É esse o tipo de problema que lhe aflige?

Ikki desligou o fogão e permaneceu em silêncio. Pegou dois pratos, dividiu a porção de macarrão e colocou o molho por cima. Sorento levantou e pegou a toalha que Shun costumava usar para cobrir a mesa antes das refeições, além dos talheres. Encheu dois copos de suco e colocou na mesa ao mesmo tempo em que Ikki distribuiu os pratos. Sentou de frente para ele e ao dar à primeira garfada, percebeu que a comida estava saborosa, não sabia dizer se o tempero era sua fome, ou se o alimento realmente estava aprazível. De qualquer forma já estava na quarta garfada quando ouviu a voz de Ikki:

— Talvez eu não tenha dado a devida atenção a um pessoa que se importava de verdade comigo… — Ikki olhava o prato de comida intocado.

— E agora você está arrependido. — Ikki olhou para Sorento, o cenho franzido. — Não foi uma pergunta. Não precisa fazer essa cara e muito menos responder. Shun mencionou que você não é o tipo falador. — Deu de ombros. — Mesmo assim, acredito que se é o suficiente para te fazer pensar e causar incômodo o melhor seria conversar com a pessoa em questão. Tudo muda. Sua atitude anterior pode não refletir suas convicções de agora. Então, quase sempre vale a pena conversar… — Bebeu um gole do suco.

— O tempo para isso passou. — disse sem sua veemência habitual.

— O tempo sempre passa, Ikki. Houve um tempo em que eu achei que você sequer olharia na minha cara, hoje, estou saboreando esse delicioso prato de macarrão que você cozinhou. Como já disse: tudo muda. Talvez seja tarde para você resgatar algo, mas não acredito que seja tão tarde assim para ao menos uma conversa. — Sorriu.

— Conselhos sempre soam melhor que a prática.

— Lógico que sim. Estou te dizendo para conversar com quem quer que seja e tentar resolver suas questões. Mas, estou sem vontade alguma de conversar com Siegfried. — Fez um gesto vago com as mãos apontando em seguida para o celular.

— E ainda sim você parece empenhado em tentar escolher a melhor forma de dar um fora nele, que foi sua diversão.

— Não chamo as pessoas assim, mas foi o rapaz com quem sai.

— Você não é o tipo de pessoa que precisa de aplicativos Sorento.

O flautista mirou os olhos de Ikki, que pareceu ter adquirido interesse na comida.

— Não possuo o grau de narcisismo necessário para confirmar sua afirmativa. Mas prezo pela praticidade. Mesmo assim… — Sorento terminou de comer o colocou os talheres dentro do prato — Acho que você deveria ir atrás da pessoa que está tomando seus pensamentos…

— Já fiz isso.

— E ao que parece recuou.

Ikki mais uma vez permaneceu em silêncio. Seu rosto impassível escondendo como sempre seus questionamentos internos. Dessa vez o inquilino havia tocado num ponto sensível. Não era homem de recuar, nunca seria. De qualquer forma não costumava também impor sua presença. Estreitou o olhar, o inquilino não tinha como saber o que ele fez.

Sorento balançou a cabeça sem nada dizer. Levantou da mesa retirando seu prato e perguntando se poderia tirar o de Ikki. Colocou tudo dentro da pia e planejava lavar a louça quando sentiu a mão do outro em seu ombro, o afastando da pia.

— Vai deitar. Você está cansado e acredito que amanhã tenha mais trabalho.

— Você cozinhou e eu lavo a louça, acho justo.

— Outro dia Sorento. Não argumente: vá descansar.

O livreiro suspirou e mais uma vez se deu por vencido. Apesar da postura cortês, não era o tipo de pessoa que gostava de receber ordens, mas tinha consciência que aquele era o jeito do senhorio e no mais, estava realmente cansado demais para argumentar.

Recolheu a toalha da mesa dobrando-a e guardando no lugar de destino, antes de acenar para Ikki e se dirigir a seu quarto, disse:

— Espero que tudo se resolva Ikki. Mesmo que seja tarde para recuperar o que você deseja, pode não ser tarde para o futuro.

Ikki parou de lavar a louça e fixou o olhar em Sorento que se retirava da cozinha. Suspirou ao perder o outro de visão e agradeceu o fato de Shun não estar em casa, afinal, se Sorento havia percebido que tinha algo errado, seu irmão o interrogaria com a presteza de um agente do governo até conseguir algo mais concreto do que as respostas vagas que dedicou ao inquilino. Por mais que amasse incondicionalmente o irmão agradecia por ele não estar ali, não conseguiria se esquivar e acabaria sendo grosseiro com Shun. Estava esgotado, não podia mais magoar ninguém. Mesmo assim, não acreditava na máxima de que ainda tinha tempo. Constatou naquela noite que isso não era verdade, que tinha deixado passar tempo demais, mas mesmo assim, apreciava a ideia de que poderia quem sabe ainda correr em busca de um futuro. Ou ao menos de esclarecer o que passou.

 

Sorento entrou em seu quarto e fechou a porta atrás de si. Por mais que fosse atraente se jogar na cama, tomou banho e escovou os dentes antes de se aconchegar entre os lençóis. Olhou o celular uma última vez antes de colocar para carregar e agradeceu mentalmente a Ikki pelo jantar. Agora sentia-se satisfeito de mais de uma forma. Pena que o senhorio mais velho talvez não se sentisse assim. Infelizmente, por mais que quisesse não conseguiria fixar o pensamento em mais nada, já que o corpo cobrava o descanso necessário.

Espero que ele fique bem… Eu poderia deixá-lo bem…

Recriminou o pensando antes de se deixar levar completamente pelo cansaço.

***

O caminho até a casa de Kanon estava sendo feito em silêncio. A visita acabou se estendendo até o início da madrugada. Por isso os gregos se despediram de seus parceiros rapidamente. Milo, já vinha no processo há bastante tempo, o tempo corria diferente quando estava na companhia de seu russo. O pensamento fez surgir um sorriso em seus lábios. Kanon pelo entorpecimento do orgasmo, do contato com Isaak. Algo metaforicamente muito áspero o incomodava sutilmente, não conseguia ainda identificar do que se tratava.

— Você parece preocupado, aconteceu algo? — perguntou Milo assim que estacionou na frente do prédio onde Kanon morava com Deusa.

— Milo, você também tem a impressão de que essa última semana foi praticamente uma vida? Quero dizer… Esquece, acho que estou cansado.

— Acho que foi uma semana intensa sim. Acabamos nem conversando, quer fazer algo amanhã? Jantar ou beber algo. Tenho que buscar uns livros que encomendei naquela livraria que fica perto do Parque Central, podia passar na sua casa depois, ou se quiser me encontrar lá e a gente vê o que faz.

— É uma boa ideia.

— Pensei em chegar lá por volta das 19h00. Pode ser para você?

— Com certeza, faz tempo que não passo lá, tem uma cafeteria boa. Combinado.

Kanon deixou o carro e Milo aguardou ele entrar no prédio para então seguir seu caminho.

 

Suas pernas pareciam pesar toneladas enquanto subia as escadas ligado no piloto automático.

Adentrou sua casa e logo Deusa estava lhe escalando as pernas. Sorriu vendo aqueles olhos amarelos intensos. Lembrou do dia em que a encontrou, magra, feia e fraca. Umas das melhores decisões de sua vida foi se unir aquele ser magistral. Atualmente ela resplandecia reinando com toda sua beleza, pelo brilhante e voz macia. Abraçou a felina e sentiu que ela lhe permitia esse carinho por alguns momentos e logo moveu seu corpinho indicando que desejava mais espaço pessoal. Colocou a gatinha sobre o sofá e rumou para seu quarto.

Abriu a varanda e se deitou na cama, apenas tirando seus tênis com um movimento do pé em cada calcanhar. Há muitos meses não sentia esse nó na garganta. Talvez desde Radamanthys, o cretino. Essa história não podia ainda hoje estar influenciando sua vida, ou podia?

Em pensar que quase colocou esse apartamento a venda, que acreditou estar construindo uma vida com aquele homem...

E então, sem aviso, ou talvez com alertas que ele preferiu ignorar, flagrou o namorado sério, ciumento e apaixonado em sua cama com uma mulher. Humilhante. Não teve energia nem ao menos para confrontá-los. De que adiantaria? Mas sentiu raiva, muita raiva. Por que o inglês fizera isso com ele, na sua casa?

Rumou para o apartamento do Loiro e apenas tirou de lá tudo que era seu. Teve impulso de quebrar tudo, mas não o fez. Quando estava de saída chega o sorridente traidor, cheio de carinhos. Era muita falsidade e dissimulação. Virou o rosto para o beijo. O outro ainda lhe endereçou um olhar genuinamente magoado, quer dizer, se ele não tivesse visto o que viu.

— Eu te disse que vinha para sua casa Rada, onde você estava?

Era verdade, finalizado todo o processo depois da defesa de sua tese, das reuniões com o departamento da Universidade ele havia planejado vir direto para o apartamento do namorado, no entanto, ter esquecido seus óculos de leitura em casa era o motivo de ter retornado, afinal não lia bem sem os óculos e o par que sempre trazia em sua bolsa havia desaparecido. A ironia, os óculos que pensara ter perdido estavam ali, no apartamento do traidor. Ao menos não precisaria fazer novos, pensou em um humor ácido. Já que os que foi buscar em casa por lá deixou.

— Precisei sair rapidamente meu Anjo, fui comprar um vinho para nosso jantar.

Ele mostrou a garrafa e o estômago de Kanon se contorceu. Radamanthys não parecia estar mentindo.

Quantas vezes deve ter sido enganado? Sentiu o suor frio em sua testa. Que pesadelo era esse? Neste ponto Radamanthys parece ter se dado conta de que algo não estava certo, notou também as coisas de Kanon metidas em uma sacola plástica de qualquer jeito.

— O que está acontecendo Kanon? Que coisas são essas?

Kanon se viu então empossado de uma frieza que não sabia possuir. E ele sorriu, arrumando a postura. Quando falou sua voz era um som impessoal e cortante.

— Preciso da chave do meu apartamento. Estas são minhas coisas, estou indo embora.

— Como assim? E você me conta isso assim como se fosse algo corriqueiro? — Disse o inglês surpreso e entregando as chaves que retirava do chaveiro de forma automática — Kanon! E quanto a nós dois?!

— Nós dois? Bom… — Olhou o outro de cima a baixo — Vejamos, desde que você passou a se comportar como uma vagabunda barata isso deixou de ter qualquer sentido, concorda?

— Mas… — Ele começou a retrucar mas parou, apenas entendeu que de alguma maneira o namorado sabia. — Eu posso explicar!

O grego sorriu vazio e fez menção de deixar o apartamento. Radamanthys entrou na sua frente.

— Não há necessidade de fazer drama meu Anjo, não significou nada, podemos resolver.

— Você tem três segundos para sair da minha frente Radamanthys. Depois disso você vai parar no hospital.

Radamanthys hesitou o encarando e então cedeu. Sem abaixar a cabeça ficou parado observando Kanon ir embora. Ele não parecia culpado e em nenhum momento pediu desculpas ou lhe deu qualquer explicação.

Kanon deixou aquele homem, aquela vida para trás e retornou para sua Cidade, para sua família e foi aí que encontrou Deusa.

A gata como se adivinhasse que seu humano pensava nela pulou na cama e passou a esfregar a cabeça no peito dele, antes de o observar por longos segundos como se o convidasse a retornar dessa viagem a um passado que merecia ser enterrado e então ela miou. Sua voz doce e longa, macia. Kanon sorriu fazendo carinho naquele ser que parecia o entender tão bem.

Pensava já ter superado aquela mágoa, tanto tempo depois será que Radamanthys ainda lhe fazia mal?

Nunca antes havia sido uma pessoa dada a inseguranças.

Isaak e Radamanthys não possuíam sequer uma característica em comum, não eram parecidos em nada. Mas sabia agora que a inconstância por vezes demonstrada por Isaak o afetava profundamente por isso, tinha medo de se machucar novamente.

Chapter 23: Isso vai deixar você se contorcendo

Chapter Text

Depois de meses, possivelmente de anos, essa era a primeira vez que Camus dormia tão pesado. Ele apenas apagou. Costumava ser tão regrado, o despertador sempre silencioso, quando dormia acordava antes que soasse o alarme, portanto passou em determinado momento a deixar de acionar o aviso sonoro.

Mas naquela manhã, correção, naquela tarde ele acordou atordoado e completamente sem noção de onde estava. Depois de alguns momentos reconheceu seu quarto. Foram necessários outros minutos para que as memórias da noite anterior retornassem, sentiu uma pontada na barriga. Uma dor nas entranhas. Ignorou. Foi ao banheiro, urinou e lavou as mãos e o rosto. Bebeu água da pia do banheiro.

Deixou o cômodo e procurou seu celular o encontrando no balcão da cozinha.

Selecionou seu navegador de internet e buscou entre as abas abertas aquela destinada ao e-mail institucional. Enviou uma mensagem formal comunicando que estaria se ausentando do trabalho naquela sexta e na próxima segunda. Tinha muitas horas extras e férias vencidas. Já havia entregado no dia anterior todo trabalho pendente em que estava envolvido e nenhuma urgência em vista. Sabia que o fato de jamais ter faltado talvez fosse motivo de espanto por parte dos colegas de trabalho, por outro lado era também um forte argumento para que considerassem que sua ausência era justificada por algum motivo válido.

Melhor assim, não desejava expor sua situação de ter o coração partido no clichê de “eu me apaixonei pelo meu melhor amigo e decidi me declarar às vésperas de seu casamento!” exposto para toda Sirene.

Realmente não era algo que estivesse disposto a fazer. Detestava se expor, não suportaria ser objeto de tantas atenções. E as pessoas adoram uma boa fofoca romântica. Especialmente com final desastroso.

Enviou uma mensagem para o terapeuta, tinha consulta na segunda-feira, mas havia recebido a recomendação de pedir ajuda se precisasse. Camus não tinha certeza de como proceder para pedir ajuda, mas o momento era esse. A ironia de precisar conversar por ter falado demais quase lhe arrancou uma risada áspera e sem dentes.

Olhou em volta. Não arrumaria nada, nem ao menos queria se aproximar daqueles pratos e taças. Pela primeira vez lamentou a cor das paredes, detestou a decoração de sua casa.

Voltou ao banheiro, precisava de um longo banho. Precisava se alimentar e precisava descarregar toda aquela frustração em algum saco de areia. Resolveria a primeira pendência imediatamente e as outras na rua, posteriormente.

***

Foi difícil encontrar uma vaga por isso Milo teve que rodar um tempo. Estava tranquilo naquele fim de tarde. Conseguiu adiantar algumas coisas de trabalho e também se dedicou a revisar um texto de sua autoria que já estava parado há algum tempo, novas ideias tomando forma.

Caminhava rápido rumo a livraria quando reconheceu a figura do homem que amou apaixonadamente por um bom tempo de sua vida.

Não pode evitar o frio na barriga ou o leve estremecimento em suas pernas. Ele era devastadoramente lindo, sem sombra de dúvidas.

Mas, vinha caminhando de forma diferente, parecia abatido e quase cabisbaixo.

Ele estava do outro lado da rua e não perto o bastante para ver Milo, mas aquela cor de cabelo sempre lhe chamou a atenção. Olhou para os lados, a travessia de pedestres aberta, num impulso foi abordá-lo.

— Camus! Oi, como vai?

O ruivo não disfarçou sua surpresa e afastou os fones de ouvido, os cabelos presos no tradicional coque samurai e as mãos no bolso canguru do casaco leve que vestia. Como sempre de preto, elegante, a bolsa da academia sobre um dos ombros.

Seu sorriso foi genuíno. Um sorriso que Milo quase havia esquecido ser tão avassalador. Então o grego também sorriu, um ligeiro constrangimento entre eles na dúvida em como se cumprimentar.

Milo optou pelo abraço que foi recebido e retribuído com o máximo de calor que Camus conseguia imprimir ali sem desmoronar.

A vida realmente estava tirando lindamente sarro com a sua cara, afinal encontrar seu ex magnífico no seu pior dia na face da Terra superava qualquer ironia que pudesse imaginar.

Aquele abraço foi o sal e o bálsamo em suas feridas.

O corpo que conhecia a fundo, o perfume masculino e cheio de frescor. Milo não era somente um relance da perfeição.

Aquele homem era algo maior, e na terapia muito havia compreendido de sua relação tantas vezes ambígua com aquela pessoa.

— Milo… Que surpresa! Você está ótimo.

— Quanto tempo! Eu tinha esquecido que você treina por aqui. Obrigado. Você me parece cansado, tudo bem?

A análise daqueles olhos não era mais interpretada como invasiva, mas seguia desconcertante. Apesar de não ter dado certo, devia muito a Milo, especialmente desculpas.

— Estou cansado sim. Mas terei o fim de semana todo para me recuperar. E você, o que me conta?

— Estou bem. Trabalhando… Aiolos vai casar em breve, lembra? E é isso. Estava chegando na livraria para pegar uma encomenda quando te vi.

O olhar de Camus foi atraído para a livraria indicada pelo grego e ele pensou que seria agradável tomar um café e quem sabe conversar com Sorento, a pessoa mais próxima de um amigo em sua vida no momento. Só não tinha certeza se o rapaz estaria por lá, não havia ainda compreendido a lógica dos horários daquele personagem atarefado.

— Você está com pressa? Podemos tomar um café — Conferiu no relógio que eram 18h25 — Topa?

— Não vai te atrapalhar Milo?

— Que pergunta é essa?! Eu sei que tinha dito que era melhor a gente ficar um tempo sem se falar, mas já passou tempo suficiente. Podemos ser amigos, não? Vamos lá.

Camus sorriu somente concordando com a cabeça e lhe endereçou um olhar grato e quase caloroso, Milo percebeu em um misto de assombro e curiosidade que o ruivo estava abrindo muitos de seus sorrisos sinceros.

Alguma coisa parecia diferente no francês.

Talvez a culpa fosse do cansaço que ele admitiu sentir, ou o tempo que passaram afastados tenha nublado sua percepção. Tanta coisa aconteceu em sua vida, teria ele mudado tanto assim? Não seria mais capaz de ver o verdadeiro Camus?

Impossível!

Navegou tantos anos no oceano que era aquele ruivo que seria impraticável que tivesse esquecido como ler sua carta naútica.

Entraram na livraria e observou o ruivo escanear o local como se procurasse alguém, conteve a vontade de virar os olhos e rir, parece que algumas coisas não mudavam. Sentiu tremendo alívio com a constatação empírica do que já sabia: não possuía mais nenhum ciúme ou insegurança.

Reparando bem em Camus constatou que até aquele ato parecia estar carregado de um intenção diferenciada. O melhor era não se deter nos pormenores, por mais que não tivessem terminado o relacionamento de forma vexatória e que inclusive se sentisse à vontade para convidar o ex para um café, não achava prudente dedicar maior atenção a todas as atitudes de Camus. Não só pelo perigo que aquele homem representaria por sua beleza, mas especialmente por que não conseguia fixar muito tempo os olhos em ninguém que não fosse seu russo.

Milo apontou para o mezanino, subiram as escadas e escolheram uma mesa que dava visão para a porta, ele informou que estava esperando o primo.

— Quer dizer que Aiolos vai mesmo casar? — Camus perguntou observando Milo fazer um discreto sinal chamando uma das garçonetes.

— Vai sim, daqui a algumas semanas. Finalmente a Seika parou de enrolar ele. — Milo riu.

Camus acompanhou o riso, fitaram-se por alguns minutos até a chegada da garçonete. Fizeram os pedidos e Milo olhou brevemente a celular dando um largo sorriso.

— Fico sinceramente feliz que esteja bem Milo. De verdade.

— A recíproca é verdadeira. — Observou o olhar abatido do Francês. — As coisas estão muito puxadas lá na Sirene? Ou você que está treinando muito na academia?

— Não, não estão. E não treino tanto quanto poderia, mas não se preocupe comigo. Já disse que vou descansar tudo que preciso no fim de semana.

— Acho uma ótima ideia. Como vai o Shaka?

Por mais que tentasse evitar, o rosto de Camus refletiu todo o pesar que a menção ao nome do indiano trazia a tona. Olhou estrategicamente para a parte de baixo da livraria com o intuito de reconstruir a máscara impassível que ostentou por tantos anos, contudo, ao que tudo indicava depois que se optava por não mais ser um personagem, era necessário mais tempo que o habitual para retornar à cena.

Milo franziu o cenho acompanhando as expressões de Camus e uma ideia quase marota que sempre existiu, mas que permaneceu muito bem resguardada tomou forma em sua mente. Não podia dizer que a suposição lhe causava desconforto, mas não fez grande esforço em continuar a pauta Shaka Parsons.

Desconversou abordando algum aspecto genérico de seu trabalho que lembrava ser do interesse do ruivo. A conversa corria da melhor forma possível e Milo tinha a sensação que Camus precisava dizer algo, mas refreou-se a todo instante.

O reencontro depois do rompimento acabou por ser muito mais amigável do que qualquer um dos dois imaginou.

Quer dizer, ao menos o reencontro que Milo teve conhecimento, já que no anterior quase desastroso esbarrão de ambos Camus por pouco não necessitou de atendimento médico e tranquilizantes. Felizmente conseguiu contornar a situação.

Entretanto, foi aquele o marco inicial de um processo que já ameaçava se deflagrar no ruivo. Ele tentava encontrar uma brecha na conversa e coragem para abordar o assunto com Milo quando foi interrompido por um iluminado sorriso do grego que se ergueu contente.

Camus involuntariamente se voltou para a direção de quem chamava a atenção de Milo e sentiu o chão sumir sob seus pés por alguns segundos, teria caído se não estivesse sentado, nitidamente confuso reconheceu a figura do escultural loiro alto entrando na livraria…

Kanon acenou para o primo assim que entrou na loja e parou para ver um livro que estava em destaque se demorou poucos segundos apreciando o volume e ergueu rapidamente a cabeça focando seu olhar no sorridente Milo que dividia uma mesa com…

Mas era só o que faltava! — pensou Kanon ao identificar o acompanhante. — Era isso mesmo? Estava sem os óculos, chegaria mais perto antes de tirar conclusões.

Camus engoliu em seco e teve certeza que havia perdido a capacidade de respirar e que sim, sua vida só podia estar sendo narrada por alguma mente insana. Bebeu em um único gole o copo de água que acompanhava o café e respirou fundo ao ver o rosto sério e inquisidor de Saga ao subir as escadas.

O sorriso de Kanon morreu nos lábios assim que percebeu que sua mente não estava lhe pregando uma peça e o ruivo psicopata estava mesmo sentado lá junto com Milo.

Ao mesmo tempo em que sentia seu estômago se revirar, tentava manter sua atitude habitual, afinal não queria ainda, ou sequer sabia se iria querer em algum momento, explicar a Milo que sabia de uma traição de seu ex e que vejam só, tinha sido com seu gêmeo.

Milo acompanhou mais uma vez curioso o fluxo das reações e não pôde deixar de pensar se os dois se conheciam de algum lugar. Pouco provável, não tinha tanto tempo assim que Kanon havia voltado da Inglaterra.

— Kanon… — Milo levantou e deu um abraço no primo — Esse é o Camus. Camus esse é o Kanon, meu primo.

— Primo? — Camus falou baixo quase boquiaberto sentindo o peso do olhar do grego.

— Urhum… Ele, você não conheceu, estava morando fora do país e o Saga… Bom… Nunca sei do Saga. Quem sabe dele é o Kardia mesmo. — Deu de ombros.

Camus sentiu-se lançado em uma espiral de desespero que fez com que segurasse a cadeira com uma das mãos. Possuía plena consciência do espetáculo sórdido que protagonizou há apenas uma semana, parecia muito mais naquele momento, mesmo antes da terapia, jamais teria transado com um parente de Milo, jamais. Estava desconcertado.

Kanon forçou um sorriso e apertou as mãos de Camus sentindo a pele gelada do outro. Ao que parece o ruivo não era completamente inescrupuloso, pois da maneira mais simplória possível tinha acabado de descobrir que havia passado a noite com um dos primos do ex, e pela cara que ele estava fazendo, a palidez cadavérica e os olhos que mal piscava a ideia não soava agradável.

— Kanon você vai comer o que? — Milo falou sentando-se novamente.

— Estou sem fome Milo. Será que podemos pedir alguma coisa mais tarde?

— Lógico, sem problemas. Você quer ir agora?

Kanon pensou em responder mas o ruivo foi mais rápido e ele acabou por apenas concordar com a cabeça.

— Eu tenho que ir Milo... Tenho um compromisso.

— Tudo bem então, vamos descer que eu ainda preciso pegar meus livros.

Camus insistiu para pagar a conta e os três desceram as escadas em silêncio. Milo identificou um rapaz de colete e foi em sua direção, trocaram algumas palavras e o grego seguiu o livreiro.

— Eu já volto, vai ser rápido. Espera só um pouco Camus, quero te dar um abraço antes de você ir.

Assim que ele se afastou Camus sentiu o peso do olhar de Kanon sobre si. Respirou fundo e encarou o homem. Estava mais controlado, mas em seu íntimo todo peso dos últimos acontecimentos cobrava uma conta alta.

— Era você no Imperador. — Camus afirmou.

— E era você com o meu irmão. — Kanon rebateu.

Camus apertou a junção entre os olhos, o peso do mundo parecia ter caído sobre seus ombros. Não aguentava mais. Tudo era mais fácil quando simplesmente fingia não se importar.

— Eu…

— Precisamos falar sobre o Saga. — Kanon olhou na direção em que Milo havia seguido o livreiro pegando o telefone celular do bolso em seguida. — Droga.… A bateria está fraca demais. Vai acabar antes de você falar o número.

Mesmo que não fizesse questão alguma de ter aquela conversa, sabia que ela era essencial, parte de seu processo de catarse. Passou a mão pelos bolsos e acabou tirando um papel amassado. Não sabia o que aquilo fazia ali, mas não importava, daria para o gasto. Olhou para um dos livreiros e pediu emprestado a caneta, anotou seu número no papel e entregou a Kanon.

— Pronto! E qual o seu?

— É…

— Já estou com meus livros. Camus não vou te alugar mais. Ainda preciso fazer o pagamento e já te atrasei demais. — Milo abraçou o ruivo.

Camus ignorou a vontade que sentiu de chorar.

Obviamente era conhecedor de sua traição, no entanto, saber que um dos parentes de Milo tinha sido capturado por uma de suas caçadas dava um peso dramático muito maior as suas atitudes. Coroando tudo isso não tinha nenhum lugar para estar, ninguém. E ainda teria que lidar com um gigante raivoso.

Havia se tornado realmente em uma versão patética de si mesmo.

— Fique bem, gostei de te encontrar. — Milo sorriu separando o abraço.

— Você também Milo. Obrigado, igualmente.

— Seu número continua o mesmo?

— Sim… E o seu?

— Também. Vou te ligar qualquer dia, assim tomamos outro café e eu vejo se você descansou de verdade. — Riu.

— Então eu vou te ligar também. — Camus falou inseguro. — Gostaria de conversar com você em outra ocasião.

— Pois fique a vontade para ligar quando quiser.

— Farei isso. Kanon… — Camus estendeu as mãos, envolvendo a mão estendida pelo primo de Milo rapidamente. — Prazer em conhecê-lo. Até breve Milo.

Ambos acompanharam a saída do ruivo. Milo virou-se para Kanon que tentava manter sua expressão o mais normal possível, sua sorte era que nas últimas vezes em que esteve com Milo sempre era acometido por sensações inquietantes, provavelmente ele aceitaria qualquer estranheza de sua parte.

— Vou fazer o pagamento e podemos ir.

— Ex namorado? — Kanon questionou mesmo que já soubesse a resposta.

— É sim… Ele parece bem… Bem diferente — Milo desviou a atenção de Kanon para cumprimentar a atendente do caixa que estava passando seus livros.

Kanon sorriu de leve ao ouvir Milo falando com a moça e olhou discretamente o papel que ainda mantinha em mãos. Apertou os lábios olhando os dois lados do papel e vendo que existiam nomes e números diferentes, cada um de um lado. Um dos nomes não lhe era estranho. Dobrou e guardou o papel no bolso traseiro de sua calça.

Balançou a cabeça espantando a ideia, seria coincidência demais para ser verdade.

***

Apertou a parte traseira da lapiseira fazendo com que mais grafite saísse na ponta do objeto, ajeitou os arredondados óculos de leitura e fez uma marcação no relatório que estava em suas mãos.

Acabara de voltar do estoque e andava pelos corredores da empresa, prancheta em mãos indicando no documento a quantidade correta dos insumos. Em meio a seu trajeto, passou pela sala do companheiro de trabalho, observou o nome da porta de vidro e inconscientemente empinou o nariz antes de se afastar do local.

Terminou as indicações do relatório antes mesmo de chegar a sua sala. Entrou no local, sentou em sua mesa e abriu o e-mail corporativo lendo a mensagem que Camus tinha enviado.

Discreto, profissional! Sorriu minimamente fechando o e-mail e terminando de digitar as últimas diretrizes de seu trabalho. Ao terminar olhou o relógio do computador e finalmente suspirou.

A capacidade de empreender diversas tarefas ao mesmo tempo, assim como a de manter múltiplos pensamentos tinham suas vantagens e desvantagens, e neste momento não sabia precisar em qual dos extremos estava. O trabalho não havia ocupado mais do que o costumeiro de seu raciocínio, agora existiam duas novas variantes que travavam uma luta, com a clara intenção de enlouquecê-lo.

Infelizmente, o esforço seria em vão.

Depois da noite passada tinha conseguido retomar seu rumo, tinha clara noção do peso de suas ações no desenrolar da história, e acima de tudo, sabia o autocontrole que precisou empreender em si mesmo para não voltar ao apartamento de Camus.

Sendo sincero, passou a noite remoendo o que havia acontecido e sua insensatez. Ainda não entendia como pôde se deixar levar daquela forma. Talvez a culpa fosse do clima caseiro e de intimidade. Ou esse fosse apenas o menor dos motivos, tinha certeza disso. O que não sabia definir, mesmo depois de sua noite insone era o momento em que tinha deixado sua guarda aberta de tal forma, que o ruivo tinha conseguido adentrar tão facilmente.

Durante todos esses anos esteve ao lado dele, quase que zelando para que ele voltasse a ser a pessoa decente e amigável que havia conhecido. Em meio a essa longa jornada, tomou consciência de que nutria mais sentimentos pelo francês do que estava disposto a admitir e mesmo assim manteve-se dentro da segurança de seus muros.

A notícia de que Camus estava fazendo terapia o agradava de sobremaneira, contudo, não era o bastante para fazer com que ignorasse seus planos e pretensões.

Tinha se deixado levar uma vez, não aconteceria de novo.

Pegou o celular e confirmou a mensagem da empresa de mudança e em seguida respondeu Shura sobre o tal chá de casa que ele iria hoje.

Nada havia efetivamente mudado.

Não iria alterar seus planos mediante uma noite de vinho com Gaetan. Esse não era ele, divergia de seu modus operandi.

Estava comprometido com Shura, com aquela relação e por hora, nada seria capaz de mudar isso.

Mantinha suas convicções, por mais que sentisse em seus ossos, que sua mente sempre desperta trabalharia cada vez mais. Havia sempre a necessidade de se convencer e corroborar suas ações, mas acima de tudo, estava seu senso prático e nesse momento ele lhe dizia que manter seu plano era o mais acertado. E assim faria.

Conferiu mais uma vez o e-mail corporativo antes de desligar o computador e juntar suas coisas. Já havia passado algumas horas do seu horário e ainda precisava organizar pequenos detalhes da mudança.

Sentia a necessidade de chegar logo em sua casa, seu refúgio, ficar novamente sozinho com seus pensamentos e arrumar a bagunça que se instaurava dentro de si. Esse fluxo de pensando o fez perceber que em breve não estaria mais só, e que essa seria a última noite em seu apartamento. Lembrou dos questionamentos de Camus e torceu o nariz.

Manteria seu apartamento pois gostava de sua individualidade e não havia problema algum nisso, não estava tentando se afastar de Shura e muito menos entrando em um jogo perdido.

Finalmente conseguiu lembrar dos olhos verdes do espanhol, já que aparentemente por algumas horas viveu em um mundo no qual apenas castanho e vermelho coexistiam. Até organizar aquele universo caótico que se tornou sua mente desde a noite anterior precisava de algo em que se apegar.

Então apenas soube! Era uma boa estratégia, focar-se em Shura.

Chapter 24: Como seu batimento cardíaco

Chapter Text

Kanon convenceu Milo a voltarem para sua casa e pedir algo para comer lá mesmo, seu celular estava descarregado e uma dor de cabeça insistente o incomodava. Se Milo estranhou preferiu não comentar.

Buscaram o carro de Milo e chegaram rapidamente na casa de Kanon, Milo gostava bastante de ir lá pois sempre ficava agarrado na gatinha. E ficar num ambiente caseiro e tranquilo talvez fosse o melhor para conversarem sem distrações.

Enquanto o dono da casa foi buscar seu carregador Milo aproveitou para abraçar a gatinha Deusa, que aparentemente era apaixonada por ele e nunca o arranhava, permanecendo em seu colo sempre deliciada.

Kanon conectou o celular e voltando a sala pegou em uma gaveta alguns cardápios de delivery sorrindo enquanto observava a desfaçatez de Deusa de barriga para cima e lambendo os dedos de Milo que lhe coçava o queixo delicadamente. O primo já estava confortavelmente acomodado no sofá.

— Pensei em chinesa, que você acha? — Perguntou mostrando as opções. Milo concordou de pronto e passaram a escolher o que pediriam.

— Essa safada gosta mais de você do que de mim, ingrata, esqueceu quem te acolheu e cuidou, hein?

Kanon falou dirigindo-se a gata que lhe virou a cabecinha por alguns segundos antes de bocejar. Entediada com sua conversa. Eles riram.

Kanon fez o pedido telefonando do seu telefone fixo assim que Milo decidiu o que comeria e ofereceu cerveja ao visitante que aceitou, mas ficaria só na primeira, já que estava dirigindo.

Ele imaginou que se Hyoga entrasse em contato, Milo correria ao seu encontro.

O mais novo sempre foi impulsivo e passional, daquela vez, entretanto, parecia completamente tranquilo e resoluto.

— Então, as coisas com Hyoga estão dando certo?

Milo não pode evitar um ligeiro rubor em suas faces quando um sorriso doce despontou em sua boca.

— Ele é muito especial Kanon… A gente se entende bem demais. Eu sei que é pouco tempo, não pense que estou alheio a isso, mas, Hyoga é diferente, ele não se esconde, demonstra o que sente e temos muitas afinidades.

Kanon observou com afeto Milo falando de forma muito carinhosa sobre o rapaz que tinha acabado de conhecer. Intimamente não conseguia se impedir de comparar essa imagem que Milo dividia com ele de Hyoga, com a que tinha para si de Isaak.

— Quantos anos ele tem? — Ouviu-se perguntando, outra vez mais tendencioso a sua própria situação que a do primo

— Tem 21, no começo do ano que vem faz 22…

Por mais que estivesse certo de que valia a pena apostar nessa semente de relacionamento Milo se importava sim com a opinião de pouquíssimas pessoas, Kanon estava entre elas.

O mais velho refletiu que era engraçado que Hyoga fosse ainda um ano mais velho que Isaak. Realmente precisava aceitar o quão peculiar era sua ligação com o garçom.

— Não é tanta diferença assim… Ele parece muito maduro e responsável. Fui com a cara dele, Isaak o adora e vocês se encantaram de pronto um com o outro.

Milo ampliou seu sorriso aliviado por Kanon não tecer nenhuma crítica ou comentário negativo. Não que houvessem motivos para tanto, de qualquer forma no entanto, não desconsiderava que conhecia o rapaz há apenas uma semana.

— Ele é muito lindo! Não chega a ser de 4 anos a diferença. Ele ainda está na faculdade, mas trabalha e se vira. Os dois dividem as contas. Você sabe…

Não, Kanon não sabia. Isaak não lhe contava muito sobre sua vida além de interesses musicais e por livros eventualmente... Em todas as vezes em que se encontravam acabavam sem roupas se consumindo loucamente. Mesmo nessa tarde, onde pretensamente se encontraria com o rapaz para conversar, ele telefonou e Isaak não havia atendido, ou retornado a ligação.

Aparentemente, ao contrário de Isaak que se comportava como um bicho solto, Hyoga era uma pessoa mais centrada e se mostrava disposto a um envolvimento que somente algum louco se negaria.

Durante o tempo em que o primo contava sobre as incontáveis afinidades que dividia com o jovem russo, Kanon se pegou o observando.

Sempre soube que Milo era bonito, os últimos anos haviam ampliado e definido sua beleza consideravelmente. Os traços de menino ainda apareciam em alguns lampejos, mas havia se tornado homem. Ele estava cada dia mais parecido com Kardia, mas sem qualquer traço daquele olhar malicioso e quase cruel do irmão mais velho. Era decididamente uma presença vibrante, não conseguia entender como o ruivo psicopata, Camus, pudesse ter se interessado por outra pessoa tendo aquele homem ao seu alcance.

Claro, era de seu conhecimento que Saga sabia ser sedutor e bem, ele tinha espelho em casa, reconhecia que o irmão tinha seus atributos físicos muito bem proporcionados em uma aparência agradável e atraente.

Foram interrompidos pelo interfone tocando e o morador daquela casa atendeu e pediu que Milo aguardasse enquanto descia para buscar a comida. Milo fez menção de buscar sua carteira e foi sumariamente ignorado por Kanon que ainda lhe lançou um olhar de repreensão.

Enquanto Kanon foi buscar a encomenda, Milo aproveitou para checar seu celular por alguma mensagem de Hyoga e sorriu ao constatar que sim, o Russo tinha lhe escrito. Apenas para desejar que aproveitasse sua noite e lhe mandando beijos.

Kanon voltou com a comida e se deparou com Milo sorrindo apaixonado para a tela do celular. Ficou claro para ele que o primo definitivamente estava envolvido.

Profundamente envolvido.

 

***

 

Camus andou às cegas, tomando o caminho de sua casa de forma automática. Ele tinha passado a tarde toda na academia, cansando seu corpo em um treino puxado e depois de um banho caminhava tentando organizar seu raciocínio. Seu terapeuta poderia atendê-lo emergencialmente na manhã seguinte e estava muito inquieto para permanecer em casa.

Então em uma cartada completamente inesperada havia sido abordado por Milo. Se assustou no primeiro momento, mas o contato havia lhe causado um conforto também impensável, era paradoxal a culpa que vinha crescendo em seu peito.

Mas, claro que a vida queria o ver de joelhos no chão e por fim entendeu o tamanho do buraco que estava prestes a ser empurrado. Finalmente entendeu o motivo pelo qual o pseudo Saga havia feito tantos “joguinhos” um irmão gêmeo idêntico, dá para ser menos clichê?

Menos óbvio, menos… Ridículo.

Sim, se algo mais de irônico puder acontecer ele tem certeza que assim será, a sua vida se tornou um sem número de provas da infalibilidade da Lei de Murphy.

O que mais lhe doía, apesar de toda a humilhação que sabia que estava prestes a experimentar, era a perspectiva da opinião que Shaka teria quando e se soubesse de todo esse enredo de filme de comédia pastelão que era a sua vida real.

 

***

 

Havia sido um turno puxado. Além do período de atendimento telefônico ao suporte do consumidor, Hyoga também havia participado de uma palestra motivacional mandatória proporcionada pelo RH da empresa onde trabalhava. Era sempre desgastante ouvir aquele entusiasmo de quem não vivia o dia a dia de qualquer atividade profissional.

Estava cansado, faminto e planejando dormir o máximo possível. Se despediu educadamente dos colegas de trabalho e deixou o prédio apressado buscando pelo cartão de pagamento do ônibus na mochila, instintivamente brecou antes de se chocar contra outra pessoa. Ergueu os olhos pedindo desculpas e as palavras desapareceram.

— Hyoga, podemos conversar?

A sua frente a última pessoa que esperava encontrar. Ele havia procurado aquele homem por duas vezes e em ambas foi dispensado categoricamente. E um bom tempo se passou sem qualquer retorno e agora estava na sua frente ele, exalando arrogância e masculinidade, ainda mais bonito do que se lembrava.

— Ikki. — Felizmente sua voz era fria, destituída de emoção — Acho que já passamos dessa fase, não?

Foi pego de surpresa com aquele homem o procurando. Justo agora? Mas só podia ser alguma piada de mau gosto!

— Sim, errei feio com você e gostaria de pedir desculpas, podemos conversar, por favor?

Por essa ele não esperava. Ikki o procurar era surpreendente, mas aquele homem pedir desculpas e assumir um erro! Era impensável.

— Ikki, eu estou cansado e morrendo de fome…

— Posso te levar em casa. Ou podemos sentar em algum lugar antes e comer algo, quero… Preciso conversar com você.

Hyoga arqueou uma sobrancelha e antes que pudesse se negar novamente o outro o interrompeu:

— Olha, eu sei que a vida seguiu, por favor me escute, é o que peço, só dessa vez. Não cometa o mesmo erro que eu. O tempo de comer algo, pode ser? Você está mesmo com fome. Pizza? Eu sei que você gosta.

— Pizza. Não recuso pizza.

Hyoga estava ainda na defensiva, mas não via maneira de ser mais enfático sem criar uma cena naquele momento e no fundo, bem no fundo, estava curioso para saber o que Ikki poderia querer lhe falar.

Ikki vibrou quando notou que ele cedeu. Quase sorriu. Não se sentia em nada humilhado por ter procurado Hyoga, só de ter ele ali ao alcance de suas mãos a vida já parecia revestida de mais cor. Sentia em seu íntimo que estava completa e irrevogavelmente perdido. Ao menos a título de redenção, para honrar o homem que acreditava ser, os esclarecimentos seriam prestados.

— Tem algum lugar que você prefira?

— Tem aquela pizzaria lá per… — Hyoga se interrompeu, a pizzaria perto da sua casa, eles já haviam jantado lá uma vez. A enxurrada de memórias parece ter pego a ambos desprevenidos. Foi uma noite intensa, somente eles. Parecia outra vida…

— Vamos lá — pigarreou Ikki, tentando restabelecer o tom de voz — Meu carro está parado um quarteirão a frente.

Caminharam em silêncio e durante todo o trajeto Hyoga sentia um aperto no peito. Como se não fosse certo estar ali ao lado daquele homem. Ikki, por sua vez, tinha que se controlar para desviar os olhos do russo, lamentava profundamente ter sido tão imaturo e covarde.

Ele dirigiu sem precisar de orientação, conhecia aquele caminho. Chegaram rápido e logo estavam acomodados em uma mesa nos fundos do estabelecimento. Haviam muitas mesas cheias, mas a maioria delas no salão principal. Famílias e grupos de amigos riam e comiam falando alto.

Uma garçonete sorridente os atendeu:

— Boa noite rapazes, já sabem o que querem ou preferem olhar o cardápio?

— Marguerita? — Ikki perguntou se lembrando do sabor escolhido por Hyoga anteriormente. Hyoga por sua vez limitou-se a concordar com a cabeça. - Quero água com gás e você?

— Pode ser...

— Certinho, obrigada rapazes, já retorno com as bebidas. Com licença.

Eles permaneceram em silêncio se estudando. Hyoga não estava com paciência para disfarçar sua curiosidade e muito menos para ostentar um olhar de frieza. Já haviam jogado esse jogo antes. Ikki parecia estar se preparando para falar algo, quando estava prestes a vocalizar a garçonete retornou colocando a frente deles duas garrafinhas de vidro de água com gás além de dois copos e um potinho com gelo. Sorriu e se afastou novamente.

O Russo não estava disposto a facilitar. Ikki permanecia aquele homem lindo de beleza intrigante, mestiço de japonês com o fogo do inferno, certa vez se lembrava de ter dito. Não deixava de ser verdade. Os olhos escuros, que pareciam ser o pano de fundo de um abismo abissal estavam baixos e logo se fixaram nele.

— Como vai o Isaak?

— Na mesma… E o Shun?

— Bem, muito bem… Dedicado a faculdade, firme com a June… O inquilino continua na casa e ajuda bastante nas contas e na organização, Shun se sente mais tranquilo e seguro e eles se dão bem.

Hyoga concordou em silêncio, a garçonete retornou com a pizza, acompanhada de outro garçom que colocou os pratos e talheres na mesa. Eles agradeceram e passaram a desfrutar a refeição. O Russo devorou dois pedaços muito rápido. Ikki comeu um, bebeu água lentamente organizando as palavras antes de falar. Respirou com calma. A beleza e a presença do loiro sempre o atingindo, apenas não quis esconder nesse momento.

— Me desculpe Hyoga. Eu tive medo. Você tinha razão. Eu fugi e me escondi como um covarde. Nunca foi só sexo.

Então era isso. Todas as palavras que desejou escutar por meses. Estavam finalmente colocadas à sua disposição. Pegou o copo e bebeu em um gole só.

— Por que está me dizendo isso Ikki? Por que agora?

— Eu não tenho nenhuma desculpa, ainda que te peça desculpas… Droga Hyoga, eu sei que fui um idiota, estava confuso, eu me arrependo… Sei que te perdi.

Ikki falou num fio de voz, tão diferente de seu tom habitual que Hyoga teve dificuldade em processar aquelas informações. Olhava sem ver o homem à sua frente. Alguns minutos passaram. A garçonete retornou. Ikki pediu a conta e para que fosse embrulhada a pizza restante para levarem.

Hyoga manteve o olhar baixo, não protestou quando Ikki cuidou da conta sozinho. A frustração e a ironia dançavam em sua garganta. Seguiu ao lado de Ikki até o carro e só quando ouviu o alarme do carro ser destravado pareceu dar-se conta de onde e com quem estava. Coçou vigorosamente a nuca tentando se livrar do incômodo. Ikki colocou a sacola com o que sobrou da pizza sobre o carro e se aproximou. Em seu rosto genuína preocupação.

— Hyoga, entra no carro.

Usou um tom que impedia reprimendas. O russo assim fez, não confiava em suas pernas naquele momento. Ser pego de surpresa era algo que normalmente o desconcertava, mas aquilo que vivia, não era ser surpreendido, era um castigo, torturante ironia. Prendeu o cinto, Ikki colocou a sacola no seu colo e dirigiu até sua casa. Estacionou na frente do prédio antigo e Hyoga observou os tijolinhos vermelhos com curiosidade. Voltando o rosto para o outro somente quando ouviu sua voz grave novamente e perto, perto demais.

— Hyoga, toda a situação com Pandora foi confusa, sei que para você também. Ela me disse que vocês tinham um relacionamento muito conturbado, resolvendo tudo na cama, contou… Contou algumas coisas. Aquilo que aconteceu entre a gente, eu nunca… Você sabe que eu me assustei.

— Eu também nunca tinha sequer pensado em encostar em outro homem, Ikki. Para mim aquilo não foi… Áhn Ikki, você não sabe como me senti. Quantas vezes depois a gente se encontrou? Quantas vezes você estava na minha cama e se encontrando também com ela? Como acha que foi para mim terminar com Pandora e ouvir dela que era melhor assim já que ela tinha começado um relacionamento com você? E quando tentei conversar contigo, você me disse que a partir daquele momento seriam só vocês dois, que a farra comigo tinha acabado e para que eu não me aproximasse mais de vocês. Farra! Eu me descobrindo e apaixonado e para você foi apenas putaria… Sexo.

— Eu escolhi as piores palavras. Não foi assim. Você sabe. Hyoga, você esteve dentro de mim de todas as formas, você sabe… Você tem que saber.

— Não Ikki, eu achava que sabia! Mas, suas palavras soterraram minhas certezas. Sua ausência e indiferença mataram aquele sentimento. Não posso fazer mais nada sobre isso. Eu fiquei muito magoado Ikki. Você fez parecer que o que tivemos foi sujo! E isso para mim foi o pior.

Ikki se calou, o olhar aflito cravado nos olhos claros de Hyoga que segurava com força sua mochila, ele havia colocado a sacola no painel do carro. Os lábios do russo tremiam levemente, suas faces estavam agora coradas. Ele deixou seu olhar vagar por aquela face reconhecendo em Ikki a força e a beleza que o arrebataram e também o conflito que tanto tinha lhe machucado.

— Eu quero tanto te beijar… Por favor, me dá uma chance?

O coração de Hyoga disparou. Aquelas palavras foram seguidas pelo movimento de Ikki se aproximando e então Hyoga se lembrou dele, de Milo, o homem com quem estava aprendendo a se entregar de verdade, a se dedicar a uma relação sem jogos e sem meias verdades. Assim, ele se encheu de certezas e afastou o outro com firmeza, ainda que gentil, empurrando seu peito forte para longe.

— Não vai acontecer. Acabou Ikki.

O japonês congelou e baixou os olhos murmurando um “sinto muito” muito dolorido.

— Não te desejo nenhum mal. De verdade foi muito valioso para mim, apesar de tudo. Espero que você se encontre também, eu não estou mais perdido. Preciso ir, obrigada pela pizza e pela conversa. Você tinha razão nisso, era importante a gente conversar e eu jamais teria essa iniciativa…

Num impulso abraçou o moreno com força. Os dois de olhos fechados, o calor indiscutível do quanto combinavam, do encaixe natural, sentindo a ausência do que poderia ter sido.

Um angustiado e o outro aliviado.

Aquele contato perdurou por alguns minutos e Hyoga sussurrou um "Obrigado" triste, teve a impressão de que Ikki derramou algumas lágrimas, mas não quis constrangê-lo para confirmar isso. Ele também sentia algo muito profundo, mas nisso a tristeza era apenas uma pincelada.

A liberdade que aquele ponto final trazia era doce: tinha sorriso fácil, a voz mais deliciosa que já tinha escutado e olhos oceânicos.

Ele ficaria bem e desejava o mesmo ao outro rapaz. Se despediu e deixou o carro.

Ikki permaneceu impassível, esperou que o loiro entrasse em seu prédio, tinha os olhos marejados mas não deu vazão às suas lágrimas. Parte de sua frustração foi liberada batendo com força no volante com os punhos, um grito estrangulado que não fez nenhum som dilacerando seu coração.

 

***

 

Eles acabaram de jantar e Kanon estava ajeitando as coisas na cozinha enquanto conversavam sobre os planos para a despedida de Aiolos. Kanon contava o que havia sido decidido até momento. Milo aproveitou para olhar o celular e viu uma mensagem de Hyoga:

“Acabei de chegar em casa, me liga quando puder. Preciso ouvir sua voz.”

Milo estranhou um pouco o conteúdo. Hyoga nesse período em que vinham se encontrando era bastante carinhoso ao vivo, mas nas mensagens sempre mantinha o tom assertivo, mesmo que jovial. Sentiu um aperto no peito. Algo tinha acontecido. Não conseguiu imaginar o que, apenas soube.

— Kanon, preciso fazer uma ligação…

— Claro sem problemas.

Kanon foi para sua suíte escovar os dentes para dar privacidade a Milo que parecia um tanto aflito subitamente. Deusa o seguiu desfilando.

Na sala Milo ligou para Hyoga que demorou um pouco a atender, percebeu em sua voz que algo tinha acontecido. Hyoga não quis contar, agradeceu apenas por ele ter ligado e disse que estava bem, apenas muito cansado. Nesse momento Milo tomou uma decisão e falou muito sério:

— Hyoga, arruma suas coisas, estou indo te buscar e você vai dormir comigo nessa noite. Quero te ver, posso?

Do outro lado da linha silêncio antes de um doce “Obrigado” ser pronunciado. Eles se despediram e Milo foi falar com o primo.

Kanon estava sentado na cama com Deusa em seu colo e sorriu para Milo. O primo não precisou explicar nada. Kanon apenas agradeceu a companhia e acompanhou o amigo até a portão de entrada do prédio. Assim que o carro de Milo sumiu virando a esquina Kanon subiu as escadas com uma expressão bem mais séria no rosto. Pegou seu telefone e lendo os números anotados no papel que havia antes dobrado e que agora deixava displicentemente sobre a mesinha da sala aguardou que a ligação fosse completada e logo ouviu a grave e melodiosa voz do outro lado:

— Alô.

— Camus, aqui é Kanon. Vamos conversar ainda hoje. Você quer passar na minha casa ou devo ir para a sua?

— Vou te mandar meu endereço por mensagem. Venha para cá.

Camus salvou o contato de Kanon em seu aparelho, lhe enviou seu endereço e pensou que já que teria que passar por isso que fosse ao menos em sua casa onde estaria mais seguro e pelo menos aconchegado. Apesar de não conhecer Kanon, sabendo que ele era primo de Milo não se sentia ameaçado de nenhuma forma e estava cansado demais para pensar em sair de casa, buscar algum lugar onde eventualmente pudessem ser interrompidos ou interpelados por algum conhecido.

Na última semana tinha se dado conta de que o mundo era muito menor do que pensava.

Olhou em volta, já tinha arrumado a bagunça da noite anterior e agora estava apenas largado no sofá. Escutando novamente o cd que ouvira com Shaka na noite anterior.

Ele tinha essa tendência a se torturar.

Fechou os olhos pelo que pensou ser apenas um ou dois segundos mas se sobressaltou com o barulho do interfone. O cd havia recomeçado o que lhe mostrava que mais de 40 minutos haviam passado. Atendeu o interfone, liberou a entrada do grego e aguardou.

Logo o elevador chegou no seu andar e ele já estava na porta do apartamento, Kanon o viu e cumprimentou estendendo a mão mais pelo costume do que por qualquer cordialidade.

Durante todo o caminho Kanon se perguntava se o ideal era mesmo ter essa conversa na casa do francês, por outro lado não saberia dizer se teriam outro lugar mais neutro para conversar e definitivamente não queria aquele homem na sua casa, com sua Deusa.

Era impossível ignorar o quanto o ruivo era bonito, esse apelo era inegável e desde a semana anterior quando o viu pela primeira vez foi sua aura predatória que repeliu Kanon, jamais sua agradável e fascinante aparência. Franziu a testa frente ao pensamento inadequado.

Camus também repreendeu seu olhar que apreciou por breves momentos as costas da figura forte e alta que agora entrava em seu apartamento. Fechou a porta e indicou o sofá com os braços.

— Aceita algo para beber?

— Um copo de água, por favor.

Kanon pediu analisando o ambiente, era um apartamento decorado com bom gosto e uma impessoalidade aparente que não o enganava. Aquele ruivo tinha muitas facetas. Percebeu o pequeno móvel ao lado do hall de entrada com alguns calçados e entendendo sua funcionalidade tirou seus tênis. Camus retornou com um porta copos e um copo alto e largo com água gelada. Kanon agradeceu mentalmente pelo detalhe de estar gelada. Seguiu o dono da casa e indicado por ele sentou-se no sofá confortável. Notou só então a música que tocava baixinho o comentário lhe escapou:

— Eu adoro esse disco…

— Eu também, o primeiro com o Patton cantando.

Camus calou-se, eles não estavam ali para trocar amenidades, se posicionou para ficar de frente para o visitante e notou então que ele havia retirado os tênis, as meias pretas aparentes. Teve vontade de sorrir. Subiu os olhos para aquele homem e um suspiro de esgotamento lhe escapou dos lábios.

— O que quer saber de mim, Kanon?

Chapter 25: O momento perfeito

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Essa era uma pergunta bem direta e completamente pertinente àquele momento. O que Kanon queria saber afinal? Ele tentou encontrar as palavras, até para si, todo contexto começava a se tornar um tanto confuso.

— Eu… Pensava em te perguntar por que o Saga, mas acredito que você não soubesse de nossa ligação com Milo. Pela sua reação quando ele nos apresentou. Não somos primos mesmo, consanguíneos, nossas famílias são muito amigas e crescemos juntos. — Kanon informou sabendo que aquilo não fazia a menor diferença e sem entender por que estava dando qualquer informação ao homem a sua frente — Por que você fez isso?

Ele pode ler a dor nos olhos do francês, sentiu no mesmo instante um imenso pesar e uma ponta de empatia por aquele homem, tratou de sufocar esse impulso, desviou seus olhos, talvez tivesse sido um erro ter ido até lá. O que pensava ele poder fazer?

— Eu sou uma pessoa quebrada Kanon. Não existe justificativa para o que fiz, mas acredite, o principal motivador nunca foi conscientemente magoar Milo. Ele sempre foi bom demais para mim, acho… Eu tenho descoberto em terapia que me ressentia disso. Veja que mecanismo precário e ofensivo. Ele… Fez uma forte pressão sobre mim para que o acompanhasse a uma vernissage e quando eu já estava lá me mandou uma mensagem desmarcando, havia surgido alguma alteração de última hora em um trabalho urgente. Algo assim. Gosto de arte contemporânea, mas jamais me aventuraria a um evento como aquele. Fiquei com raiva, me sentindo preterido… Eu me descontrolei e… — Arriscou um olhar para a boca de Kanon — Saga…

— Saga estava lá. Ele que conseguiu as entradas para a vernissage do A. Nyman. Eram minhas, não pude ir e repassei para Milo…

— Áh…

Foi o único som que deixou a boca de Camus. Que trama fraca havia engendrado o destino à eles. De alguma maneira quase infantil Kanon se culpava por ter dado as entradas para o primo e Camus era um poço de culpa por toda sua existência. O visitante conseguia sentir fisicamente a culpa daquele homem e mais uma vez se recriminou por estar lá.

— Você faz terapia?

— Há alguns meses, Milo quando terminamos me sugeriu. Nosso relacionamento sempre foi pontuado por brigas e ciúmes da parte dele e pouca compreensão da minha. Eu não tenho nenhum orgulho do que fiz. Semana passada — respirou fundo — quando te vi no bar eu realmente acreditei estar vendo Saga. Tive uma discussão com meu amigo, acho que foi quando perdi meu último amigo, e a sensação de vazio foi muito grande, tomava como verdade que a única maneira ao meu alcance de preencher isso fosse com sexo. Mas, como você se mostrava indiferente eu fui ficando confuso, então, quando vi Milo lá, ao seu lado, ao lado do homem que eu julgava ser Saga. Meu mundo caiu! Quase morri, literalmente, você não precisa acreditar, mas aquele foi o fim de algo para mim. Eu desmoronei. Tudo que ouvi e falei na terapia por todos estes meses finalmente se encaixou.

Terapia, algo que vinha procrastinando buscar, Kanon chutou-se mentalmente, precisava manter o foco, acompanhava a cadência daquela voz, não conseguia mais desviar sua atenção dos olhos dele. Reparou, agora de perto na cor exótica que eles tinham e teve certeza que esse realmente parecia ser um homem diferente daquele que havia apelidado de “ruivo psicopata”.

Uma mágoa antiga se contorceu dentro de Kanon. Seu rosto expressou isso em uma careta de dor, literalmente dor.

— Mas… Por que?

Camus piscou lentamente e umedeceu seus lábios. Naquele momento percebeu que talvez a pergunta não fosse endereçada realmente a ele. Ou, não completamente, apenas a ele. Abaixou os olhos e disse quase destituído de energia.

— Não foi culpa dele. O que quero dizer é que Milo não fez nada para merecer isso, muito pelo contrário. Eu fui fraco, me deixei levar pela raiva, pela luxúria e pela frustração.

Kanon baixou seus olhos também, não sem antes observar a figura do francês, agora nada altiva, apenas solitário e humano, infinitamente humano.

Seria possível que ele estivesse projetando suas questões na situação protagonizada por aquele homem? Estaria ele ainda tão cego por sua dor, pelo rancor encruado em si, que não via que apesar do inegável erro de Camus ele era apenas uma pessoa e não um vilão cinematográfico com planos malignos?

Bebeu parte da água. Perdeu-se um pouco na canção que tocava naquele instante. Sempre existiriam aqueles presos entre o amor e a agonia. Todo sentido que pudesse crer possuir para estar ali se esvaziou.

Há pouco estava com Milo e nunca em toda sua vida havia visto aquele garoto tão feliz e dedicado. Não houve como não escutar parte da conversa dele com Hyoga, o primo estava investido naquele relacionamento, o tempo assim parecia não ter tanta importância quando comparado a intensidade, a essência de uma ligação compartilhada por pessoas dispostas.

Seria certo exigir que Camus assumisse para o primo o que fez e assim atrair desarmonia para a vida de Milo? Além da confusão que seria com Saga as vésperas do casamento de Aiolos? Não queria nem começar a pensar na reação possivelmente homicida de Kardia...

Mas o certo era contar, não?

Não tinha tanta certeza atualmente.

Era mais fácil quando conseguia configurar toda culpa de forma maniqueísta atrelada a figura do ruivo. Mas e agora? Um leve constrangimento se fez entre eles.

— Você pretende esconder dele para sempre?

— Eu pretendia sim, antes. Agora estou em dúvida. Não sei o que fazer, às vezes parece que será libertador finalmente admitir isso e lidar com as consequências, com o desprezo dele… Quem sabe perder uns dentes e ganhar um olho roxo.

Os dois riram. Conheciam bem a impetuosidade que aflorava em Milo nas raras vezes em que verdadeiramente se irritava. Mas sua reação poderia ser considerada imprevisível.

— Já acreditei que deveria te forçar a falar para ele… Ou, eu mesmo falar. Não sei mais Camus. Milo está feliz. Verdadeiramente apaixonado, não sei se ele já se deu conta disso, mas eu vejo claramente. Conheço minha gente, se é que você me entende...

Camus franziu um pouco suas sobrancelhas peculiares, ele gostaria de poder dizer que entendia, porém, não tinha tanta certeza disso. Passou tanto tempo afastando as pessoas e apenas se satisfazendo com seus corpos quando julgava necessário. Fora dessa curva degradante apenas Shaka e Milo, cada um à sua maneira. E mesmo estas relações ele corrompeu.

Deixou escapar mais um suspiro. A solidão estava sempre oprimindo sua alma.

Apesar de toda situação inusitada estava sendo interessante conversar com esse homem. E assim como se deu com o jovem Sorento, Camus teve ganas de conexão, de fazer amizade quem sabe…

— Vou conversar com meu terapeuta, tentar entender isso. Eu lamento Kanon. Não só o que fiz, mas lamento profundamente meu comportamento na semana passada, sei que te constrangi. Não me reconheço mais naquele homem. Sinto muito…

Kanon pensou um pouco, lembrando de como Camus sabia se impor, do olhar predatório que chegou a fazer ele se sentir acuado, impressionante, não podia negar. Lembrou da fúria naqueles olhos quando ergueu cordialmente a taça de conhaque em sua direção. Ajeitou a postura no sofá e então cobriu a boca com a mão tentando abafar sua risada.

Camus o encarou de olhos arregalados e surpresos antes de sorrir levemente.

Nunca apostaria que em uma semana se encontraria na casa daquele homem e se alguém sequer sugerisse isso na sexta passada ele desdenharia sem pensar por meio segundo.

Entretanto, o mundo dava voltas, não era o que diziam?

— Esquece isso Camus. Até que foi engraçado no fim das contas apesar de toda ironia torta.

Kanon afastou os cabelos quase escuros do rosto. Camus desviou o olhar corando.

Deuses só de lembrar tudo que projetou de erótico a se fazer com aquele homem, ele se envergonha, era realmente mais fácil admitir sua traição para Milo do que os pensamentos impuros que teve para com Kanon, quando considerou que ele era Saga. Que situação! Honestamente ter uma consciência era exaustivo…

— Acho melhor eu ir. Creio que no fim nada mudou.

— Kanon, espero que você não me odeie.

Camus não soube o motivo para falar aquilo, mas era o que sentia. Kanon apenas concordou sem parecer julgá-lo mal por isso. Sua expressão neutra como costumava ser a do francês.

— Bom, foi pelo jeito uma grande falta de sorte que no dia em que você decide dar essa derrapada equivocada tivesse que ser com meu irmão. Mas, todos erramos e eu sei que Saga pode ser um tremendo puto.

Camus pensou em dizer que ele nem fazia ideia do quanto mas se calou, mantendo um olhar para a parede. Kanon observou o perfil do ruivo e se deu conta de que já estava há tempo demais lá, apenas conversando.

No final, o cara não era nenhum monstro. Mas, eles não eram amigos também, entretanto, não se negava a admitir que havia sido, dada a situação, agradável a conversa e até divertida em alguns momentos.

— Acho que vou embora. Já tomei muito do seu tempo.

— De maneira alguma, fico grato que tenha me dado essa oportunidade. Como você veio?

— De aplicativo. Vou chamar um carro e voltar, sem problemas.

— Imagina Kanon, vou te levar, faço questão, é o mínimo.

O primo de Milo pensou em negar, mas, ao mesmo tempo apenas não o fez. Concordou com a cabeça e eles foram.

Camus usava o carro pouco, não por não ser um bom motorista, mas dado a comodidade de poder caminhar, que era algo que o agradava muito.

Chegaram bem rápido ao destino indicado pelo loiro e se despediram sem delongas. Assim que entrou e fechou o portão Kanon observou Camus manobrando o carro para retornar para sua casa. O ruivo deu duas ligeiras buzinadas antes de se afastar.

Kanon subiu para seu apartamento com os passos cada vez mais pesados. Ainda não tinha uma solução para o assunto que levou aquele encontro imprevisto.

***

Estavam deitados na cama de Milo, ele afagava as costas de Hyoga e sentia o perfume de seus cabelos. Já estavam nessa posição há mais de uma hora. Por mais que estivesse curioso com que havia acontecido, pois algo decididamente tinha acontecido, Milo não queria pressioná-lo. O impulso de ter ido buscar seu russo havia sido uma das melhores decisões dos últimos tempos, se era apoio que Hyoga precisava ele podia prover. Céus, ele já admitia sua rendição, faria qualquer coisa pelo homem em seus braços! Era uma questão de tempo até gritasse isso aos sete ventos.

Como se pudesse ouvir seus pensamentos Hyoga escolheu esse momento para girar o corpo e o encarar de frente. Seus olhos claros conseguiam a proeza de transmitir um calor que se espalhava pelo corpo de Milo, por sua casa, ocupava todo o universo.

Sob a luz alaranjada do abajur ele conseguia ficar ainda mais lindo. Hyoga quase perdeu o fôlego ao encarar Milo, por vezes sentia como se fosse acordar a qualquer momento de um sonho e se descobrir constrangido babando em alguma aula. Aquele homem perfeito, praticamente a personificação do "príncipe encantado" podia mesmo estar na sua frente? Devotado a ele com tanto carinho e atenção?

— Milo...

Ao ouvir seu nome e ver cada sílaba deixar aquela boca macia e divinamente desenhada Milo o puxou para um beijo que era muito bem vindo por Hyoga. Suas dúvidas se desmaterializavam, passeou os dedos pelo rosto do grego e suspirou contente. Mordeu levemente os lábios carnudos de Milo que gemeu seu nome disparando eletricidade por todo seu corpo. As mãos de Milo se apropriaram de sua pele com completa desenvoltura e com temperatura e pressão perfeitas para levá-lo ao delírio. Hyoga gemeu ao ouvido dele:

— Faz amor comigo…

Milo respondeu tirando suas roupas lentamente e depois as de Hyoga.

Seus beijos ainda mais apaixonados. Repetindo seu nome. E assim, sem pressa e sem desviar os olhos eles se amaram. Mãos e línguas visitaram todos os pontos sensíveis dos dois corpos. Nenhum deles lembrou do preservativo dessa vez. O que contrariava o bom senso.

Milo se perdia nos olhos de Hyoga enquanto se movia dentro dele sentindo um júbilo religioso. A junção deles era divina, entoava seu nome como uma oração, como se nessa palavra pudesse transmitir toda a beleza e a intensidade do que sentia. Permaneceram abraçados mais um tempo, mãos dadas, afagos carinhosos. Já mais tranquilos e tendo seus corpos saciados.

Milo buscou lenços umedecidos e uma toalha no banheiro e limpou um pouco da bagunça deliciosa que resultou daquele momento de intimidade entre eles, buscou água para ambos e então se aconchegou com Hyoga na cama. Dessa vez o russo que lhe acariciava a nuca e os cabelos enquanto ele escutava o coração que batia naquele peito forte. Quando Hyoga finalmente falou ele se afastou um pouco, pousando a cabeça no travesseiro para acompanhar olhando o outro nos olhos.

— Lembra que te falei que meu último namoro terminou de forma um pouco esquisita?

— O menáge com o gostoso que roubou sua namorada?

— Isso, ele não roubou só a namorada… Eu, eu acabei me envolvendo com ele também, nos encontramos algumas vezes.

O sorriso de Milo diminuiu consideravelmente e ele começou a juntar as peças, realmente Hyoga tinha citado apenas dois caras com quem saiu e uma lista de garotas, aquela desenvoltura não poderia vir mesmo de um ou dois encontros afobados, ele teve tempo para explorar outro corpo masculino. Hyoga o encarava com olhos marejados, estava com medo de ser rejeitado. Milo percebeu isso e sufocou a onda de ciúmes, Hyoga não era Camus, definitivamente não era. Estendeu a mão e apertou a do rapaz sorrindo levemente.

— Hoje ele me procurou.

— Hyoga, esse fulano fez algo contra você?

— Não, não mesmo, fica tranquilo, não me fez nada e nada aconteceu, acredite. Mas… Ele… Ikki, ele me pediu desculpas Milo. E eu nem sabia que tinha me magoado tanto, me sentido tão diminuído… Tão rejeitado.

Milo o abraçou beijando o topo de sua cabeça, fazendo não com a cabeça.

— Ele que perdeu Hyoga, você é maravilhoso. Pelos Deuses a sorte que eu tenho de ter te encontrado, não percebe que não te soltei mais? Há uma semana você está na minha vida e eu desejo tanto que seja a primeira de infinitas… Esse rapaz, com certeza te procurou para pedir desculpas, isso só mostra que ele não é um idiota completo, pois Hyoga, qualquer atenção sua é um presente. E eu sou grato por ele ser parcialmente imbecil, pois agora é na minha vida e na minha cama que você reina. Mas preciso perguntar… Você ainda gosta dele?

— Não Milo, eu percebi que o que vivi com ele foi importante sim para o meu processo de descoberta, para eu me aceitar. Milo, eu gosto de você. Durante toda essa conversa, eu só pensava em poder te encontrar, precisava do seu colo.

— Estou com você… Olha para mim, decidimos ficar juntos, não foi? Não me importa que faça uma semana, me importa somente o que você sente. Por que eu estou nas suas mãos Russo…

Os dois riram. E se abraçaram. Era muito cedo, era muito intenso. A cada encontro se fortalecia a ligação deles. Milo afagou os cabelos de Hyoga e pensou no início da sensação de ciúmes que suprimiu, então se lembrou que também havia encontrado com seu ex mais cedo naquele dia. Só conseguiu sanar aquele lampejo negativo por sentir-se seguro com aquele homem. Com seu russo. Falaria a ele sobre Camus, mas não naquele momento, agora apenas queria aproveitar a deliciosa sensação de ser correspondido e ter perspectivas para um futuro juntos.

***

Registou com indisfarçada satisfação que o clima estava agradável e propício a sua mudança. O céu claro e a brisa fresca que soprava balançando os longos fios loiros, trazia um ar de calmaria com o qual não era brindado há alguns dias.

Auspicioso. Sorriu minimamente acompanhando de perto suas coisas serem descarregadas do pequeno frete que havia alugado.

Como não havia a necessidade de levar uma grande quantidade de pertences, uma vez que a casa de Shura já era mobiliada, tinha conseguido em tempo recorde um pequeno caminhão para transportar além de sua floresta particular: três estantes de livros, uma mesa de escritório juntamente com a cadeira, artigos de cama, mesa e banho. Além é claro, dos livros em si e alguns itens de cozinha que não poderia deixar para trás. Um apanhado significativo de miudezas, que não configuravam de forma alguma uma mudança de grande porte.

Observava Shura auxiliando os carregadores, indicando o local adequado para cada um de seus bens. Já havia pré definido, juntamente com o espanhol, o espaço que ocuparia no escritório que seria dividido por ambos, além da posição das estantes e das plantas.

Os demais itens foram deixados pelo próprio Shaka na cozinha ou no quarto. Ele olhou com certa curiosidade alguns dos artigos que tinham ganhado no chá de casa que havia sido oferecido ao agora esposo e não pôde deixar de sorrir, mesmo que sua mente estivesse trabalhando com uma diversidade de cenários e suposições acerca dos últimos acontecimentos. Por mais que já tivesse empreendido uma de suas decisões e naquele momento desce o primeiro passo rumo a vida com Shura, não conseguia deixar de pensar no quase beijo e seus prováveis significados.

Crispou os lábios balançando a cabeça em seguida, não iria se deixar levar novamente por aquele fluxo de ideias. Sua decisão já estava tomada e no momento, não precisava remoer um assunto que julgava encerrado, mesmo que tivesse plena consciência que aquela questão sequer tenha sido arranhada.

Acompanhou mais uma vez os movimentos do namorado reparando nos olhos dotados de um verde mutável, na fisionomia quase sempre séria e não pôde deixar de estranhar a ausência de questionamentos sobre o destino de seu apartamento. Sabia que o espanhol era um homem de poucas palavras, dotado de grande empatia e condescendência. Sendo assim era mais provável que ele esperasse que Shaka mencionasse seus planos sobre o imóvel, do que ele próprio empreender alguma indagação.

Em um pequeno canto de sua mente não conseguia ignorar o tom de voz sarcástico que Camus usava todas as vezes que dizia: “Esse seu espanhol deveria ganhar um prêmio. O cara nunca reclama de nada, nunca questiona nossa amizade. Você não acha esse cara compreensivo demais?”. Não, ele não achava.

Ao menos nunca tinha pensado sobre isso até aquele momento.

Assim como ele o namorado era um homem discreto e que gostava de seu espaço, logo, fazia sentido ele não fazer muitas perguntas, além disso, era conhecedor da sua índole e por isso também não se incomodava com a relação mais estreita que dividia com o francês. Torceu o nariz com o pensamento o empinando em seguida. Óbvio que era isso. Nunca havia levantado nenhuma dessas questões até aquele momento, e sabia que não fazia sentido se preocupar agora. Talvez sua mente estivesse tentando pregar alguma peça, uma espécie de castigo pela ausência de controle sobre suas atitudes que havia demonstrando alguns dias antes. Certamente era isso.

Não iria dar vazão ao gatilho que Camus disparou em seus pensamentos, jamais daria.

Shaka tinha consciência que sozinho conseguia ser sua benção e sua própria maldição. Não precisava de nenhum elemento externo para tal coisa, sua mente se encarregava de destinar o grau exato de punição e remição para cada uma de suas atitudes.

Sempre o juíz, o carrasco e o libertador.

Ao menos era o que dizia a si mesmo, enquanto olhava Shura tirar o celular rapidamente do bolso franzir o cenho e depois respirar fundo com alguma coisa que parecia ter visto na tela do aparelho.

Aproximou-se do namorado e o espanhol conteve o sobressalto ao ouvir a voz do indiano.

— Algum problema? — Shaka questionou.

— Nenhum. Porquê? — Shura colocou o celular novamente no bolso sorrindo em seguida.

— Você pareceu perturbado com algo agora há pouco.

— Nada com que se preocupar Rubio. Apenas coisa de trabalho. Ao que parece esqueceram que a mudança era hoje e pretendiam me enviar alguns documentos. Mas já expliquei a situação, pode ficar tranquilo.

Shaka assentiu demorando o olhar alguns minutos no rosto do esposo. Esposo… Repetiu mentalmente a palavra ao mesmo tempo estranhando e se deleitando com o significado dela.

Direcionou sua atenção aos funcionários da mudança e entrou na casa ignorando o pequeno desconforto que criou residência em si, sem ao menos pedir licença ou perguntar se ele estava de acordo. Juntou essa sensação ao somatório de sentimentos que abrigava em um lugar específico de seu cérebro e que até aquele momento, não tinha sido ocupado por nenhuma das atitudes de Shura.

Não tinha tempo, por hora, para dar atenção a essas pequenas questões, por mais que inconscientemente sempre estivesse atento a todas elas. Precisava terminar aquela mudança, arrumar os presentes do chá de casa, organizar seus livros, alojar suas plantas e depois de tudo isso, finalmente respirar com tranquilidade o ar caseiro e desfrutar da companhia de Shura. Tempo era algo do qual não podia abrir mão nesse momento e empreendendo todo seu senso de praticidade focou sua atenção em questões menos abstratas.

Afinal, já estava concretamente casado e naquele momento só isso importava.

Chapter 26: Você sempre saberá o sabor

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Isaak só conseguiu parar para ver o celular no fim do seu turno de sábado, notando algumas chamadas de Kanon tentou telefonar de volta, o celular do grego estava desligado. Ficou um pouco decepcionado, estava com saudades dele, mas, ao que tudo indicava o movimento no Imperador tendia a tornar-se cada vez mais intenso.

Se despediu dos colegas e viu em um canto Io e Sorento conversando com Thétis. Apressou o passo, não estava nem um pouco interessado em fazer horas extras ou pegar eventos. Obviamente um pouco mais de dinheiro seria bem vindo, mas o cansaço mental e o esgotamento físico não senhor, muito obrigado e tenha uma boa vida.

Caminhou rapidamente até o ponto de ônibus. Mais cedo havia recebido uma chamada de seu pai e isso acabou com seu humor. Desligou o celular e depois acabou caindo no sono por boa parte do dia. Daí perdeu as ligações de Kanon.

O velho filho de finlandes Kristo Valtameri, ou Mestre Krystal como era conhecido no meio musical, era uma pessoa difícil.

Era completamente desgarrado, mulherengo, guitarrista e pianista que trabalhava com qualquer coisa que aparecesse, em geral em bares e baladas e projetava no único filho expectativas irreais de normalidade e sucesso profissional. Sempre ligava dando sermões sem pé nem cabeça, Isaak sabia que o velho queria o seu bem, entretanto, não parecia investido em realmente se inteirar dos gostos e interesses do filho. Ao contrário mantinha uma noção idealizada do que a falecida Mãe gostaria de ver o rapaz conquistando. Isaak reconhecia sem modéstias seu potencial, estudava mesmo achando que poderia ele mesmo estar a frente do curso da faculdade, não planejava ser garçom para sempre, tão pouco mofar em algum escritório cretino até a morte.

O rapaz não podia culpar o Pai por suas preocupações, apenas esperava que ele aceitasse que não se transformaria em um músico diletante, tão pouco em um almofadinha de gravata. Estava com ideias para o futuro, apenas não tinha pressa e nem intenção de se provar para ninguém. Passava parte do seu tempo enfurnado em um projeto de programação que ainda não havia compartilhado nem com Hyoga. Não apreciava que as pessoas cultivassem expectativas sobre ele.

Tudo sempre pode mudar em um instante.

Depois que perderam tanto com aquele maldito acidente levou anos até conseguirem se reorganizar.

Enquanto seu pai quase o sufocou de atenções, mesmo que tortas, o pai de Hyoga basicamente o abandonou de vez, reconstruindo sua vida com outra família.

Então os amigos se uniram cada vez mais. Melhores amigos como foram suas Mães.

Era engraçado lembrar da noite em que tudo mudou.

Não que a convivência familiar fosse tranquila, ele se lembrava das brigas, dos ciúmes da Mãe. E foi justamente em um desses acessos que ela convenceu a melhor amiga a pegar o carro em uma noite de garoa, colocar os garotos no banco de trás e caírem na estrada para tentar surpreender ou pegar no flagra Krystal com alguma de suas amantes em um show na cidade vizinha.

Ele e Hyoga dormiam no banco de trás. Foi tudo tão confuso e rápido que sua memória sobre o que aconteceu era basicamente do que havia sido explicado posteriormente pelos socorristas e equipe médica já no hospital. A Mãe de Hyoga teve o carro jogado para fora da estrada de alguma forma e o veículo desceu uma ribanceira, parando em uma parede.

Sua Mãe morreu na hora, pela quantidade de sangue ele soube.

Suas memórias fragmentadas eram de Natassia que teve as pernas esmagadas e muitos machucados no corpo, mas de alguma forma conseguiu abrir a janela do carro para que ele e Hyoga escapassem. O amigo estava completamente desorientado, coberto de sangue e arranhões e ambos tiveram que passar sobre o corpo de Natassia para deixar o carro. Realmente uma cena horrível.

Ele foi perceber que também havia se machucado muito tempo depois.

A “Tia” Natassia mandou que chamasse a emergência lhe entregando seu telefone e não soltasse da mão de Hyoga. Eles deviam se afastar do carro, o cheiro de combustível no ar, ela permaneceu olhando para eles e dizendo que tudo ficaria bem, que tinham que se cuidar, que as mamães os amavam… Para continuar sendo bons meninos e muitas frases amorosas até que finalmente se calou. Isaak apertava a mão de Hyoga que não exibia muita reação chamando eventualmente pela Mãe. Quando a emergência finalmente chegou encontrou com vida apenas as duas crianças de mãos dadas. Hyoga chorando e Isaak para sempre sem um olho.

Afastou essas memórias enquanto buscava um local para se sentar no coletivo que o levaria para casa.

Enviou uma mensagem para Kanon. Queria muito um abraço nessa noite. Amanhã… Quem sabe? Se ajeitou no banco duro observando a cidade que passava rapidamente refletida na janela.

***

Os pais de Aiolos promoveram um descontraído e barulhento almoço tendo como convidados a família de Seika Ogawara para estreitar os laços entre todos.

Aiolia aproveitou para sondar Dohko, primo chinês do falecido pai dos irmãos Ogawara, sobre o irmão mais novo de Seika e descobriu que o garoto não seria um impedimento para o que Saga e Kardia haviam planejado para a despedida de solteiro. Ao contrário, assim como eles, estava entusiasmado. Dohko tinha a idade de Kardia, também trabalhava na mesma escola em que lecionavam os noivos, ele se mostrava mais animado do que Kanon, que andava disperso e Milo que nem se deu ao trabalho de aparecer no encontro familiar!

Depois puxaria a orelha dele.

Todos os outros primos estavam lá, uma confraternização animada.

Olhou intrigado para seu celular vibrando com uma notificação: o seu assistente havia enviado uns relatórios em pleno domingo. Aquele garoto estava trabalhando demais, depois conversaria com ele também.

Aiolia tratava de cuidar para que todos estivessem satisfeitos e acolhidos na casa dos pais como se fosse ainda sua própria casa.

Sentia-se orgulhoso com a união de Aiolos e ao ver o irmão sorrindo babão para Seika que em uma mesa conversava animada com sua irmã Marin e uma outra moça de cabelos escuros que ainda não conhecia, se aproximou dele.

— Feliz, irmão?

O mais velho colocou um braço sobre seus ombros sem deixar de sorrir depositou um beijo em sua bochecha.

— Muito! Você podia se acertar com a Marin e a gente juntava mais ainda esse bando de gregos com os japoneses, que tal?

— Ahn... Aiolos, não recomeça. Isso é coisa antiga. A gente não tem química. Até tentamos, né? A Marin é maravilhosa, mas não tem nada a ver.

— Fariam uns filhos lindinhos…

— Nossa, tá me estranhando? Até você de tia casamenteira agora? Não quero isso para minha vida tão cedo! — Riu alto — Já vi que serei tio em breve. — Piscou para o irmão — Vou adorar. Agora, deixa te falar uma coisa, você sabe que as amigas de Seika estão organizando uma despedida para ela também, não sabe?

— Claro, sem problemas! É importante ela manter as amigas por perto. Mesmo esquema, vão sair para beber e curtir a noite pelo que entendi.

“Mesmo esquema?” — pensou o irmão mais novo com malícia. “Espero que não!”

Aiolos acompanhou a mudança na expressão de Aiolia e ergueu uma sobrancelha prestes a questioná-lo. Subitamente a atenção dos dois, assim como a de outros convidados, foi chamada para a mesa onde a noiva vermelha cobria a boca com as mãos, rindo agora acompanhada da irmã mais velha e mais duas moças.

Pelo jeito essas despedidas de solteiro prometiam!

***

Colocou a mão na frente da boca contendo o longo bocejo antes de pegar as chaves no bolso frontal de sua bolsa e abrir a porta principal do charmoso sobrado no qual morava. Assim que entrou identificou uma música suave vindo da cozinha e computou os pares de sapatos na porta. Sorriu sem perceber, Shun estava em casa. Gostava de sobremaneira do senhorio mais jovem, tinham muitas coisas em comum e caso acreditasse em vidas passadas poderia até mesmo julgar que tinham sido irmãos.

Caminhou até a cozinha, chegando no momento em que Shun tirava uma pizza do forno.

— Boa tarde, Sorento. Aceita pizza requentada?

— Claro… Acho que não comi nada hoje. — Sentou em uma das cadeiras da mesa da cozinha, sentindo o olhar incrédulo de Shun. Colocou a bolsa na cadeira ao seu lado.

— Sorento, são cinco horas da tarde e você ainda não comeu nada? — Colocou a pizza sobre a mesa, assim como os pratos e os talheres. — Está procurando um jeito de desmaiar ou algo pior?

— Fique tranquilo… Eu não vou desmaiar. — Pegou uma fatia da pizza. — Eu ando cansado demais para pensar em comer. Não vai chamar o Ikki?

— Não. Meu irmão está trancado naquele quarto o dia todo… — Suspirou.

Sorento assoprou o pedaço de pizza que havia cortado, enquanto inconscientemente levantava uma das sobrancelhas. Lembrou da pseudo conversa que teve com Ikki e como o japonês ficou abalado ao ouvir a sentença de que ele tinha recuado mediante a tentativa de diálogo com tal pessoa que estava tirando sua tranquilidade. Não pôde deixar de lembrar de Pandora e imaginar qual seria o papel da jovem em toda essa trama. De qualquer forma, não era da sua conta.

O erguer de sobrancelhas não passou despercebido por Shun, mas preferiu não questionar o inquilino, afinal, se tivesse que fazer perguntas seria ao seu irritado irmão que parecia estar se consumindo em trabalho. Depois tentaria lidar com Ikki, naquele momento só queria comer, estava exausto dos diversos plantões e um pouco de pizza “dormida” seria de grande valia.

— Como estão as coisas no hospital? — Sorento questionou colocando mais um pedaço de pizza para Shun. — Quer suco? — Levantou indo em direção a geladeira.

— Quero sim, pega o de abacaxi. As coisas estão fluindo no hospital. Ainda preciso lidar com as pessoas achando que sou jovem demais, tranquilo demais, enfim, nada com que já não tenha me deparado durante toda a minha vida. — Riu. — Algumas pessoas nem acreditam que eu e Ikki somos irmãos.

— A personalidade é diferente. — Voltou a sentar na cadeira colocando a embalagem de suco na mesa e dois copos — Mas sem dúvida vocês são irmãos, e não digo isso apenas por alguns traços físicos semelhantes, mas por todo o carinho e devoção que tem um pelo outro. No final das contas é isso que define a família… O resto — Deu de ombros — É bônus.

O japonês sorriu abertamente com o comentário e fitou o rosto cansado de Sorento.

— Você ainda precisa de tantos turnos de trabalho?

— Não sei se precisar é bem a palavra, Shun. Eu quero todos esses turnos porque fazem parte de algo maior. Já comentei com você que pretendo fazer o Curso de Especialização Gazzelloni em flauta transversal. Pra isso vou precisar de todo dinheiro que conseguir juntar. Afinal, além das mensalidades têm as despesas e a passagem para a Itália.

— Achei que você ia tentar uma bolsa de estudos.

— E eu vou. Já fiz minha inscrição, mas é uma tentativa. Precisaria ser selecionado, e eu sei que sou bom, mas não sei se o suficiente para uma bolsa. Então, o certo é que eu pague pelo curso.

— O resultado da bolsa sai quando?

Sorento pegou o celular na bolsa olhando a agenda.

— Daqui a exatamente uma semana a partir de hoje. Depois disso tenho mais duas semanas para recorrer caso não consiga.

— E se você conseguir?

— Bom… Tenho três meses para comprar a passagem e preparar tudo para viagem. Sem a bolsa, tenho mais dois para começar a pagar a primeira mensalidade. Por isso, estou pegando todos os turnos e extras que encontro pelo caminho. Inclusive, vou até trabalhar em uma despedida de solteiro lá no Imperador.

— Sério? — Riu — Imagino sua cara, revirando os olhos e julgando o bêbado prestes a casar.

— Pois vou fazer essa mesma cara quando for a sua despedida antes de casar com a June.

Ambos riram.

— Vou sentir sua falta quando viajar para fazer o seu curso.

— Bom… Eu vou fazer o curso, só não sei se será esse ano. Tudo vai depender do resultado da bolsa. Eu tenho dinheiro suficiente para as despesas, mas não para pagar a mensalidade e comer. E acho que você não ficaria feliz se eu saísse daqui para passar fome em outro lugar.

— Para continuar passando fome você fica por aqui mesmo, não é Sorento. — Shun riu balançando a cabeça. — Me avise caso tenha alguma novidade, vou sentir saudades, mas ficarei feliz por você.

— Eu sei. — Retribuiu o sorriso.

Terminaram de dividir a pizza entre risos e bocejos eventuais dos dois homens. Após a refeição limparam e guardaram tudo e Shun reservou um pedaço para que Ikki pudesse comer mais tarde caso tivesse fome, já que ele pretendia descansar o restante do dia. Já havia telefonado para June e tinham acordado que ao menos neste domingo não se encontrariam.

Sorento avisou que estava indo para seu quarto e recebeu um “bom descanso” da parte de Shun. Passou pelas escadas que levavam ao segundo andar da casa em direção ao seu quarto e ouviu uma música ecoando pelo local, deteve-se por alguns minutos olhando para as escadas, provavelmente o som vinha do quarto de Ikki.

Continuou seu caminho em direção aos fundos da casa, onde ficava seu recanto.

Definitivamente o rapaz tinha confrontado a tal pessoa, e ao que parece o resultado não tinha sido benéfico. Sentiu-se mal por Ikki, ele e Shun eram sua família, de certa forma. Mesmo que o Amamiya mais velho fosse um homem fechado e não conseguisse extrair grandes informações dele, não deixava de se preocupar com a introspecção que ele apresentava no momento. Não era um homem de grandes arroubos sentimentais, prezava pela praticidade antes de tudo, mas isso em nada significava que não se importasse com as pessoas, ou que não tivesse sentimentos, muito pelo contrário. Empatia era um dos que nutria, mesmo que tentasse disfarçar. Não dispunha de todas as variantes necessárias para montar o quadro completo, mas era ardiloso o suficiente para supor o que se passava com o outro.

Por isso que eu evito problemas.

Pensou enquanto abria a porta de seu quarto, soltando um longo suspiro em seguida. Empreendia um grande esforço para se afastar de qualquer drama que pudesse se articular ao seu redor e manter o foco em seus planos muito bem delineados, mas assim como sabia que sua sentença tinha impactado Ikki, a do japonês com relação a ele não havia passado despercebida.

Não acho que preciso chafurdar em problemas românticos para me divertir mais… Você não parece estar se divertindo.

O flautista pensava com nítido sarcasmo enquanto tirava as roupas se encaminhando para o banho e lembrando do peso de um certo olho verde sobre si. Não se dava ao luxo de analisar as atitudes de Isaak, ao menos não da forma como sua mente gostaria, toda vez que se pegava detendo uma maior atenção ao colega de trabalho, cortava aquele raciocínio e seguia sua vida. Como evocava sempre, deter-se em Isaak não pagaria suas contas.

Mas certamente traria um prazer sem igual.

Suspirou, debaixo do chuveiro deixava a água quente acalmar a tensão em seus ombros que se multiplicou ao lembrar de Isaak e do corpo dele sobre o seu no momento em que caíram no bar.

Orgulhava-se de sua capacidade de observação e naquele breve instante constatou como o corpo do colega era rígido e macio, sempre enfiado naqueles jeans surrados e justos. O encaixe dos dois tinha sido excelente mesmo mediante a situação conflituosa e isso Sorento não pôde ignorar. O traseiro daquele ciclope sarcástico e gostoso sobre si, o cheiro que desprendia daquele corpo. Até dos fios tingidos ele gostava, mas jamais admitiria isso.

Rangeu os dentes ao perceber aonde aquele lembrança o estava levando. Ao que parece por mais que estivesse cansado, lembrar do tipo rebelde com quem trabalhava trazia uma certa renovação em suas energias.

Ensaboava-se fazendo mais do que apenas um ato de higiene, preso na sensação de ter o corpo de Isaak sobre o seu e a vontade que tinha de fazer aquilo da maneira correta, sem as roupas e o público, passeava a espuma pelo peito desnudo detendo carinhos que não costumavam ocupar seu banho.

A cada toque das mãos e da água quente, imaginava-se sendo alisado e beijado pelo outro garçom. A língua correndo seu corpo, as mãos trabalhando em seus músculos, e mordendo o lábio com força, imaginava como queria ter passado sua boca e não os dedos pelo machucado decorrente do soco.

Agarrou de vez o membro rígido que implorava por atenção. Já não sabia em que momento havia largado o sabonete, apenas que as mãos ainda continham a espuma. Apertou com força o próprio pau e começou a manipulá-lo com vigor acurado, enquanto criava um desfecho alternativo para o incidente no bar. Ao invés de voltarem ao trabalho depois de cuidar do machucado do colega, eles se beijavam loucamente e Sorento possuía Isaak que quicava, rebolava, gemia e o enlouquecia trancados dentro do banheiro de funcionários.

Trincava os dentes na ânsia de tentar conter os sons que teimavam em escapar de seus lábios, suprimindo a vontade de gemer alto e mais ainda a frustração por não poder estapear o traseiro redondo daquele maldito caolho dos infernos. Apoiou-se na parede do banheiro, sentindo a iminência do orgasmo. Abriu os olhos que mantivera fechados durante todo o ato, preso em sua fantasia, a tempo de ver o líquido branco e leitoso deixando seu corpo e com ele a sensação de alívio e exaustão.

Respirou fundo por alguns instantes, sentindo a fraqueza nas pernas e uma necessidade ainda maior de se jogar em sua cama. Entrou embaixo da água quente e com certo desgosto lavou os resquícios do prazer auto infligido.

Terminou o banho e enquanto se enxugava calculava que estava naquele emprego há um ano e que durante esse tempo a relação dos dois foi se metamorfoseando aos poucos. Infelizmente, nunca havia saído do patamar da tensão que os rodeava e o máximo que se aproximava fisicamente de Isaak, fora de suas fantasias, era quando ocorria alguma confusão no bar e internamente maldizia o fato de elas raramente acontecerem.

De todo modo, percebia que o outro não era completamente indiferente a ele, não era ingênuo, tão pouco burro, fazia-se de distraído, assim mantinha-se focado.

Quando pensou em empreender algum esforço, o deus grego de quase dois metros apareceu e ele simplesmente se resignou a manter seu plano original: não procurar problemas.

Vestiu uma bermuda e uma camiseta, típicas roupas de dormir. Embrenhou-se em meio aos lençóis e por uma última vez antes de se deixar abater pelo sono, pensou em tudo que conseguia ler naquele olhar e nas atitudes do garçom.

Não era todo dia que alguém levava um soco por ele, mas do jeito que Isaak era intempestivo, talvez fizesse aquilo por qualquer um e não houvesse um grande significado naquela atitude. Talvez. De todo o modo, já havia decretado que o colega era problema e dos grandes, então, mais uma vez preferia ignorar tudo aquilo e se deixar levar pelo cansaço.

Não queria romance, não precisava de nada disso… Ao menos era o que repetia a si mesmo toda vez que percebia o peso e as promessas daquele único olho verde.

***

Por conta da dinâmica na qual aquele casamento se efetuou os dois homens envolvidos não tiveram tempo para organizar uma viagem de lua de mel.

De todo modo, isso não parecia um grande empecilho para consumar o desejo e inaugurar a vida de casados, tendo em vista que estavam mais uma vez atrelados um ao outro, em meio ao caótico cenário composto por lençóis amarrotados, embalagens de preservativo aberta, bisnaga de lubrificante pela metade e é claro, os dois corpos suados, marcados, cheirando a saliva e sexo.

Em meio aquela bagunça, Shaka mandava às favas sua gana de organização e limpeza, afinal, o indiano também fazia vista grossa para certas coisas, e certamente a desordem causada pela sexo era uma delas.

Shaka possuía o corpo do espanhol com notável vigor, uma vez que, era a quarta vez que se viam em meio aos braços um do outro. Shura gemia baixo, fazendo um esforço para conter os sons que saiam de sua boca, o que acabava por aumentar o desejo do loiro, que deitado por cima dele parecia refrear um ímpeto que teimava em lhe acometer.

O dono dos olhos esmeraldinos sempre teve a sensação de uma entrega parcial por parte de seu Rubio, como se ele não conseguisse extravasar por completo suas vontades, tanto em quatro paredes, quanto na vida. Por vezes sentia um aperto mais brusco, uma arremetida mais violenta, que no minuto seguinte era devidamente controlada.

Mudou a posição, girando o corpo e ficando por cima de Shaka, rebolava com vontade no colo do indiano que mantinha uma das mãos em seu quadril e a outra em sua coxa. Por mais que tentasse se concentrar no belo homem abaixo de si, não conseguia impedir o fluxo de pensamentos que o acometida. Shaka era gostoso! Inegavelmente gostoso!

Mas… Não se furtava de lembrar e desejar a rudeza do corpo de um certo italiano.

O sexo com ele era sempre arrebatador, diferente de tudo que tinha experimentado até então, possuíam uma sintonia única. Nenhuma palavra precisava ser dita, se entendiam em outro nível e quando abriam a boca para ditar alguma ordem, era apenas pelo simples prazer de comandar e ser comandado. Shura sentiu as mãos do indiano manipulando seu membro e fechou os olhos jogando levemente o corpo para trás.

Shaka sorriu lascivo com aquela reação e apertou com mais força a coxa do esposo. Gostava daquela pele bronzeada e do corpo musculoso, o espanhol era uma delícia em todos os sentidos. Apreciava a face séria transmutando-se em puro deleite e enquanto observava o moreno quicando em seu colo, de olhos fechados e lábios entreabertos, não pôde deixar de imaginar como seria ter Camus entregue a si daquela forma. Havia refreado o desejo de experimentar a boca bem delineada.

Estava casado! E mesmo assim não conseguia parar de pensar em como seria prazeroso enfiar suas unhas naquela pele de alabastro e puxar aqueles cabelos de um vermelho tão único, peculiar.

Sentiu a mirada dos olhos verdes, assim como Shura constatou o peso dos azuis, ambos só queriam divisar orbes castanhas, coincidentemente com o mesmo brilho avermelhado, o singular tom de terracota.

Saiu de cima de Shaka ficando de quatro na cama. Não queriam se encarar, não precisavam, ao menos não naquele momento.

O loiro posicionou-se atrás de Shura, antes avaliando o traseiro empinado e suspirou pensando que definitivamente era um belo homem. Eles cuidavam um do outro, se entendiam no cotidiano, tinham carinho e respeito.

Sendo assim, porque estava possuindo aquele homem com fúria enquanto a imagem de Camus se formava em sua mente?

Shura agarrava-se aos lençóis, sentindo as arremetidas quase brutas que Shaka investia em si. Já não tentava mais conter os gemidos e ao fechar os olhos lembrou do sorriso de Ângelo e da cadência dos movimentos do italiano ao adentrar seu corpo daquela mesma forma, o cuidado, a cumplicidade, a preocupação real com o seu prazer. O maldito sotaque italiano seguido daquele sorriso safado. Como amava odiar aquele sorriso!

Felizmente já é domingo! O espanhol pensou ao mesmo tempo em que gozava, um gemido alto não contido, o corpo dominado por um forte espasmo, o jato que acabou por somar mais bagunça ao cenário.

Shaka apertou com força o quadril de Shura a ponto de enfiar as unhas na região e conseguir romper levemente a carne. Lambeu os lábios com volúpia ao imaginar a marca que aquilo poderia causar na pele clara de Camus. O pensando e a pressão do corpo do esposo o fizeram alcançar o orgasmo.

Permaneceram algum tempo naquela posição, tomados pelo torpor do gozo, admitiam que o sexo era ótimo, mas não queriam se encarar. Uma única palavra ecoando em suas mentes.

Culpa! A vergonhosa e quase prazerosa culpa. Cada um a guardava em sua medida e proporção.

Sem saberem estavam compartilhando naquele momento muito mais do que a intimidade, mas também um sentimento que já estava entranhado de tal forma em suas vidas que tornou-se o guia de todas as suas ações, mesmo que não tivessem se dado conta, ainda.

Shaka foi o primeiro a se movimentar saindo de dentro do espanhol, que pareceu sentir finalmente as pernas e se esticou na cama de barriga pra cima. Soltou um gemido leve ao sentir o ardor em seus quadris.

— Desculpe querido… — Shaka falou deitando ao lado de Shura. — Não queria te machucar.

— Não machucou. É só um arranhão, não vou morrer por isso. — Sorriu minimamente.

Permaneceram em silêncio por algum tempo, ambos de barriga pra cima deitados na cama e fitando o teto. O celular de Shura vibrou e ele olhou brevemente o aparelho que estava em cima da mesa de cabeceira. Conteve o sorriso e posteriormente a careta. Shaka estava ao seu lado.

— Vou tomar um banho Rubio, quer vir junto?

— Vou depois Shura. Quero relaxar aqui um pouco mais.

O espanhol beijou os lábios do marido e caminhou para o banheiro levando o celular com ele.

Shaka permaneceu deitado, imóvel, fechou os olhos e a imagem de Camus formou-se com nitidez.

Desde o incidente na casa do Ruivo que não o via, ainda não tinha pensado muito bem no que diria a ele quando o encarasse. Poderia desenvolver toda a sua teoria sobre a culpabilidade do vinho, do clima caseiro e da tensão latente que existia entre os dois. Contudo, tinha certeza que esses argumentos seriam facilmente refutados pela mente ágil de Camus.

Geralmente o orgasmo trazia tranquilidade e relaxamento, no seu caso, trouxe uma série de pensamentos, desconforto e culpa, afinal, era a primeira vez que transava com uma pessoa tendo reflexos de outra.

Virou a cabeça em direção ao banheiro e olhou a mesa de cabeceira. O espanhol tinha levado o aparelho celular. Não era a primeira vez que ele fazia aquilo, certamente não seria a última, mas porque agora estava intrigado? Provavelmente era tudo um sintoma da culpa, estava se sentindo errado e precisava imputar algo ao marido. Só podia ser isso.

Fechou os olhos mais uma vez, ouvindo o som do chuveiro. Poderia seguir Shura e tomar um banho com ele, beijar aqueles lábios carnudos, sentir os olhos verdes sobre si e ser tomado por ele.

Não… Não queria segui-lo, não agora. E… Já não tinha mais certeza se realmente já quis em algum momento.

Dentro do banheiro, Shura começou a responder a mensagem que havia recebido com um sorriso no rosto e um alerta de perigo ligado em sua mente.

O maldito italiano estava apenas o comunicando que no dia seguinte iriam sair para beber, junto com dois colegas de trabalho que não puderam ficar para o chá de casa. Suspirou, ansioso com o dia seguinte e com a expectativa de encarar finalmente os olhos castanhos e o sorriso cafajeste.

Deixou o aparelho em cima de pia e entrou no chuveiro, sentindo o corpo arder nas partes onde a unha de Shaka o arranhou. Aquela pequena dor o trouxe de volta para a realidade e sentiu vontade de bater a cabeça na parede.

Afinal de contas, o que ele estava fazendo?

Chapter 27: Lábios da maravilha te beijam por dentro

Chapter Text

O domingo transcorreu preguiçoso. Isaak e Kanon se falaram finalmente e, combinaram de se encontrarem somente a noite, pois o grego já tinha um compromisso. Um almoço com sua família na casa de algum parente e segundo ele esses encontros se estendiam por horas. Como Hyoga não estava em casa Isaak aproveitou então para estudar e trabalhar em seu projeto, isso tudo com música pesada gritando em seus fones de ouvido.

Passar algum tempo consigo mesmo era algo que percebeu agora sentia alguma falta. No dia seguinte teria aula e havia alguns trabalhos para entregar. Ficava entediado com aquilo, mas precisava ao menos manter a média. Um dos trabalhos era escrever uma resenha sobre tecnologia e relações humanas, ficou um pouco pensativo. Precisava acabar logo esse curso. Uma irritação no fundo de sua mente o fez torcer os lábios praticamente cicatrizados.

Tocou a cicatriz de leve, primeiro no lábio e depois onde deveria orbitar um olho esquerdo. Não se imaginava com esse tipo de demanda mas… Precisava dar um rumo em sua vida. Por isso se concentrou como raramente fazia com as atividades da faculdade.

Terminou todos os trabalhos pendentes tendo inclusive se dedicado a eles com alguma atenção, o que significava notas melhores com certeza, depois de comer um lanche tomou banho e escovou os dentes.

Passou um tempo analisando sua imagem no espelho do banheiro, os cabelos estavam precisando de um corte e a cor verde brilhante que Io e Bian haviam lhe convencido a aplicar há muito perdera o viço. Olhou uma tesoura na gaveta do gabinete do banheiro. Ficou em dúvida entre cortar fora as pontas esverdeadas ou aplicar novamente a coloração, ou quem sabe até outra cor. A decisão ficou para outro momento.

Escutou o som que avisava que recebeu alguma mensagem no celular e foi conferir vestindo uma camiseta branca.

Leu a mensagem de Kanon avisando que estava voltando para casa e o convidando para passar por lá. Estava anoitecendo, ficou animado. Pegou suas chaves, a carteira e a jaqueta e saiu.

Evitava pensar sobre seus sentimentos, ainda que tenha chegado mais cedo a conclusão de que deveria pousar alguma atenção para com eles. No dia da briga experimentou algo muito desconcertante. Ainda bem que mais ninguém havia se atentado para aquele acontecimento secundário. Se Io ou Bian tivessem visto ele entrando na frente de Sorento, ou pior, sentado em seu colo, teria que ouvir gozações até o fim do ano. Lembrou-se do momento que dividiram no quartinho dos funcionários e sentiu um desconforto físico.

Em breve estaria com Kanon e afastaria de vez esses pensamentos descabidos.

Não era sua tendência ser inseguro, mas sabia que Sorento jamais teria sobre ele um olhar diferenciado, com certeza aos seus olhos ele era um “aleatório”. Que tipo de subjetivo bosta é esse para definir alguém? Ridículo. Não havia motivos para insistir nessa linha de raciocínio, Kanon era magnífico em todos os aspectos, precisava se aquietar, sentir mais segurança na presença daquele monumento grego. Tudo entre eles acontecia de forma sensacional, só precisavam se acertar fora da cama. Só isso. Só tudo isso. Daria certo.

***

Camus deixou seu apartamento no fim da tarde de domingo. O sábado havia passado todo em um momento de catarse pessoal intenso. Depois de ter sido recebido pelo terapeuta, de uma sessão longa e desconcertante, ele voltou para sua casa com uma energia estranha represada em seu corpo. Passou mais uma vez a tarde de sábado na academia, outros sócios demonstraram até algum receio do ruivo que parecia possuído.

De volta a sua casa comeu iogurte e algumas frutas, planejava beber um vinho, mas novamente apenas apagou. Provavelmente seu corpo estava chegando ao limite.

Acordou no domingo no início da tarde, se alimentou e tentou organizar as ideias. Tomou um longo banho e tentou ler, mas estava ainda inquieto. No dia seguinte mais uma vez teria sessão e precisava levar algumas reflexões para Krest; seu terapeuta; a altivez, a frieza daquele homem vez por outra o irritava, mas devia confiar no processo terapêutico.

Vinha colhendo dolorosos frutos, sabia que não havia semeado muitas daquelas sementes, já que ele mesmo era o resultado de um longo processo de abandono e relações tóxicas, todavia, agora sentindo os ventos da mudança em sua essência tentava se apegar a possibilidade de calmaria vindoura.

Assim, depois de cumpridas todas as tarefas da casa, ele finalmente deixou o apartamento para correr um pouco. Esperava mais uma vez exaurir seu organismo, para poder desabar na cama e acordar somente na segunda feira em tempo da sessão e quem sabe conseguir mais munição para o que estava por vir.

Não poderia mais fugir, na terça-feira voltaria ao trabalho. Fatalmente encontraria com Shaka.

Ajeitou os fones de ouvido, esticou o corpo em um alongamento breve. Deixou o apartamento, o prédio e ganhou as ruas em uma corrida em que buscava se afastar de tudo que não queria mais ser. Mesmo sabendo que isso só seria possível quando confrontasse e superasse seu passado. A cada passada se forçava mais.

Buscava a exaustão. Buscava serenidade.

Tentava seguir a batida da música pesada em sua playlist aquela organizada por Milo.

A culpa o arranhava nas entranhas.

A ausência de conforto. Era como se estivesse em abstinência. E segundo Krest ele estava.

Tanto tempo seguindo uma rotina e uma mentalidade.

O processo realmente era lento. Por vezes cogitou desistir. Sentia na garganta o gosto ruim do desamparo. Se fosse possível voltar no tempo e jamais ter cruzado o caminho do desgraçado Surtr.

O ódio que a lembrança daquele ser lhe trazia foi tanto que fechou os olhos por um instante para afastar o asco e foi nesse momento que sentiu o impacto antes mesmo de ouvir a freada. Ah… Pronto! Era tudo que precisava.

Então o mundo girou antes da sensação gelada do metal se tornar a única coisa em que conseguia pensar.

 

Quando dizem que uma fração de segundo, um instante de desatenção é o que pode mudar tudo, proporcionar espaço de mudança e também de acidentes.

Depois de passar o dia todo enfurnado no quarto trabalhando e depois fazendo flexões e abdominais Ikki começou a se sentir muito mal e precisava extravasar. Decidiu dirigir até a praia e ficar por lá um pouco, o vento e o mar poderiam acalmá-lo. Saiu sem falar com Shun e foi exatamente no movimento de pegar o celular para gravar uma mensagem para ele já no caminho que cometeu o deslize que culminou com o atropelamento de uma pessoa.

Ele avançou o sinal aberto para pedestre, não completamente, mas foi o suficiente… Freou bruscamente e o aparelho voou pelo carro. Sentiu o cinto pressionando seu peito e o tranco. Viu um vulto escuro avançar sobre o capô do carro e então deslizar de volta ao chão.

Saiu do veículo transtornado de preocupação. O que pensou estar fazendo? Como pode ser tão burro? Suas mãos tremiam quando se aproximou da pessoa que já se levantava com uma expressão gelada e um vislumbre quente ilegível nos olhos brilhando de ódio.

— Caralho, o que eu fiz? Não se mexa! Você pode ter quebrado algum osso. Puta merda, eu vou chamar a emergência.

Camus apertou os olhos irritado com seu próprio erro. Sempre olhe antes de atravessar a rua! Primário… Quis rir quando se deu conta de que pelo menos a pessoa que o atropelou era alguém agradável de se olhar. Moveu os dedos e depois correu suas mãos pelas pernas. Estava bem. Seus reflexos realmente funcionavam melhor do que suas ideias.

— Por favor não. Não precisa… Estou bem. Apenas me assustei.

Ikki olhava consternado para aquele homem e estendeu uma mão para ele que a recebeu instintivamente e com o auxílio do moreno se ergueu. Aparentemente ele apenas havia ralado um cotovelo e batido o quadril, mas as constantes palestras de Shun, mesmo que não parecesse, entraram no cérebro de Ikki e todo um contexto de concussão e desmaio lhe surgiu.

— Precisamos passar no hospital, você pode ter batido a cabeça.

— Estou bem, merda... — Camus exclamou vendo seu celular com a tela quebrada no chão — Meu celular não está…

— Puta que pariu! — Ikki estava pálido viu um pouco de sangue no braço do ruivo — Faço questão de levá-lo no hospital, por favor. Não sei onde estava com a cabeça. Vou pagar pelo seu prejuízo também — Normalmente uma situação como essa o deixaria completamente irritado, mas, naquele momento corroído pela culpa e também amortecido pela recente rejeição ele apenas se lamentava. Sentindo certo alívio pelo outro parecer lúcido — Vamos?

Camus considerou observando dessa vez o rapaz de cima a baixo. Estava tão carente e com tesão acumulado que mesmo nessa situação já sentiu seu antigo alerta de caça acionado. O motorista era um rapaz forte, um pouco mais baixo e de compleição ligeiramente rústica. Tinha traços orientais e cabelos desalinhados. Decididamente bonito e com certeza jovem, talvez, mas não imberbe. Tinha uma voz firme e mãos fortes. Camus quase sorriu quando o fluxo de pensamentos começou a tomar forma, ele quase conseguia saber detalhes da anatomia daquele homem pela movimentação de seus músculos obviamente rígidos sob o tecido macio da camiseta azul e a calça jeans de lavagem vermelha que ele usava. Quase o mesmo tom de meus cabelos, ele pensou, a cor caía bem no rapaz. Por um instante seus olhares se cruzaram e o Camus teve certeza de que se realmente move-se as peças certas conseguiria o alívio que tanto precisava naquela noite.

Será que deveria? Nesse ponto Ikki também passou a considerar, precisava saber se era um viciado em Hyoga ou se havia descoberto aspectos da sua sexualidade para os quais nunca antes havia dado a atenção devida, e sua expressão antes apenas assustada passou a exibir uma fração da malícia que vez por outra demonstrava travestida de sarcasmo.

Abriu a porta do carro para o Ruivo e deu a volta no carro tomando seu lugar ao volante. As poucas pessoas que haviam parado para observar a cena perderam o interesse.

Ikki antes de colocar o cinto voltou-se para o outro e estendeu a mão a título de apresentação.

— Meu nome é Ikki Amamiya, meu irmão é médico vou te levar até lá para que ele possa te examinar.

— Camus. — Foi a resposta. Apertaram as mãos sustentando um o olhar do outro. Colocaram os cintos e Ikki manobrou mudando a rota rumo ao trabalho de Shun.

— Vamos lá Camus e mais uma vez me desculpe.

***

Isaak aguardou encostado na parede a chegada de Kanon que o viu de longe, ainda dentro do carro a figura esguia na costumeira pose displicente vestido de preto, lindo. Estreitou os olhos quando deixava o carro de aplicativo.

— Oi Isaak, que bom que você veio. Está esperando faz tempo?

— Cheguei agorinha… Correu tudo bem na reunião da família?

Kanon abriu o portão e eles entraram subindo as escadas conversando.

— Foi tranquilo, a bagunça e a gritaria de sempre, um monte de comida e bêbados. É cansativo e divertido.

— Parece legal.

— Hurrunmmm...

Entraram no apartamento e Deusa veio correndo escalar as pernas de Kanon miando.

— Essa gatinha é muito fofa Kanon — Disse Isaak tirando a jaqueta e pegando a gatinha do colo do grego.

— Ela está reclamando de algo. Me espera um pouco, vou conferir se acabou a ração, a água ou se preciso limpar a caixa de areia. Tudo bem?

Isaak sorriu coçando o queixo da gata. Kanon se inclinou lhe dando um beijo lento e afetuoso. Ambos sentiram o arrepio sensual percorrendo seus corpos. A sintonia física entre eles jamais poderia ser questionada. Se separaram rindo ao ouvir a reclamação de Deusa.

— Eu já volto. Fica a vontade!

Kanon seguiu para o interior da casa e Isaak colocou a gatinha no chão. Tirou a carteira, celular e as chaves do bolso, colocou isso tudo junto de sua jaqueta e sentou no sofá batendo ao seu lado para que Deusa se aproximasse. Ela pulou para seu colo e esfregou a cabeça em sua coxa. Isaak afagava a gatinha que parecia gostar bastante do carinho, no entanto algo chamou a sua atenção e Deusa pulou para o chão e em um canto da sala começou a brincar, se embrenhando em ferrenha luta com um indefeso papelzinho.

Isaak sorriu vendo a brincadeira da gatinha mas estranhou o pedaço de papel jogado no chão.

Kanon era sempre bastante organizado. Talvez fosse algo importante e não era legal deixar a gatinha destruir. Levantou-se e perto dela pegou o papelzinho, lhe pareceu algo que pudesse ser jogado fora até que virando o papel algo lhe chamou a atenção.

Sentiu uma fúria subindo por suas entranhas ao reconhecer aquela letra e aquele nome anotado no papel amassado, virou a folhinha e viu que do outro lado também constava outro número, ignorou completamente. Uma série de possibilidades explodiram em sua mente. Dobrou o papel e colocou em sua carteira. Isso não passaria em branco.

Kanon chacoalhou o pote de ração da gatinha e ela disparou rumo a cozinha. Isaak alheio a tudo passou a mão pelo rosto, irritado, confuso e com muito tesão.

— Que inferno… — sussurrou entre dentes.

 

Quando retornou a sala Kanon percebeu uma mudança na energia de Isaak que mal esperou ele chegar perto para já começar a lhe arrancar as roupas. Ele claramente aproveitava a empolgação do mais novo, mas no fundo ficou com a impressão de que perdeu algo. Mas o que poderia ter acontecido nos poucos minutos em que esteve ausente?

Isaak era tantas vezes indecifrável, confuso que nem toda gostosura do mundo parecia compensar aquela instabilidade.

O garçom era muito tesudo, tinha um corpo magnífico, o pau mais bonito que Kanon já havia posto os olhos e tudo proporcional a sua pegada impressionante que só podia ser um presente da natureza. Ele era um tanto selvagem e tudo com ele era temperado com gemidos que enfeitiçaram o grego, embotando seu juízo.

Entretanto, essas mudanças de temperamento, de atitudes, os sumiços e o silêncio constante eram bastante desgastantes para Kanon.

Gostava que Isaak tomasse iniciativas, não negava, todavia seguia com o incômodo de que aparentemente não conseguiam mais retomar a camaradagem, o espaço de diálogo que já tiveram.

Chegaram ao quarto entre beijos quase violentos deixando uma trilha de roupas pelo caminho.

Isaak o empurrou na cama e subiu em seu corpo, sentando sobre seu quadril. Uniu as duas ereções em um contato quente que fez com que qualquer raciocínio implodisse na mente de Kanon. Tocou com a ponta dos dedos as fendas brilhantes de pré-gozo e levou os dedos a boca. Kanon lhe agarrou as coxas gemendo com as sensações e com a visão divina e profana protagonizada pelo rapaz que após umedecer a própria palma com a língua passou a movimentar os dois membros os segurando com ambas as mãos sem desviar o olhar do grego. Manteve um ritmo lento e torturante enquanto via a face de Kanon ganhando contornos cada vez mais lascivos. Kanon tocava tudo que alcançava do corpo do mais novo, apertando e estimulando. Sentia a pele macia e firme, gemendo.

— Você é muito gostoso Kanon. — Se ergueu segurando ainda o próprio membro enquanto media todo o corpo do grego ainda deitado. Sorriu. - Vira para cá e empina essa bunda linda para mim. Quero te beijar.

Kanon obedeceu pensando no quanto o garçom o dominava. Ele um homem de 32 anos, 1,90 de altura de quatro com a bunda empinada na beirada da cama para o divertimento do jovem Caolho, um moço de 20 anos. A recorrente questão da diferença de idade que só parecia pesar do seu lado, já que Isaak nunca mencionou o assunto.

Mais uma vez perdeu a cabeça entregue ao prazer surreal proporcionado pelo amante.

Provavelmente o ato deveria ser rebatizado de Beijo Finlandês em homenagem a Isaak.

Kanon não conseguia conter sua voz desvairada, agarrava os lençóis desarrumando ainda mais a cama. Quando estava prestes a se derramar Isaak parou olhou para trás só para encontrar aquele olho brilhando mais que um farol na noite escura, no mar revolto.

Isaak passou as costas da mão por sua boca vermelha e inchada. Beijou a base da coluna de Kanon e já em cima da cama foi subindo os beijos pelas costas do loiro, até que sua boca estava na orelha de Kanon que gemeu ao ouvir sua voz transtornada de desejo:

— Me fode Grego, vem, acaba comigo.

Kanon se virou agarrando o corpo de Isaak, sentindo toda extensão de sua pele firme. Beijou-lhe a boca da forma mais obscena que conhecia e desceu as mãos por suas costas até chegar às nádegas que apertou e separou com força. Isaak gemeu mais alto sua língua dançando agora pelo pescoço de Kanon.

O tubo de lubrificante e o preservativo foram alcançados pelo dono da casa. Isaak pôs-se de quatro na cama e Kanon passou um tempo se dedicando a prepará-lo. Impaciente a voz de Isaak se fez ouvir mais uma vez.

— Agora, vem, vem sem dó!

Fim do autocontrole, Kanon colocou a camisinha em tempo recorde e encaixou-se, toda vez que Isaak dizia essas palavras perdia a cabeça. Arremeteu com força, dessa vez não tendo o menor cuidado, agindo de acordo com o que sempre era solicitado pelo garçom.

Isaak urrou seu nome rebolando.

Estavam suados e o clima erótico era permeado por uma agressividade que mesmo não tendo conseguido decifrar havia também contaminado o grego. Esticou a mão e puxou os cabelos de Isaak, que apenas repetia palavras sem sentido e após longos minutos sentiu o zumbido nos ouvidos, sua vista escureceu e todo corpo convulsionou em um orgasmo gigantesco.

Kanon o acompanhou na sequência.

Os dois gritando sem se importar com a vizinhança.

Mesmo depois de desabarem na cama eles tremiam, ainda sem se olhar. A sensação foi muito forte, uma descarga de energia sem par em todas as vezes em que haviam transado.

Respiravam ruidosamente, os corpos ainda experimentando ligeiros espasmos.

Kanon sentia um sorriso pregado em seu rosto e a sonolência se aproximando quando ouviu mais uma vez a voz de Isaak ainda de costas para ele:

— Você tá saindo com outros caras Kanon? Tem trazido mais alguém para a sua casa?

Aquelas palavras roubaram um pouco da completude que havia vivenciado há pouco. Kanon teve ganas de bufar e girou os olhos antes de se virar na cama para encarar o homem com quem tinha acabado de dividir um prazer incrível e mais uma vez o jogava na sequência uma questão descabida.

— Isaak, o que você quer saber exatamente? Você some, nunca está disposto a conversar comigo… Eu não tenho saído com mais ninguém, mas, me pergunto se não deveria. Por acaso temos algum compromisso?

Isaak o observou por alguns instantes. As sensações também misturadas em seu interior. Ele estava bravo com Kanon, ou não? Será que desejava mudar o status daquele relacionamento, será que o que tinham era afinal um relacionamento? Não sabia. E por não saber se irritava. Era isso, esse era o motivo de sua raiva.

— Quero saber se você está interessado em outra pessoa.

— Eu já respondi essa pergunta. Está implícito. O que estamos fazendo afinal, Isaak? Já são alguns meses nesse impasse, mas, recentemente acho que chegamos em um ponto de decisão. Você quer firmar um compromisso?

A pergunta não dava margem para se esquivar. Isaak quis afagar o rosto de Kanon e tentou contar os pontos dourados que via em seus olhos. Uma onda de angústia o abateu. Quando ouviu sua voz praticamente não se reconheceu.

— Eu não sei se quero isso Kanon.

O rosto de Kanon endureceu. E lá estava ele novamente.

Naquele momento sua nudez o incomodou. Sentou-se na beirada da cama e suspirou antes de se erguer aparentemente refeito. Abriu seu guarda roupas e pegou um short leve de dormir que vestiu. Amarrou o preservativo usado e jogou no lixo do banheiro. Isaak se ergueu também e começou a recolher e vestir suas roupas. Se aproximou do grego o abraçando pela cintura. Kanon girou seu corpo e o abraçou cheirando seu cabelo. Tocou seu rosto acariciando com o dedo a cicatriz, pousou um beijo na testa do mais novo.

— Você não vai falar nada? — A voz de Isaak falhou sutilmente.

— Acabou Isaak. — Foi a resposta firme que recebeu.

Chapter 28: Tudo vem abaixo, com isso

Chapter Text

O tempo pareceu parar. Teve o impulso de dizer que Kanon não poderia estar falando sério. Ao mesmo tempo sentiu a dor da compreensão de que o que foi dito por ele, somente o havia sido, dado às suas próprias palavras.

Suas palavras, ou a ausência delas. Suas atitudes. Ele não sabia. Mais uma vez nada sabia.

As coisas deveriam ser mais fáceis. Não?

Kanon era lindo, bem resolvido, a melhor foda da sua vida e por algum motivo que desconhecia, por algo para o qual nem sabia existir nomenclatura, um vácuo se formava em seu peito. Qual era a parte que faltava? Não fazia sentido. Não podia fazer sentido.

Sua garganta fechou. Os olhos áridos como a boca. Não conseguiu dizer nada.

Olhava para o grego e apenas reconhecia os sinais de preocupação.

Os olhos escurecendo, aquela boca desgraçadamente gostosa.

O que estava fazendo ali ainda? Se deixou abraçar, eles estavam se consolando durante o rompimento? O desamparo o tomou com violência. Estava exausto. Afogou o rosto no peito de Kanon e eles se sentaram na beirada da cama, a mesma na qual há pouco haviam fodido brutalmente.

— Isaak, você sabe que gosto da sua companhia e você sabe que eu estou envolvido, impossível que não perceba. Acontece, que chegamos naquele momento. Preciso saber se me solto aqui ou se desisto. Não quero me apaixonar e quebrar a cara de novo. Se for para ficar juntos, quero que seja de verdade. Namoro, mãos dadas e te apresentar para minha família. Eu estou disposto, mas não me sinto seguro de que você também esteja. Você quer isso?

— Kanon… Eu… Eu gosto de tudo com você. Mas… Eu simplesmente não sei. Nunca me prendi a ninguém. Não sei o que dizer...

Kanon fechou os olhos por um instante sentindo a pontada no peito. Apertou a mão de Isaak que percebeu ainda segurar.

— Acho que tivemos um bom tempo para que você se desse conta. Essas coisas, mesmo inseguro, a gente simplesmente sabe, você percebe quase instintivamente algo… Você apenas sabe.

Agora Isaak o olhava com aquele único olho marejado, ainda mais brilhante, um insano diamante verde. Tão menino ele. Tão cheio de possibilidades e com uma vida inteira pela frente. Isaak estava ingressando na idade adulta. Kanon era homem feito, cheio de bagagem emocional e cicatrizes, desde o começo imaginou que cedo ou tarde estaria nessa posição. Mesmo assim estava doendo literal e figurativamente no seu coração.

Sua experiência e consciência, no entanto alertavam que demorar-se só faria tudo ainda mais doloroso.

A paixão ameaçava se enraizar, ainda poderia arrancar isso de si. Teria que, mais uma vez, recomeçar sozinho.

— Que droga… — murmurou antes de puxar o rapaz para seu colo e beijá-lo mais uma vez, lentamente, gravando na memória todos os contornos daquela boca. Isaak como sempre se entregou suspirando. Foi um beijo longo, doce, triste e saudoso. Deixaram que as mãos tocassem um ao outro com carinho. Quando terminaram aquele encontro doloroso de bocas, lábios e línguas, permaneceram com as testas coladas por algum tempo. — Vai ser melhor assim. Um dia você também vai concordar.

Isaak parecia um pouco assustado por alguns segundos e então assumiu uma máscara nova para Kanon. Um desinteresse, o distanciamento que ele usava constantemente, mas que jamais tinha mostrado ao biólogo. Levantou se afastando.

— Talvez você tenha razão, afinal já viveu tanto. E eu não sei mesmo de porra nenhuma. Se é assim, melhor eu tomar meu rumo.

— Isaak... — Nada mais disse quando o rapaz apenas ergueu a mão pedindo com o gesto que ele não continuasse — Vou chamar um táxi para você.

Isaak deu de ombros, aceitaria, não estava disposto a admitir, mas suas forças estavam no fim e tudo que desejava era retornar para sua casa.

Terminou de se vestir, pegou suas coisas na sala e beijou o topo da cabeça da gatinha que estava deitada no encosto do sofá se despedindo. Kanon chamou o carro pelo aplicativo, já colocando como destino a casa de Hyoga e Isaak.

Eles desceram as escadas em silêncio.

No portão se olharam magoados e sem disfarces por alguns momentos antes do carro chegar.

— Valeu a pena Isaak.

— Eu sei que sim. Foda-se. — Puxou Kanon pela gola da camiseta e lhe deu mais um beijo rápido e violento. Piscou seu olho maliciosamente antes de seguir para o carro cuja a motorista aguardava com um sorriso discreto.

Entrou no veículo sem tornar a olhar para o loiro e eles partiram em seguida.

Kanon fechou o portão e subiu as escadas. A cada dia os degraus pareciam maiores e mais distantes. De volta a sua casa olhou para o teto.

O silêncio e a solidão o abraçando.

Deixou que seu corpo escorregasse até o chão. Permaneceu lá com as mãos apoiando a cabeça. Sabia que estava certo, mesmo assim doía como um coice do capeta. Olhou para frente sorrindo fraco quando sentiu as cabeçadas de Deusa nas suas canelas. Afagou sua querida gata.

Estava feito. Agora era só superar.

***

Seu plano inicial era permanecer em casa descansando o restante do dia, uma vez que havia terminado um plantão há relativo pouco tempo. Contudo, recebeu uma ligação do hospital pedindo sua presença já que alguns funcionários haviam se ausentado e lá estava mais uma vez de prontidão.

Concentrou o olhar na figura ruiva trajando uma típica roupa de corrida e com escoriações por algumas partes do corpo, enquanto o irmão falava em um ritmo acelerado contando a história do atropelamento ao mesmo tempo em que não disfarçava o interesse no… Traseiro do acidentado.

— Irmão… O que está acontecendo?

O questionamento de Shun continha uma dualidade que Ikki não captou no momento ou simplesmente pareceu ignorar.

— Camus esse é o meu irmão mais novo Shun, ele é residente aqui e vai te atender.

Shun ergueu uma sobrancelha meneando a cabeça e encarando Ikki.

— Ikki, não é bem assim que as coisas funcionam em um hospital. Antes de tudo seu amigo precisa se dirigir à recepção. Você possui plano médico? — Perguntou olhando para Camus.

— Isso não importa, eu pago a consulta. Você ouviu a parte em que eu disse que atropelei ele?

— Ouvi, mas não muda o fato de que ele precisa passar na recepção primeiro. — O residente não disfarçava o tom de divertimento na voz, enquanto se surpreendia com as atitudes do irmão.

— Eu tenho plano médico, acredito que o plano da Sirene cubra esse hospital.

— Cobre sim. — Shun respondeu sorrindo - Acho que cobre o país todo na verdade. Vá até a recepção primeiro, vou avisar que ficarei com seu prontuário. Já vou agilizando a sala de ressonância e atendimento.

Ikki acompanhou o irmão distanciando-se até entrar em uma porta dedicada apenas aos funcionários do hospital e encaminhou-se junto com Camus para a recepção. O ruivo preencheu os formulários necessários, tendo o olhar atento de Ikki sobre si, em poucos minutos estavam novamente na presença do Amamiya mais novo.

— Senhor Camus, está sentindo algum tipo dor na cabeça, enjoo ou visão embaçada? — Shun perguntou sentado em sua mesa preenchendo as informações no computador.

— Não, nada. Estou muito bem na verdade. Seu irmão... — Apontou para o homem de braços cruzados sentado ao seu lado. — Que insistiu para que eu viesse aqui. Além disso, pode me chamar só de Camus.

— Entendo. — Shun conteve o riso ao ver a cara de Ikki. — Preciso te examinar Camus, levante por favor.

O jovem médico pediu que o ruivo movimentasse as pernas, os braços, olhou as escoriações, identificou uma luxação no ombro direito, além dos arranhões no cotovelo. Enquanto examinava o paciente não se furtava de observar os olhares que o irmão lançava a Camus e se divertia internamente com aquilo.

Vejam só… Irmão… Quem diria.

Pensou contendo a vontade de rir ao observar que os olhares de Ikki eram prontamente retribuídos.

Agora meu trabalho virou zona de flerte. Era só o que me faltava.

— Preciso que tire a camisa, Camus. Vou examinar seu abdômen. Irmão, saia um instante, por favor.

Ikki piscou algumas vezes como se não tivesse entendido o comando e empurrou a cadeira com certo desgosto levantando-se.

— Ele pode ficar, não me importo. — Camus respondeu sorrindo.

— Prefiro que ele saia. — Shun respondeu sério. — Estou fazendo meu trabalho. — Decretou encarando o Amamiya mais velho.

— Claro Shun…

Ikki conhecia o irmão o suficiente para saber que a calma e a gentileza eram traços marcantes de sua personalidade, além é claro do bom humor, sendo assim, era muito provável que ele estivesse se divertindo com a situação, mas acima de tudo ele era um profissional e não deixaria nada atrapalhar isso. Assim que Ikki saiu o ruivo tirou a camisa e Shun continuou a examiná-lo.

— Já conhecia meu irmão, Camus? — Questionou olhando as costas do paciente.

— Não… Ele acabou de me atropelar e essa é toda a história.

— Ikki não costuma ser desatento, mas anda em uma maré ruim. Dói aqui?

— Não. Acho que temos isso em comum. Ai… Nessa parte dói.

— Pelo que pude perceber, vocês têm mesmo algo em comum… — Falou em um tom enigmático. — Você está com uma luxação no ombro direito. Vamos imobilizar com uma tipóia para que não haja movimentação. Fora isso não me parece que tenha ocorrido nada mais grave. Mesmo assim, recomendo repouso de quinze e vou prescrever anti-inflamatório.

— Alguma fórmula específica? — Perguntou vestindo a camisa.

— Nada em especial… Você trabalha na Sirene, não é?

— Sim, sou farmacêutico.

— Então vai reconhecer os remédios que vou prescrever. Você me parece bem, mas sempre prefiro me calçar de todas as formas. Vamos fazer uma ressonância. Já deixei a sala preparada. Assim ficamos todos mais tranquilos, incluindo seu atropelador.

Encaminhou Camus para a sala de ressonância enquanto Ikki permanecia do lado de fora. Voltou com o ruivo que convidou o Amamiya mais velho para entrar na sala e acompanhar o resultado do exame. Shun estava prestes a falar quando ouviu batidas na porta. Permitiu a entrada e os três homens acompanharam a mulher alta, com longos cabelos castanhos, curvas acentuadas, seios fartos e calçando um salto altíssimo que servia não apenas para somar alguns centímetros a sua estatura, mas também para intensificar a altivez da figura séria que adentrava a sala.

— Doutora Sendai, precisa de algo?

— Sim… Não sabia que estava em atendimento. Pode terminar.

— Na verdade, já que está aqui poderia avaliar junto comigo essa ressonância? Não vejo nenhuma anormalidade, mas uma opinião mais experiente seria bem vinda.

A médica sorriu minimamente e se aproximou de Shun, cumprimentou olhando brevemente os dois homens sentados e passou a dedicar total atenção ao exame. Enquanto ela fazia a avaliação, Shun discretamente acompanhava o olhar do irmão deslizar com interesse pelo corpo da médica, perdendo o foco em poucos segundos direcionando-se novamente a Camus que parecia claramente fascinado com as coxas de Ikki.

— Concordo com seu diagnóstico Dr. Amamiya. Já te dei autorização para a assinatura de atestados, não é?

— Já sim. Inclusive pretendo dar quinze dias de repouso ao paciente. — A médica concordou com a cabeça.

— Qual medicação prescreveu? — Observou por cima do ombro de Shun o computador — Perfeito! — Apertou levemente o ombro dele. — Assim que terminar o atendimento me procure, por favor. — Olhou para os dois homens. — Boa noite, senhores.

— Vou apenas prescrever a medicação, preencher o atestado e já me dirijo a sua sala. — Falou levemente corado vendo a médica sair e fechar a porta da sala.

Assim que Sendai saiu Ikki olhou para o irmão.

— June conhece sua colega de trabalho? — Falou malicioso.

— Conhece e sabe que não precisa se preocupar com nada. Sendai é ótima profissional, minha supervisora e sim é muito bonita, mas isso não quer dizer que agrade a todos, não é irmão? — Sorriu ao ver Ikki engasgar levemente. — Camus você pode ir até a sala dez, no fim do corredor. Leve esse papel, vão colocar a tipoia e fazer a assepsia das escoriações e os devidos curativos. Enquanto isso faço seu atestado e medicação. Volte aqui depois.

O ruivo levantou e Ikki fez menção de o acompanhar, mas deteve-se mediante o pedido de Shun.

— Irmão pode ficar um minuto? Queria trocar uma palavra contigo já que está aqui. — Camus saiu fechando a porta. — Está interessado nele? — Shun questionou escrevendo a receita.

— Shun! — Ikki exclamou.

— Ora, irmão, o que tem demais? Só quero saber se esse seu nervosismo todo é só pelo interesse no rapaz, muito bonito por sinal, ou se algo mais está acontecendo. — Carimbou a folha.

— Shun, não acho que deva se preocupar com essas coisas no seu trabalho. — Mexeu-se na cadeira sem jeito.

— Ikki, você trouxe... — Fez um gesto de aspas com as mãos — Essas coisas para o meu trabalho. Pra todo caso, acho que formam um belo casal. — Deu de ombros. — Não importando ou não se vão se tornar um. Só acho que você deveria saber. — Encarou os olhos escuros do irmão.

O mais velho suspirou sorrindo em seguida.

— Você é mesmo incrível. — Apertou a mão de Shun sobre a mesa. — Mas a June não ficou mesmo com ciúmes? — Mudou de assunto. — Eu posso estar com outro foco agora… — Sorriu minimamente — Mas é meio impossível não ver aquela médica.

Shun gargalhou balançando a cabeça.

— Ela ficou um pouco enciumada sim, mas a Doutora Sendai é muito séria e ética, além disso, eu gosto mesmo é da June. — Corou. — Mas admito que às vezes é meio difícil não reparar eventualmente em algumas par…

Interrompeu mais uma vez a fala ao ouvir uma batida na porta e Ikki parou de gargalhar ao ver Camus entrando na sala com uma tipóia no braço.

— Aqui, seu atestado, sua medicação e seu exame. Espero que melhore logo e desculpe a distração do meu irmão. — Shun sorriu.

— Acho que ambos estávamos distraídos. — Pegou os papéis passando o olhos rapidamente — Obrigado pelo atendimento Shun. — Estendeu a mão em cumprimento — Prazer em conhecer você.

— Igualmente… — Aceitou o cumprimento — Pena que em uma situação tão infeliz. Te vejo em breve Camus. Tchau irmão. — Acenou.

Sentiu o olhar de repreensão do irmão mais velho e suprimiu a vontade de rir ao ver o olhar confuso do ruivo. Assistiu a saída dos dois e mordeu a ponta da caneta que estava em sua mão em um gesto de diversão e malícia contida. Já havia reparado alguns olhares diferenciados de Ikki para Sorento e outros homens, mas o irmão continuava agarrado em Pandora como um cachorro no cio.

O mais velho sempre ostentou a típica pose de machão, mesmo que não tivesse grande êxito em disfarçar o interesse, pelo menos não o que era captado por Shun.

O japonês mais novo tinha uma aura de inocência que nunca o abandonou, mesmo que ao bem da verdade, a única coisa que mantinha de inocente era a aura. Agradou-se do gosto do irmão e fazia votos de que ele ao menos se divertisse, já que andava tão cabisbaixo e afundado em trabalho. A única coisa que queria era que o mais velho fosse feliz, só isso. Preocupava-se com a introspecção que se acentuava na personalidade de Ikki e vê-lo às voltas com o ruivo não pareceu ruim, já que ao menos trouxe algum sorriso ao rosto que andava constantemente carrancudo.

Levantou da cadeira seguindo para a sala da doutora Sendai, corou ao lembrar do comentário do mais velho e da parte do corpo da médica que às vezes acabava prendendo seu olhar.

Sorriu maroto, Ikki teria que explicar direitinho esse tal atropelamento e mais do que isso o fim de noite com Camus.

***

Na manhã de segunda feira Milo acordou sorrindo, o que não era nada comum para ele que sempre ficava um bom tempo resmungando e tentando retornar ao sono quando despertava, Hyoga estava ao seu lado na cama, aconchegado ao seu corpo e ressonando tranquilo.

Haviam passado todo o fim de semana juntos. Caminharam pela praia, nadaram e tomaram um pouco de sol, cozinharam juntos, acabaram assistindo filmes na televisão e saíram para jantar em um restaurante italiano que Milo adorava. Os dois dias passaram voando e ambos seguiam naquela aura de encantamento. Estava super cedo e ele, mesmo assim, estava contente.

Tinha feito o plano de levar o russo para a aula, só assim para o mais novo aceitar dormir também na noite passada em sua casa. Se levantou com cuidado, queria surpreender Hyoga com um belo café da manhã. Esperava que a semana que se iniciava conservasse aquela energia boa. O russo só despertou quando sentiu o cheiro convidativo de café. Sorriu abrindo os olhos lentamente. Milo estava ao seu lado, sentado na cama, notou a xícara de café na mesinha de cabeceira. Céus, esse homem basicamente não existia!

Milo fez um cafuné em sua cabeça e seu sorriso se ampliou.

— Gosto de te ver dormindo Hyoga, você deve me achar um psicopata… Fiz café para você, vem ou vai se atrasar para a aula.

Hyoga riu negando com a cabeça, se espreguiçou e já sentado, aceitou a xícara que Milo agora lhe estendia e bebeu um longo gole de café preto. Eles foram juntos para a cozinha para comer.

Conversaram um pouco, logo Hyoga foi tomar banho e Milo que já estava pronto para sair organizou as coisas na cozinha.

Milo sentia uma leveza impressionante e um clima de familiaridade muito prazeroso. Ele raramente se ausentava dos encontros da família, mesmo com a proximidade do casamento de Aiolos preferiu passar o domingo com Hyoga, chegou a cogitar levá-lo no almoço da família, todavia, a perspectiva de que o rapaz fosse bombardeado por questionamentos e curiosidade concentrada o demoveu dessa possibilidade.

Precisava preparar o terreno e adicionar sua família em doses homeopáticas para não assustar seu novo… Namorado? Eles decidiram tentar, não chegaram a dar nome ao que tinham.

Tudo bem, suspirou escutando Hyoga deixar o banheiro e ir para seu quarto para se aprontar. Depois do casamento começaria esse processo. Por enquanto todas as atenções deveriam ser de Aiolos e Seika.

Deixaram o apartamento rumo a faculdade de Hyoga na sequência.

 

O fim de semana maravilhoso, todos os momentos agradáveis culminados pelo café da manhã na cama, carona para faculdade e todos os gestos carinhosos de Milo cravaram um sorriso em Hyoga que ele não pensava ser possível se apagar tão cedo, entretanto, foi o que aconteceu quando o jovem russo encontrou com Isaak naquela manhã. Um pouco antes da primeira aula o garçom já estava na porta da sala de aula. De longe Hyoga já sentiu a aura gelada ao redor de Isaak, que permanecia carrancudo e olhando fixamente para algum ponto indeterminado. Aproximou-se dele o cumprimentando com um rápido abraço.

— Bom dia Isaak, que cara é essa? — Entre eles não cabiam rodeios, ainda que muitas vezes Hyoga apenas preferisse dar espaço ao amigo e se desviar da irritação cotidiana dele, naquele momento Isaak aparentava realmente estar com algum problema.

Isaak encarou o amigo por alguns instantes e desistiu de segurar para si a confusão que lhe afligia desde a noite anterior. Havia dormido pouco e mal. Frustrado com tudo. Sentindo alívio e paradoxalmente culpa. Precisava de redenção. Quem sabe, conversar ajudasse?

— Hyoga… Tomei um pé na bunda ontem a noite — o russo não conseguiu esconder sua surpresa expressa por ele de forma discreta, mas que Isaak reconhecia como algo relevante — E eu honestamente não sei se fico puto ou aliviado. Só posso ter bosta na cabeça, você não acha?

Só o fato de Isaak falar já era algo que apontava uma mudança positiva em suas atitudes costumeiras. Não que Hyoga fosse ele também a mais comunicativa das pessoas, mas ele fazia um esforço desde sempre nesse sentido.

A experiência traumática que marcou a vida deles, ainda muito jovens, influenciou toda maneira que amadureceram e se mostravam para o mundo. Enquanto Hyoga acreditava que deveria viver tudo profundamente e não deixar nada por falar, já, que sentiu na própria pele a efemeridade da vida; Isaak tentava extrair prazer de tudo, tendo como norteador um pensamento hedonista que muitas vezes passava por egoísta, admitia, mas a motivação era a mesma, viver intensamente.

— Não, eu não acho. Você nunca deu espaço para muitas pessoas, pelo que vejo nunca levou nenhum relacionamento para frente. Estava entusiasmado vendo você e Kanon… Sinto muito, mas é normal eventualmente se desentender, quem sabe vocês possam conversar, se acertar…

— Ele quer namorar. E por mais que eu seja louco por aquele gigante, Hyoga, eu simplesmente não consigo ter certeza… — Passou a mão pelos cabelos nervosamente — Eu deveria, mas não consigo. Eu não sei o que quero.

— Existe alguma outra pessoa Isaak?

O garçom abaixou a cabeça uma expressão resignada. O bico crescendo.

— Ninguém que me notaria! Kanon disse que prefere terminar as coisas agora antes que se envolva profundamente. Ele já se fodeu muito, sabe? Teve um namorado escroto que botou uns cornos nele com mulher. Ele é cuidadoso. Eu comecei a ficar inseguro e isso é uma bosta, ele é um homão e eu… Acho que eu sou mesmo um... De qualquer forma, esse alívio, isso não pode ser normal, não é?

— Se perguntar isso tudo e ver as qualidades de Kanon é importantíssimo, mas, você também precisa aceitar que mesmo ele sendo um cara magnífico talvez não seja com ele que você quer ficar. E, se não for, é melhor mesmo deixar ele livre. Você sabe como é ruim quando uma pessoa é iludida, a gente se sente muito idiota.

Isaak sabia a que ele se referia. Assistiu de camarote o amigo sofrendo por alguns meses por conta de um filho da puta que simplesmente sumiu sem dar qualquer explicação e depois quando retornou disse coisas horríveis para Hyoga. Não, ele não queria ser esse tipo de gente.

Não era justo arrastar uma pessoa legal como Kanon consigo nessa incerteza. O grego merecia muito mais que isso.

O professor entrou na sala de aula e a maior parte dos estudantes que assim como eles aguardavam do lado de fora o seguiu. Não eram todas as disciplinas que faziam juntos.

Isaak gostava das segundas feiras porque se viam na faculdade. Ainda tinha muito em que pensar, mas, saber que não queria ser um cretino já era um ponta pé inicial.

Sorriu levemente para Hyoga enquanto se sentavam, a aula já ia começar.

Isaak enfrentava internamente um turbilhão de sentimentos e questionamentos.

Definitivamente tinha muito o que aprender.

Chapter 29: O sagrado canta através de você

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Milo se preparava para a bronca de Aiolia antes mesmo do primo atender o telefone. O irmão mais novo de Aiolos era sempre a pessoa que mais prezava pelas reuniões familiares, não por acaso estava tão envolvido com a organização da festa de Despedida de Solteiro.

Quando estava prestes a desligar uma voz profunda e desconhecida atendeu. Por um instante Milo ficou de queixo caído. Um homem atendendo o telefone do Aiolia?! Mas, será? Parte da cota heterossexual da família poderia ter sido convertida? Quis rir com sua piada, literalmente interna. Era uma voz bem bonita. Pigarreou levemente.

— Alô?

— Aiolia? — se fez de desentendido

— Não, boa tarde é o assistente dele. Aiolia está em uma ligação e pediu para te atender e avisar que mais tarde retorna.

— Ok, muito obrigado.

— Por nada.

E desligou. Milo olhou o aparelho confirmando que a ligação havia sido encerrada e pensou que precisava parar de ligar para Aiolia em dias de semana e, apenas mandar mensagens, afinal o Íroas mais novo vivia às voltas com incontáveis tarefas. E basicamente nunca atendia o celular, agora pedir para outra pessoa atender era novidade.

Por outro lado saber que o primo estava tão ocupado talvez fosse seu passaporte para passar ileso da bronca. Ainda não tinha contado para ele sobre Hyoga e sabia que teria que responder um interrogatório. Aiolia era muito possessivo… E ele havia acompanhado mais de perto todo seu drama com Camus.

Durante a infância e a adolescência sempre foram muito próximos, estavam na mesma faixa etária, sendo o outro apenas um ano mais velho. Tinham desenvolvido um companheirismo muito afetuoso. Sempre estando um a postos para ser o ombro amigo ou o incentivador do outro.

Não que as pessoas da grande família grega fossem todas abençoadas com sorte no amor, mas no caso de Aiolia o azar aparentemente havia sido elevado a uma potência diferenciada.

A situação era simples, Aiolia não conseguia levar nenhum relacionamento para frente, ao mesmo tempo que sempre tinha alguém tentando o empurrar para qualquer moça casadoura que aparecesse no radar da família. Nenhuma mulher parecia ser boa o suficiente para o garoto dourado dos Íroas.

Com o iminente casamento de Aiolos isso provavelmente havia piorado, pensou, afinal por mais que não tenha sido um processo suave, atualmente todos aceitavam que parte de seus lindos filhos eram sim homossexuais. O que empurrava alguma responsabilidade extra para Aiolia.

Já que Kardia e Saga estavam cagando para o que a família pensava.

Milo se reclinou no sofá e ficou passeando por uma rede social de fotos. Então se deteve em uma imagem de uma garotinha abraçada em um cachorro. Será que algum dia teria o impulso de constituir uma família? Suspirou deixando o aparelho na mesinha e colocou os braços dobrados como apoio da cabeça. Compreendia que estava mais uma vez se jogando de cabeça em uma relação, sabia que afora Kanon, todas as pessoas próximas diriam que ele estava indo rápido demais, que não poderia reclamar se mais uma vez quebrasse a cara. Diabos, ele mesmo diria isso a qualquer um que lhe contasse a história dele e de Hyoga.

Será que se apaixonaram à primeira vista? Isso era muito inesperado. Ainda assim parecia natural e acertado. Hyoga havia sido muito transparente desde o primeiro instante, recordou o olhar intenso naqueles olhos de céu. Mesmo ruborizado, quando no carro tocou sua mão e disse “Deixa rolar” foi o momento em que cravou sua bandeira no coração de Milo.

Só esperava mesmo não se foder.

Depois do relacionamento com Camus ele contava com ter endurecido. Teve alguns encontros, nada sério. Entretanto, ninguém havia lhe desestabilizado e chamado a atenção dessa forma.

De forma nenhuma a bem da verdade.

Voltou a pensar sobre o tal gostoso do menage. Torceu o nariz, não significava mais nada, além da pessoa que deu o start na percepção de Hyoga sobre a própria sexualidade.

O cara havia sido um cretino. Não deixaria isso crescer, não tinha nenhum motivo para sentir ciúmes, nem deveria continuar comparando Hyoga com Camus.

O francês parecia por muito tempo sentir alguma satisfação, quando ele estava inseguro e, paralelamente a isso se irritar quando Milo estava “pavoneando” ou sendo um “maldito exibicionista” segundo as palavras do ex.

Milo admitia também, atualmente, que em diversas ocasiões procurou ou provocou situações tentando receber alguma reação de Camus. Eles tiveram um relacionamento conturbado.

Sexo inacreditável, entretanto, muitas intrigas e ressentimentos de ambas as partes.

Sua mente passeou para alguns momentos do passado. O que estava feito estava feito.

Um relacionamento morto e enterrado.

Ficou genuinamente contente por ter percebido que seu coração não disparou quando viu Camus, e orgulhoso de si mesmo por ter mantido decoro natural.

Antigamente, só de ver aquele ruivo já ficaria mais duro que uma rocha. O francês era um puto gostoso. Nenhum questionamento quanto a isso. Mas ao que tudo indicava Milo havia se curado daquela deliciosa e dolorosa doença.

O remédio, mais do que o tempo, era um jovem loiro quase tímido que fazia com que seu nome se tornasse a mais bela expressão do Sagrado toda vez que o pronunciava.

***

Por mais que odiasse encurtar suas parcas horas de sono, foi obrigado a chegar ao Imperador mais cedo do que o usual. Ao menos sabia que Thétis remuneraria todo o horário excedente, quanto a isso não precisava se preocupar. Assim que chegou foi encaminhado pela Gerente juntamente com Io ao salão superior do bar. A loira fez toda uma apresentação do espaço, o que gerou olhares divertidos entre os dois garçons, já haviam trabalhado em mais de um evento ali, porém, sempre eram incluídos nas “aulas de reconhecimento”, como Thétis costumava chamar.

Ela dedicou clara atenção a repassar um quase dossiê sobre os convidados da festa, o que agradou aos dois funcionários pois saberiam muito bem com quem estavam lidando. Passados os últimos ajustes, a reunião foi mais rápida do que o planejado, uma vez que, os dois eram quase que figura carimbada em todos os eventos. Ambos precisavam e juntavam dinheiro, cada um com seu objetivo.

Desceram as escadas, Io foi em direção a Bian que havia desvirado uma das cadeiras que ficavam dispostas sobre a mesa e estava sentado nela mexendo no celular. Ao perceber a aproximação do outro ele sorriu e Sorento só o ouviu falar: “Eurrênio”, pronunciando os “erres” de uma forma exagerada e encantadora, recebendo um beijo em troca.

Sorento sorriu e cumprimentou Bian com um meneio de cabeça deixando os dois a sós no salão do bar. Entrou no quarto de funcionários e já ia colocar o celular para despertar, planejando se esconder em algum canto e tirar ao menos mais 20 minutos de soneca quando o aparelho começou a tocar e sentiu como se seu sangue estivesse sendo drenado do corpo. As mãos geladas e trêmulas. Não queria atender aquela ligação, já havia até mesmo trocado de número, não era possível.

O maldito sempre me acha!

Respirou fundo passando a mão pelos cabelos, não era um covarde.

— O que deseja Franz? — Sorento falou em um tom mordaz.

— Já não me chama mais de pai garoto?

— Até onde minha memória não me falha a última vez o senhor me dirigiu a palavra foi para dizer que não possuía mais filho. Sendo assim, acho que a resposta para seu questionamento é clara. — O tom de indisfarçado sarcasmo.

— Seu tom de voz não me agrada.

— E alguma coisa em mim alguma vez o agradou?

— Sempre me agradei de sua inteligência e do fato de ter nascido homem, mesmo que não queira ser um.

— Eu sou um homem, Franz. Em nenhum momento disse o contrário.

— Ah claro, como você disse mesmo: “É sua orientação sexual”. Faça me o favor! Você é Franz Sorento de Sirene. Meu único filho e herdeiro de todo um império que eu construí. Não me venha com essa papo ridículo e afetado.

Sorento respirou fundo, parecia que estava revivendo toda a situação pela qual havia passado há um ano. Adiou tanto aquele contato, mesmo que sentisse falta da mãe e tivesse trilhado um caminho tortuoso. Agora estava bem, cansado, mas bem. Já tinha lambido suas feridas e recomeçado sem a ajuda do pomposo nome que o patriarca de sua família gostava de ostentar. Ele estava curado, refeito e não precisava de toda essa conversa para o desestabilizar. Não agora.

— Estou aguardando o motivo do seu contato. — Sorento tentava manter o tom de voz impassível.

— Achei que era óbvio. Essa sua aventurinha já está demorando tempo demais. Você tem noção da vergonha que é para um Sirene ter o filho trabalhando de garçom ou vendedor? Não paguei seus estudos para isso. Investi em você para ser meu sucessor, meu herdeiro. Não para ficar às voltas com bandejas e livros.

— Ainda estou aguardando… — O garçom sentou no banco que ficava dentro da sala dos funcionários. — Não possuo todo o tempo do mundo, diga logo o que deseja.

— Eu quero que você volte para casa. Pare com essa palhaçada! Já passou um ano, você já teve todo o tempo do mundo para ter seus casinhos e fazer suas imoralidades. Agora está na hora de seguir seu rumo, o destino que tracei pra você.

— O que você imagina que aconteceria caso eu voltasse para a sua casa? — Sorento apertava uma das mãos com força, na ânsia de tentar manter a calma.

— O que já deveria ter ocorrido há muito tempo. Você vai se casar, ter filhos, herdar o que eu deixei pra você. Sua mãe sente sua falta…

— Não seja tão baixo. — Respondeu entre dentes. — Não coloque minha Mãe no meio de suas falácias. Ela é exatamente um dos motivos pelos quais eu decidi não viver mais essa mentira. Não queria herdar a infelicidade que vinha junto com o dinheiro.

— Não me faça rir garoto. Grazia não era nada antes de casar comigo. Apenas uma mulherzinha de cidade do interior. Ou você acha que a italianada não ficou feliz quando a filha ficou rica de uma hora para outra? Meu arrependimento foi ter deixado ela colocar essas ideias de artes na sua cabeça, foi daí que começou essa sua frescura.

Sorento sentiu uma vontade absurda de jogar o telefone na parede, mais do que isso, queria estar frente a frente com aquele homem e mostrar a ele que as aulas de auto defesa tinham várias aplicabilidades, como por exemplo ensinar algumas lições a homens ricos e desprezíveis. Quase conseguia rir da ironia, afinal se não fosse a personalidade sórdida Franz de Sirene seria uma figura extremamente aprazível.

Chegando aos cinquenta anos, o bilionário tinha uma excelente compleição física, uma aparência invejável. Grazia, era oito anos mais nova e deslumbrante. O garçom em nada lembrava o pai, apenas herdara o nome e os olhos, de resto era uma cópia de sua mãe e não apenas fisicamente. Compartilhavam o gosto pela música, desenho, cinema e livros. E ao chegar na vida adulta só concluiu o que sabia desde a tenra idade: Grazia de Sirene odiava o marido. Ela nunca fomentou as ideias do filho de sair de casa, de origem pobre, sabia a diferença que o dinheiro fazia na vida. Mas tentou, dentro do que poderia barganhar, dar um destino diferenciado ao jovem Sorento. O flautista sentia falta da mãe, mas não iria se anular em prol de ninguém.

Em relação ao pai, queria apenas distância.

— Franz… Realmente não tenho tempo para desperdiçar com você… — A voz saiu mais alta que o normal. — Não tenho o hábito de desligar o telefone na cara das pessoas porque faço valer a educação que você me proporcionou. Esse mérito você tem, parabéns! Mas estou inclinado a desligar esse telefone, sendo assim…

— Eu pago o curso que você queria fazer. Aquele ridículo curso de música do qual você vivia falando e sonhando. Pois bem... Ele é seu. Volte pra casa, case com a filha de uma família que vou escolher e tenha seus machos escondido. Você já fazia isso antes, não era. Então… Não posso dizer que vou conseguir olhar pra você… Não criei filho para ele ser a merda de um veado. Mas posso fazer vista grossa. Acho que é um ótimo acordo.

— Um ótimo acordo?! — Sorento falou alto levantando do banco e gesticulando para o nada. — Você é um imbecil! Eu não preciso dos seus acordos e de nada que venha de você. Estou muito bem sem o seu dinheiro e controle. Eu quero mais é que você se exploda. Só lamento pela minha Mãe. Mas me acalenta a ideia de que você pode partir primeiro. Nunca mais me ligue. Esqueça que eu existo. Quem sabe apareço no seu enterro.

O flautista desligou o telefone com as mãos tremendo, se jogou novamente no banco e registrou os olhares de Io e Bian na porta do quartinho. Os dois o fitavam com preocupação e surpresa, nunca tinham visto Sorento levantando a voz ou com o rosto consternado como estava agora. Io fez menção de se aproximar mas Bian segurou seu braço, ao perceber o sinal negativo que o flautista fez com a cabeça. Afastaram-se em silêncio, estavam preocupados.

Vendo-se sozinho conteve a vontade de chorar e principalmente de gritar, que existência miserável era Franz de Sirene. E ele parecia satisfeito em arrastar a todos ao seu redor.

A infelicidade precisa de companhia.

Respirava fundo tentando conter a vontade que o dominava de socar a primeira coisa que visse em sua frente. Olhou o relógio de pulso percebendo que ainda tremia e registrou que tinha dez minutos antes de iniciar o expediente. Aquela conversa tinha durando mais tempo do que gostaria de admitir. Guardou o celular no bolso e colocou as mãos no rosto, pensou em beber uma água quando ouviu uma voz conhecida entoando seu nome em um misto de irritação e sarcasmo.

— Vejam só… É exatamente com você que eu quero falar.

***

Entrou na casa acendendo todas as luzes, ao contrário do esposo não era afeito a escuridão. Preferia o ambiente claro, no qual podia divisar perfeitamente a localização de cada uma das coisas, tal qual sua vida. Gostava de entender a essência de tudo e não se julgava capaz de tal empreitada caso se mantivesse na penumbra.

A comparação seria intrigante se Shaka percebesse que por mais que estivesse em meio a toda claridade possível, seus pensamentos e atitudes continuavam nubladas, pela sombra que ele mesmo criou.

Tomou um banho rápido e olhou o celular visualizando novamente a mensagem de Shura.

O esposo o avisou logo no final do dia que chegaria mais tarde, pois estava comemorando com alguns amigos que não puderam ir ao chá de casa. Incomodou-se brevemente já que o ideal seria o espanhol festejar o casamento com ele. Contudo, prezava de sobremaneira por sua individualidade, sendo assim não poderia privar o marido do mesmo benefício. Além disso, haviam passado o domingo praticamente entre os lençóis, aquela união estava mais do que celebrada.

Rememorando os momentos que passaram na cama, não pôde deixar de se sentir mais uma vez culpado por ter evocado a lembrança de Camus durante o sexo, mesmo que não tenha sido voluntário. Obviamente o companheiro jamais saberia de seus pensamentos, mas ainda assim se sentia desconfortável, ainda mais quando era palpável que aquele sentimento havia se abatido sobre os dois. Tal constatação o deixou levemente curioso, afinal, que motivo o espanhol teria para compartilhar daquela sensação.

Nem de longe Shura era suficientemente perceptivo para apenas se deixar levar por suas vibrações.

Curioso…

Deixou o celular na bancada da cozinha e começou a esquentar água para fazer seu chá. Observava a chaleira enquanto registrava mais uma ausência de Camus no trabalho. Não que aquilo interferisse em sua dinâmica de serviço, era capaz de levar o setor sozinho sem grande abalo, ademais o francês havia deixado tudo em dia, então não tinha do que reclamar. Mesmo assim, não conseguia disfarçar pra si mesmo o incômodo que aquela afastamento provocava. Saber-se de certa forma o responsável por aquela atitude o transtornava mais ainda. Não podia negar que essa distância o ajudou a ter um pouco mais perspectiva sobre o assunto, contudo, ao mesmo tempo atordoa-se com o resultado de suas divagações.

De todo modo, estava preocupado.

Suspirou tirando a chaleira do fogo e depositando a água quente em uma xícara na qual o sachê de chá repousava. Já não tinha mais tanta certeza acerca daquela mudança, ainda sim, manteria sua decisão. Recusava-se a se contradizer mediante uma declaração tão descabida.

Não vivo em uma comédia romântica para largar tudo em função de Gaetan. Ele espera o que? Que eu vá atrás dele com um buquê de flores e uma canção?

Olhou mais uma vez a tela do celular e viu uma nova mensagem de Shura avisando que se atrasaria um pouco mais. Respondeu informando que já estava em casa e desejando uma boa diversão a ele. Não vivia em uma comédia romântica, todavia neste momento não conseguia abafar o calor que sentia ao lembrar da dança e do quase beijo.

Precisava manter o foco, mas era difícil quando se via sozinho.

A bem da verdade, o dia anterior provou que também não era mais fácil quando estava acompanhado, Camus o acompanhava em todos os momentos. Lembrou da dedicatória no livro que havia recebido de presente e fechou os olhos.

Ao que parece você também permanece sempre aqui.

***

Aguardou até o último instante para enviar a mensagem na qual avisava ao esposo que sairia com os colegas de trabalho, mesmo que já tivesse consciência do programa desde o dia anterior. Sua mente trabalhava de forma a evitar aqueles encontros, ou pelos menos tentava evitar ficar por mais tempo que o necessário na presença do italiano que andava povoando seus pensamentos. Na verdade, repetia a si mesmo que iria declinar, não precisava comunicar nada pois não aceitaria o convite. Ledo engano!

Ao que parece sua força de vontade tornava-se inexistente, quando se via encarado por aqueles intrigantes olhos castanhos e acima de tudo, quando contemplava o sorriso safado que ornava o rosto de Ângelo. Aquele maldito erguer de lábios e suas promessas eram sempre os responsáveis por sua perdição e prazer.

Meu mundo por seu sorriso! Shura pensava todas as vezes contemplava aquele rosto, recriminando o pensamento em seguida. Não podia se deixar levar tão facilmente…

Mesmo assim, mais uma vez se via no bar sentado ao lado do italiano com ares de mafioso, que o encarava como se estivesse aguardando alguma coisa.

Assim que os colegas se ausentaram da mesa teve seus lábios capturados e por mais que lembrasse o compromisso que ambos tinham com outras pessoas, não se furtava de aproveitar o sabor daquele beijo que misturava de forma incomparável rudeza e doçura.

Depois de algumas cervejas e doses de tequila decidiram encerrar a noite. Saíram em dupla do bar dividindo o carro de aplicativo. Mu e Aldebaran seguiram juntos, assim como Shura e Ângelo, ou Máscara da Morte como o italiano preferia ser chamado.

— Vai mesmo direto pra casa? — Ângelo falou apertando a coxa de Shura.

O espanhol o encarou com um olhar enigmático, suspirando em seguida. Não conseguia, por mais tentasse, se manter imune aos convites daquele homem. Os Deuses eram testemunha de suas tentativas, mas gostaria de ver quem conseguiria se manter indiferente ao discernir aquele brilho avermelhado perpassando pela íris castanha. Tanta coisa podia ser lida naquele olhar.

— Como faço para mudar a rota? — Perguntou ao motorista do aplicativo.

Recostado no banco o italiano sorria internamente. Shura conseguiu mudar o trajeto e encostou-se sendo analisado por Máscara.

— Preciso avisar ao Shaka que vou me atrasar mais. — Falou em um fio de voz digitando a mensagem no celular.

— Avise! — Decretou passando a mão pelas pernas de Shura. — Quem mandou casar? — Riu sarcástico.

— Máscara… Eu realmente não tenho nada para te oferecer. — Murmurou vendo o motorista olhar pelo retrovisor.

— Você já disse isso hoje Espanhol e no entanto está aqui comigo. Ao invés de ficar repetindo que não tem nada para me oferecer, deveria pensar no que eu tenho para te oferecer e no que podemos desfrutar juntos. Você poderia só parar de fugir de mim. — Sorriu de lado acompanhando o olhar de Shura. — Algum problema senhor? — Perguntou ao motorista que desviou os olhos sem jeito.

O espanhol prendeu a respiração por alguns segundos aquelas palavras eram ao mesmo tempo tão ambíguas e tão diretas que não sabia ao certo o que responder. Só queria chegar o mais rápido possível ao destino e tirar as roupas daquele homem da mesma forma que ele tirava seu juízo.

— Ângelo… — Suspirou sem ter uma resposta.

— Não se preocupe Espanhol, eu vou fazer valer a pena… — Sussurrou no ouvido de Shura.

— Assim espero… — Respondeu também em um sussurro contendo o ímpeto do beijo.

Fitaram-se intensamente, não importava o quão errado fosse, eles sabiam que valeria a pena. Sempre valia.

Chapter 30: Aquilo me faz sentir desse jeito

Chapter Text

A reunião, ainda que virtual, foi bastante proveitosa. Aiolia era um organizador muito responsável e trabalhar com ele mostrou-se super agradável. Julian fez a anotação mental de contratar os serviços do arquiteto quando precisasse de alguma reforma no bar ou em sua casa.

Nem mesmo Saga pareceu estranhar a ausência de Kanon que foi considerada normal por Kardia e Aiolia. Julian, no entanto, sentiu alguma inquietação. O irmão de Saga vinha participando de todos os passos da organização da festa de Aiolos, mesmo que na maior parte das vezes dando tão somente apoio moral.

Então, Julian se concentrou, aquela conversa durou bem mais do que os 40 minutos planejados inicialmente. Ele se dava muito bem com os primos de Kanon, mas lamentava a ausência daquele que o havia introduzido nesse meio. Seu melhor e mais querido amigo.

Ao fim da reunião, pode finalmente meditar sobre a ausência de Kanon.

Julian era um homem bem sucedido e bem resolvido, mas jamais se esquecia de quem lhe deu as costas e colocava como prioridade as pessoas que o ajudaram quando ele mais precisou.

E dentre estas a principal era Kanon Chrysó.

Por alguns instantes sua memória o carregou para o passado, seu olhar endureceu. Afastou a onda de nostalgia ruim e concentrou-se no presente.

Clicou em seu celular no contato de Kanon e a chamada foi direto para a caixa de mensagens. Ponderou que o amigo talvez estivesse em outra ligação ou ocupado. Não havia nenhum motivo para alarme. No dia seguinte tentaria novamente.

Buscou outro número e antes do terceiro toque o telefone era atendido por Thétis. Ela informou que a remessa da festa de Aiolos já havia chegado naquela tarde, o local seria decorado na manhã seguinte, então ele e Aiolia fariam uma vistoria, informou que tudo corria tranquilamente no bar, era o início do turno.

Julian apreciava muito a maneira como a Gerente trabalhava, Thétis era uma colaboradora exemplar. Agradeceu e desligou.

Levantou-se deixou o escritório e dirigiu-se para a imensa varanda com vista para o mar. O vento fez seus cabelos deslizarem para trás. Sentiu o cheiro da maresia e finalmente permitiu a seu coração devanear… Observou os últimos raios de sol que brilhava perdendo-se no horizonte, em poucos instantes a paisagem se transforma, o mar tornando-se cada vez mais verde, lentamente mais escuro, perfeito.

Apenas por alguns momentos ele imaginou como as coisas poderiam ser diferentes e um leve sorriso formou-se em seu rosto, estar no controle todo tempo era exaustivo.

***

Sorento tirou as mãos do rosto e olhou para Isaak de pé em sua frente. O rosto demonstrava que tinha alguma coisa errada e ao que indicava ele estava envolvido.

Era só o que me faltava.

— Isaak realmente não estou em uma boa hora será que…

— Pouco me importa sua hora Sorento. Pode me explicar porque o Kanon tem o seu telefone na casa dele?

— O que? Isaak… — Suspirou cansado — Do que você está falando?

Isaak olhou brevemente para o rosto de Sorento e percebeu instantaneamente que tinha algo errado. Cogitou adiar aquela conversa, mas sua impulsividade sempre falava mais alto na presença do outro garçom. Ele queria saber afinal de contas porque diabos Kanon possuía um papel com o telefone do Flautista. E ao que tudo indicava escrito pelo próprio, há um ano que lia as comandas escritas por ele, sendo assim, reconheceria aquela letra caprichada em qualquer lugar. Talvez o pé na bunda tivesse alguma ligação com aquilo? Vasculhava sua mente buscando algum sentido. Estava irritado também.

— Não se faça de desentendido. Quero saber porque você deu seu telefone para o Kanon?

— Isaak… — Passou a mão pelos cabelos em um gesto cansado. — Em outro momento eu até poderia ter paciência para suas bobagens, mas não agora… Se você me dá licença… — Levantou do banco.

— Bobagem é o caralho! Não venha com esse ar de superioridade. — Segurou o braço de Sorento com força. — E não me vire as costas, estou falando com você.

— O que você acha que está fazendo? — Sorento levantou a voz puxando o braço e dando um passo na direção de Isaak. — Moleque, eu já disse que não estou em uma boa hora. Não me faça concretizar em você a vontade que eu estou de arrebentar alguma coisa.

Isaak não disfarçou a surpresa com a reação do sempre tranquilo e impassível Sorento. Contudo, nunca foi de se intimidar e não era agora que iria começar. No fundo, sentia um certo júbilo ao ver o brilho inédito naquelas olhos de cor indefinida.

— Gostaria de ver você tentar. — Sorriu com escárnio — Finalmente tem sangue correndo nas suas veias, hein… — Aproximou-se mais de Sorento.

— Pelos Deuses, o que você quer comigo? — Levantou as mãos para o alto claramente nervoso.

— Uma resposta!

— Não tenho o que responder. Não faço ideia de como seu loiro tem o meu número. E além disso… Você deveria cobrar respostas do grego e não de mim. — Notou a dúvida no rosto de Isaak. — Agora me responde: O que você quer comigo, moleque?

— Não me chame de moleque. — Pegou Sorento pela gola da camisa.

— Pois é isso que você é… — Desvencilhou-se empurrando Isaak contra a parede. — É a droga de um moleque confuso que não sabe a hora de parar. — Imprensou o corpo do mais novo na parede, uma das pernas no meio das dele. — Agora me diz de verdade o que você quer comigo Isaak? Anda.

Isaak mirou o olhar ferino de Sorento, tão diferente do que estava acostumado, sentiu a pressão do corpo dele e a respiração alterada pela irritação e também pela proximidade. Era apenas um pouco mais baixo e os rostos ficavam praticamente na mesma altura.

— Eu não sei… — Tentava manter o olhar fixo. — Droga, eu realmente não sei… — Sentiu uma das mãos de Sorento apertando sua cintura e não conseguiu evitar de olhar para a boca convidativa tão próxima a sua.

E ali estava o único sinal que o flautista precisava.

— Vamos ver se isso te ajuda a descobrir.

Soltou um longo suspiro antes de capturar os lábios do outro garçom, a fome contida naquele um ano, se fazendo presente.

Céus… Eu deveria ter feito isso antes.

Aproximou-se mais de Isaak como se fosse possível cortar o espaço que já era inexistente. Deixou as mãos vagarem pelo corpo que há tempos povoava suas fantasias e que admirava discretamente sempre que o via sem camisa, em meio a troca de roupa, ou vestindo as surradas camisetas de banda.

Tinha vontade de lamber cada umas das marquinhas daquela pele que julgava perfeita, mas por hora, contentava-se em sugar a língua ávida que se insinuava em sua boca e apertar sem nenhum pudor o traseiro modelado na bendita calça jeans. Alisava o corpo do mais novo com tanta intensidade que parecia querer comprovar que aquilo era real e não mais uma de suas fantasias solitárias.

Gemeu em meio ao beijo ao sentir uma das mãos de Isaak por dentro de sua camisa, passeando por suas costas, deslizando as unhas curtas pelo local, enquanto a outra desbravava seu peito e abdômen.

Eu sabia!

O dono do único olho verde pensou ao sentir a pele macia e rígida da barriga do flautista. Tinha elaborado a teoria de que Sorento era muito mais gostoso do que suas roupas engomadinhas deixavam supor, e nesse momento enquanto passava os dedos levemente pelos músculos da barriga já próximo ao cós da calça, regurgitava em satisfação.

Você não é o único bom observador.

Sorriu sem separar a boca, sentindo o volume na calça fina que o flautista usava e o próprio que era apertado pela perna de Sorento que ainda permanecia entre as suas, tinha certeza que em breve seria erguido do chão mediante a força com que sentia seu corpo ser apertado e comprimido naquela parede. A ferocidade com que era beijado e com a qual sentia o outro se esfregar o surpreendia e enlouquecia de forma certeira, jamais imaginou que aquele homem aparentemente entojado fosse capaz de tal reação.

Mas, caralho, sem dúvida alguma estava gostando muito daquilo!

Isaak suspirou ao sentir os lábios e a língua de Sorento em seu pescoço, enquanto uma das mãos parecia cogitar a possibilidade de retirar seu cinto, a outra apertava um de seus mamilos por dentro da camiseta. Gemeu mais alto descendo as mãos para o traseiro do flautista e as postou ali puxando o quadril dele em sua direção com urgência. Entoou o nome de Sorento em meio a voz embargada pelo desejo

— A gente pode continuar em outro lugar… — Olhou safadamente para a cabine de banheiro dos funcionários.

Aquela sugestão pareceu ter trazido a razão de volta a mente do garçom/flautista. Afastou a boca do pescoço de Isaak mantendo ainda suas mãos no corpo dele. Respirou fundo e a contra gosto distanciou-se analisando a ereção que despontava na calça do outro e olhou pra baixo avaliando a própria.

Passou a mão pelos cabelos e a ponta da língua pelos lábios, ainda tinham o gosto de Isaak.

— Sorento… — Teve sua fala impedida por um gesto de mão do outro.

— Pronto… — Olhou para Isaak. — Agora você já tem alguma coisa para te ajudar a pensar. Não tenho condições de lidar com você hoje, Isaak. Ao menos não através da conversa. — Pegou um avental que estava pendurado e amarrou na cintura olhando-se em seguida. — Vai dar para o gasto. Vou usar o banheiro de clientes. Usa esse daqui… Joga uma água no rosto… Sei lá. — Olhou para o relógio de pulso. — Entramos em dois minutos.

Isaak permaneceu imóvel constatando que mais uma vez apenas seguia as ordens de Sorento. Entrou no banheiro de funcionários e trancou a porta. Olhou para sua ereção e suspirou. Definitivamente tinha algo para pensar.

Sorento caminhou o mais rápido que pôde em vista de sua condição, tentando passar despercebido, mas os olhares atentos de Io e Bian computaram o comportamento atípico do colega que por alguma razão indefinida estava usando o banheiro dos clientes.

O flautista entrou no banheiro trancando a porta principal. Não conseguiria permanecer por mais tempo no mesmo espaço que aquele maldito moleque gostoso. Certamente acabaria acatando a sugestão dele e o arrastando para dentro da cabine do banheiro e colocando em prática sua fantasia. Tampouco adiantaria tentar se acalmar enquanto olhava para o rosto afogueado, os lábios inchados, o corte quase cicatrizado no qual finalmente conseguiu depositar sua boca, os cabelos bagunçados e a evidente excitação. Em seu estado normal Isaak já era todo o pecado e imprudência que poderia querer. Excitado era o fim de seu juízo.

Molhou as mãos passando pelo rosto e cabelos. Deixou por alguns minutos a mão molhada na nuca, enquanto respirava fundo e tentava tirar a imagem do garçom de sua mente. Ouviu a voz de Thétis batendo na porta perguntando se estava tudo bem, o turno já ia começar. Informou que já estava saindo. Precisava se acalmar, aquele não era ele. Não saia por aí agarrando moleques impertinentes. A ligação de Franz tinha o desestabilizado, irritado, tirado seu prumo. Precisava recuperar o controle, fazer-se novamente dono de si. Fechou os olhos e entoou seu mantra: “Preciso evitar problemas”.

Abriu os olhos e observou seu reflexo no espelho. Recolou a camisa dentro da calça, alisou a roupa da melhor forma possível, percebendo que estava inegavelmente amassada. Não tinha jeito. Destrancou a porta do banheiro dando uma última olhada em si mesmo, não era o ideal, mas o suficiente para não gerar perguntas. Saiu ainda entoando seu mantra, pegou uma bandeja dirigindo-se ao salão e a apertou com força ao divisar a figura de Isaak saindo do quartinho dos funcionários.

Respirou fundo, caminhando até a mesa onde um cliente fazia sinal, certamente aquele seria um longo turno.

***

Fechou a porta e se aproximou de forma automática da pia. Assim que viu seu reflexo a surpresa se transmutou. Aproximou seu rosto do espelho e percebeu que seu olho estava quase preto de tão dilatada que se encontrava sua pupila. Os lábios inchados, o rosto afogueado e o principal. O nada delicado retumbar em seu peito acompanhado em ritmo e intensidade pelas fisgadas nas bolas e em seu membro, estava dolorido, frustrado como se não fodesse há meses, o que não podia estar mais longe da realidade, mas não estava com raiva.

Isso era novidade, no que tinha pensado ao pressionar tanto assim Sorento? Soube logo que o Flautista não estava no seu costumeiro estado blasé contido e desinteressado com os meros mortais. Ele foi avisado e pagou para ver e… Caralho o que foi aquilo?

Não sabia avaliar se Sorento estava apenas lhe dando uma lição, ou se tinha sentido aquilo, “aquilo” que o fez sentir desse jeito também… Em algum momento tacou o foda-se e quis arrastar o outro para o banheiro, o desejo de sentir aquele homem por inteiro, mas isso parecia ter quebrado o encanto, se é que aquela avalanche de putaria poderia ser chamada assim, e Sorento parou, o afastou. Sorento… O rejeitou. Já devia estar arrependido, ele sempre deixou claro sua opinião bem depreciativa sobre tudo que dizia respeito a Isaak. Não? Merda!

Respirou fundo tirou a camiseta a pendurando em um gancho da porta e abriu a torneira enchendo as mãos em concha jogou água no rosto e também no pescoço. Fechou a torneira e observou por mais um instante a si mesmo. Puxou algumas toalhas de papel e secou-se, passou os dedos pelos cabelos a título de pente.

Olhou em volta para conferir que não tinha deixado nada bagunçado. Não queria enfrentar os questionamentos dos amigos. Io até conseguia ser discreto, mas, Bian sabia ser insistente se assim o desejasse. Lembrou de algo comentado pelo dito rapaz há cerca de um ano e deixou escapar uma risada nervosa, quase pelo nariz. Que merda de mundo!

Vestiu sua camiseta, deixou o banheiro e buscou um dos aventais, precisava voltar ao normal e precisava que isso acontecesse logo.

Partiu para enfrentar seu turno no salão sem o ar desafiador tão característico de seu estilo e personalidade rebelde.

Não desejava mais que o tratassem por moleque. Tinha escutado isso dos dois últimos homens por quem se interessou e foi doloroso não poder se defender com convicção. Pensou no próprio Pai, na maneira juvenil e quase caricata que Krystal escolheu viver, no fundo aquele homem parecia muito feliz, mas Isaak não conseguia se sentir identificado, representado pela possibilidade de se parecer com o pai nesse sentido. O bom gosto musical, a facilidade com as cordas de um violão ou de uma guitarra além da aparência física já estavam de bom tamanho.

Sentiu falta da Mãe como não sentia há bastante tempo.

Travou os dentes se concentrando. Seguiu o mais rápido que pode.

Ao chegar no salão seu olhar foi atraído por Thétis que desligava o seu telefone e o colocava no bolso do avental. Ela fez um sinal tocando o pulso esquerdo para adverti-lo que estava atrasado.

Seu olhar não deixava margem para qualquer discussão. Apenas concordou com a cabeça se desculpando, normalmente daria de ombros, mas não tinha energia para lidar com mais nenhum conflito nessa noite.

Avistou Sorento nas mesas do fundo e dirigiu-se para o extremo oposto.

Como sempre, lembrou a si mesmo que enxergava com uma percepção diferenciada de profundidade. Tinha que manter o foco, isso demandava muito mais esforço de sua parte do que para as pessoas que viam com dois olhos.

Sem colo de Mãe, sem culpas para jogar no Pai. Tinha que ser homem e assumir as consequências de suas atitudes, além de suas responsabilidades.

Ser adulto era uma merda do caralho, se permitiu pensar, se pudesse fugiria dali correndo.

***

A última vez que captou um clima de tensão tão aparente naquele lugar foi no dia em que acabou por acobertar a fuga de Camus. Desde então, por mais que diferentes tramas se desenrolasse no bar, não se viu capturado por nenhuma delas.

De certa forma, se parasse para analisar com atenção, o cenário no qual estava inserido no presente começou a ser construído no pretérito momento em que pisou no Imperador em busca de emprego. Ouviu certa vez que “O inevitável sempre acontece”, julgou uma frase descabida e sem sentido. Agora, começava a ponderar sobre o significado dela.

Terminava o atendimento de mais uma mesa e tentava ao mesmo tempo ser cortês com os clientes e simular uma calma que não o acometia naquele instante.

A obrigação de permanecer no mesmo turno que Isaak não o ajudava. Estava irremediavelmente irritado, cansado, frustrado e sem dúvida excitado.

Não tinha a mínima condição de lidar com o outro garçom, mesmo que tenha partido de si a iniciativa do ósculo. Arrependimento não era um sentimento que o assaltava, afinal tinha sido um ótimo beijo seguido de um prazeroso amasso. Sua mente não deixava de pensar que poderia ter sido muito mais, porém, não se agradava da forma como tudo aconteceu.

Cedeu a um impulso e tal atitude não era de seu feitio. Nesse momento, mais do que nunca, estava claro que sentia algo pelo maldito ciclope, porém, não sabia precisar o nível que isso atingia, apenas que a atração física era inegável.

De todo modo, essa não era a melhor ocasião para pensar em seus sentimentos por aquele moleque irritantemente gostoso, ainda estava com o sangue quente da ligação de Franz e não agia bem quando se encontrava daquela forma.

Era um homem contido e ponderado, cultivava a paciência e a serenidade, mas nas poucas vezes em que se viu fora de seu eixo, os resultados foram o mais alarmante possível.

Preferia mil vezes ir para sua casa e dormir, mas precisava cumprir a escala das segundas.

Como o movimento do bar era menor, apenas tinham dois garçons por turno e ele sempre trabalhou com Isaak.

Io estava ali apenas para a reunião sobre a Festa de Despedida de Solteiro e, Bian ao que tudo indicava tinha ido acompanhar o namorado. Percebeu que o casal deteve-se mais tempo do que o normal, por sentirem que alguma coisa diferente estava pairando no ar. Agradecia internamente o fato dos dois serem brincalhões, mas providencialmente discretos. Viu a hora em que foram embora, despedindo-se com um aceno e um sorriso carregado de preocupação. Teve a impressão que Io tentou falar com Isaak, sendo infeliz em seu intento.

Deixou a máquina de cartão de volta no balcão parando alguns instantes e acompanhando a movimentação do charmoso caolho com quem trabalhava, não trocaram nenhuma palavra e muito menos um olhar depois do ocorrido.

O rapaz parecia fugir de Sorento, dentro do que era possível naquela dinâmica de atendimento de mesas. Dada aquela reação inesperada, uma vez que recebeu um convite para continuar os carinhos em outro lugar, não imaginou que passaria a ser evitado, ao menos não precisava mais dedicar atenção às atitudes do outro.

Assim como, intencionou dar a ele algo para pensar, recebeu de pronto a resposta em troca. Suspirou dirigindo-se a outra mesa e passando ao lado de Isaak, que quase saltou ao computador a proximidade.

Sorento teve ganas de esmurrar a cara do colega de trabalho, mas conteve-se, já tinha agido demais por impulso por um único dia. A conversa com o pai ainda ecoando em sua mente, a voz de Isaak exigindo explicações que sequer sabia que precisava dar, o beijo, o tormento do trabalho e o cansaço.

Pelos Deuses… Eu só quero paz!

Fechou os olhos brevemente, calculando quanto tempo ainda demoraria para terminar seu expediente e acima de tudo quanto ainda faltava para conseguir a quantia que precisava para realizar seus planos e ajeitar sua vida da forma que queria. Sem complicações, sem problemas, sem dúvidas e acima de tudo… Sem Isaak.

Chapter 31: Olhe à sua volta

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Constantemente se pegava pensando sobre o momento exato em que um sentimento nasce, e quais os motivos que o levam a morrer. Não era dado a grandes expressões afetivas, mas sem dúvida alguma gostaria de conseguir captar esse instante e ter o total controle sobre acender ou apagar da chama.

Já passava da meia noite e ainda não havia pregado os olhos, deitado em sua cama fitava o teto enquanto tentava encontrar alguma resposta para as milhares de perguntas que se formavam em sua mente.

A conversa com Franz ainda ecoava e não conseguia controlar o misto de raiva e tristeza que insistiam em controlar suas emoções.

Jamais entendeu os motivos de um espírito livre como Grazia ter se deixado aprisionar naquela jaula que era viver com o patriarca dos Sirene.

Durante boa parte de sua vida fez um esforço sobre-humano para identificar o que a mãe tinha visto naquele homem. Lembrava vagamente dela dizendo que Franz surgiu como um belo príncipe, gentil, educado, culto e galanteador. Em poucos minutos se viu enredada por ele.

Você tem o mesmo charme Sorento e os mesmos olhos.

Falava em italiano naqueles raros momentos em que conseguiam aproveitar a companhia um do outro. Ainda sim, não entendia como o príncipe encantado havia se tornando o monstro aprisionador.

Contos de fada não existem.

Pensou fechando os olhos. Sua mente não lhe dava descanso e por mais que só quisesse dormir e encerrar aquele dia, sentia cada vez mais raiva do pai, ao lembrar que aquela ligação inoportuna trouxe muito mais do que apenas a mágoa que mantinha encarcerada.

A irritação e o descontrole acabaram fazendo com que desse vazão a um desejo há muito contido e por mais que aquele beijo tenha ocorrido em um momento equivocado, só o fazia ter a certeza que já queria ter feito aquilo há muito tempo.

O resultado do ósculo foi diferente do imaginado. Por mais que soubesse que Isaak andava às voltas com o deus grego loiro, não sabia que o que dividiam era tão intenso a ponto do caolho simplesmente o ignorar.

Passou boa parte do expediente de trabalho tentando compreender porque estava sendo rejeitado de tal forma, sendo que só não acabaram transando no banheiro dos funcionários simplesmente por ter recobrado seu bom senso na última hora. Acabou concluindo que Isaak deve ter se arrependido, e como o bom moleque que era, estava apenas dando vazão ao tesão latente decorrente do amasso.

Suspirou mudando de posição na cama deitando de lado e fitando a parede do quarto em meio a escuridão. Não devia estar tão chateado assim, afinal, agora tinha uma resposta e podia seguir sem se preocupar.

Nada mudou.

Não era como se em algum momento tivesse criado alguma expectativa… Ou era?

O moleque é gostoso… Mas é só. Não existe nada além disso… Não é?

No momento em que a pergunta se formou em sua mente foi acometido por uma série de lembranças, aquelas que se mantém escondidas, mas funcionam como combustível para a chama que Sorento gostaria controlar.

As trocas de olhares, os sorrisos, os toques involuntários, as vezes em que conversaram sobre música mesmo com gostos diferentes, os momentos em que Isaak simplesmente assumia as mesas com os “predadores” o livrando de toda a dor de cabeça, as provocações, a forma como o cheiro daquele homem dominava o ambiente e entorpecia seus sentidos, o diálogo que tiveram no quartinho de funcionários enquanto cuidava do machucado decorrente do soco e em como ele deixou claro que dedicava atenção a sua pessoa.

Sim, por mais que não quisesse admitir ele tinha sim uma expectativa, ele esperava algo e isso apenas por estar ridiculamente apaixonado por aquele moleque inconsequente e lascivo.

Não conteve a careta que tomou seu rosto ao constatar que sim, estava apaixonado e ao que tudo indicava era unilateral. Passou o último ano abafando a chama, evitando o problema, para em um único instante colocar tudo a perder.

Maldito Franz!

De qualquer forma, agora estava liquidado. Não pretendia mudar sua dinâmica, não era um garoto, em seus vinte e quatro anos, já tinha acumulado experiência suficiente para que fosse capaz de lidar e aceitar seus sentimentos, só não esperava se ver encantado pelo primal Isaak.

Suspirou mais uma vez aceitando a derrota. Não conseguiria dormir, por sorte no dia seguinte era sua folga e poderia fazer algo para tentar aplacar a irritação e a frustração. Seu mantra já havia caído por terra, por mais que não procurasse o problema, ele já o havia encontrado e Sorento nunca foi homem de fugir de nada, mas neste momento, não acharia ruim se pudesse escapar um pouco de sua realidade, só o suficiente para voltar a ignorância com relação aos seus sentimentos.

— A ignorância é uma benção. — Sussurrou levantando da cama e pegando a documentação do curso de música ao menos daquele plano ele tinha controle.

***

O conteúdo negro da caneca fumegante a sua frente ajudava a acalmar seus pensamentos. Observou o pote de vidro com biscoitos que o irmão havia deixado para que tanto ele quanto Sorento se lembrassem de comer algo. Acordou muito cedo, na realidade pouco dormiu. Pegou dois biscoitos e mastigou devagar tentando aproveitar a doçura.

Precisava de energia, seu dia seria longo, mas os acontecimentos da noite de domingo, passado o auge da adrenalina o haviam abatido bastante. Manejou trabalhar toda segunda sabendo que cedo ou tarde seu corpo cobraria a conta de tanto esforço e estresse.

Talvez não fosse explícito a qualquer um que o observasse sem atenção, mas, Ikki era um homem que se exigia eficiência e retidão. Justamente para que não pudesse ser chamado a atenção por ninguém. Odiava se sentir em falta ou cobrado por quem quer que fosse.

Assim, ao se ver em situação tão inesperada acabou se perdendo um pouco. Falou muitos palavrões e talvez tenha demonstrado muito mais do que normalmente a sua pouca idade. Felizmente o erro não havia resultado em nada irreversível, mas ainda assim se culpava pelo que podia ter sido. Saindo do hospital, depois de todo atendimento e recomendações de Shun, levou Camus para sua casa e pegou seu número para poder saber de sua recuperação e também providenciar um novo aparelho celular. O ruivo disse que não era necessário, que o seu estava funcionando, mas ao ver a tela trincada e o objeto ralado Ikki soube que era o mínimo que poderia fazer.

Afinal, por responsabilidade principalmente sua aquele homem seria afastado de suas atividades por pelo menos os próximos 15 dias.

Inferno! Nem conseguia pensar o que faria no lugar dele! Provavelmente em situação inversa acabaria aos berros ameaçando fisicamente o atropelador. O outro homem, no entanto, demonstrando uma frieza e autocontrole impressionantes, agiu de forma muito civilizada.

Terminou seu café da manhã, escovou os dentes e pegando sua bolsa e as pastas de projetos que havia trazido para trabalhar em casa, planejou rapidamente o que faria naquela terça-feira, já que no dia anterior havia conseguido realizar muito de sua demanda da semana.

Chegaria mais cedo no escritório, adiantaria todos os trâmites possíveis e quando o arquiteto sênior chegasse comunicaria que precisava se ausentar por algumas horas, acreditava que não teria nenhum problema, afinal seu chefe estava sempre lhe dizendo que precisava desacelerar um pouco, ainda que ele mesmo fosse totalmente workaholic, assim, nesse tempo compraria o aparelho que já havia pesquisado e reservado pelo aplicativo de uma loja de confiança no dia anterior e então o entregaria para Camus.

Esperava assim sanar um pouco do incômodo que estava sentindo por todo esse tempo.

Seria no mínimo interessante também, admitiu já tirando o carro da garagem, encontrar novamente aquele homem intrigante. Se não se enganou, havia rolado alguma energia entre eles, era a sua oportunidade de confirmar o que no fundo já sabia… Mas precisava de mais alguma experiência para ter certeza de que era mesmo bissexual.

Suspirou com a memória de um certo russo, tinha que superar isso.

A irritação tomou lugar nele, precisava esquecer Hyoga, superar seu próprio vacilo e covardia. Estalou os dedos e tentou se focar para não cometer mais nenhum equívoco ao volante. Para não cometer mais nenhum erro grotesco na vida. Lidar com as consequências era sempre mais pesado do que evitar situações de conflito emocional.

Se perdoar era sempre bem mais pesado do que esquecer as faltas alheias.

Era hora de se esforçar nesse sentido. Seguiu seu caminho.

***

A vida é irracional e sem sentido. Certa vez enquanto Milo revisava um texto ele comentou que era preciso coragem para acompanhar e tentar compreender Camus, tanto o escritor, quanto o pesquisador farmacêutico. O primeiro, por desbravar profundamente aspectos sombrios da humanidade através da filosofia; e o outro por ser a personificação sombria da transcendência ao apego.

Camus, o ruivo, aceitou o comentário como talvez o mais sincero elogio que já tinha recebido. Independente de qual tenha sido a intenção do grego na época, naquele momento estava distante da realidade. Distante do filósofo argelino com quem dividia o nome, assim como do homem que um dia acreditou ser.

Camus não se sentia mais uma caixa vazia de carne. Entretanto ainda não podia afirmar o que se tornou.

Nessas duas sessões de terapia, no sábado de manhã e na segunda, havia colocado tantas peças no lugar que sua cabeça parecia prestes a explodir. Aspectos de todas as suas relações foram revisitados, ao que tudo indicava ele sempre foi parcialmente consciente sobre a dor que causava a si e aos outros. O grotesco peso da perda, uma voz irônica martelando que jamais deveria ter tentado mudar. “O piegas merece ser humilhado, o fraco deve ser pisado e o belo tem que ser caçado e consumido”. Surtr cuspiu essas máximas sobre ele sistematicamente.

Levou anos apenas para reunir energia suficiente para questionar essa "ideologia" e quando seu mundo ruiu foi da dor por ter decepcionado Milo e Shaka que ele destilou combustível para buscar ajuda, tentar quebrar com aquele padrão.

Falou sobre Milo, como se ressentia do amor que o grego nutria para com ele com adoração, por não se sentir merecedor; situação semelhante a maneira como lidava com sua relação com Shaka.

Entretanto o amigo, ao contrário do ex representava um elo com o Camus anterior a Surtr. Este Camus também tinha suas inseguranças e traumas, mas mantinha a humanidade.

Durante a sessão, no dia anterior, sentia que sua energia gravitava ao seu redor, acima de sua cabeça, flutuava opaca. Se fechasse os olhos praticamente podia se ver por dentro. Bem distante um ponto minúsculo de luz lhe dava esperança. E essa sensação eufórica persistiu por algumas horas.

Voltou para casa, arrumou as coisas como conseguia, tomou seus remédios e tentou dormir.

No início da terça feira, no entanto, os ingredientes mais básicos para se entregar ao desespero já estavam marcando presença em sua alma. Solidão e angústia.

A ideia de que o ex, merecidamente, o odiaria pela traição inconsequente, fruto de um furor por sentir-se abandonado e preterido que descontou como um animal acuado, com instinto. Talvez essa lama ainda resvalasse em Kanon, que apesar de todo contexto tinha o tratado com tanto respeito e empatia.

E Shaka? Ele finalmente o desprezaria com intensidade irremediável que sempre esteve lá, crescendo. Quando esteve na Sirene cedo naquela manhã, entregando seu atestado, não tinha encontrado com ele. A partir daquele dia seriam mais 14 de licença médica. Precisava se ocupar.

Krest estava certo, ele não conseguiria sozinho. Mapeou suas possibilidades e mais uma vez se deu o direito de tentar. Procurou pelo contato no telefone apesar da tela trincada. Efetuou uma chamada.

***

Mordia com volúpia os lábios cheios do parceiro enquanto sentia as mãos deslizando pelo seu corpo, começou a descer uma trilha de beijos e saliva, ouvindo os suspiros do homem embaixo de si aumentarem. Estava prestes a abocanhar com fome o membro rijo que despontava quando ouviu um som diferente se misturando aos gemidos, olhou ao redor, o quarto se desmanchando, o corpo do homem se dissolvendo, a ilusão estava se esvaindo. Acordou.

Piscou os olhos algumas vezes antes de concatenar a melodia como sendo do toque de seu celular. Tinha a sensação de que não havia dormido absolutamente nada e agora que tinha conseguido descansar um pouco, o corpo e a mente sendo vencidos pela estafa, as bençãos de Oneiros lhe proporcionando o que a realidade não prometia, era acordado por alguma alma impiedosa.

Passou a mão no rosto e estreitou os olhos ao ver um número desconhecido na tela. Poderia simplesmente ignorar e voltar a dormir, mas em algum canto da sua mente imaginou que o telefonema poderia estar relacionado ao curso de especialização e achou melhor atender mesmo a contragosto.

— Alô? — Falou com a voz sonolenta.

— Sorento? Desculpe eu te acordei? É o Camus.

— Camus? — Franziu o cenho sentando na cama e constatando a ereção.

— Sim… O ruivo… Aquele do bar e da…

— Lembro de você, Camus… — Conteve um bocejo. — Estranhei apenas a ligação. — Pegou o relógio de pulso na mesa de cabeceira e olhou a hora.

— Bom… Você me deu seu número e disse que eu poderia ligar. — Falou sem jeito. — Desculpe se te acordei ou se estou atrapalhando.

— De forma alguma. — Sentiu o desconforto na voz do ruivo. — Dei o número para que ligasse quando quisesse conversar. Seria esse o caso?

— Sim. Gostaria de saber se quer ir ao parque central? Tem umas barracas de food truck por lá e qualquer coisa podemos ir na cafeteria que tem por perto.

— Claro, porque não? Te encontro no parque em quarentena minutos.

— Posso te buscar na sua casa se você quiser.

— Não precisa. Encontro você na saída C do metrô. Até breve, Camus.

— Até…

Desligou o celular e ficou olhando por alguns minutos para o aparelho. Salvou o número do ruivo na agenda e movimentou o pescoço ouvindo um estalo. Estava cansado e inegavelmente excitado. Flashes do sonho retumbando em sua mente. Em outra ocasião certamente optaria por ficar em casa e voltar a dormir, porém tendo em vista os últimos acontecimentos, acreditava que seria mais frutífero se entreter de alguma forma.

Quem sabe manter-se acordado também ajudava a regular seu sono.

De todo modo, estava sutilmente curioso com a ligação e com a possibilidade de conversar com o francês detentor de tantas máscaras. Ainda queria saber o quão interessante aquele homem era e precisava admitir que apreciava os breves momentos de diálogo que tinham protagonizado, até mesmo os que dividiu com a fase psicopata.

Levantou da cama se espreguiçando e sentindo o corpo pesado. Esperava que o banho o ajudasse a se reanimar. Arrumou a cama, antes de partir para o banheiro, guardou os documentos de curso, sobre os quais acabou adormecendo e finalmente entrou no box colocando o chuveiro no frio e acalmando a excitação da forma menos prazerosa possível.

Sabia perfeitamente quais pensamentos ocupariam sua mente durante aquele ato e não estava em condições de lidar com o domínio que sua paixão recém descoberta tinha sobre suas fantasias. Sendo assim, contentou-se apenas com o objetivo geral do banho: fazer a higiene corporal. Terminou de se lavar, enxugou-se, escovou os dentes e penteou os fios castanhos. Vestiu uma calça jeans escura e uma camisa branca, dobrando as mangas até o cotovelo. Para Sorento, aquele era o visual mais despojado que conseguia sustentar. Pegou a carteira que guardava dentro da sua bolsa e colocou os óculos escuros, precisava de alguma forma disfarçar as olheiras.

Saiu de casa em menos de vinte minutos rumando em direção ao metrô. Talvez chegasse um pouco cedo, não tinha problema. A única coisa que importava nesse momento era conseguir pensar em algo que não fosse os lábios de um certo garçom e esperava piamente que as tramas de Camus pudesse o ajudar com isso.

***

Subiu as escadas da estação de metrô parando logo na entrada, após passar pela catraca de saída. Conferiu o horário na tela do celular e constatou que havia chegado exatamente em quarenta minutos. Normalmente, teria se adiantado em cinco minutos, mas a caminhada até a estação foi feita em um ritmo lento e arrastado.

Olhou rapidamente ao redor e logo reconheceu a silhueta do dono da cabeleira ruiva que solta balançava em direção ao vento, fazendo com que Camus colocasse alguns fios atrás da orelha enquanto caminhava em sua direção.

As indefectíveis roupas escuras, o óculos de sol, o sorriso matador e… Uma tipóia?

Sorento franziu o cenho meneando a cabeça e não contendo a surpresa em seu rosto.

O que você andou aprontando dessa vez?

Pensou mordendo levemente os lábios para abafar o riso. Alisou a roupa antes de dar alguns passos finalmente parando na frente do francês.

— Olá, Sorento como vai? — Estendeu a mão em cumprimento.

— No momento essa é uma pergunta capciosa… — Aceitou o cumprimento. — Mas antes de tentar te responder preciso dizer que estou intrigado com seu novo adereço. — Sorriu minimamente apontando para a tipoia. — Como era mesmo que você planejava me buscar na minha casa? — Riu.

— Bom… Ia colocar seu endereço na rota do carro de aplicativo, mas também poderia aparecer de charrete, ou qualquer transporte desde que tivesse um motorista. — Deu um sorriso de canto.

— Touché. — Sorento falou divertido. — E quanto ao braço?

— Luxação…. Fui atropelado no domingo. — Sorriu sem jeito.

O flautista arregalou os olhos protegidos pelo óculos de sol.

— Como assim? Ao menos parece que foi ao médico. — Constatou olhando com atenção para os curativos no cotovelo. — O que houve?

Camus alargou o sorriso, o garçom parecia sinceramente preocupado e por mais que fosse uma reação humana comum ao ouvir a notícia de que alguém sofreu um acidente, era reconfortante saber que outra pessoa se importava mesmo que de maneira instintiva.

— Vou te contar o que houve. Mas vamos primeiro arrumar algum lugar para comer? Admito que estou com fome.

— Claro! Também estou. Segundo dizem eu passo fome. — Deu de ombros começando a caminhar em direção aos trailers de food truck.

O ruivo suprimiu um sorriso malicioso mediante o comentário e contemplou discretamente o corpo do flautista.

Para alguém que passa fome esse corpo está muito bem definido!

— Existe alguma verdade nisso?

— Médio. — Sorriu discretamente. — Entre comer e dormir ando preferindo a segunda opção. — Olhou o relógio do celular. — O que acha de hambúrguer? — Apontou para um dos trailers. — Já passou do meio dia, então não configura nenhum absurdo. Não que eu me importe em comer hambúrguer no café da manhã…

— Eu topo. Costumo ser mais regrado com a alimentação, mas uma vez ou outra não tem problema.

Dessa vez foi o garçom que olhou disfarçadamente o corpo do ruivo que caminhava ao seu lado.

Ao menos o esforço está compensando.

Pararam em um dos trailers de hambúrguer, fizeram os pedidos, deram os nomes e aguardaram sentados em uma das mesas que estavam dispostas para os clientes.

— Será que agora poderia me contar como foi que se acidentou? Não costumo ser uma pessoa indiscreta, mas admito que estou interessado na história.

— Um amigo… — Mordeu a parte interna da bochecha pensando na palavra e instantemente em Shaka. A reação sendo captada por Sorento. — Disse certa vez que se a versão é melhor do que a história ele ficava com a versão.

— E isso quer dizer? — Arqueou uma sobrancelha.

— Que depois que eu te contar não será mais tão interessante.

— Sempre prefiro tirar minhas próprias conclusões, Camus. Então… — Fez um gesto com as mãos para que o ruivo começasse a narrar o acidente.

— Bom… Basicamente eu saí pra correr e acabei me distraindo na hora de atravessar a rua. Ironicamente o motorista também não estava muito concentrado. Foi uma batida leve. Tenho bons reflexos… Mas gerou a luxação e alguns arranhões.

— E o motorista prestou socorro?

— Sim… Ele foi muito atencioso. — Um sorriso lascivo ornou os lábios de Camus.

— Você é definitivamente surpreendente! — O tom irônico na voz. — Jura que foi atropelado e mesmo assim teve forças para flertar com o cara?

— Enfim, isto é você que está concluindo.

— Geralmente tenho acerto cirúrgico em minhas conclusões. Ou vai me dizer que estou errado. Esse sorriso… — Apontou para o rosto de Camus. — É só alguns degraus menos perigoso do que os que já vi em outras ocasiões.

O ruivo suspirou mirando o rosto de Sorento, ao menos não estava vendo o julgamento no olhar dele.

— Bom… — O flautista prosseguiu. — Longe de mim conjecturar sobre atitudes tomadas no calor da situação.

A imagem do amasso com Isaak voltando a sua mente. Em outro momento, não se furtaria do revirar de olhos ao criticar a atitude impensada do ruivo de paquerar o cara que o tinha atropelado, afinal, poderia ser um bêbado irresponsável ou algo pior. Atualmente, preferia não tecer uma opinião tão implacável sobre os impulsos humanos. Precisava esquecer de seu próprio destempero, tocar a vida, esse era um dos objetivos daquele passeio.

— Tirou algum fruto disso tudo? — O garçom questionou apoiando o rosto nas mãos colocando o braço sobre a mesa.

— Nada significativo além de uma troca de telefone. Uma pena… Enfim… O rapaz insiste em me pagar um celular novo mesmo que o meu esteja funcionando. Só trincou a tela. — Mostrou o aparelho a Sorento.

— Acho uma atitude digna. — Empinou o nariz ajeitando o óculos de sol no rosto. — Provavelmente ele deveria estar falando ao telefone ou fazendo algo indevido para gerar um acidente. Direção requer atenção.

Camus riu enquanto analisava o empinar de nariz e o ajuste dos óculos, o rosto jovem que mantinha uma expressão séria e enfadonha, mesmo que um mínimo sorriso se fizesse presente.

— Você me lembra muito uma pessoa Sorento. Com esse ar blasé de quem está sempre certo e tem o controle de tudo. — Sorriu com sinceridade.

O flautista ergueu uma sobrancelha, não havia nenhum tom de reprimenda ou ironia na frase do ruivo, muito pelo contrário, ele parceria aplicar um quase afeto a aquelas características. Ponderou por alguns instantes e percebeu que de certa forma ele também o lembrava alguém.

— Engraçado… Você também me lembra uma pessoa. Não fisicamente, mas essa sua tendência de aplicar um tom sexual a tudo, ou querer resolver tudo com sexo, parece muito com ele… — Suspirou tirando os óculos de sol e colocando sobre a mesa apertando a junção entre os olhos e os recolocando.

— A terapia está me ajudando um pouco com isso… Talvez ajude “ele” também. — Aplicou um tom mais sério ao pronome sorrindo em seguida. — Posso dar o contato do meu terapeuta.

— Não parece uma má ideia. Folgo em saber que vou ver mais dos seus sorrisos sinceros em detrimento dos de caça.

— E por que diz isso?

— Apenas um palpite. — Olhou para o trailer no qual o atendente falava seus nomes. — Vou buscar o lanche, não precisa levantar. Quer beber alguma coisa?

— Um suco se tiver. Pode escolher o sabor. Infelizmente não posso beber nada alcoólico, por causa do anti-inflamatório.

Sorento confirmou com a cabeça e voltou pouco depois equilibrando uma bandeja na qual estava disposta dois hambúrgueres, duas embalagens pequenas de batata canoa, um copo de suco de laranja e uma long neck de cerveja.

— As vantagens de sair com um garçom. — Camus gracejou ao que o outro riu com gosto.

— Uma das vantagens. Pena que não pode beber nada alcoólico, senão te mostrava outra serventia de passear com um dos funcionários do Imperador. — Riu tirando os óculos de sol e piscando um olho. — Aqui… — Colocou o suco perto do ruivo. — É de laranja.

Comeram em relativo silêncio, mas permeados por um clima leve e divertido.

Aquele passeio estava sendo mais agradável do que sequer poderiam imaginar e ambos foram acometidos pelo mesmo pensamento: aparentemente uma amizade pode surgir a partir de um lugar e de uma situação inusitada.

Chapter 32: A textura abaixo da pele

Chapter Text

Terminaram de comer e Sorento levantou para devolver a bandeja ao trailer de origem.

Camus aproveitou para olhar a figura do flautista enquanto ele se afastava, não imaginou em momento algum que começaria a construir uma amizade com aquele homem, porque sim, era isso que estava tentando fazer naquele momento. E até essa atitude já mostrava uma significativa mudança em seu modus operandi, afinal, excetuando Shaka, não era uma pessoa de muitos amigos e isso principalmente porque acabava levando todos para sua cama.

Como o garçom bem atentou, acabava envolvendo tudo e todos em um clima sexual e no fim só sobrou o loiro. E até mesmo ele acabou se afastando. O rejeitando, seria a melhor palavra para definir as atitudes do indiano. Inconscientemente seu rosto assumiu um pesar e uma tristeza que antes não estava ali. Sorento voltou a mesa, a tempo de captar essa mudança de humor, tinha outra long neck em mãos.

— O que houve, Camus? — Perguntou sentando na cadeira em frente ao ruivo.

— Como assim? — Olhou para um ponto indefinido da superfície da mesa.

— Costumam dizer que sou muito observador e eu concordo. Então, não é difícil pra mim perceber as mudanças no seu estado. Além disso, não acho que tenha me convidado apenas para fazer um lanche. Você precisa conversar… — Bebeu um gole da cerveja — E não apenas com seu terapeuta.

— Estou aprendendo aos poucos que todo mundo precisa. Por exemplo, nunca tinha visto olheiras tão profundas em você. — Apontou para o rosto de Sorento.

O garçom surpreende-se lembrando que tinha tirado os óculos escuros antes de começar a comer. Não adiantaria recolocá-los agora. O que pretendia mascarar já estava exposto. E o assombrou o fato de não sentir a necessidade de levantar sua postura defensiva. Não precisava conversar sobre seus problemas, tinha completa noção de quais eram e o que poderia ser feito para solucioná-los, mas não via a necessidade de manter a postura impassível diante do ruivo.

— Na verdade passei boa parte da noite acordado pensando em alguns acontecimentos recentes. — Respondeu com simplicidade.

— Você sempre me passou a impressão de alguém que… Como posso dizer? — Colocou a mão no queixo procurando as palavras. — Evita problemas? — Questionou arqueando uma sobrancelha.

— Exato. — Riu.

— Fico surpreso que exista algum tipo de questão que te faça ficar acordado a noite toda. Você me parece tão centrado.

— E no geral eu sou. Mas todo mundo tem um gatilho que pode destruir o autocontrole. No meu caso, passei a noite tentando encontrar algumas respostas. Umas eu consegui, outras não. No fim, o corpo cobra o preço do cansaço. E você? Qual o motivo do rosto consternado?

— Essa é uma longa história Sorento… E levando em conta o quão cansado você parece estar acho que não aguentaria ouvir tudo. — Camus riu e olhou para a tela do próprio celular franzindo a testa.

— Então me conta sobre a questão mais recente que é o seu interesse pelo seu atropelador e porque isso parece estar te deixando incomodado.

— Você é mesmo um bom observador… — Suspirou. — Certa vez você me disse que gostava da minha versão que dava sorrisos sinceros ao invés do caçador psicótico.

— Não lembro de ter usado a palavra psicótico. — Sorveu um longo gole da bebida. — Mas sim, prefiro o Camus dos sorriso sinceros e arrebatadores, do que o que olha para todos como se fossem carne de abate.

— E é isso que me incomoda. Eu… Eu gosto de sexo, Sorento. Não vou negar. E olha… Eu sou bom nisso. — Colocou uma seriedade maior do que seria o esperado naquela afirmação.

— Imagino. — O flautista deu um sorriso discreto. — Talvez o que te falte seja um pouco de perspectiva sobre o assunto. Não existe nenhum problema em gostar de sexo e querer se satisfazer. Muito pelo contrário, relaxa. A questão é como você leva isso. Flertar, sair por uma noite, se deixar levar por uma dose de desejo e insensatez não é uma grande questão em si. Torna-se nocivo quando você só procura isso.

— Eu tenho medo, Sorento… Não quero voltar a ter só isso… Ou ser só isso. — Camus tirou os óculos escuros e encarou o flautista.

— E você não voltará. — Sorriu mediante o olhar do outro. — Veja bem… Você parece estar interessado no homem do acidente, seja por carência, desejo, ou o que for. Você não vai regredir em seu progresso se sair com ele por uma noite. Talvez vocês possam evoluir para algo mais, talvez não. A gente não tem como definir ao certo essas coisas e isso não é um problema, desde que haja sinceridade de ambas as partes. Você pode e deve se divertir, sendo o homem bonito e interessante que é. O que você precisa entender é que não existe apenas isso. Pode ter, quando sentir falta e quiser, sem contudo agir como um caçador voraz, porque sem dúvida você consegue mais do que isso. O mundo é seu, basta entender como usufruir dele. — Balançou a garrafa de long neck vazia.

— Não achei que era do tipo que bebia. — Camus sorriu pensando no que tinha ouvido.

— Assim como não achou que eu era o tipo que passava a noite acordado. — Sorriu deixando a garrafa sobre a mesa. — Pense um pouco no que eu te falei acho que vai te ajudar a ter mais perspectiva sobre o assunto. — Vou comprar uma água, você quer?

Camus balançou a cabeça afirmativamente ainda pensando no que tinha acabado de ouvir. As palavras de Sorento tinham sido muito diferentes do que em algum momento julgou ser proferido por aquele homem. Ao que parece havia construído apenas uma imagem parcialmente verdadeira do livreiro.

Existe um abismo entre aquilo que somos e os que as pessoas vêem.

Já aguardava todo um sermão sobre seus ímpetos sexuais e insensatez, o que não o ocorreu, muito pelo contrário. E precisava admitir que se sentir compreendido, de certa forma era acalentador. Sorriu sinceramente ao ver o flautista voltando com duas garrafas de água, mas aos poucos a alegria foi passando quando computou a chegada de uma mensagem em seu telefone e sentiu uma certa apreensão.

Será que Sorento estava mesmo certo e ele era capaz de controlar o ímpeto caçador?

***

O ventilador girando preguiçoso no teto do quarto na penumbra produzia um som contínuo, monótono. Do lado de fora do quarto a gatinha arranhou a porta e ele pode ouvir um miado ardido. Desses que ela raramente emitia.

Estava chateada com algo e, ele imaginava que provavelmente era a porta fechada e seu estado de espírito tenebroso. Coçou os olhos afastando o sono por completo. Tinha bebido algumas cervejas e tomado um comprimido para dor de cabeça na noite anterior. Sentia o corpo pesado, mesmo assim se ergueu para atender Deusa que já dava sinais de impaciência.

Ela era uma boa companheira, mas, gatos podem se tornar vingativos. Não queria ser ignorado também por ela ou encontrar vômito proposital no seu travesseiro. Quando abriu a porta teve certeza de ter escutado um “Hunft” partindo da felina negra que lhe virou sua cabecinha e partiu correndo para a cozinha. Seu pote de comida, vazio, estava virado com a boca para baixo.

Kanon fechou os olhos lamentando.

— Coitadinha, te deixei passando fome? Sinto muito, sei que não vai morrer por isso… Mas, não fique bravo comigo Deusa. — Dizia enquanto servia uma porção de ração para a gatinha que logo estava se alimentando.

Kanon buscou na geladeira uma garrafa de água e encheu um copo, que virou em um só gole, então encheu o segundo e bebeu devagar observando o entorno. Precisava lavar louça antes que acumulasse muito. Não se importava de fazer as tarefas de casa, ao contrário, apreciava bastante, mas desde domingo a noite não fez nada além do essencial ou seja: cuidar de Deusa e até nisso havia falhado, pois a gatinha ficou sem ração. Foi cuidar da caixa de areia e só então foi para o banheiro lavar as mãos e o rosto. Analisou por alguns instantes seu reflexo no espelho. Estava abatido. Precisava tomar mais sol. Não tinha nenhuma urgência referente a sua pesquisa e nem energia para estudar propriamente.

Abriu a porta da varanda e por alguns segundos foi cegado pela forte luz que entrava. Esperou até seus olhos se acostumarem. Deusa veio correndo e subiu no balcão protegido pela rede e ficou observando a rua.

Kanon ficava muito feliz de a ver assim, olhando seus domínios bem alimentada e brilhando como ônix ao sol.

Estava decidido a se deitar um pouco no sol. Tirou a camiseta deixando que o calor beijasse sua pele. Primeiro no peito e alguns minutos depois se virou para sentir nas costas o calor. Sentiu alguma energia se espalhando por baixo de sua pele. Chegando até seus ossos e além. Ele conhecia essa sensação. A textura da energia do sol no corpo...

Por vezes se lembrava dos amigos o incentivando. A alegria de Milo, o entusiasmo de Aiolia, o pragmatismo de Saga e a visão crua de Julian sobre a vida. Além deles, Aiolos e mesmo Kardia eram pessoas queridas com as quais sabia que poderia contar. A sensação embaraçosa de ter que de alguma maneira se expor fazia com que não tivesse nenhum ímpeto de entrar em contato com qualquer um deles, por enquanto.

Sentia falta de Isaak. Queria muito se afundar naquele corpo rebelde. No entanto, não sentia desespero pela ausência dele e isso o entristeceu. A distância era completa.

Não devia ser muito fácil de aceitar que preferia estar chorando na frente da televisão enquanto devorava uma caixa de bombons. Mais um clichê, mas seria indicativo de que seu coração ainda pulsava. Desde Radamanthys não havia se apaixonado de verdade.

Sua maior perda era não conseguir sentir a angústia de verdadeiramente se apaixonar?

Em pensar que teve tanto receio quando acreditou que estava aprofundando seus sentimentos por Isaak e que esse foi seu principal motivo para apressar o rompimento, fazia com que um vazio tomasse conta de seu estômago, devia ser fome. Precisava se alimentar.

Que desvario sofrer por não estar arrasado. Qual o sentido de terminar uma “relação” por temor de se envolver e não ser correspondido e agora lamentar não se encontrar arrasado?

Realmente seu maior desassossego sempre foi a possibilidade de não ser capaz de voltar a amar, se entregar.

Sentiu as lágrimas se formando em seus olhos e deixou que corressem…

Chorava por se sentir sozinho. “Não haveria para ele par neste mundo?” — pensou enquanto aceitava que podia se permitir o alívio que essas lágrimas traziam. Foi para a cozinha e preparou café e um sanduíche com frios que encontrou na geladeira. Não conferiu se ainda tinha pizza da que pediu na segunda feira, como esqueceu de guardar propriamente, o que sobrou do alimento deveria estar seco ou estragado.

Tomou seu café da manhã ainda com os olhos rasos. Cobriu o rosto com as mãos e ficou sentado à mesa enquanto o restante de seu café esfriava na caneca.

Depois de algum tempo se pegou rindo. Um homem do seu tamanho. Ele tinha uma capacidade filha da puta de ser patético. De qualquer forma que assim fosse. Já tinha idade o suficiente para aceitar que precisava sim de retorno. Ansiava por aprofundar as conexões.

Se existia algo que aprendeu com Isaak e que merecia ser incorporado a sua rotina lá estava a chance.

— Foda-se! — disse em alto e bom som enquanto se levantava para colocar a louça suja na pia.

Voltou para a varanda onde Deusa ainda aproveitava o sol largada de barriga para cima, um pequeno sorriso se formou em seu rosto enquanto imitava a gatinha e se deitava também se deixando ser afagado pelo calor daquela tarde ensolarada.

***

Caminhava com sua elegância habitual, enquanto cumprimentava os demais funcionários da empresa com um meneio de cabeça e bebericava aos poucos o mochaccino que havia comprado na cafeteria da esquina. Não lembrava ao certo o momento em que desenvolveu aquele hábito, mas fatidicamente sempre voltava do almoço com um copo daquela bebida em mãos.

Entrou em sua sala ligando o monitor do computador e olhou por alguns segundos a pequena pilha de relatórios que ainda precisava concluir no restante do dia. Não era nada que abalasse seu estado de espírito, ao menos não tão quanto o regresso ao trabalho por um certo ruivo. Até onde podia lembrar, e sua memória quase nunca o traía, a licença que Camus havia pedido expirava na terça feira, ou seja, naquela dia. Estranhava o fato de ainda não ter visto o francês na empresa, mas acreditava que o encontro seria inevitável. Nesse meio tempo, não havia entrado em contato com o até onde lembrava amigo, mas pensou com cuidado sobre toda a cena que tinham protagonizado.

Uma coisa era fato, sentia-se atraído por Gaetan, não restava dúvida nisso. Dedicava grande carinho e apreço a ele, afinal não saía por aí se enfiando em bares e bebendo cerveja quente por qualquer pessoa, qualquer um que o conhecesse minimamente poderia atestar isso.

Mas ainda sim, não estava preparado para retroceder e desfazer tudo aquilo que seu impulso momentâneo havia construído. Mesmo que seu reino tivesse apenas quatro dias.

Tirou a tampa do copo de mochaccino e passou a beber o restante da bebida em goles longos, enquanto recordava da noite anterior. Mesmo na época em que não viviam juntos, Shura sempre teve o hábito de informar por mensagens ou telefonemas os dias em que saía para beber com os amigos, contudo, aquela tinha sido a primeira vez que presenciava a chegada do esposo depois de uma das noites de bebedeira. Torceu o nariz contrariado, ao lembrar que ela se deu em uma segunda feira, mas preferiu ignorar aquilo, uma vez que ele ainda estava comemorando o chá de casa.

Assim que o espanhol abriu a porta da residência, acabou acordando, na verdade sequer estava dormindo. Sendo assim, acompanhou o som dele entrando no quarto, deixando a mochila em uma das poltronas que tinham no recinto, entrando no banheiro e trancando a porta.

Mordeu os lábios ao ouvir o clique da chave e conteve o ímpeto de verificar o que estava acontecendo. Ponderou, talvez ele estivesse se sentindo mal e não se agradava de companhia nessa hora. Ainda sim, não se convenceu plenamente, Shura possuía uma resistência quase homérica a bebida. Trancar a porta não era um hábito que compartilhavam, era o suficiente que estivesse fechada, sempre trabalharam com a ideia de respeito e privacidade, mesmo antes de viverem juntos.

Achou melhor aguardar em silêncio. Identificou a figura forte e alta saindo do banheiro, abrindo o armário com cuidado, retirando uma cueca e vestindo-a em seguida. Percebeu quando ele colocou o celular para carregar, olhando antes o aparelho, soltando um suspiro e finalmente deitando na cama. Franziu o cenho ao computador que mais uma vez o marido andava tendo reações atípicas mediante o telefone. Não conseguia recordar se ele sempre as teve. Preferiu não enveredar por esse caminho.

Assim que o espanhol deitou na cama, Shaka o abraçou e erguendo o corpo cheirou o pescoço do esposo. Gostava do cheiro que desprendia daquele corpo após o banho, porém, dessa vez inconscientemente aquela atitude tinha outro objetivo. Sentiu o corpo de Shura enrijecer mediante seu toque e ele se distanciar de forma sutil.

— O que houve Shura? — Questionou incomodado.

— Nada, Rubio, não houve nada. — Aproximou-se. — Só fiquei surpreso por ainda estar acordado… Ou por acaso eu te acordei? — Beijou o topo da cabeça do loiro.

— Não… — Aconchegou-se ao corpo de Shura sentindo-o relaxar. A sensação de estranheza se desfazendo aos poucos. — Já estava acordado… Pensando. Tentava cochilar sem muito sucesso.

— Camus? — Perguntou passando a mão pelos fios loiros.

— Ora Shura… Porque toda vez que digo que estou pensando em algo você acha que é no Camus? Minha mente se ocupa com outras coisas além dele. — O tom de voz ligeiramente irritado era perceptível.

— Porque sempre é Shaka. Sou todo ouvidos para saber de algo que tire seu rumo tão quanto seu amigo ruivo. Até hoje, não tomei ciência de nada.

Mesmo que a frase tenha sido proferido no mesmo tom impassível de sempre, ambos conseguiram sentir a mudança no clima que se instalou no ambiente. Shaka girou o corpo na cama ficando de costas para Shura e fechou os olhos. Ouviu o suspiro que o espanhol deu e em seguida sentiu o braço dele envolvendo sua cintura.

— Me desculpe Rubio. Estou cansado. Não queria te ofender. — Sussurrou próximo ao ouvido do loiro.

— Não ofendeu. Talvez você tenha razão. Eu que tenho que pedir desculpas. — Falou sem se virar, mas se aconchegando novamente.

— Vamos esquecer isso. — Deu um beijo no pescoço de Shaka.

Shaka sentiu o corpo arrepiar e esfregou-se de forma insinuando no esposo.

— Shaka, você me desculpa? Estou realmente cansado… Quem sabe pela manhã.

— Claro… — Sorriu olhando para Shura. — Na verdade eu também estou, mas não perco a oportunidade.

Sorriram e encerraram o assunto com um beijo de boa noite.

Shaka mordia o lábio inferior ao perceber que até mesmo o esposo já havia notado o tanto que o ruivo povoava seus pensamentos. Não pôde deixar de atentar para o amargor que sentiu no tom mascarado de impassibilidade que o espanhol usou ao pronunciar o nome de Camus.

Depositou o copo vazio na lixeira e fez uma rápida pesquisa em busca de lojas de tinta. Naquele dia havia sugerido ao marido que pintassem a casa.

Não era um grande apreciador dos tons de cinza que ornavam as paredes da casa de Shura. Talvez mantivesse em alguns lugares, fazendo um contraste, mas não em todo o ambiente. Percebeu que o marido apresentou uma fisionomia levemente contrariada mediante a ideia, mas abrandou em seguida, dando o aval para que fizesse as mudanças que considerasse necessárias. E era o que planejava fazer. Acreditava que a casa ficaria com um ar mais leve e no mais… Eles poderiam devolver a tinta caso não usassem.

Repreendeu-se assim que o pensamento se formou. Não havia nenhum motivo para devolução, não era como se estivesse na dúvida… Não é? Balançou a cabeça e olhou o catálogo de cores decidindo pelo branco neve.

A mesma cor das paredes da casa de Camus.

Coçou o nariz em sinal de contrariedade mediante o pensamento e começou a calcular a quantidade do produto que precisaria para pintar todos os cômodos. Tinha urgência em aplicar suas mudanças e manter-se ocupado.

Assim como, já havia pensando em alguns dos tópicos que precisava levantar na conversa com o Ruivo. O principal deles era que não estava disposto a recuar em suas escolhas, não agora, não por enquanto. Ainda não estava preparado. Não sabia sequer se algum dia estaria. De todo modo, a noite anterior só deixou evidente que precisava parar de demandar tanto de seus pensamentos a figura do ruivo.

Selecionou a cor da tinta no site que constava o preço mais em conta e enviou o produto para o carrinho de compras. Estava prestes a efetuar o pagamento quando ouviu o som de uma nova mensagem de e-mail chegando. Optou por olhar de pronto o correio corporativo, já estava se desviando do trabalho ao fazer aquela compra, seria mais prudente verificar primeiro do que se tratava a mensagem.

Crispou os lábios ao ler o e-mail do RH indicando que Camus se ausentaria por quinze dias, devido a uma luxação no ombro direito, decorrente de um atropelamento.

Uma enxurrada de pensamentos dominou sua mente e em todos eles enxergava a imagem do ruivo ferido e sozinho, mesmo que o tom da mensagem deixasse claro que não tinha sido um acidente grave. Não sabia se estava mais preocupado ou irritado. Desde quando aquele homem havia se tornado tão distraído a ponto de ser atropelado? Todavia, sabia que era inútil e cruel imputar a culpa ao acidentado.

Pegou o celular cogitando ligar para o amigo, mas parou no meio do caminho. Seu atual estado de espírito não era o mais indicado para iniciar uma conversa com Camus. Precisava rever seu discurso, seus argumentos e pontos de diálogo. Não, não podia ligar agora. Respirou fundo e fechou os olhos, o sorriso matador do ruivo automaticamente veio a sua mente.

Sentiu um gosto amargo na boca, o que era quase impossível caso considerasse a bebida que tinha acabado de consumir.

Abriu os olhos detendo-se mais uma vez na pequena pilha de relatórios. Mandou a resposta automática de “recebido” ao e-mail do RH e pegou o primeiro relatório da pilha. Até o momento, sua tática de manter-se ocupado e focado em alguma coisa, qualquer coisa, que não fossem aqueles olhos castanhos estava sendo útil. Concentrou-se, tinha tarefas mais urgentes com que se preocupar e aparentemente comprar a tinta para pintar a casa já não era mais uma delas. Sem perceber, mais uma vez se perdia em Camus.

Ao que tudo indicava, Shura estava mesmo certo.

Chapter 33: Tudo por mim mesmo

Chapter Text

Era bem provável que sua desenvoltura na noite do domingo se devesse a descarga de adrenalina que todo aquele contexto absurdo disparou em seu organismo.

Desde sua conversa decisiva com Hyoga, ou até antes, ele vinha se perguntando sobre sua sexualidade. Havia revisitado em sua mente todos os atos do que compartilhou com o loiro.

Não existia um só motivo para negar como tinha sido bom, como lamentava ter estragado tudo. Ardia em sua garganta um grito que não se julgava merecedor de libertar.

Então, ao ver aquele homem tão instigante e de beleza ímpar não pode evitar.

Deveria ser mesmo um completo sem noção para ter esse tipo de pensamento enquanto o outro estava machucado por seu descuido. Talvez, fosse coisa pior. Todavia, agora, dois dias depois se via ligeiramente constrangido em encontrar com aquele homem, Camus, para entregar o celular que comprou como forma de ressarcir o que havia se danificado por sua culpa.

Quando o outro homem respondeu sua mensagem comunicando que estava no Parque Central com um amigo, sentiu um misto de alívio e desconforto.

Realmente não sabia como se portar com um flerte em geral, com outro homem então?

Não que fosse inexperiente. Mas, teve a sério apenas uma namorada por muitos anos.

Talvez nem todos os relacionamentos da adolescência tivessem a capacidade de se reinventar para continuar na idade adulta. A verdade, é que Esmeralda tinha outras ambições, ela queria viajar, se engajar em questões de ativismo pelo meio ambiente. Com o tempo acabaram se tornando apenas amigos e assim, quando surgiu para ela essa oportunidade eles fatalmente romperam.

Ikki sofreu por meses. De certa forma era o fim de uma era em sua vida.

Depois de Esmeralda, apenas emendou noitadas e casinhos sem futuro.

Até que conheceu Pandora. Uma mulher que realmente o interessou, com quem conseguiu se sentir disposto a desbravar aspectos que nunca antes tinham lhe passado pela cabeça. Frequentavam a mesma academia. Se cruzaram algumas vezes e era evidente o interesse mútuo. Até que ela contou que tinha um namorado. Ikki desanimou no mesmo instante.

Entretanto, o que é e não é o destino?

Bom, culpar o destino não fazia parte de sua personalidade. A maneira como ela era direta, deixando claro que gostaria que ele dormisse com ela e que seu namorado acompanharia… Primeiro o chocou, posteriormente entendeu que ela manipulou a ambos para conseguir realizar seus desejos. Não havia como negar, porém, que uma conjunção de eventos facilitou para que acabasse na impressionante cobertura da família de Pandora com ela e o tal namorado, Hyoga, onde a fantasia sexual da mulher se realizou.

E... Onde o começo do fim do mundo, que acreditava ter na palma de suas mãos, disparou, teve início. Ela queria fazer sexo com ambos e não como disse a eles em separado que o terceiro apenas assistiria. O que não foi previsto por nenhum deles foi o envolvimento que desabrocharia entre todos, de certa forma, após essa noite lasciva.

Apertou a junção dos olhos cansado. Não queria voltar a essas memórias. Estava feito, acabado. De qualquer forma caminhava agora pelo parque, procurando a área indicada por Camus para finalmente entregar-lhe o aparelho novo e livrar um pouco do peso que lhe curvava a consciência. De tudo isso a melhor parte havia sido finalmente poder ser mais honesto com Shun e se sentir acolhido pelo irmão. Ao menos um deles havia dado certo. Avistou de longe os cabelos de cor inconfundível de Camus e quando estava a ponto de dizer algo para chamá-lo uma outra presença chamou sua atenção.

***

Não podia negar a sensação de divertimento que o acometia ao constatar que estava realmente firmando uma amizade com o anteriormente ruivo psicopata.

Desde o primeiro momento, duas coisas o haviam chamado a atenção na figura do francês, porque sim, agora sabia que tinha acertado o sotaque que havia captado na famigerada noite de fuga. A primeira delas era notória a qualquer ser humano dotado de visão e a segunda era a capacidade que aquele homem tinha de expressar toda sua bagunça interna através do olhar. Foi assim que entendeu a situação que se desenrolava no Imperador e era assim que havia compreendido que naquele momento, mais do que em qualquer outro, ele precisava de companhia. Assim que voltou para a mesa com as duas garrafas de água, deparou-se com o rosto sério que não parecia estar abalado, mas notou uma certa apreensão na maneira como ele fitava o celular. Sorriu minimamente ao notar que suas próprias atitudes diferenciavam das que tivera em outro momento para com aquele homem.

Queria mesmo de alguma forma ajudá-lo e continuar a ver os sorrisos sinceros, afinal, ele própria já tinha se valido da ajuda de outra pessoa em um momento de necessidade. E quem sabe, se não fosse a companhia de Shun e até mesmo de Ikki, talvez, tivesse seguido por um caminho mais tortuoso. Não se imaginava criando ao seu redor o mesmo tipo de teia nociva da qual o ruivo tentava se libertar. Contudo, tinha plena consciência que existia mais de um tipo de veneno e qualquer um poderia acabar se deixando levar. De todo modo, abriu umas das garrafas de água colocando-a na frente de Camus, em seguida abriu a sua.

A atenção do ruivo foi captada ao notar a bebida e ele suspirou, finalmente desfazendo o rosto sério, fitando Sorento em um misto de ansiedade e apreensão.

Por mais que Ikki tivesse deixado claro que voltaria a procurá-lo para ressarcir o celular danificado, não esperava que ele agisse tão rapidamente.

Uma parte de si agradava-se sobremaneira com a possibilidade de rever o rapaz, porém, outra parte o recriminava fortemente e gritava em sua mente que qualquer atitude que ultrapassasse a simples entrega do aparelho acarretaria uma queda vertiginosa, um retrocesso de tudo que tinha conseguido até então.

No fundo, não tinha a mesma segurança que Sorento parecia ter ao afirmar que não havia problema em se envolver momentaneamente. A bem da verdade, sequer sabia se queria isso, só não conseguia ignorar o fato de Ikki ser ridiculamente atraente.

Bebeu quase metade da garrafa de água em um único gole e mais uma vez despejou sua angústia, acompanhando o rosto sereno do aparentemente novo amigo e o sorriso mínimo que ele deu ao sugerir que respondesse a mensagem indicando o local no qual estavam e afirmando que esperaria com ele pela chegada do “tal atropelador”.

Não sabia dizer ao certo o motivo, mas a possibilidade de efetuar aquele encontro com uma companhia a mais, o deixava mais tranquilo. Ikki indicou que chegaria em no máximo trinta minutos e já havia perdido a noção do tempo em meio a assuntos mais amenos, quando captou um leve tom de seriedade na voz do garçom.

— Uma coisa você nunca me contou. — Sorento falou terminando de beber a garrafa de água.

— Acho que não te contei muita coisa... — Camus riu. — A qual especificamente você se refere?

— O livro que comprou comigo. Nunca soube se o presente satisfez ou não.

— Sinceramente não sei. — O tom de voz melancólico era nítido. — Alguns contratempos aconteceram no meio do caminho e não pude confirmar a real opinião dele sobre.

— Entendo. Me agradaria saber se...

O flautista parou de falar ao notar o olhar de Camus sobre seus ombros. Virou a cabeça na direção em que ele olhava, não pôde deixar de levantar uma das sobrancelhas e não conteve o leve erguer de lábios que se desenhou em seu rosto ao avistar um de seus senhorios caminhando na direção de ambos com uma face interrogativa.

Aparentemente essa cidade é mesmo uma rua. Ou algum ser superior definitivamente é partidário da ironia, pensou assim que Ikki parou próximo aos dois.

— Como vai Ikki? — Sorento cumprimentou sentindo o olhar de Camus sobre si.

— O que você está fazendo aqui? — Ikki perguntou no tom autoritário de sempre.

— A pergunta vai soar idiota, mas vocês se conhecem? — Camus questionou olhando de uma para o outro.

— Sim. Ele e o irmão são meus senhorios. — O garçom respondeu contendo o riso, mas não o olhar divertido.

— Mundo pequeno… — O ruivo falou nitidamente sem jeito.

Era palpável o desconforto que havia se abatido sobre os dois homens anteriormente envolvidos no acidente, e por mais que contivesse a vontade de gargalhar mediante a situação, o terceiro elemento daquela piada sem graça, não se furtava de olhar os dois com nítido interesse.

— Não quer se sentar um pouco? — Camus questionou apontando a cadeira ao lado de Sorento.

— Estou em horário de almoço. Só queria mesmo te entregar o telefone novo e mais uma vez pedir desculpas. — Estendeu uma sacola ao ruivo.

— Ah… — O desânimo na voz de Camus foi sútil, mas não passou despercebido. — Realmente não precisava. — Pegou a sacola. — Meu celular ainda funciona.

— Era o mínimo que eu poderia fazer… E eu também queria saber se você está mesmo bem. — Passou uma das mãos pela nuca, fechando o rosto em seguida ao perceber Sorento apertando os lábios em uma risada contida. — De onde vocês se conhecem?

— Basicamente eu fico salvando ele… — O garçom falou em um tom divertido trocando um olhar cúmplice com Camus.

— Então, vocês? — Ikki apontou de um para o outro.

— Nós somos amigos. — Camus complementou sorrindo em seguida.

Aos poucos Sorento estava se acostumando com aqueles sorrisos, mas mesmo assim ainda se surpreendia com o quão belo eles podiam ser e com o efeito que causavam. Ao que tudo indicava, Ikki ainda não tinha sido arrebatado por um deles, levando em conta a respiração suspensa e os lábios levemente abertos em sinal de assombro. Pigarreou desviando o olhar e soltando o ar aos poucos.

Ok, aparentemente não era somente Hyoga que conseguia o deixar sem palavras.

— Tem certeza que não pode sentar um pouco? — O flautista perguntou ao notar a reação do japonês.

— No momento não, mas… — Olhou para Camus. — Estou desocupado depois do trabalho.

O sorriso do ruivo se alargou e Ikki correspondeu. Foi a vez de Camus se surpreender.

— Preciso voltar agora… — Conferiu o relógio de pulso. — Te mando mensagem mais tarde e marcamos algo. Tudo bem?

Camus ponderou sobre aquilo, até o momento estava com receio de encontrar aquele homem sozinho, e agora iria dar o seu aval para que ele lhe procurasse novamente? O fato de Ikki ser conhecido de Sorento, de alguma forma o deixava mais tranquilo. Não sabia identificar ao certo aquele sentimento, era como se a recém descoberta ao mesmo tempo em que era constrangedora, também trazia certo sossego. Olhou para o garçom e o viu balançar discretamente a cabeça de forma afirmativa.

— Claro… — Respondeu com toda segurança que conseguiu juntar.

— Ótimo. Preciso ir. Até mais Camus. — Apertou levemente o ombro bom dele. — Sorento. — Olhou para o flautista que acenou com a cabeça.

Ambos acompanharam a silhueta do japonês se distanciando, até que o perderam de vista.

— Quer dizer que você foi atropelado pelo Ikki. — Sorento comentou rindo. — Ainda não acredito nisso! Agora entendo essa sua apreensão.

— Como assim?

— Não sou cego Camus, além disso, moro na mesma casa que ele. Consigo imaginar perfeitamente o seu esforço.

O ruivo suspirou.

— Gostoso demais. — Enfatizou as palavras fazendo Sorento rir com mais vontade.

— Sim, muito. — Mordeu o lábio inferior pensativo — Mas, uma coisa me intriga. Achei que Ikki fosse hétero. Inclusive, lembro nitidamente de considerar isso uma lástima.

— Não acho que seja o caso… — Colocou uma das mãos no queixo. — Ou talvez seja uma descoberta recente.

— É uma suposição plausível. O interesse é inconfundível. De todo modo, acho que em breve você saberá. — Sorriu dando uma piscadela em seguida.

— E é esse meu receio.

— Fique tranquilo. Caso não tenha percebido, isso tudo já passou da etapa de ser uma caçada. Você está indo bem, Camus.

Trocaram mais uma vez olhares, compartilhando uma cumplicidade recém descoberta. Sem que percebessem findaram aquela tarde juntos, tendo agora em comum a pauta que versava sobre um certo japonês ridiculamente gostoso. Despediram-se ao anoitecer constatando que o dia havia sido mais divertido do que julgavam ser possível. Camus acompanhou Sorento até o metrô e assim que ele desceu as escadas, pegou o celular e verificou que tinha uma mensagem de Ikki.

Sorriu internamente ao ouvir a voz do flautista em sua mente: “Você está indo bem, Camus.” Sim, ele estava. Aos poucos, começava a entender o que realmente significava estar bem.

***

Hyoga aguardava, sentado em uma mureta, por Isaak. Eles haviam combinado de sair um pouco mais cedo da faculdade e passar no barbeiro. Ele acreditava que essa era uma maneira simbólica de animar o amigo e quem sabe marcar um momento de ruptura e recomeço.

Se lembrava da Mãe dizendo esse tipo de coisa, ainda hoje fazia sentido. Era vaidoso e queria aparar seus cabelos também. Pegou o celular e lá constava uma mensagem de Milo: Bom dia! Já estou com saudades.

Seus olhos brilharam e mordeu o lábio inferior pensando no grego. Quase não podia acreditar que estivesse mesmo sendo correspondido. O fantasma da insegurança gosta de assombrar. Respondeu rapidamente a mensagem: Bom dia moço bonito, também estou com saudades. Tudo certo por aí?

Guardou o celular no bolso da calça jeans, Isaak chegava nesse momento, eles se cumprimentaram com o abraço de sempre. Hyoga reparou no quanto os cabelos de Isaak haviam crescido, só as pontas permaneciam verdinhas e apesar de ter perdido um pouco do corte, a parte da nuca estava bem longa para baixo dos ombros, mas como os cabelos dele eram fininhos ficava até charmoso.

Percebeu as olheiras profundas no rosto do amigo, preferiu porém não comentar. Mesmo sabendo da indecisão de Isaak e imaginando que a probabilidade era grande de que ele realmente não retribuísse as intenções de Kanon, era notável que a companhia do grego fazia bem a ele. Não haveria como ser diferente. O pouco que conviveu com Kanon mostrou que assim como Milo, o biólogo era uma pessoa de boa índole, constância e atitudes calorosas. Todas qualidades valoradas por Hyoga. Por outro lado, entendia que as vezes ser um bom partido não significa ser correspondido na mesma medida. Mesmo fazendo todo sentido, as vezes apenas não era para acontecer.

Não era fácil, mas, o ideal era que ambos pudessem ficar bem, juntos ou não.

Eles caminharam por alguns minutos até a barbearia, era um estabelecimento tradicional do bairro operário. Não existia agendar horário, o corte era feito sempre na ordem de chegada, por sorte quando chegaram apenas um cliente estava sendo atendido por um senhor mais velho com cara de poucos amigos. Um rapaz porém, também barbeiro e claramente mais envolvido com questões de moda e estilo os atendeu super bem e escutou o que cada um deles pretendia fazer.

Seu nome é Fenrir e ele exibia uma cabeleira prateada muito bem cuidada. Ele fez sugestões para ambos e Hyoga acabou aparando os fios de forma desconstruída e desfiada, os cabelos formando uma moldura mais leve para seu rosto e mal chegando aos ombros. Isaak fez um corte bem diferente, raspando a maior parte da cabeça de forma decrescente e mantendo uma franja lateral sobre o lado esquerdo do rosto. Assim toda tinta verde foi embora, deixando a cor natural, um tom escuro e acinzentado de loiro a mostra. Os dois gostaram bastante do resultado final.

Almoçaram juntos e cada um seguiu seu rumo. Hyoga para o trabalho e Isaak de volta para a faculdade, tinha uma reunião com um professor.

Era o meio da semana e além do novo corte de cabelo ele havia decidido tomar outros rumos com relação aos seus estudos. Ter se mantido quieto por esses dias havia rendido algumas reflexões afinal… Crescer não era fácil, mas para ele não existia mais outra possibilidade. Sentiu alguma tranquilidade, finalmente.

***

Os cabelos presos em um rabo de cavalo alto estavam empapados de suor. A expressão fechada enquanto executava a… Havia perdido a conta, depois de diversos abdominais passou as flexões de braço. Pela quantidade de suor que polvilham seu dorso nu devia estar há bastante tempo nisso. Sentiu o fremir dos músculos quando parou. Deixou seu corpo tombar no chão gelado. O bocejo desinteressado de Deusa o fez sorrir.

Com metade de seu rosto apoiado no chão se permitiu pensar sobre os últimos acontecimentos. Tinha certeza absoluta e reconhecia a importância de sua decisão no que dizia respeito a Isaak, mas a sensação de derrota não o deixava.

Era a noite de quarta-feira e seu trabalho estava acumulando, no dia anterior não conseguiu terminar nenhuma das leituras e menos ainda fichar os textos que precisava para enviar para seu orientador na Universidade.

Como havia bastante coisa adiantada ainda não poderia se considerar atrasado, mas em breve isso aconteceria.

Tinha louça acumulando na pia e uma caixa de pizza vazia junto de algumas garrafas de cerveja na mesinha da sala. Precisava de um banho urgente. E quem sabe fazer a barba. Tocou o próprio queixo sentindo que começava a despontar uns pelos, estava com preguiça de fazer isso. Fechou os olhos contrariado e emitiu um som de desgosto quando ouviu o interfone tocando. Só podia ser engano. Tentou ignorar, sem sucesso.

Se ergueu e atendeu. Para sua surpresa era para ele mesmo a visita.

No mesmo momento se lembrou da reunião que perdeu na noite anterior. Avisou que estava descendo e foi checar o celular. Sem bateria. Ótimo, pensou, mordendo os lábios, era tudo que eu precisava. Colocou o aparelho para carregar.

Desceu rapidamente e como previa estava no portão um distinto Julian exalando nobreza e requinte. Contraste perfeito a sua figura alquebrada.

— Julian… — disse em um arremedo de sorriso — Entra.

— Kanon, que raios aconteceu com você? Não deu as caras na reunião da festa do Aiolos, não avisou nada para ninguém, só desapareceu! Não atende o celular mais?

Kanon não respondeu nada, subiu as escadas com Julian pouco atrás. As bochechas do visitante coraram ao reparar que o corpo do amigo estava coberto apenas por um short larguinho, enquanto Kanon subia na sua frente ele pode reparar nos ombros largos, o corpo compacto e no traseiro firme e destacado naquele traje sumário.

Arregala os olhos secando aquele corpo impressionante, antes de desviar o olhar. Calou-se. Já na casa de Kanon aguardou alguma posição do amigo.

— Meu celular descarregou. Acabei me enrolando aqui...

Julian olhou em volta e contabilizou a bagunça na mesa de centro. Ergueu uma sobrancelha.

— Não vai me oferecer nem um copo de água, meu amigo?

— Claro, só um momento...

Seguiu o anfitrião até a cozinha e observou a pia acumulando alguns copos, pratos e xícaras sujos. Kanon pegou uma garrafa de água na geladeira e um copo no armário. E então pela primeira vez encarou o amigo.

Julian leu naquele olhar uma tristeza que não identificava há muito tempo. Abriu a boca e não disse nada. Kanon depositou a garrafa e o copo na mesa. Abaixou a cabeça. Pelo tempo que conhecia o dono do Imperador deveria ter previsto que não conseguiria esconder nada dele.

Julian se aproximou e tocou seu cotovelo. Falou com suavidade buscando o olhar do outro.

— Kan… O que houve? — Estava preocupado e a aura costumeira de enfado foi completamente dissolvida.

— Você vai rir de mim Julian, eu sou um idiota. Terminei com o garçom e provavelmente quem está sofrendo mais sou eu e não ele.

— Ãhn… Kanon, você realmente gosta desse garoto?

— Era bom, boa parte do tempo foi bom, mas não estou apaixonado se é o que quer saber, ainda não, eu só… Eu não queria deixar as coisas crescerem ainda mais. Estava na cara que não funcionaria… Estou cansado de tudo sempre dar errado! Preciso aceitar que tenho que ficar sozinho. Será que nunca mais eu...

Fez menção de passar e Julian parou a sua frente. O encarou intensamente.

— Não diga isso. Definitivamente não é o caso. Vai tomar um banho. Vou arrumar as coisas aqui e vamos sair para jantar.

— Não sei se tenho pique…

— Sem discussão, vai se arrumar. Vamos dar uma volta. E conversamos melhor se você quiser.

Kanon sorriu francamente para o amigo. Realmente Julian era uma de suas relações mais sólidas. No fundo só podia contar mesmo com sua família e amigos.

— Obrigado Julian, já volto.

Julian respirou fundo e se encostou na parede pensativo. Mordeu os lábios e viu a gatinha passando para comer em seu pratinho. Escutou o barulho do chuveiro e se aproximou da pia.

— Por acaso você sabe me dizer o que eu faço com esse seu humano, Deusa?

A gata deu um miado longo e Julian sorriu para ela. Olhou para a louça e dobrou a manga da camisa. Lavou rapidamente o que estava lá e deixou no escorredor. Secou as mãos em um pano de pratos e foi até a sala recolher a caixa de pizza e as garrafas. Deixou as garrafas sobre a pia e jogou a caixa no lixo. Foi até o lavabo lavar as mãos e sentiu o cheiro de sabonete e shampoo que vinham do quarto de Kanon. Olhou seu reflexo no espelho e passou as mãos pelos cabelos ajeitando-os atrás das orelhas.

— Se controle. — Ordenou baixinho para si mesmo.

Foi para a sala e sentou-se no sofá para aguardar o amigo. Logo Deusa voltou para a sala, subiu na mesinha de centro e ficou como uma esfinge o encarando. Ela quase fechava seus enormes olhos amarelos, só para abri-los lentamente. Julian ficou acompanhando aqueles movimentos encantado. Alguns minutos passaram e logo Kanon chegou na sala. Ficou alguns instantes observando aquela conversa silenciosa. Não pode deixar de sorrir pensando que apesar da inclinação de Deusa ser a de gostar de praticamente todas as pessoas, ele nunca havia visto ela tanto tempo fazendo aquele charminho para outra pessoa que não ele.

Demorou seu olhar em Julian. Nesse momento o amigo o encarou e pareceu mimetizar a expressão da felina, quase fechando os olhos e os abrindo novamente. Kanon sorriu e o amigo devolveu o gesto.

— Vamos? — Julian convidou já se levantando.

— Vamos. Que tal japonesa?

— Perfeito! Algum lugar de preferência, ou te levo no melhor da cidade?

— Você decide o lugar…

— Ótima escolha! Confia que eu sei o que faço, você vai gostar.

— Eu confio em você Julian.

O sorriso do dono do Imperador se alargou. E Kanon não pode evitar de também sorrir. Eles saíram em um clima de camaradagem apagando as luzes.

Na sala, Deusa ronronou contente lambendo suas patinhas.

Chapter 34: Está bem ali

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Ao contrário do que normalmente acontecia em sua vida, aquela semana parecia estar passando rapidamente, com relativa tranquilidade. Por mais que preferisse passar seu dia de folga descansando, precisava admitir que o passeio com Camus havia sido surpreendentemente divertido. E a constatação não se deu apenas pela ironia de Ikki ser o alvo de parte dos pensamentos conflituosos do ruivo, mas também pela interação aprazível que compartilharam. Conseguia vislumbrar um futuro interessante para aquela amizade e desejava que Camus se divertisse no possível encontro com o “japonês ridiculamente gostoso”, como costumava enunciar.

Assim que chegou em casa naquele dia, dirigiu-se a seu quarto e após tomar um demorado banho sentiu o peso da noite insone e foi rapidamente dominado pelo cansaço. Não recordava de ter tido algum sonho, apenas de apagar durante toda a noite, até ser despertado pelo som do alarme do celular o comunicando que precisava iniciar sua jornada de trabalho na livraria. A quarta feira também passou de maneira quase tediosa, o que não o incomodava de forma alguma, levando em conta que preferia se manter a parte de situações dramáticas. Mesmo que não tivesse mais tanta certeza se conseguiria escapar de tal enredo, uma vez que, a quinta feira havia chegado e com ela seu expediente no Imperador, o que fazia gritar em sua mente apenas uma palavra: “Isaak!”

Ver o outro garçom não era exatamente o que o incomodava, muito pelo contrário, aquele rapaz sempre se mostrava uma excelente paisagem, mas sim perceber a rejeição que podia ler nas atitudes dele. Quanto a isso não havia remédio e já que precisava trabalhar, o melhor seria relevar as ações do bendito caolho.

E foi com esse pensamento que entrou no bar, atravessando o salão e se dirigindo ao quarto dos funcionários para guardar suas coisas. Ponderou que o colega de trabalho não costumava chegar muito cedo e que talvez a interação deles não ultrapassasse o esbarrar entre as mesas do salão. Provavelmente sequer ficariam sozinhos, e com isso a rejeição seria menos latente. Rápido como veio, o pensamento se foi assim que parou na entrada do quarto de funcionários e avistou Isaak fechando a porta do armário, o encarando em seguida. Conteve a surpresa ao ver que o rapaz havia cortado o cabelo e a vontade de deslizar as mãos nos fios recém aparados sentindo a maciez daquele cabelo fino.

Ótimo! Arrumou um jeito de ficar mais charmoso. Parabéns!

Entrou no cômodo lembrando de como precisou afastar os fios loiros que anteriormente se alojavam no pescoço para beijar o local e sentiu uma estúpida vontade de rir ao notar que regozijava com a ideia de que Isaak estivesse tão livre quanto aquele belo pescocinho. Repreendeu-se, estava divagando demais e perdendo o foco, duas atitudes perigosas. Manteve a fisionomia despreocupada, como já tinha atentado para si mesmo, não havia nada que pudesse fazer com relação a aquilo. Ao menos não enquanto um deus grego de quase dois metros se interpusesse entre eles. Suspirou, era melhor trabalhar.

— Isaak… — Sorento cumprimentou com um meneio de cabeça dirigindo-se ao seu armário.

— Sorento… E aí, como vai?

O flautista se surpreendeu com o fato de ter obtido uma resposta, mas isso lhe causou menos estranheza do que o tom de voz ligeiramente vacilante e o discreto rubor que identificou na face do outro garçom. Parou em frente ao armário e girou os números no cadeado formando a combinação, abrindo a porta em seguida.

— Bem… Nada de novo. — Colocou a bolsa dentro do armário. — Gostei do corte de cabelo. Ficou… Muito bonito. — Fechou a porta virando na direção de Isaak que estava nitidamente corado.

— Obrigado… Estou me acostumando. Que bom que gostou. — Passou a mão pela nuca agora descoberta e sorriu sem jeito. — Sorento, droga… — Respirou fundo. — Eu te devo desculpas pelo outro dia.

Sorento piscou algumas vezes, inclinando ligeiramente a cabeça e encarando aquele único olho verde com curiosidade. Não sabia dizer ao certo mas aquela cena estava sendo muito diferente do que sequer poderia ter imaginado. Em momento algum passou pela sua cabeça que ouviria um pedido de desculpas, ainda mais entoado daquela forma quase envergonhada. Na verdade, conseguia sentir nitidamente uma mudança nos ares que os cercavam. Aparentemente o colega havia recuperado a capacidade de sustentar seu olhar, mesmo que não enxergasse mais aquela aura de desafio, gostava do que conseguia ver ali. Algo parecia diferente.

— Eu sinto muito, espero que possa me desculpar.

Isaak se esforçava para sustentar o olhar intenso que sabia estar o mapeando completamente. Estalou disfarçadamente os dedos das mãos por receio de que pudessem estar tremendo.

— Aquela... — Sorento passou a mão pelos cabelos. — Não era uma boa hora, digamos assim. Em outra ocasião eu teria tido mais paciência para o que você estava me perguntando. — Deu de ombros. — Mas, não precisamos nos desculpar pelo beijo. Aquilo…

— Você entendeu errado. — Isaak o interrompeu dando um passo a frente — Estou pedindo desculpas por ter sido um cuzão e insistido naquele assunto em um momento no qual você não estava bem. Por não saber a hora de parar e por ter sido um moleque, como você mesmo disse.

— Isaak…

— Deixa eu terminar, por favor. — Pediu com inédita seriedade, Sorento concordou. — Então… Estou me desculpando por ter te pressionando na hora errada. Fui estúpido. Mas em momento algum me desculparia por aquele beijo… Foi incrível e…

Isaak parou a frase no meio do caminho, sentiu que estava prestes a falar demais.

O flautista o flagrou olhando para as próprias mãos, algo realmente interessante deveria estar acontecendo nelas, já que o rapaz as olhava com indisfarçável interesse. Sorento não pôde deixar de erguer uma sobrancelha mediante a atitude do outro garçom e caso não soubesse que ele estava com Kanon certamente tentaria aprofundar a conversa sobre as impressões que ele teve sobre o beijo. Como não era o caso, acreditava ser melhor não enveredar por esse caminho. Não queria trilhar um percurso sem volta, mesmo que já o tivesse principiado ao tomar a iniciativa do ósculo. Suspirou medindo a figura de Isaak, sorrindo minimamente.

— Bom… — O outro garçom o encarou ao ouvir sua voz. — Ao menos sobre isso estamos de pleno acordo, o beijo foi incrível.

Isaak mordeu suas bochechas por dentro para se impedir de falar qualquer besteira. Concordavam que havia sido um beijo bom. Não só bom, incrível. Essa conclusão e a memória do ósculo compartilhado trouxeram um sorriso sincero ao seu rosto.

Sorento dobrou o esforço na tentativa de manter o rosto impassível, mas tinha certeza que havia falhado miseravelmente ao ser brindado com um sorriso deslumbrante e passou mais uma vez a mão pelo cabelo ao notar o conjunto da obra a sua frente: o rosto corado, o sorriso arrebatador, as mãos unidas em claro sinal de embaraço.

O que diabos está acontecendo? Pensou notando que sem perceber haviam se aproximado. Não, não podia fazer aquilo de novo, por mais que quisesse. Agora não teria nenhum momento de descontrole para culpar, apenas sua própria insensatez. Conteve-se, era bom em se manter inabalável.

— Estamos bem, então?

Isaak se forçou a perguntar quando notou uma mudança milimétrica na expressão de Sorento.

— Claro. — Acompanhou o sorriso sincero. — Estamos bem. — Estendeu uma das mãos.

Apertaram as mãos como se estivessem selando finalmente aquele acordo de paz, contudo, Sorento se arrependeu no minuto seguinte a ideia ao sentir uma descarga elétrica se espalhar pelo seu corpo mediante o toque de Isaak. Não podia afirmar com precisão se havia empreendido aquele gesto apenas por cordialidade, ou por uma necessidade cruel de se aproximar mais e sentir ao menos um pouco de contato. Decididamente não estava disposto a pensar em seus motivos.

Afastou-se com certo contragosto, desfazendo o aperto de mão, buscando um dos aventais amarrando-o ao corpo. Mordeu o lábio inferior lembrando de como usou um daqueles para disfarçar a ereção que despontou em si e não pôde deixar de pensar na pressão que suas pernas fizeram de encontro ao corpo de Isaak. Definitivamente era um volume considerável. Balançou levemente a cabeça. O ideal seria sair dali. Toda a atmosfera amigável que recaiu sobre eles e a atitude do outro o deixavam mais imaginativo, por assim dizer. E em seu mundo, poucas coisas eram tão perigosas quanto isso, jamais abriria mão de seu autocontrole outra vez.

Isaak permaneceu observando pensativo a movimentação de Sorento por alguns instantes antes de seguir seu exemplo e começar oficialmente seu turno de trabalho. Levou disfarçadamente a mão ao nariz para sentir algum traço de perfume em sua palma. Segurou seu suspiro.

Não estava mais sorrindo.

***

Assim que Hyoga abriu a porta Milo o abraçou. Não se viam há alguns dias, o que dentro do universo do período em que se conheciam era considerável. Sorrindo Hyoga afundou seu rosto na curva do pescoço do grego e deixou-se carregar enlaçando o quadril de Milo com suas pernas. Satisfeito o recém chegado apenas empurrou a porta para fechá-la. Isaak estava no Imperador e eles ficariam sozinhos ainda por algumas horas.

— Ficou lindo o seu cabelo Hyoga! — Milo disse ao pé do ouvido, e arrepios se espalharam pelo corpo do rapaz. — Até me deu vontade de cortar o cabelo também…

— Não ouse. Adoro seu cabelo…

— E eu adoro você… — Milo disse ainda o mantendo preso ao seu corpo antes de iniciarem um longo e profundo beijo.

Milo desejava mais contato pele a pele enquanto apertava o corpo de Hyoga contra a parede.

— Vamos pro quarto? — Hyoga convidou prendendo entre os dentes o lábio inferior do grego que sorriu de leve encaminhando ambos na direção já conhecida por ele.

— Senti muita falta de você por esses dias Russo.

Milo o empurrou para a cama com delicadeza e retirou sua própria camiseta tendo todos os seus movimentos seguidos pelo olhar ávido de Hyoga. Jogou a camiseta longe e puxou a camiseta que o outro usava a tirando com alguma pressa. Beijou aquela boca com devoção antes de descer beijos e mordidinhas pelo pescoço e ombros do mais novo que gemia sem qualquer reserva. Enquanto Milo se encarregava de sugar os mamilos de Hyoga o russo ia perdendo qualquer linha de raciocínio. O restante de suas roupas deixou seu corpo sem que ele soubesse em que momento e antes que pudesse dizer que também estava com saudades Milo já havia erguido seu quadril a altura de sua boca e se deliciava com tudo que pudesse alcançar. A língua e os lábios provando com volúpia e posse todos os recantos daquela região. Mãos e dedos trabalhando para levar seu parceiro a loucura. Em pouquíssimo tempo o clímax foi alcançado levando o rapaz a tremer seguro pelos fortes braços de Milo que recebia em sua boca toda semente e degustava com uma expressão muito safada.

— Você é delicioso… — Disse sem desviar os olhos e lambendo os próprios lábios enquanto abria sua calça.

Hyoga corou violentamente, mas seus olhos refletiam a mesma luxúria. Pegou na mesinha de cabeceira um preservativo e a bisnaga de lubrificante. Entregou o produto para Milo e ele mesmo se prontificou a colocar a camisinha no grego que arfava a cada toque de suas mãos.

Milo cobriu a camisinha com mais lubrificante e adicionou uma porção extra a entrada que já havia preparado com sua boca e dedos. Hyoga estremeceu e Milo o puxou lentamente para si. Foram se encaixando lenta e profundamente até estarem tão próximos que pareciam um só. Estáticos por alguns momentos eles se olharam transbordando de sensações e sentimentos. Então Milo começou a se mover e gemendo Hyoga deixou seu corpo tombar para trás. Tendo seu quadril preso com firmeza nas hábeis mãos do grego apenas se deixou carregar na imensidão do prazer que compartilhavam. Um zumbido seco em seus ouvidos e o torpor atravessado por arrepios. Milo afundava-se por completo nele gritando seu nome. Pele contra pele. Suados e felizes. Celebravam mais uma vez a benção e o êxtase de estarem juntos. Puxou o corpo de Hyoga para poder beijá-lo e sorriu ao ver o amante transtornado os cabelos mais curtos colados no rosto e pescoço. Engoliu em seco.

— Você é perfeito Russo.... — Hyoga sorriu o abraçando mais forte. Eles se deitaram depois de algum tempo, cansados.

Hyoga entrelaçava seus dedos nos cabelos de Milo. Lutando contra o sono. A paz que sentia em sua alma nesse instante quase o carregava para os braços de Morfeu. Milo acompanhava os movimentos dele pensativo.

— A festa de Aiolos é amanhã, você quer ir? — Milo perguntou subitamente.

— Acho que não faz sentido Milo, eu nem o conheço, é uma celebração entre amigos.

— Não quero ficar sem você…

— Não vai ficar, é só não arrumar uma ressaca muito pesada e nos vemos no sábado. Vou gostar de te ver…

— Não vou encher a cara não. Alguém tem que ter juízo. — Ambos riram.

— Como está o Kanon?

— Kanon? Como assim? Não falei com ele nessa semana ainda. Estava adiantando o trabalho que tinha pendente. O que houve?

Hyoga apoiou a cabeça nas mãos. Talvez não fosse ele quem deveria estar contando isso, mas enfim, já que havia começado seria estranho mudar de assunto.

— Ele terminou com Isaak…

— Ahn… Não! Se bem o conheço deve estar com cara de bunda enfurnado em casa… E Isaak?

— Ficou chateado também. Você deveria conversar com Kanon. Eu sou grato a ele por ter apresentado a gente…

— Sim, melhor coisa que o Grandão já fez por mim nessa vida. Amanhã tento falar com ele antes da Festa… Ele não tem como escapar dessa, seja como for ele vai ter que ir nessa despedida.

— Espero que dê tudo certo.

Milo já o encarava novamente com olhar predador amarrou e descartou o preservativo usado e sentou-se sobre o quadril do mais novo movimentando sutilmente seu corpo.

— Podemos tentar de outro jeito agora… Que tal?

— Ouvi dizer que você gostava de muitos jeitos… — Hyoga disse entrando no clima.

Milo balançou a cabeça afirmativamente se lembrando de quando falou isso para o outro, parecia há tanto tempo. Voltaram a se beijar sensualmente.

— Com você gosto de tudo, de qualquer jeito.

Eles seguiam empolgados nessa aventura de se conectar e conhecer. A noite tinha tudo para ser bem longa.

***

Aparentemente um evento no dia seguinte estava tornando urgente a presença de Ikki em seu local de trabalho. Assim, só conseguiram realmente se encontrar na quinta feira a noite. Camus pensava sobre, avaliando que esses dois dias o ajudaram a se acalmar e diminuir o desconforto no ombro ferido.

Estava sem ideias sobre o que fazer em um encontro “despretensioso”. Em geral suas abordagens eram bem mais assertivas. Bom, até pouco tempo ele tinha um objetivo muito claro quando na presença de outro homem que considerasse interessante e atraente.

Deveria ter pedido alguma sugestão para Sorento. Em uma inesperada iniciativa Ikki o convidou para caminhar pela orla. Ficou satisfeito com a proposta e aguardava conforme combinado por mensagem, a chegada do rapaz para que pudessem enfim conversar. Chegou um pouco adiantado e ficou da amurada observando a movimentação de algumas pessoas a beira mar. No caminho para lá, de táxi, ficou se perguntando se deveria aceitar ou não a carona de Ikki, optou por ir sozinho, já que ainda não havia se decidido sobre qual seria sua métrica com o japonês.

A conversa com Sorento havia ajudado de uma forma inesperada e lhe garantido algumas boas horas de sono restaurador. Era realmente bom ter amigos. Ou ao menos construir uma amizade pautada em afinidade e respeito. Era grato a noção do livreiro/garçom, se dependesse só dele teria arrancado as roupas do rapaz no primeiro dia, pois, apesar de estar em recuperação tinha certeza de que Sorento deveria ele também ser completamente gostoso. Riu internamente de seu pensamento. Estranhamente agora, apesar de reconhecer isso, não sentia nenhum impulso de se impor ao rapaz, de consumi-lo. Sabia que Sorento era muito mais que um corpinho atraente. Era um avanço afinal. Instintivamente olhou para trás quando Ikki estava a poucos passos dele. O vento ameno fazia seus cabelos flutuarem ao redor do rosto e ombros.

— Boa noite. Você está esperando há muito tempo? — Aproximou-se, as mãos dentro do bolso da calça.

— Boa noite Ikki... — Sorriu levemente — Não, na realidade cheguei há pouco… Foi difícil me encontrar? Percebi que não fechamos exatamente um ponto de encontro.

— Não, de maneira alguma. Esses cabelos não são muito discretos. — Riu charmoso — Posso fazer uma pergunta?

— Claro. — Afastou-se um pouco dando espaço para que o japonês ficasse ao seu lado também encostado na amurada.

— Você sempre teve cabelos longos?

Camus estreitou o olhar, era uma questão inesperada. Ele conseguia mapear o interesse de Ikki, claro, tinha muita consciência de seu magnetismo, ao mesmo tempo uma quase ingenuidade costurava as ações do outro homem. Com certeza havia algo ali. O outro rapaz no entanto, exibia feições tranquilas, apesar do evidente cansaço. Já tinha comentado antes que andava com bastante trabalho.

— Na realidade eu os mantinha curtos até a faculdade. Justamente para ser mais discreto… — Suspirou escolhendo as palavras — Mas, como posso dizer, para contrariar uma certa influência eu me apeguei a esse respiro de rebeldia. Com o tempo passei a gostar… Conheço outros homens que mantêm cabelos longos. É interessante quebrar alguns paradigmas, não acha? — O encarou com sincera curiosidade.

— Nunca havia pensado sobre isso.. — Retribuiu o olhar pensativo — Mas você tem razão. Meu irmão tinha o cabelo longo até começar a trabalhar no Hospital, mas pela falta de tempo está crescendo novamente. Eu nunca deixei crescer.

— Acho que ficaria bem Ikki.

O japonês percebeu o sutil tom de malicia na voz do ruivo e sorriu corando levemente. Sentia que era fácil conversar com Camus. Algo esquisito. Não teve ainda oportunidade de se encontrar com Sorento, realmente seu trabalho tinha tomado quase todo seu tempo nesses dias, mas a surpresa de saber que ele e Camus eram amigos havia se tornado em uma grande curiosidade sobre a ligação dessas duas pessoas intrigantes. Ikki gostava de conversar com Sorento também. Ter se afastado da maior parte dos amigos desde que conheceu Pandora era algo que só agora percebia como negativo.

— Não sei se sou tão arrojado, e meu cabelo não cresceria assim tão bonito mal consigo conter desse tamanho… — Falou em tom divertido, um pouco atípico, passando a mão pelos cabelos. — Acho que ficaria um cabeção…

Os dois riram do comentário. Camus discordava, entretanto, preferiu não insistir. Passaram a caminhar lado a lado, apenas aproveitando a brisa até que Ikki voltou a falar:

— Como está seu ombro?

— Bem melhor na realidade. A medicação ajuda bastante.

— Que bom, eu fico mesmo embaraçado pelo que houve… Ainda bem que você não se machucou gravemente.

— Pelo menos nos conhecemos. Estava em um momento um tanto catártico, distraído…

— Eu também…

— Posso perguntar o que se passava pela sua cabeça?

— Uma história que eu estava remoendo. Eu agi de forma muito errada com uma pessoa Camus. Demorei bastante tempo para tentar me desculpar e acabei perdendo, quem sabe, uma oportunidade única…

— Quando você diz “uma pessoa” você se refere a um homem?

— Sim…

— Bom, disso eu entendo. — Piscou charmoso recebendo um sorriso em troca.

— Imagino. — Ikki alargou o sorriso.

— Engraçado, é a segunda vez que me dizem isso essa semana. — Riu sendo seguido pelo outro. — Quer conversar a respeito? Também ouvi essa semana que todo mundo precisa conversar, se abrir em algum momento...

Camus sentiu uma energia diferente em si. Estava de alguma forma mimetizando o comportamento de Sorento e, percebia que sim, era possível extrair satisfação em acolher o outro. Uma novidade interessante. Ikki respirou fundo. Nunca foi de se abrir com as pessoas, mas nesse momento parecia que se não tirasse algumas coisas de seu peito explodiria.

— Fui um covarde… — Suspirou pesadamente — Disse coisas desagradáveis, que não pensava para… — Impediu-se de dizer o nome de Hyoga, não conseguia. — Para Ele. E sumi do mapa por meses. Quando o procurei novamente fui rejeitado, como era de se esperar. Ao menos me ouviu e pude me desculpar…

Externalizar aqueles sentimentos de alguma forma fazia com que entendesse melhor suas atitudes e medos, porém, não deixava de ser constrangedor e… Dolorido. Não entendia muito bem o motivo pelo qual estava se abrindo com aquele homem, a priori havia imaginado que estariam em um encontro, e até onde podia imaginar sendo um homem ou não, certamente não era o padrão relatar suas desventuras amorosas nesse tipo de ocasião. Sorriu internamente, talvez realmente encontrasse algo mais ali.

— Não é uma justificativa, mas o fato de ser algo totalmente novo e ao que tudo indica inesperado, deve ter te tirado do prumo. Insere algum contexto nisso, e não me leve a mal, mas você me parece bem jovem. Enfim… Ele tem razão para te culpar, do ângulo em que ele viveu as coisas, pelo menos o que você dividiu agora; mas, você não deveria ser tão duro consigo mesmo. Se ele te desculpou, seguiu em frente pelo que posso presumir, talvez só te reste tomar o mesmo caminho. Acredite em mim, existem coisas bem piores que uma pessoa pode fazer a outra.

Ikki percebeu uma sombra cruzar o rosto do ruivo e o tom quase soturno empregado a fala. Tinha certeza de que existiam pessoas capazes de atitudes piores. Claro, não se eximia da responsabilidade, entretanto, reconhecia que seus atos eram mais o resultado do medo e inabilidade que de alguma crueldade intrínseca. Lamentava profundamente e gostaria de acreditar em alguma possibilidade de que Hyoga pudesse lhe dar mais uma chance. Isso de qualquer forma não tinha cabimento algum, além da mágoa que o Russo não disfarçou ele também já estava envolvido com outro homem. E pelo que havia visto na noite em que acabou presenciando um encontro entre eles era certamente correspondido. Aquele homem era muito atraente, alguém que chamaria sua atenção na multidão, sem dúvidas.

— Obrigado Camus. — Sorriu honestamente — É bem surreal você ser tão gentil com alguém que te atropelou.

Camus dirigiu a ele um olhar que desarmaria qualquer um, Ikki sentiu o impacto e ficou alguns segundos imóvel.

— Tem uma sorveteria do outro lado da avenida. — Movimentou a cabeça indicando a direção. — Eu ficaria feliz com um sorvete agora, que me diz Ikki?

— Sim… Parece bom. — Ikki respondeu um pouco mais acanhado do que calculou que pudesse ficar e achando que morreria se visse aquele homem colocando qualquer coisa na boca. Tentava a todo custo controlar as divagações de sua imaginação.

Já na Sorveteria escolheram uma mesa no canto e enquanto Camus analisava o cardápio Ikki o observou pela primeira vez com luz e proximidade suficientes para perceber alguns detalhes. A pele clara, sobrancelhas peculiares, a boca vermelha, bem desenhada e minúsculas e claríssimas sardas em seu nariz. Encontrou os olhos castanhos e não foi capaz de desviar os seus. Camus era inegavelmente bonito, parecia aliás, ficar mais atraente a cada detalhe percebido. Mas seu olhar indecifrável era algo que Ikki soube na hora não ter nada com que comparar. Não pôde deixar de pensar que provavelmente os mistérios escondidos naquela íris fosse o elemento de maior atração daquele homem.

— Algo que queira perguntar, Ikki? — Camus perguntou casualmente ao notar os olhares do rapaz sobre si. O japonês tencionava dizer algo, mas parecia desistir no meio do caminho.

A garçonete se aproximou para retirar os pedidos e Ikki aceitou a sugestão do mais velho. Depois que ela afastou-se, mesmo estando a sós ambos permaneceram em silêncio.

Camus aguardou pacientemente, aproveitou também para escanear detalhes mais finos dos traços do homem sentado do outro lado da mesa. Surpreendeu-se por sentir tranquilidade e leveza. Mais uma vez tomou uma nota mental de agradecer as palavras de Sorento. Realmente aquele momento em nada se parecia com uma caçada. Conseguia claramente apreciar a beleza e a companhia de Ikki sem afogá-las no furor selvagem de suas investidas do passado. Até o pensamento de que essas atitudes estivessem no passado lhe rendia satisfação.

— Tem algo que quero perguntar sim. Vamos comer primeiro, vejo que os pedidos já estão chegando.

A garçonete colocou na mesa uma garrafa de água com gás e dois copos, além de uma gigantesca taça de sorvete com duas colheres. Encarando a taça que transbordava chocolate e caramelo em uma mistura quase obscena Ikki pensou nas horas que teria que dedicar na academia para gastar aquelas calorias, ou quem sabe tivesse a oportunidade de usar aquela energia de outra forma? Provou o sorvete e percebeu que era uma combinação onde prevalecia o chocolate amargo com mascarpone adocicado e que no caramelo vez por outra encontrava cristais de sal. Camus tinha bom gosto, a consistência era surpreendente. Era simplesmente delicioso e depois de algumas colheradas se deu conta de que estava quase gemendo para o alimento. Realmente, tentava sempre se conter no que dizia respeito aos doces. Shun dizia que ele era uma formiga e orientava a não exagerar. Como tinha dificuldade de conter seus ímpetos preferia apenas evitar os alimentos doces. Mas, não estava disposto a conter nada nessa noite, ao contrário a cada olhar do ruivo sentia crescer em si uma determinação bastante objetiva.

Camus saboreava a vista e o sorvete se divertindo. Agora que havia encaixado algumas peças em si sobre o rapaz a sua frente a calmaria o guiava. Não costumava comer doces, mas sorvete sempre foi sua sobremesa predileta. Além disso, aquela semana já estava regrada a hambúrguer e batata frita, um sorvete não faria mal, ainda mais se viesse seguido de gemidos tão… Saborosos.

Terminaram a taça de sorvete entre olhares e tentativas frustração de conter os sons de prazer causados pelo doce e em certa medida pela contemplação mútua. Ikki dividiu a garrafa de água entre os copos e começava a beber quando ouviu a voz de Camus.

— E então, gostou? — O ruivo deu um sorriso enviesado.

— Muito! — Ikki retribuiu. — Gosto muito de sorvetes e doces de uma forma geral. Foi uma boa escolha.

— Me agrada saber disso. E sobre o que queria me perguntar?

— Ah sim… Podemos ir andando? — Fez menção a levantar da cadeira — A noite está bonita e acho que seria agradável continuar o passeio.

— Claro. — Levantou — Mais a frente tem uns bancos perto da orla caso queira se sentar.

Camus fez questão de pagar pelo sorvete e completada essa ação deixaram o estabelecimento.

Afastaram-se da sorveteria caminhando lado a lado. Ikki acompanhou o momento em que Camus colocou algumas mechas do cabelo atrás da orelha, travando uma encantadora luta contra o vento.

— Camus… Você é comprometido? — Questionou um pouco sem jeito.

— Bom… Não mantenho um relacionamento com ninguém se é isso que quer saber. Mas existem diversos tipos de comprometimento. — Olhou de esguelha para Ikki. — Não tenho um namorado, mas existe alguém por quem nutro sentimentos.

— Acho que se você está aqui comigo… Isso indica que seus sentimentos não são correspondidos.

— Sinceramente não sei Ikki… — Suspirou cansado. — Já que você foi tão sincero comigo, acho que o mínimo que posso fazer é retribuir. Eu… — Parou de andar parando de frente para o outro. — Tenho uma história complicado com um amigo de longa data. Ele não sabia dos meus sentimentos até poucos dias…

— E esse amigo… — Ikki o olhou com certa apreensão. — Não é...

Camus o encarou franzindo o cenho até entender a quem ele parecia se referir.

— Não é o Sorento, mesmo que eu tenha a certeza de que eles poderiam ser amigos.. — Riu. — Não é ninguém que você conheça. Mas… Eu sou realmente apaixonado por esse cara… E não sei se serei correspondido em algum momento.

— Isso é uma pena. — Ikki sorriu. — Seu amigo é cego ou por acaso anda de olhos fechados? — Gracejou, ouvindo a risada límpida do ruivo que voltou a caminhar.

— Nem sempre as coisas são do jeito que a gente quer. Temos dois exemplos ambulantes. — Riu. — Mas, no seu caso acho que talvez a solução seja menos problemática. Siga em frente, Ikki.

— Sim, eu sei. Preciso fazer isso… E preciso de mais experiência. — Corou ligeiramente.

— Você ainda tem dúvidas?

— Mais ou menos… Eu… Só saí com um único homem. O da história que te contei hoje. Não vou dizer que não acho outros caras bonitos e atraentes, porque seria uma mentira das boas. Mas…

— Você não sabe se seu prazer e paixão estão conectados apenas a aquele rapaz, ou se pode conseguir isso com outros homens.

— É… Isso… — A surpresa estampada no olhar.

— Eu disse que de homem eu entendia. — Sorriu maroto. — Definitivamente você precisa de mais experiência Ikki.

Chapter 35: A fumaça dissipou

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Em retrospecto avaliava que talvez tivesse perdido a chance de ser mais ousado. Por outro lado, tinha certeza absoluta de que se fosse realmente a vontade de Camus, estaria agora partido ao meio e implorando por mais na cama daquele homem. Suspirou. Claro que conversaram sobre outras coisas entre amenidades e experiências de vida. Estranhamente era bastante fácil se abrir com Camus, provavelmente em todos os sentidos do termo.

Nunca viveu nenhuma grande aventura, toda situação com Pandora e Hyoga havia sido provavelmente a coisa mais arrojada de sua existência. Cresceu sempre sério e carrancudo. Evitando brigas, mas se saindo muito bem nelas. Algumas pessoas do passado talvez caíssem para trás surpresas ao vê-lo agora formado, bem empregado, com seu carro novo e vivendo bem. A maior parte das pessoas não sabiam basicamente nada sobre ele. E nessa noite falou muito, não se arrependia.

Sim, a noite tinha sido agradável e ao deixar o Ruivo em casa fora brindado por um sorriso espetacular. E um beijo. Achou que o mundo derreteria a sua volta enquanto sorvia a vida da boca daquele homem. Foi um beijo que começou calmo e gradativamente passou a incendiar seu corpo. Camus disse algo que não compreendeu ao seu ouvido. O maldito falou em francês, degustou de seu pescoço e sua orelha e com a mão avaliou sua ereção por cima do tecido da calça e pareceu sofrer também quando parou. Mais um beijo e ele decretou que por hora era o que podia fazer por Ikki. Mas sorriu… Era decididamente um homem consciente de seu charme e incrivelmente habilidoso.

Ikki se sentiu como um adolescente a mercê dele, concordou talvez um tanto abobado. O Ruivo lhe disse boa noite e deixou o carro. Precisou respirar fundo algumas vezes para ter o mínimo de condições de guiar o carro até sua casa, mesmo assim perdeu o mesmo retorno duas vezes, o que era impensável em uma região que conhecia tão bem.

Passou a rir de si mesmo e conseguiu voltar para casa bem humorado, felizmente não encontrou com nenhum dos outros moradores. Na segurança de seu quarto passou a lembrar daqueles momentos. Não restavam dúvidas. Realmente homens lhe agradavam… E muito.

***

Chegou mais cedo do que o horário habitual ao estabelecimento no qual trabalhava, era dia de evento e precisava deixar tudo organizado. Thétis comandava aquele bar com mãos de ferro e não deixava de se sentir orgulhosa quando ouvia em meio aos cochichos que ela era a verdadeira Imperatriz. Por mais que massageasse seu ego, sabia que não era para tanto.

Aguardava a equipe que seria responsável pela decoração. Já havia conferido as remessas de bebidas, a lista de convidados e os funcionários que estariam disponíveis. Além de Sorento e Io, havia requisitado na empresa que prestava serviço ao bar, durante os eventos, o comparecimento de um bartender e de um segurança. Preferia que Khishna continuasse em seu posto fazendo os drinks do salão por estar mais acostumado, mesmo que as bebidas tivessem uma receita pré definida. O segurança, tinha sido uma solicitação direta de Julian, pois não queria nenhum cliente desavisado interferindo na festividade. Já havia conhecido o rapaz que seria responsável pela segurança e até o momento, não lembrava se o nome dele era mesmo Thor, ou se era um apelido, independente do motivo, a alcunha fazia juz ao homem que aparentava ter mais de dois metros de altura. Uma presença realmente imponente, pensou na ocasião.

Assim que a equipe chegou, ditou as primeiras ordens seguindo a orientação que tinha recebido de Aiolia. Poucos minutos depois, o próprio adentrava o local e se juntava a ela para continuação dos preparativos. Já havia organizado uma quantidade significativa de eventos naquele local, mas nenhum deles tinha sido planejado com tanto esmero. Certamente aquele despedida prometia, pensou dando um sorriso de lado ao contemplar o grego de olhos verdes falando com os funcionários.

 

Aiolia checou mais uma vez os últimos detalhes e deu-se por satisfeito. Realmente Julian possuía uma equipe qualificada, até o presente momento nenhum detalhe havia sido negligenciado. Enviou uma mensagem para o dono do Imperador com um elogio rápido, a noite conversaria melhor com ele.

Ocupando uma mesinha fora do caminho da equipe que carregava as bebidas para serem organizadas ele checou as respostas dos colaboradores e dos convidados. Uma lista atualizada seria entregue ao segurança designado, basicamente uma Sasquatch prateado. Impressionante. E sem o nome na lista nem mesmo o noivo estava autorizado a acessar o local da festa.

Conferiu mais uma vez a lista. Poucas pessoas não haviam confirmado. Aspros, dois professores da escola e um amigo antigo de Aiolos de quando ele praticava arco e flecha.

— As pessoas mais importantes confirmaram. — falou consigo mesmo. Redigiu e disparou para os que não haviam ainda respondido que dentro de uma hora fecharia a lista que não poderia mais ser modificada. Conferiu o horário no relógio do celular.

Pouco depois chegaram as respostas de Aspros, informando que não estava no país, zero explicações, a cara dele.

Um dos professores contou que não poderia mesmo comparecer já que a esposa grávida estava no fim da gestação e não teria cabimento ausentar-se para cair na noitada. Aiolia riu com a sinceridade do homem. A chegada de um e-mail do grupo de Dança Odin chamou sua atenção. Informaram uma mudança inesperada no cast. Uma das dançarinas havia tido uma crise alérgica. E estava sendo substituída por uma freelancer.

— Claro que alguma coisa tinha que dar errado… — discou o número do contato e após chamar algumas vezes uma voz doce atendeu do outro lado.

Conversou com a mulher e foi obrigado a aceitar a terceira dançarina, as outras opções seriam um dançarino ou se contentar com duas. Ponderou que boa parte dos presentes se agradaria com um dançarino, contudo a festa era para que Aiolos ficasse feliz, por tanto um macho dançando sensualmente estava fora de questão. Por fim concordou com a terceira dançarina.

Hilda, com quem falou ao telefone lhe garantiu que não se arrependeria. Assim esperava.

Conferiu mais uma vez a lista de convidados nome a nome. Todos lá: do noivo, passando pelo dono do bar, irmão da noiva até o seu assistente. Pouco antes de finalizar o tempo as duas últimas negativas chegaram.

Satisfeito enviou a lista para Thétis. Quase imediatamente recebe a resposta dela: Ciente.

Olhou no relógio, tinha algum tempo. Precisava ligar para Shura, já que ficou a cargo dele trazer Aiolos e decidiu enviar também mensagens para Milo e Kanon avisando para não esquecerem da Festa e não se atrasarem.

Sorriu para a resposta rápida de Milo cheia de corações e aguardou alguma de Kanon que não chegou. Franziu as sobrancelhas. Nesse momento uma mensagem de Julian confirmando o recebimento da lista de convidados pulou na sua frente. Confirmou e aproveitou para perguntar se ele sabia de Kanon, a resposta lhe pedia para não se preocupar que ele cuidaria pessoalmente do Grandão durante a noite toda. Sorriu satisfeito com a resposta.

Olhou em volta, os garçons ainda não estavam por lá. Mas tudo estava girando com uma perfeita engrenagem. Avisou Thétis que estava de saída. Ainda precisava passar no escritório antes de se arrumar e retornar lá. Estava animado. Com certeza o irmão ficaria feliz!

***

De dentro da banheira escutou o som de mensagem chegando em seu celular, duas vezes. Não fez menção de levantar-se. Afundou-se ainda mais na água quente. Havia tomado um bom banho de chuveiro e lavado toda maresia de seus cabelos na noite anterior, dormiu a noite toda, um sono tranquilo com sonhos agradáveis que não recordava completamente, mas agora queria apenas relaxar. Bebia suco de uva sonhando que fosse vinho.

Pelo banheiro velas aromáticas e sais na banheira deveriam garantir um ambiente relaxante. Tombou a cabeça ornada pelo coque alto e fechou os olhos se lembrando do frio na barriga que sentiu ao se aproximar de Ikki. Sorriu levemente. Se descobrir podia ter sua carga de angústia, mas também carregava lampejos de poesia. Imagens nostálgicas de seu passado pairavam sobre si. Não gostava de se debruçar sobre o passado. Krest tinha razão, não podia incluir todo o passado no mesmo conjunto, existiam nuances.

Todas as pessoas com quem conversou nos últimos tempos haviam sido de alguma forma receptivas e calorosas. Aparentemente ser um pouco mais aberto realmente passava uma mensagem positiva. E assim a chance de se colher uma resposta, conforme teorizou o terapeuta, se potencializava. As peças aos poucos se encaixavam. Reconhecer seus sentimentos ao contrário do que sempre acreditou e pregou não o tornava um alvo fácil. Não. Isso o fortalecia. A verdade o libertava, ao menos consigo tinha a obrigação de ser verdadeiro, em um mundo onde a sinceridade é punida era também valioso esse aprendizado.

Refletiu sobre a diferença entre flertar e caçar. Uma energia de renovação corria por suas veias.

Observou o bailar da fumaça deixando o pavio das velas. Estava tranquilo, sua mão boa deslizou por seu abdômen rumo ao membro ainda adormecido. Algumas imagens se intercalaram na sua mente. Desistiu. Estranhamente não sentiu esse impulso com selvageria. Fechou os olhos. Aproveitou o perfume das velas que ocupava o ambiente, era bom perceber que ao menos esse detalhe em sua casa havia sido escolhido por ele mesmo. Estava realmente tranquilo.

***

Atendendo ao usual pedido da gerente em dia de evento, chegou ao Imperador duas horas antes do início das festividades. Geralmente, acontecia alguma mudança de última hora ou um ajuste final, e por isso, Thétis era enfática nesse ponto. Assim que adentrou o bar percebeu que a equipe de decoração ainda trabalhava, assim como alguns carregadores que estavam subindo diversos engradados de bebida.

Observou um homem extremamente alto parado em um canto, junto com outro de estatura menor conversando com a gerente. Tudo bem que ao lado daquela montanha ambulante, praticamente qualquer um pareceria baixo, mas o rapaz aparentava ter mesmo uma estatura menor do que a sua, por exemplo. Cumprimentou Thétis levantando uma das mãos e ela retribuiu o cumprimento fazendo um gesto que indicava que depois falaria com ele. Aproximou-se do quarto de funcionários e ouviu um burburinho. Conseguia identificar muito bem as vozes ali e uma em especial chamou sua atenção. Parou na porta do quartinho antes de entrar e disfarçou a estranheza ao comprovar que uma das vozes era de Isaak. Não era comum vê-lo por ali a não ser que faltasse dez ou cinco minutos para iniciar o expediente. Como ele sempre dizia: “é o necessário para trocar de roupa, mijar e beber uma água.” Notou que a conversa cessou assim que computaram a sua presença. Não estranhou aquilo, no geral, era mais dado a diálogos com Io, já Isaak costumava falar com Bian, como estava fazendo naquele momento.

— Boa noite! — Sorento cumprimentou entrando na sala.

— Boa! — Bian respondeu sorrindo.

— Boa noite… — Isaak falou passando a mão na nuca em seguida.

— Io não chegou? — Questionou parando em frente ao armário abrindo o cadeado e guardando a bolsa. Fechando a porta em seguir.

— Chegou. Está no banheiro experimentando o uniforme.

— Uniforme? — Sorento caminhou até o banco no qual estavam sentados.

— Sim. Esse evento terá uniforme. — Bian riu.

O flautista ergueu uma sobrancelha mediante o riso do colega.

— Não é feio não. — Isaak falou ao ver a expressão do outro garçom.

— O que acham? — Io questionou saindo do banheiro. — Oi Sorento! O seu está pendurado lá no cabide do banheiro. Ficou bom, né?

Io deu uma voltinha, com as braços levemente levantados e parou olhando quase apreensivo para o namorado. Bian levantou do banco e aproximou-se dele, passando o dedo pela sua bochecha e sussurrando rente aos lábios.

— Você está lindo. — Deu um selinho na boca do namorado. — Na verdade, você está sempre lindo Eurrênio.

Por mais que não fosse uma pessoa de sorriso fácil, Sorento nunca conseguia conter o erguer de lábios que ornava seu rosto sempre que estava na presença daqueles dois. Era nítido o carinho, a devoção e cumplicidade que permeava aquela relação. Não conhecia muito bem a história deles, mas o amor que compartilhavam era tanto que acabava contagiando todos ao redor.

Isaak olhou com apreço para o casal e depois para Sorento. Suspirou baixinho ao ver o sorriso sincero que ele ostentava e teve a impressão que o flautista/garçom parecia desejar algo como aquilo que contemplava. Provavelmente era impressão, mas o caralho que fosse, não achava ruim a ideia de protagonizar algumas cenas românticas com ele.

— Vai experimentar a roupa? — Isaak perguntou tirando o outro garçom de seus devaneios.

— Vou sim. — Sorriu.

Passou por Io e Bian que continuavam concentrados um no outro e fechou a porta do banheiro, olhando a calça social preta e a blusa também social branca que estavam penduradas em um cabide protegidas por um plástico transparente. Junto com elas tinha um cinto de couro e uma gravata preta. Respirou quase aliviado, pois não havia nada de absurdo na roupa. Por alguns minutos achou que teria que servir às mesas sem camisa, usando apenas uma ridícula gravata borboleta, ou com alguma estúpida fantasia. Ao menos podia contar com o bom senso de sua gerente, pois não tinha certeza se a escolha daquele vestuário seria a que pessoas em uma despedida de solteiro fariam. Vestiu-se com certa rapidez, dobrando suas roupas e deixando-as pendurada no cabide.

Observou que as de Io, estavam em um suporte ao lado. Terminou de vestir a calça e a camisa, dobrando as mangas deixando parte do antebraço a mostra. Tentou verificar seu reflexo no pequeno espelho do banheiro, não conseguiu. Olhou-se da melhor forma possível e não pareceu que as roupas tinham caído mal, mas notou claramente que estavam mais justas do que as que costumava usar. Franziu o cenho ao lembrar que as de Io também pareciam justas, mas o rapaz costumava usar roupas mais rentes ao corpo, ao contrário de si. De todo o modo, movimentou-se dentro do banheiro e comprovou que não estava desconfortável, por mais que as peças estivessem mais coladas do que gostaria, não estavam pequenas, apenas tinham propositalmente aquele tipo de caimento. Passou a mão pelos cabelos desejando que não estivesse ridículo, Io era mais esguio e aquele estilo ficava bem nele, não tinha tanta certeza com relação a si mesmo. Abriu a porta do banheiro e estancou ao notar os olhares avaliadores. Sorriu um pouco sem jeito. Sabia que era um homem bonito, e que captava certos olhares, mas naquele momento, existia um único olho verde que escaneava seu corpo de forma enigmática.

— Chega mais, Sorento. — Bian chamou. Estava novamente sentado no banco largo que ficava no meio do quartinho, Io continuava ao seu lado. — Dá uma voltinha.

— Nada de voltinhas. — Caminhou para perto deles. — Está mais justo do que eu gostaria, mas não está desconfortável. — Deu de ombros.

— Essa é a versão da nossa gerente de exposição de corpos para uma despedida de solteiro… — Io riu. — Roupas reveladoras. Mais no seu caso do que no meu. Parabéns Sorento, belo corpo.

— Concordo. — Bian riu junto com o namorado.

— Vocês dois… — O flautista tentou se manter sério, mas não conseguiu esconder o sorriso.

— Não vai dizer nada Isaak? — Bian falou recebendo uma leve cotovelada de Io.

— Ficou… — Pigarreou levemente corado, sem poder evitar a lembrança da firmeza do corpo e da pegada de Sorento. — Muito bom.

— Obrigado a todos. — Sorento fez uma mesura teatral que tirou risadas do casal e um sorriso de Isaak que agora mordia o lábio inferior. — Só falta a gravata. — Mostrou o acessório em suas mãos.

— Odeio usar gravata. Esse negócio aperta, é desconfortável… — Io falou com desgosto.

— Depois você acostuma. — Bian retrucou. — Vem cá, deixa eu colocar para você.

E mais uma vez o casal foi envolvido na quase aura mágica que os cercava. Sorento balançou a cabeça e pretendia colocar a gravata quando percebeu que Isaak havia levantado e estava perto dele.

— Posso te ajudar? — Isaak estendeu a mão pedindo a gravata.

— Claro. — Sorriu entregando o acessório. — Não imaginei que soubesse dar nó em gravata.

— Tem muita coisa que você não imagina. — Falou encarando os olhos de cor até então indefinida, mas que conseguiu perceber que eram de um castanho bem claro, sem nenhum traço de ironia em sua voz — E sou capaz de fazer Sorento.

Isaak levantou a gola da camisa, seus dedos deslizando levemente pelo pescoço de Sorento, passou a gravata e aos poucos foi ajeitando o nó. Findou a tarefa encarando mais uma vez o rosto do flautista que acompanhou seus gestos durante todo o tempo.

— Está apertada? — Perguntou colocando uma mexa do cabelo de Sorento atrás da orelha e corando violentamente em seguida, ao perceber o que tinha feito.

— Não… — Sorriu segurando a mão de Isaak que ficou no ar após o gesto. — Ficou ótimo!

Mantiveram-se por um tempo indeterminado daquela forma, sendo observados pelos olhares de Io e Bian, que ao mesmo tempo em que se cruzavam em um entendimento mútuo não deixam de acompanhar a cena que se desenrolava à sua frente.

Infelizmente, ou não, segundo a mente anti dramática de Sorento, o clima foi quebrado pela voz de Thétis que exigia a presença dos dois funcionários que trabalhariam no evento. Io deu um beijo rápido no namorado antes de sair do quartinho. O flautista sussurrou um “Obrigado”, soltando a mão de Isaak e alisando a gravata, seguindo atrás do outro colega de trabalho e perdendo o momento em que o jovem caolho soltou um longo suspiro e olhou para Bian em nítido desalento.

***

Dentre suas crenças pessoais estava a de que algumas vezes o universo conspirava e dava o empurrão necessário para a tomada de algumas atitudes. Lógico que conseguia se apropriar dessas bênçãos e aplicar seu senso de praticidade e organização. De todo modo, não podia negar que a despedida de solteiro de Aiolos, amigo do esposo, tinha chegado em boa hora. Provavelmente Shura ficaria boa parte da noite entretido naquela festa e ele teria tempo suficiente para conversar com Camus. Pois sim, precisava conversar com aquele homem e dar um jeito em seus assuntos mal acabados.

Assim como sempre fazia, comunicou ao marido que também sairia a noite, mesmo que muito provavelmente o espanhol chegasse mais tarde do que ele. Desde que tinham começado a efetivamente viver juntos, havia percebido um brilho quase afiado no olhar de Shura sempre que comentava algo sobre Camus, e notou que não precisava dizer a ele com quem iria se encontrar. Por algum motivo, o esposo sempre atribuía tudo a figura do ruivo. Por mais que jamais admitisse, ele não estava de todo errado.

Ainda pela manhã daquela sexta feira, Shaka enviou uma mensagem para o celular de Camus, indicando o local no qual deveriam se encontrar. Um simpático Bistrô que costumavam frequentar depois do trabalho. A resposta demorou um pouco mais de uma hora para chegar e nesse meio tempo o loiro se pegou pensando se não tinha passado muito tempo e o timing para acertar as coisas tinha se esgotado. Olhou com certa urgência a tela do telefone ao notar a chegada de uma mensagem e torceu o nariz ao ler apenas o “Ok”, que o ruivo tinha enviado como resposta. Não pensou muito sobre aquilo, afinal, já que iriam se encontrar mais tarde poderia deixar para levantar todas as suas questões naquele encontro.

Chapter 36: Você nunca quer deixar escapar

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Nos últimos dias tinha se pegado em diversos momentos apenas olhando para o vazio. Claramente existiam assuntos sobre os quais deveria se debruçar, sua pesquisa, a família que vinha negligenciando e mesmo a festa de Aiolos, mas sua energia nesse sentido parecia apenas esgotada.

O tempo sozinho lambendo as feridas parecia ainda não ser suficiente. E sabia exatamente o que faltava. Sempre foi assim, o fundo do poço não era limite, suas questões sempre se resolviam pela celebração da miséria pessoal. Admitir sua pena para com si mesmo. Derrubar as barricadas que impediam o oceano de afogá-lo em sua própria dor para só então poder emergir renovado. Muitas pessoas dizem cheias de verdades que não devemos ter dó de nós mesmos, que não devemos nos sentir como vítimas. Mas como melhorar sem admitir sua derrota, sua doença e suas fraquezas? Como melhorar sem aceitar? Não o fim com Isaak, quanto a isso estava em paz, claro que dolorido, porém em paz. Ambos disseram adeus.

Provavelmente não seria fácil ver aquele rapaz, sim, Isaak era marcante e extremamente atraente, mesmo assim não deu certo e ele sabia bem o motivo.

Mas não seria ele a mostrar isso para o rapaz…

Queria se encharcar em álcool e acender um fósforo, apenas sentir algo. Queria saber se ainda era capaz de despertar paixões de se apaixonar. Tão irritante… Estava completamente emputecido. Então a única coisa que lhe ocorria era beber até apagar e então recomeçar.

Restava saber se conseguiria colocar em prática planos nesse sentido, Julian estava bastante atento. Pelo que conhecia dele não lhe daria muito espaço para encher a cara até dormir no meio fio. Sentia, entretanto, que era o que lhe faltava. Celebrar essa miséria, superar logo esse disparate. Havia saído para correr nesta manhã. Tinha dormido boa parte da tarde. Estava sentindo uma saudade imensa do mar. Uma viagem bem curta de carro resolveria isso. Martelava em sua cabeça essa tendência à procrastinação. Seria assim tão acomodado?

Já havia deixado tudo em ordem para que Deusa passasse a noite e se necessário o dia seguinte sozinha sem ficar desassistida. Precisava ficar bêbado de verdade. Julian fez questão de vir buscá-lo, em breve estaria por ali.

Estava bem. Roupas negras, a barba ainda por fazer. Olhou seu reflexo no espelho mais uma vez. Ouviu o interfone. Só poderia ser o amigo.

Chegariam relativamente cedo, ótimo, já começaria a beber no bar mesmo. E que fosse o suficiente.

***

Shura suspirou em meio ao beijo sentindo as mãos do outro homem percorrerem seu corpo. Estavam trancados dentro da sala de edição. Mais uma vez um dos computadores havia dado problema e seguindo o script, Máscara da Morte tinha dado um jeito na máquina decaída que usava para trabalhar. Ainda como de costume, o italiano parecia estar cobrando o preço pelo serviço. E sendo sincero, não era sacrifício nenhum pagar por aquele trabalho. Inclusive, estaria disposto a fazê-lo sem grande pretexto. Contudo, especificamente naquele dia não poderia se deixar levar pelos sorrisos sacanas e por aquele olhar perturbador. Tinha uma tarefa a cumprir.

— Ângelo… — Murmurou assim que apartaram o beijo — Eu preciso ir… Sério…

— Não pode ficar mais um pouco? — Passou a beijar o pescoço de Shura.

— Não… Eu tenho que buscar o Aiolos. — Gemeu ao sentir uma leve mordida. — E se eu não for embora logo o Shion vai arrumar mais trabalho.

— Certo Bello… Certo… — Afastou-se passando mão pelos fios desalinhados. — Como preferir. Poderíamos ter deixado esse computador para segunda. Assim você saía mais cedo.

— É… Poderíamos. — Encarou-o. — Mas preferi pedir logo o reparo. — Caminhou até um dos armários suspensos retirando a mochila.

— Animado para a despedida? — Questionou encostando na mesa.

— Podemos dizer que sim. Estou feliz pelo Aiolos, mas, o evento em si não faz o meu estilo.

— Huumm… Acho que a sua despedida foi melhor então. — Deu um sorriso malicioso.

O espanhol o encarou por alguns segundos suspirando em seguida e o puxando para outro beijo.

— Sim, Ângelo. A minha foi muito melhor. — Sussurrou próximo aos lábios do italiano — Mesmo que não tenha sido bem uma despedida pelo que estou vendo.

Máscara da Morte gargalhou com o comentário extraindo um sorriso sincero de Shura.

— Agora tenho que ir. Se o noivo atrasar o irmão mais novo me mata.

— Está certo. Juízo, hein. — Falou em um tom divertido enquanto Shura destrancava a porta da sala.

— Justo você dizendo isso? — Fitou o italiano que agora estava parado ao seu lado.

— Aceito que você perca seu juízo comigo, nunca mencionei que ficaria feliz se o fizesse com outras pessoas. — Sorriu.

Shura disfarçou o sorriso, tentando se manter impassível, mas começava a desgostar da ideia de ir a tal despedida. Na mesma medida em que se sentia um grande cafajeste por notar que se divertiria muito mais na companhia daquele italiano absurdamente gostoso e inegavelmente sincero. Outro dia quem sabe… Foi o que pensou ainda com a mão na maçaneta da porta. Não costumava ser tão difícil assim ir embora, mas antes, não tinha por hábito apreciar todo o tempo que conseguia passar na companhia daquele homem. Também não costumava se culpar metade do tempo por seus sentimentos. Um mundo novo, confuso e atraente começou a se descortinar desde o primeiro beijo que trocou com aquele maldito Cabrón. Sentiu a mão de Ângelo em seu ombro e o olhou.

— Vai Bello, segunda a gente se vê. — Shura concordou com um meneio de cabeça. — Vem cá. — Chamou com o dedo antes que ele abrisse a porta. Dando um último beijo. — Divirta-se.

Abriu a porta abaixando a cabeça e saindo o mais rápido possível. Ainda conseguia sentir os olhos de Máscara nas suas costas. “Divirta-se”, pensou ouvindo a voz do italiano enquanto apertava o botão do elevador. Franziu o cenho assim que a porta abriu e entrou, não sabia dizer ao certo o momento em que toda sua noção de diversão, havia se convertido nos momentos em que ouvia aquela risada alta e mirava aqueles olhos castanhos.

Balançou a cabeça dissipando aquele pensando, precisava se concentrar em Aiolos, ao menos naquela noite precisava esquecer aquele maldito italiano. Percebeu tarde demais que momentaneamente não havia lembrado da existência do esposo.

***

Concluiu o restante do trabalho que tinha para aquele dia e encerrou seu expediente uns dez minutos antes do normal. Fechou sua sala após desligar o computador, as luzes e rumou para o Bistrô. Pretendia chegar um pouco mais cedo que o horário combinado, assim conseguiria escolher a mesa que melhor o agradasse, antes do lugar encher com a clientela típica de sexta feira. Outro motivo, pensou consigo mesmo, era que também conseguiria se preparar para a chegada de Camus.

Como um raio não cai duas vezes no mesmo lugar e já havia sido agraciado pelo destino com a festa de despedida, não conseguiu um segundo benefício dos deuses e ao adentrar o local Camus jazia sentado, seus olhos se encontraram no momento em que entrou. Notou que a mesa parece ter sido cuidadosamente escolhido, pois ficava na parte aos fundos da loja, que era mais reservada e silenciosa, além de estar próximo a uma janela ampla que tinha vista para a parte lateral do Bistrô e consequentemente o jardim que margeava o estabelecimento. Shaka respirou fundo, colocou umas das mechas dos longos fios loiros atrás da orelha e caminhou com sua conhecida altivez, sentindo a medida que dava cada passo que precisava desesperadamente se segurar em algo.

Camus levantou o olhar assim que ouviu o barulho da porta sendo aberta, anunciado por um sino dos ventos que ficava preso no topo do portal da entrada. Não pôde conter o sorriso sincero que ornou seu rosto ao identificar a figura de Shaka entrando no local e caminhando em sua direção. Parece que tinha passado uma década desde a última vez que viu aquele homem e uma profusão de sentimentos começou a borbulhar dentro de si.

— Como vai Shaka? — Camus questionou assim que o amigo puxou uma cadeira na frente da sua para sentar. Tentava mascarar o turbilhão de sensações que o acometia. — Já pedi um suco pra mim, gostaria de algo? Infelizmente não posso beber nada alcoólico.

— Acho que um chai tea latte. — Fez um gesto chamando a garçonete — Estou bem. Aparentemente não podemos dizer o mesmo sobre você. O que exatamente aconteceu?

— Pelo que eu vi, o e-mail do RH foi bem claro...

Interrompeu a fala do amigo com a chegada da garçonete, faz o pedido e voltou a encarar Camus que suspirou antes de continuar a falar.

— Fui atropelado, fiquei com uma luxação, estou tomando anti-inflamatório e é isso.

— Não pedi resumo do e-mail do trabalho. Quero saber o que realmente aconteceu.

O ruivo sentiu mais uma vez o peso daqueles olhos inquisidores e entendeu ao que ele se referia.

— Eu estava distraído, Shaka. Saí para correr, pensar, me distraí por alguns minutos e bom… Aconteceu. Ikki também estava em um momento de distração e…

— Quem é Ikki?

— O rapaz que me atropelou… — Camus sorriu. — É um bom rapaz. Teve tanta culpa quanto eu no final das contas.

— Curioso… — Shaka estreitou os olhos. — Ao que parece o tal Ikki te ajudou depois de tudo, não é.

— Sim. — O ruivo analisou a expressão do amigo e notou uma mudança nada agradável. — Mas não estamos aqui para falar sobre o Ikki ou meu atropelamento.

— Não, não estamos. — Shaka agradeceu quando a garçonete colocou a bebida na mesa. — Na verdade, primeiro queria saber se você está bem. — Abriu um sachê de açúcar adicionando ao chá. — Não posso deixar de dizer que fiquei preocupado quando soube que tinha sofrido um acidente.

— E porque não me procurou antes? — Bebeu um gole do suco.

— E teria feito alguma diferença?

— Você acha que não? Não imagino um cenário no qual eu não te procuraria caso soubesse que você sofreu um acidente.

— Pois eu te procurei. — Colocou a xícara no pires fazendo mais ruído que o habitual. — Não estamos aqui? O que mais você esperava Gaetan?

Aquele bendito nome entoado naquele tom impertinente seguido do arrebitar de nariz. Camus quase sorriu internamente ao constatar que havia sentido falta até mesmo daqueles embates, contudo, sua alegria se desfez em segundos ao pensar na resposta daquela pergunta.

— Qualquer coisa, menos o silêncio.

Shaka jogou parte do cabelo para trás, em um gesto amplo e fitou o homem à sua frente. O olhar de Camus se perdeu naquele movimento e no cheiro que se desprendeu dos fios loiros. Sempre se via enredado pela sensualidade casual do amigo. Voltou sua atenção ao ouvir a voz do indiano.

— O silêncio também pode dizer muita coisa.

— Desculpe, não sou bom em captar as melodias que vem dele. Ainda mais do seu, que sempre fez questão de externalizar todas as suas verdades.

— Vamos mesmo começar essa conversa enveredando por esse caminho? — Sorveu mais um gole do chá.

— E por onde você gostaria de começar? Até onde consigo ver só existe um caminho aqui, o da rejeição.

— Ora Camus, não se faça de dramático. Essa é outra coisa que não combina com você.

— E por acaso dizer a verdade é ser dramático? Coloque-se em meu lugar apenas por um minuto e pense.

— Eu jamais estaria em seu lugar, nem mesmo em uma suposição.

— Ah claro… Esqueci de sua superioridade com relação aos simples mortais Senhor Parsons. — Soltou uma risada nasal apertando a junção entre os olhos.

— O sarcasmo faz mais o seu estilo. — Sorriu desdenhoso.

— Shaka… O que precisamente estamos fazendo? Você sempre foi meu amigo, agora eu nem sei se ao menos isso sobrou. — Passou uma das mãos pelo copo de suco sentindo as gotículas de água do recipiente suado.

— Eu sempre serei seu amigo. — Puxou uma das mãos de Camus sentindo-a gelada. — Nunca duvide disso. Eu precisava de um tempo para pensar… Depois de tudo. — Desviou o olhar dos lábios do amigo.

Camus olhou para a mão que cobria a sua e constatou que aquela conversa prometia ser mais angustiante do que havia previsto.

— E sobre o que pensou?

— Bom… — Shaka suspirou. — Não é todo dia que você protagoniza uma patética comédia romântica com um de seus amigos… — Apertou levemente a mão de Camus. — Seu amigo mais querido. Fiquei…

— Confuso?

— Não. Surpreso.

— Até mesmo agora você não vai ter a coragem de dizer mesmo o que pensa. Não vai admitir que ficou abalado? — Puxou a mão recostando na cadeira.

— Ora Camus… O que você espera que eu diga?

— A verdade, apenas a verdade. Você não seria capaz de nem por um segundo romper com essa sua racionalidade exacerbada e ser sincero consigo mesmo?

— Você está enganado quanto a isso. Sou sempre sincero. — A voz saiu quase vacilante.

— Jura? Pois então olhe nos meus olhos e diga que sumiu durante esse tempo apenas porque ficou surpreso com a minha atitude e não com o fato de você corresponder a ela. Diga com toda sinceridade que existe apenas a total e completa rejeição em nosso futuro.

Shaka engoliu em seco ao encarar os olhos castanhos que vinham preenchendo seus pensamentos a todo momento. Sentiu vontade de desviar o olhar mediante a intensidade que captou ali, mas jamais faria isso. Duas pessoas podiam jogar aquele jogo. E por mais que não estivesse concatenando o raciocínio, de uma coisa tinha certeza, jamais poderia afirmar que no caminho deles só existia a rejeição. Muito pelo contrário, os últimos acontecimentos provaram o contrário, mas mesmo assim não podia dar aquela resposta. Sequer conseguia fazer com que ela saísse de sua boca.

— Externalizo apenas o que minha racionalidade consegue captar… — Falou em um fio de voz, mais para si mesmo do que para o outro

— E com isso você quer dizer o que? Que o que existe entre nós... — Apontou com o dedo para si e depois para Shaka. — Não é algo racional?

— Com isso eu quero dizer que não faz sentido trilharmos esse caminho, Camus. — Terminou a xícara de chá colocando o recipiente de lado.

— Posso saber porquê não?

— Oras, me parece muito óbvio. Você pediu para eu me pôr no seu lugar. — Entrelaçou as próprias mãos sobre a mesa — Agora ponha-se no meu. Qual motivo real eu teria para largar um relacionamento de mais de um ano, com a pessoa com quem escolhi viver junto e que me trata muito bem, mais até do que eu a ele?

— Você não acha que o que sentiu naquele dia seria motivo suficiente? — Camus remexeu-se na cadeira, a irritação presente na voz. — Porque sim, Shaka, você pode ter me rejeitado, mas não pode dizer que não sentiu nada.

— Sim, eu senti Camus, um misto de sensações na verdade. E venho sentindo desde então. Não sou ingênuo para negar isso. Mas mesmo assim, não vou largar tudo que eu tenho hoje por uma noite com você. Não vou abrir mão de toda a estabilidade e segurança que tenho com Shura para me embrenhar em uma aventura contigo, meu amigo. Você não consegue enxergar que o saldo negativo seria muito maior que o positivo?

— Você realmente acha que seria só uma noite? — O tom desgostoso na voz.

— E porque não? Há anos que é assim. O que eu teria de tão diferente?

— Para um homem tão culto você pode ser extremamente idiota às vezes. — Desencostou da cadeira aproximando-se da mesa — A diferença é que você, só você. Sempre foi você. É tão difícil perceber isso?

Shaka prendeu a respiração por alguns segundos estudando o rosto de Camus, que mostrava além de decisão uma certa tristeza. Passou a mão pelos cabelos, afastando mais uma vez os fios e empinou o nariz antes de responder no tom mais monótono que conseguiu entoar.

— Sim, é. Não vejo motivos para comigo ser diferente, Camus. E no final, não suportaria perder sua amizade. Não sou o Milo e jamais aguentaria toda a sua bagunça, não como seu companheiro. Posso fazer isso como seu amigo, não de outra forma.

— Covarde. — Camus falou crispando os lábios.

— Do que me chamou? — Shaka estreitou os olhos também de aproximando da mesa.

— Covarde. É isso que você é. Nada do que você falou faz sentido. Óbvio que você não é o Milo. E eu jamais cometeria os mesmos erros. Estou me tornando uma pessoa diferente, melhor, e é por isso que finalmente… — Suspirou — Deixei transparecer meus sentimentos. E no final, me deparo com a sua covardia.

— O que você chama de covardia eu chamo de sensatez. Não vou me sujeitar aos seus caprichos. Você não entende meu ponto porque o que te falta é bom senso, sempre foi.

— Talvez. Mas isso não muda o fato de que você se prende a uma noção deturpada de estabilidade e segurança. Por isso tem medo de tentar, de se machucar. Nada pode abalar essa sua pose impecável.

— Ótimo! Se pensa isso sobre mim, então porque insiste em ter algo comigo?

— Porque eu te quero também pelos seus defeitos, pela sua covardia e por ser quem você é.

O loiro permaneceu estático, pela primeira vez, não sabia o que responder. Deu-se por vencido, tinha perdido aquele embate, e a bem da verdade, nunca soube se o queria vencer de alguma forma.

— Gaetan… — Deu um sorriso triste. — Não tenho o que te responder. E isso nunca me aconteceu antes. Eu só… Não posso. Não ainda. Não agora. Eu preciso de segurança. Preciso ter a certeza das minhas ações e das consequências. Acima de tudo, preciso de mais do que meia dúzia de palavras bonitas ditas no calor de uma conversa. Tenho que confiar no Camus homem, da mesma forma que confio no Camus amigo. E não posso fazer isso agora. — Colocou as mãos no rosto em um gesto nervoso. — Não posso.

Consumia-se dentro de sua própria angústia ao mimetizar o comportamento da mãe. Fora criado para ter sempre o controle, nenhuma de suas ações podiam diferir disso. Dentro do lar dos Parsons, a estabilidade e a segurança eram a lei, e por mais que soubesse que precisava romper essa barreira, tudo tornava-se mais difícil só de imaginar que no momento em que fizesse isso, poderia estar colocando também sua amizade em jogo. Podia perder tudo, ou ganhar tudo. Não enxergava o meio termo. Não era assim que seu cérebro processava as coisas, não era dessa forma que comumente agia. Uma voz na sua cabeça gritava que ele queria, precisava, porém, uma mais forte que possuía exatamente o timbre de voz da mãe, enaltecia que deveria permanecer onde estava. Não era indisposição para tentar. Era sim, receio. Talvez, realmente fosse um covarde.

Camus olhou apreensivo o homem à sua frente. Aquele gesto, sem dúvida alguma, seria o mais próximo que Shaka chegaria de uma demonstração de desespero e dúvida, e pelo que conhecia do amigo isso já significava muita coisa. Ao que tudo indicava, racionalidade realmente não era um dos elementos que permeava aquela relação.

— Shaka… — Chamou fazendo com que ele tirasse as mãos do rosto. — Nada disso foi como imaginei que seria… — Fez um gesto vago com as mãos — Mas ao menos consegui parte das respostas que eu precisava. Acredito que agora você queira ir embora.

Shaka concordou balançando a cabeça e após pedirem a conta que foi paga por ele mesmo, que precisava de alguma forma se reconectar com algum elemento prático e palpável da razão humana, saíram do Bistrô e caminharam lado a lado até a estação do metrô, em um silêncio quase sepulcral, um clima de latente desconforto.

— Achei que pegaria um táxi ou um carro de aplicativo. É mais cômodo no seu estado. — O loiro cortou o silêncio.

— Eu vou. Mas primeiro vou te deixar na entrada da estação de metrô.

— Você sabe que não precisa disso.

— Sim, estou ciente. Mas, eu quero.

Chegaram na entrada da estação e se despediram com o genérico “Até logo”. Shaka ainda aconselhou que Camus se cuidasse e não deixasse de tomar a medicação recomendada. Palestrou por alguns minutos, já nas escadas da estação, sobre toda a série de cuidados, repouso e demais questões que achou pertinente para uma rápida recuperação. A atitude fez o francês sorrir sinceramente, gesto que inconscientemente foi retribuída pelo outro.

— Não deixe de se cuidar, Camus. Eu… Sinto a sua falta. — Shaka falou mais baixo que o normal virando as costas para continuar a descer as escadas.

Camus cerrou o maxilar ao ouvir aquilo e dando poucos passos se aproximou de Shaka, pegou em seu braço fazendo com que ele se virasse e sussurrou um “Desculpa”, antes de cortar de vez o espaço entre eles e capturar os lábios do loiro em um beijo afoito. Não seria possível definir se houve alguma resistência, ou se a entrega foi imediata.

A única coisa inegável era que ambos sabiam que haviam esperado tempo demais.

***

Milo foi o primeiro a chegar. Entrou no bar que estava com uma movimentação animada e antes de subir teve que apresentar seu documento de identidade para um segurança alto e com cara de nenhum amigo. Subiu e procurou uma mesa discreta. Seu irmão avisou que tanto ele quanto Saga talvez se atrasassem um pouco por conta de alguma documentação que precisava ser finalizada no escritório deles e pediu para que ele chegasse antes, aparentemente Kanon e Julian também chegariam cedo. Eles não queriam que algum amigo de Aiolos chegasse cedo e se sentisse constrangido ou algo assim.

Olhou em volta e os funcionários estavam ainda arrumando algumas coisas no balcão, não quis ficar encarando para não pressionar ninguém. Logo um rapaz simpático o abordou.

— Olá, bem vindo, eu sou Io e estarei ao dispor de vocês nessa noite.

— Boa noite Io, sou Milo.

O rapaz ergueu uma sobrancelha ligeiramente surpreso com a simpatia e seu sorriso quase brilhou.

— Muito bem Senhor Milo, posso trazer alguns aperitivos, petiscos e o cardápio de coquetéis, ou tem algum pedido específico?

— Por favor, não precisa me chamar de Senhor… Eu aceito os petiscos e algum coquetel leve, pode escolher por mim. Não pretendo exagerar hoje — Piscou um olho para o rapaz que cobriu a boca com a mão para não rir alto e Milo reparou na tatuagem. — Obrigado.

Enquanto o rapaz se afastava ficou pensativo. Durante a adolescência quis tanto fazer uma tatuagem, não conseguia se lembrar o motivo de não ter levado adiante essa intenção. Quem sabe poderia voltar a pensar a respeito.

Nesse momento adentraram no salão Dohko acompanhado pelo irmão de Seika, Seiya, que Milo já tinha encontrado em alguns churrascos de Aiolos ou festas de aniversário. Aiolos e Seika namoravam há pelo menos 5 anos. O rapaz tinha crescido nesse período mas assim como Dohko eram mais baixos que ele. Ao contrário do mais velho que ria disso o irmãozinho da noiva parecia sempre ficar incomodado quando alguém reforçava essa característica de suas aparências.

O garçom Io trouxe os pedidos de Milo enquanto ele cumprimentava os recém chegados e já anotou os pedidos de ambos. Dohko como sempre se concentrava na mesma bebida, a eleita da vez era chopp geladíssimo, uma das especialidades do Imperador e preferidos do noivo e Seiya o acompanhou.

 

Julian e Kanon chegaram um pouco mais tarde do que o planejado pelo dono do Imperador, no meio do caminho teve que parar para abastecer e Julian precisou responder algumas mensagens em seu celular. Kanon não quis se intrometer e perguntar do que se tratava.

Chegando no bar a primeira pessoa que encontraram foi Isaak.

Kanon e ele se encararam por alguns segundos.

Isaak pareceu um pouco assustado, estava diferente, novo corte de cabelo, mas nada abatido; Kanon constatou erguendo as sobrancelhas. Kanon sentiu o olhar do rapaz hesitante sobre si e sorriu de lado sabendo que Isaak o achava muito atraente, pelo menos isso o tranquilizava.

Julian com uma expressão enigmática apenas observou aquele momento se desenrolar.

Kanon desviou o olhar do rapaz depois de um leve meneio de cabeça, Isaak, murmurou um “boa noite” de cabeça baixa e seguiu rapidamente para alguma mesa levando a bandeja pesada e o biólogo voltou-se para o seu amigo que o aguardava.

— Podemos subir Julian?

— Sim, vamos — Respondeu com um sorriso sincero que poucas vezes compartilhava.

Chapter 37: Como se estivesse bem próximo

Chapter Text

Abriu a porta da casa acendendo as luzes de imediato, tirou os sapatos com um esforço maior que a tarefa pedia e se jogou no sofá da sala.

Fechou os olhos e a lembrança do beijo veio à mente. Depois daquilo Camus lhe brindou com um belo sorriso e virando as costas foi embora. Conteve a vontade de ir atrás dele. Mas não sabia se estava mais conseguindo conter tudo que tinha guardado dentro de si. Não era de hoje que todos sabiam que nunca fora dado a arroubos românticos, e que prezava pela praticidade e equilíbrio. Contudo, já não tinha mais tanta certeza se suas atitudes estavam pautadas dentro dessa ótica.

Abriu os olhos enxergando o reflexo embaçado na televisão que ficava em frente ao sofá. Dentro daquela visão desconexa conseguia enxergar ao seu lado a figura dos pais. Atenciosos, esforçados e práticos.

Não podia dizer que faltou afeto, mas nunca foi o elemento aglutinador daquela família. Rompendo parte de uma tradição familiar de anos, que perpassava tanto o lado materno quanto o paterno, seus pais haviam casado por amor, ou algo semelhante a isso, mas mesmo assim, repetiam a todo instante que aquilo não bastava.

Sempre foi cobrado em seus estudos, educação e comportamento de uma forma geral. Devia ser o exemplo, de certa forma, os pais o exibiam como um troféu, o filho que encarnava todas as noções de perfeição, corroborando que não era necessário um casamento arranjado para que a vida seguisse o rumo correto. A eterna busca idílica. Demorou alguns anos para entender o que era essa noção de “correto”. Mesmo que se empenhasse de todas as formas possíveis, não pôde deixar de notar o desgosto na face dos progenitores ao comunicar sua orientação sexual.

Lógico que alguma coisa tinha que fugir do controle, lembrava da mãe falando com nítido desgosto.

Ao que parece a modernidade e a “mente aberta” do casal Parsons estava focada apenas em romper com paradigmas familiares. Com o passar dos anos os pais passaram a aceitar a ideia. Jamais concordaram, mas já não precisava ouvir as indiretas e passar pelos vexatórios encontros combinados.

Depois de tudo, apenas uma palavra sempre ecoava em sua mente: “Controle”. E assim seguia. Em todos os seus relacionamentos, sempre buscou reproduzir o que acreditava ser o essencial para manter a união, e o que Gaetan pedia dele naquele momento, estava muito longe do que estava acostumado a fazer. Sabia que tinham uma ligação especial, algo que sim, fugia a sua noção de racionalidade. Conheciam-se há anos e entendiam até certo ponto parte da essência um do outro, de tal modo que o ruivo havia percebido o momento em que tinha chegado em um impasse consigo mesmo.

Era grato por aquilo, não gostava de desmoronar na frente de ninguém.

Sentia-se completamente despido quando abria mão do tão famigerado controle. Questionava-se sobre o que tinha visto das mudanças de Camus até então.

Há poucas semanas tomou ciência de que ele fazia terapia, não parecia tão distante do tempo em que ainda o tentava convencer a não empreender uma caçada no bar. E nesse mesmo espaço de tempo quase se beijaram, até chegar ao efetivo beijo. O que sua mãe pensaria sobre isso? Pensou levantando do sofá e indo para a cozinha a fim de preparar um chá. Provavelmente Shura demoraria para chegar. Suspirou. Admitiu a si mesmo, no calor do momento, que não dedicava tanta atenção ao marido quando ele a si. Sequer sabia que tinha aquela consciência. Agarrava-se a figura do espanhol com afinco, pois sabia que se o deixasse ir, não teria mais no que segurar. Shura era seu farol em meio a escuridão.

Tudo seria mais fácil se conseguisse ser diferente, fazer diferente. Camus dizia que estava mudando, tornando-se alguém melhor, quem sabe também devesse tentar.

Escorou-se na bancada da cozinha pensando sobre o que era mais complexo, expurgar as influências de um namorado tóxico, ou eliminar parte de toda sua criação, parte daquilo que de certa forma o tornava quem era, traços de sua personalidade e de caráter.

No fim, cada desafio tinha um grau de dificuldade diferente. E o ruivo havia dito que o queria exatamente por quem ele era.

Não sabia o que fazer, e isso era muito raro em sua vida. A resposta óbvia seria terminar com Shura e correr atrás de Camus. Mas largar tudo para viver uma noite parecia tão irreal. E se não fosse apenas uma noite? E se houvesse como o francês disse, um futuro? Seria capaz de pagar para ver? Sim, seria. Precisava de confiança. Necessitava de confiança da mesma forma que de ar. Assim foi ensinado, assim aprendeu a viver. Pegou o bule colocando a água quente dentro de uma xícara na qual já havia deixado um infusor.

Ficou olhando para o líquido por alguns instantes, sem ter a certeza se precisava confiar em Camus ou em si mesmo.

***

Aiolia subiu as escadas e ao chegar no andar superior algumas pessoas já estavam por lá. Cumprimentou os funcionários educadamente e avistou Milo já instalado em uma das mesas, ao seu lado Dohko e o irmão mais novo de Seika.

— Vem, vou te apresentar ao meu primo.

Ikki observou o entorno. Era realmente um lugar agradável, estava a meia luz, decoração sóbria e elegante. Uma palco e pole dance. Interessante pensou sorrindo. A frente algumas mesinhas ladeadas por cadeira confortáveis, para que os convidados pudessem aproveitar as atrações além de comer e beber. Ao centro uma cadeira mais adornada, semelhante a um trono. Definitivamente esses gregos eram surtados. Acompanhou Aiolia e sentiu um imenso frio na barriga assim que pararam de frente a mesa onde estava o tal primo acompanhado de um homem com traços orientais e um moleque ligeiramente familiar.

O loiro alto e forte se ergueu para comprimentá-lo estentendo a mão firme e o olhando nos olhos com simpatia. Ikki pensou que vomitaria, o gosto amargo rasgando sua garganta. Reconheceria aquele homem até no inferno. Era o namorado de Hyoga. Trincou os dentes. Merda de mundo pequeno. Imagens do Russo nu passavam velozmente por sua memória.

— Este é Milo, meu primo, Milo este é Ikki, ele é meu amigo e assistente no escritório.

Os olhos de Milo se estreitaram felinamente. Ikki! Seria possível que fosse o mesmo? Não era definitivamente um nome comum. Lembrou da voz agradável no telefone de Aiolia no outro dia e quis se chutar mentalmente.

Ao mesmo tempo lhe ocorria que não havia mesmo como ele fazer essa matemática. Quem diria que o “gostoso do menage” era o assistente de voz sexy de Aiolia?

E ele mediu o outro rapaz de cima a baixo. Ação espelhada pelo outro. Por mais que um quisesse diminuir o outro, tinham que reconhecer que estavam diante de outro homem bonito e interessante. Hyoga afinal tinha muito bom gosto, admitiram cada um para si mesmo.

Aiolia percebendo a tensão franziu o cenho confuso.

— Vocês por acaso já se conhecem?

— Acredito que tenhamos um amigo em comum — Ikki informou caprichando na malícia na palavra amigo.

Milo lançou seu sorriso mais charmoso, os olhos fixos no outro rapaz.

— Amigo? Hunmm. É uma maneira de ver. Por mais que aparentemente você não seja o tipo de pessoa para se considerar amigo. E a natureza da minha relação seja mais profunda, ainda que não lhe diga qualquer respeito.

Aiolia ficou surpreso com a resposta ameaçadora de Milo e tratou de encaminhar Ikki para conhecer os outros, lançando ainda um olhar de questionamento para o primo que permanecia de pé altivo e olhando o outro de cima. Ikki não pareceu se intimidar nem por um segundo apesar de ser mais baixo, porém, seguiu com Aiolia carregando um sorrisinho indescritível nos lábios.

Percebendo o clima Dohko, após as apresentações convidou Ikki e Aiolia para a varanda. Torcendo o nariz Seiya acompanhou. Ele estava um pouco incomodado por Ikki não se lembrar dele, afinal, apesar de ser um pouco mais novo, estudaram na mesma escola no Ensino Médio. E ele inclusive era colega de Shun na época. Já na varanda Aiolia puxou Ikki de canto.

— O que foi aquilo?

— Seu primo está namorando meu ex…

— Oi? Eu nem sabia que você era gay.

— Eu não sou! Devo ser Bi… E você não sabe tudo sobre mim Aiolia. Enfim, me desculpe, talvez seja melhor eu ir embora.

— De jeito nenhum! Você veio comigo e se não tivesse me auxiliado tanto nos últimos tempos eu nem teria como ter organizado essa festa. Logo, eu vou conversar com Milo, mas te peço para baixar essa bola Ikki. Essa festa é muito importante para mim. Meu único irmão vai casar… E bem, que loucura de mundo pequeno… Depois você me explica melhor isso tudo. Achei que você namorava aquela morena do happy hour!

Ikki concordou com a cabeça, tinha levado Pandora em uns dois encontros com o pessoal do escritório. Aiolia era o seu maior exemplo profissional e pela proximidade e muitas afinidades acabaram se tornando amigos. A última coisa que desejava naquele momento era se indispor com ele. Mas o olhar de superioridade daquele loiro tinha arranhado seu orgulho. Droga, o cara estava com a razão, mais uma vez agiu como um cretino. Era por impulsividade e infantilidade que havia perdido Hyoga. E o primo de Aiolia, bem, não havia como negar que era um baita de um pedaço de mal caminho… Isso, por algum motivo, só fazia com que ele se sentisse ainda mais idiota. Passou as mãos pelos cabelos.

— Terminei com a Pandora tem alguns dias… Eu nem sei o que me deu na cabeça para agir assim. Não é culpa dele, eu que vacilei. Vou pedir desculpas ao seu primo…

— Não precisa. Vou falar com ele antes. Fica aqui com o Dohko e o Seiya. Eu já volto.

Quando Aiolia retornou ao salão Milo estava no balcão do bar aguardando uma bebida, Aiolia seguiu até lá. Kanon entrava nesse momento no ambiente acompanhado por Julian. Esquecendo momentaneamente o tópico da conversa entre ambos Aiolia e Milo trocaram um olhar cúmplice e malicioso.

— Será que tem algo acontecendo aí? — Milo sussurrou mal disfarçando a aprovação. — Por que meio que parece, não?

— Os Deuses te ouçam… Kanon merece arrumar alguém legal. Sempre achei que eles combinam tanto! Mas, e o garçom, será que já era?

— Parece que sim… Eu não sei detalhes, não conversei com Kanon nesta semana. Poxa, ele merecia mesmo alguém mais disposto… Você também merecia se arrumar Aiolia!

— Nem começa, eu estou tranquilo, a hora que aparecer alguém legal não me oponho, mas não vou ficar procurando!

— Certo, não vou somar ao coro generalizado — Riu agradecendo e dando o primeiro gole no refil de bebida que Io, o rapaz com braço tatuado entregou prestativo sem que ele precisasse pedir.

Aiolia mostrou a língua para ele por uma fração de segundo e riu também.

Do outro lado do salão Julian acompanhado de Kanon estavam cumprimentando um rapaz alto de cabelos castanhos lisos que entrou na sequência dos dois. Aiolia aproveitou para retomar o assunto anterior.

— Milo, eu nem sabia que você já estava namorando! — Falou demonstrando algum desconforto.

— É recente. Eu não sabia que você trabalhava com esse… Ikki. — Disse o nome de forma pejorativa. Aiolia não conteve sua risada. Balançou a cabeça negativamente.

— Ele é um cara legal, ficou realmente abalado e queria até vir te pedir desculpas.

— Não é para mim que ele tem que pedir desculpas. Mas, se você diz que ele é legal eu vou fazer vista grossa. Aiolia, só espero que ele não vá mais atrás do Hyoga. Se for, você vai precisar procurar outro assistente, além de ter que me visitar na cadeia todo domingo...

Aiolia abriu a boca em um perfeito O e deu um soquinho fraco no braço do primo.

— Não fala esse tipo de merda! Você já ganhou o namorado, o rapaz está só com dor de cotovelo, como eu disse ele é legal e ao que tudo indica está ainda se encontrando na vida, ele é mais novo que a gente e, não esquece que ele queria até te pedir desculpas. Eu achei melhor não. Teremos algum problema sobre isso Milo? Eu não quero nada estragando a noite de Aiolos!

— Não, não teremos. Você tem razão. Eu ganhei. — Deu uma piscadela sacana. — É só ele não tentar nada com meu homem de novo e estamos ótimos e civilizados.

O irmão do noivo concordou com a cabeça já fazendo planos para manter os dois afastados por toda a noite. Em breve a sala estaria cheia de bêbados e o ideal era evitar essa fadiga.

Milo ao seu lado abriu um enorme sorriso e se levantou para receber o irmão que entrava no salão.

— Kardia! Que saudade!

— Mas vejam só, o baixinho até cresceu! — Abraçou o irmão com força — Você que some Maçãzinha, eu estou em praticamente todos os encontros da família e sabe que pode me ligar, não é? Largo o que for se você precisar de mim.

Milo aproveitou o contato, não sabia o motivo de procurar tão pouco pelo irmão, talvez fosse uma necessidade de não depender dele, se provar auto suficiente, de qualquer forma era sempre uma alegria estar com o irmão mais velho. Kardia era mais alto apenas alguns centímetros, porém, insistia em tratar Milo por baixinho ou apelidos afetuosos que na adolescência já causaram ao mais novo muito constrangimento, mas que hoje em dia via apenas como carinhosos.

— Eu sei Coração, não quero te atrapalhar apenas.

— Milo coloca isso na sua cabeça, você nunca me atrapalha. E aí se acertou com o Ruivo gelado? Estou vendo que está com aquele brilho de apaixonado no olhar.

Era impossível esconder qualquer coisa do irmão, mesmo que desejasse, e sua felicidade era algo que não pretendia esconder.

— Não, essa história já era mesmo. Eu conheci um rapaz… Bem, vamos combinar de conversar no domingo? Te conto tudo e você me atualiza também, que acha?

— Acho ótimo! Planejo dar perda total hoje em homenagem a queda de nosso primeiro guerreiro Aiolos - riu da própria piada - e amanhã eu me recupero. Assim domingão sou seu. Passo na sua casa na parte da tarde. Está combinado?

— Fechado!

— Obrigado por ter chegado cedo Milo. Aiolos já chegou?

— Não precisa agradecer! Não, não chegou, nem o Saga. Ainda está cedo. Mas, Julian e Kanon estão ali — Milo apontou e Kardia olhou na direção deles.

— O Saga foi buscar uma pessoa, deve estar para chegar em breve…

Seu olhar foi atraído pela terceira pessoa na conversa. Um homem que não conhecia. Cabelos castanhos claros, alto e esguio. De óculos, provavelmente alguém que trabalhava na escola com os noivos. Como Kanon também já havia trabalhado lá por um tempo deveria conhecer. Apertou o ombro de Milo e ambos foram naquela direção. Aiolia estava entretido conversando com um dos garçons. Confirmando que tudo estava conforme o combinado.

Ficou positivamente satisfeito pelo comprometimento dos dois rapazes e planejou mentalmente deixar uma boa gorjeta para cada um deles. Voltou para a varanda para encontrar com Dohko com quem mal havia conversado e ficar de olho em Ikki.

 

Kanon estava se esforçando para não azedar a noite, no entanto, sua vontade era voltar para casa. Depois do jantar no meio da semana com Julian, aquela pequena injeção de ânimo, ele tinha mais uma vez se afundado na auto comiseração. É claro que aproveitou a ligeira janela de energia para responder todas as mensagens, fazer algumas ligações e assim evitou que mais pessoas o procurassem. Ficando isso ao encargo apenas de Julian. Aliás, o amigo merecia um prêmio. Céus! Não imaginava que ele fosse tão paciente. Mas sua companhia estava sendo perfeita, todo apoio que precisava sem qualquer cobrança. Não queria se expor para nenhum dos primos, as notícias correm na sua família e logo teria uma intervenção organizada por alguma tia ou o irmão planejando alguma orgia para o distrair. Não era o que precisava nesse momento. Antes de sair de casa estava tão certo de só encher a cara de ficar de boas, mas ao chegar lá e ver Isaak mais uma vez aquela impressão de que não era bom o suficiente o atingiu.

Apresentou Julian e Dégel, o antigo professor de química da escola, que soube agora ser o diretor. Fazia um tempo que não se encontrava com ele. Mas sempre se deram bem. Ele era uma pessoa discreta e bastante próximo de Aiolos e de Shura.

Milo e Kardia se aproximaram deles. Sustentou por alguns segundos o olhar de Milo que tocou seu queixo com a ponta dos dedos.

— Não é que ficou bonito de barba? — Sorriu quando o abraçou.

Separaram o abraço e ele fez menção de bagunçar os cabelos do mais novo recebendo um bico e um olhar agudo de “Não ouse”. Sorriu de leve. Milo era muito querido. Kardia lhe estendeu a mão e concordou com o irmão.

— Muito bem, assim a gente sabe quem é quem. — Riu alto

Milo abraçou Julian e Kanon apresentou Dégel aos recém chegados.

O olhar de Milo passou pelos homens naquela pequena roda e por um instante lhe ocorreu que era bem possível que estivesse sobrando ali. A ideia rendeu enorme satisfação, ainda que certa surpresa, já que nunca tinha percebido qualquer inclinação de Kardia nesse sentido. Ao contrário o irmão sempre foi um mulherengo contumaz. Nesse momento, entretanto, estava era completamente inclinado na direção do Diretor da escola. Tocando o braço do rapaz a cada duas palavras e isso era bastante impressionante, se considerado que ele nem havia começado a beber.

Julian pareceu captar seu olhar e ele ergueu o copo a título de cumprimento para o amigo antes de se afastar para receber Defteros que entrava nesse momento.

— Ei Milo, tudo bom?

— Oi! Tudo sim, e com você? Veio sozinho?

— Sim, tudo certo! Eu sei que todo mundo acha que sou colado no meu irmão, mas não é o caso. A gente mal se fala. Aiolos já chegou?

— Não, ainda não, mas deve estar quase.

— Vou pegar uma bebida que estou sedento e já volto para cumprimentar todo mundo.

O moreno se afastou. Ele e o irmão eram igualmente altos e fortes, os traços marcantemente gregos da família de Saga e Kanon, mas tinham os cabelos e olhos escuros, como sua Mãe. Aspros sempre pegou muito no pé de Kanon, por isso Milo não era muito simpático a ele. Defteros, no entanto, sempre foi mais quieto, aparecendo pouco.

Parando para pensar se deu conta de que nem conhecia muito dele, talvez a diferença de idade realmente tenha pesado nisso, afinal esses gêmeos tinham 11 anos quando ele nasceu.

Sendo os mais velhos acabavam não fazendo parte tão ativa da turma, antigamente.

Viu que Defteros sentou em uma das banquetas do bar. Então Milo buscou uma mesinha mais afastada e se alojou lá com seu copo.

 

Entrou no salão do bar acompanhando o movimento frenético que já despontava naquela sexta feira e logo avistou a escada que dava acesso ao segundo andar, sendo prontamente vigiada por algum tipo de guardião nórdico, o que fazia com que ele se sentisse um nanico. Sensação no mínimo ridícula levando em conta seus 1.90 de altura.

Mostrou a identidade, tendo o gesto repetido pelo homem que o acompanhava. Percebeu que o segurança de olhar assassino esboçou o que poderia ser definido como um quase sorriso ao entregar a identidade de Afrodite. Ao que parece esse era um dos super poderes dele, Saga pensou sentido uma pontada de orgulho. O sueco correspondeu ao tal sorriso e apontou animado para o topo da escada em uma clara indicação de que deveriam subir. Apenas acatou, assim como vinha fazendo há algum tempo.

Depois da prensa que tomou do irmão, que apareceu em sua casa desenterrando uma história da qual já não lembrava mais, aquela maldita vernissage não saia mais da sua cabeça. Mais especificamente, o artista responsável por ela.

Acabou aquele noite com Camus, mas sua intenção original era se afundar nos braços e nas carnes de Afrodite. Não saberia dizer ao certo o que desviou os acontecimentos de tal forma, lógico que a presença de um ruivo sedutor, portador de um olhar caçador e extremamente gostoso poderia ser um dos indicativos. Além disso, o fato do artista ter ficado ocupado a noite inteira, de tal forma que sequer conseguiu se aproximar dele, para continuar a conversa que haviam começado a tarde, trouxe um nível de frustração que poucas vezes tinha experimentado.

Sendo assim, a tal noite de diversão, e sim foi de pura diversão, além de acabar gerando uma certa dívida com o primo caçula, a qual sabia não ter verdadeiramente uma culpa, também acabou desviando o foco de suas intenções.

A única coisa que tinha certeza era que depois que sua memória foi de certa forma refrescada, a vontade de reencontrar o artista sueco apenas cresceu. Mesmo que a sua empresa ainda prestasse serviço a ele, não tinham mais se visto pessoalmente, apenas algumas conversas ao telefone e esporádicas chamadas de vídeo. Na verdade, acabava em grande parte do tempo conversando mais com o empresário do que com o próprio Afrodite.

E foi assim que dotado de toda a segurança que sempre possuiu, decidiu restabelecer o contato e ficou felizmente surpreso ao notar que o interesse parecia mútuo. Sempre se viam em meio a um clima de quase contemplação. Saga tinha real interesse no sujeito peculiar que era o sueco, e sabia que existia algo semelhante da parte do outro. Saíram algumas vezes para jantar, conciliando as agendas, sem contudo empreenderem nada mais que conversas animadas, flertes e uma mudança sutil na conhecida dança que desempenhavam antes mesmo da vernissage.

No fim, acabou o convidado para a despedida. Teve que prometer uns favores a Aiolia e insistir durante alguns dias com Afrodite, mas não era denominado como um dos melhores advogados da cidade à toa. Sempre ganhava suas causas, e agora, estava subindo as escadas prestes a apresentar o sueco a uma parte significativa da sua família e amigos.

Caso analisasse com atenção, essa poderia até mesmo ser definida como a versão Saga de apresentação de um futuro pretendente: Em meio a uma festa regada de bebida, strippers e toda a sorte de coisa que pudesse acontecer. Apaixonado ou não, ainda sim continuava sendo ele.

O mais importante no entanto, era que Kanon conhecesse o novo “amigo”, afinal, apenas os dois sabiam o que isso significava. E acabou que o irmão mais novo foi a primeira pessoa que avistou assim que chegou ao andar da festa. Conteve a surpresa ao ver que Kanon mantinha uma barba por fazer, combinava com ele, pensou colocando uma das mãos no ombro de Afrodite e o encaminhando naquela direção. Todos os presentes se levantaram em um misto de curiosidade e admiração.

— Gostei do novo visual irmãozinho. — Saga falou abraçando Kanon. Afrodite ao seu lado. — Kanon, esse é o Afrodite Nyman, o artista das rosas… Meu amigo.

Kanon esticou uma das mãos para cumprimentar o sueco, sabia muito bem quem aquele homem era e a lembrava do segredo voltou a sua mente. Ótima hora para recordar aquilo. Somava mais um elemento a sua miséria pessoal.

Parabéns, Saga.

Procurou discretamente com o olhar a figura de Milo e o viu entretido com alguma bebida colorida em outro canto do salão, buscou o olhar do irmão, mas antes que conseguisse sentiu a mão de Afrodite apertando a sua.

— Muito prazer, Kanon.

Kanon focou sua atenção no sueco que ficou alguns segundos o olhando em uma análise minuciosa, mas que estranhamente não causava desconforto. Conseguiu finalmente captar o olhar do irmão e ele transparecia uma tranquilidade que poucas vezes tinha visto. Saga sorriu minimamente e balançou a cabeça de forma afirmativa. Todos os presentes ficaram olhando a cena, mas ninguém falou nada. De certa forma, ficaram intrigados com o belo homem, e se aquele fosse um tipo de hábito dele, bom, não parecia tão ruim assim ser encarado por um tipo daqueles.

— Aí está… — Afrodite sorriu olhando para os demais presentes na mesa e depois para Saga. — Dourado… As pintinhas do olho dele são douradas. As suas são azuis. — Alargou o sorriso. — O seu cabelo também é um tom mais escuro.

Kardia deu uma risada alta, seguida por uma mais discreta de Dégel e Julian.

— E eu achando que a barba era mais do que suficiente para sabermos quem é quem. — Kardia falou se aproximando de Afrodite.

— Huummm… — Colocou um dedo no queixo — Pode ser. Mas em algum momento ele pode tirar a barba não é? Preciso de mais elementos para saber quem é quem. — Piscou um olho.

— Vejam só… E está planejando ficar por tanto tempo?

— Claro. Porque não ficaria? — Sorriu sinceramente para Saga — Como vai Kardia?

— Vocês já se conhecem? — Julian questionou apertando a mão de Saga e depois a de Afrodite, apresentando-se.

— Sim. A nossa empresa presta serviço de curadoria das obras dele. Geralmente quem cuida é o Saga, mas já nos vimos algumas vezes. Esse é o Dégel, diretor da escola na qual Aiolos e Seika lecionam.

Em meio aos cumprimentos Kanon se aproximou de Saga e o lançou um olhar significativo, o irmão apenas sorriu e mais uma vez balançou a cabeça. O biólogo não escondeu o assombro e muito menos a felicidade. Saga merecia ser feliz… Todos mereciam no final de contas. Será que só ele não poderia se dar a essa luxo?

Caminharam até a mesa na qual Milo estava e mais uma vez seguiram com a sessão de abraços e apresentações. Milo pareceu ter se agradado de pronto da companhia de Afrodite e em poucos segundos já estavam falando sobre livros, arte e o aparente gosto compartilhado por drinks coloridos.

Io pareceu ter captado tal predileção e não deixava nenhum copo vazio por muito tempo.

— Linda essa sua tatuagem! — Afrodite falou assim que o garçom colocou um drink enfeitado na sua frente. — O que significa?

O rapaz se surpreendeu com o genuíno interesse que conseguiu captar da parte dos três homens sentados ali.

Enquanto isso, Dohko, Seiya e Ikki voltavam para o salão sentando em outra mesa. Saga esperou Io terminar de falar e seguiu com Afrodite para cumprimentar os demais, incluindo Defteros que parecia estar confortável sentado sozinho no bar. Por último encontrou Aiolia que tinha se ausentado por alguns minutos. Ao que tudo indicava, estava ao telefone com Shura, dando as coordenadas de quando trazer Aiolos. Aparentemente o noivo só poderia chegar depois que todos os convidados estivessem presente e pelas suas contas, a hora já tinha chegado.

Todas as apresentações feitas, Dohko demonstrou claro desconforto com o fato de Ikki não estar bebendo. Olhou em volta procurando o garçom e avistou caminhando em sua direção um rapaz diferente do que havia se apresentado antes.

— Boa noite, meu nome é Sorento e juntamente com Io vou servi-los essa noite.

— Olá, Soren… — Dohko não concluiu a frase.

— Por acaso você é algum tipo de força sobrenatural? — Ikki questionou espantado.

— Boa noite, Ikki. — Respondeu cordial. — Gostaria de alguma bebida?

— Vocês se conhecem? — Seiya perguntou animado.

— Sim. — Ikki respondeu lacônico. — Pode me trazer um chopp, por favor? Vou acompanhar esses dois.

— Claro. Desejam algum aperitivo para acompanhar? Aqui está o cardápio.

Dohko e Seiya olharam o cardápio enquanto Ikki mantinha o olhar em Sorento que ergueu uma sobrancelha e sussurrou um: “Depois”. Escolheram os aperitivos, uma tábua de frios, e entregaram o cardápio ao garçom que depois de pronunciar um “Com licença”, se afastou para buscar os pedidos.

Ikki respirou fundo pensando: “Com certeza essa não será a última surpresa desta noite…“

Chapter 38: Dê um passo para trás

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Suas mãos tremiam. Fechou a porta da casa e se apoiou nela por um instante. A chance de que realmente tivesse estragado tudo não superava a sensação do coração disparado. Tudo confuso. Misturado. Serviu para si uma dose de whisky e a encarou por alguns instantes amargurado. Não podia beber por conta da medicação. Pretendia colocar o copo sobre o balcão… Sua vontade era arremessar com toda sua força aquilo contra a parede. Se recriminou mais um pouco.

Obviamente conseguia entender o receio de Shaka. Mas o calabouço da reflexão havia sido aberto, e assim ele também devia, ao menos a si mesmo, a honestidade de admitir que se magoou profundamente com a ausência do amigo. Dias sem buscar saber uma notícia sua. Camus tinha certeza de que jamais agiria assim para com ele. Durante toda sua vida o farol de humanidade havia sido sempre essa amizade. Mas, agora, que pode perceber pinceladas de como outras pessoas administravam e viviam suas amizades um gosto amargo se infiltrava em sua boca. Era provável que estivesse fazendo tudo errado. Olhou novamente para o copo onde descansava a dose âmbar e convidativa. Tirou do bolso o celular o encarou desesperado. Não suportava o silêncio.

Precisava com urgência falar com alguém… Mas, quem?

***

De tempos em tempos conferia se tudo estava funcionando bem, se todos estavam sendo bem atendidos. Além da força do hábito, realmente queria que o irmão tivesse uma noite inesquecível. Estava satisfeito com a equipe do Imperador e com o auxílio de todos os envolvidos. Especialmente Shura, um amigo tão querido ao irmão e que ele sabia ser especialmente introspectivo. Terminou de redigir e enviou uma mensagem, guardou o celular no bolso da calça e bateu três vezes na porta do camarim adaptado. Um homem alto de cabelos escuros e bigode. Parecia ser bem mais velho e tinha um olhar caloroso apesar do questionamento silêncio ao abrir a porta.

— Boa noite, sou Aiolia Íroas, tenho conversado com a Hilda…

— Óhnn Senhor Íroas, boa noite. A Senhorita está se aprontando. — Saiu para o corredor estendendo a mão para cumprimentar enquanto se apresentava — Sou Folken, trabalho com a segurança direta de Senhorita Polaris e suas garotas. Assim que ela puder recebê-lo eu posso buscá-lo na festa, se for de seu agrado.

— Eu não sei se é necessário Senhor Folken. Só gostaria de saber se está tudo bem, se precisam de algo…

— Eu o procuro dentro de alguns minutos e tratam diretamente. Creio que a Senhorita vai preferir assim.

— Está bem… Pode me procurar por lá sem problemas. Obrigado, até já.

O outro homem agradeceu e voltou a entrar no camarim. Aiolia voltou para o salão conferindo o relógio.

Estava tudo seguindo dentro planejado.

***

Shura já não sabia mais se respondia as mensagens e telefonemas de Aiolia, ou se prestava atenção no que o animado noivo dizia. Entre uma tentativa e outra de dar atenção aos dois gregos, enviou uma mensagem ao esposo e respondeu a de Ângelo. Definitivamente não era a melhor pessoa para lidar com tanta interação social, isso levando em conta seu restrito círculo social e personalidade introspectiva. Mas pelo menos a escolta que estava desempenhando ao levar Aiolos até a despedida, era uma tarefa menos complicado do que manter o italiano e o esposo felizes.

— Algum problema, Shura? — Aiolos questionou após olhar de relance o celular do amigo.

— Nenhum… Apenas respondendo o Shaka… — Mentiu bloqueando a tela do celular e olhando para o GPS preso ao painel do carro de aplicativo que haviam pedido.

— Vejam só… Não sabia que seu marido tinha cortado o cabelo, muito menos que ficou grisalho e mudou a cor dos olhos. Também assumiu uma fisionomia diferente… Continua bonito. — Debochou segurando o próprio queixo fingindo pensar sobre o assunto.

— E eu não sabia que você tinha adquirido o hábito de prestar atenção na conversa dos outros. — Olhou pela janela do carro desviando do assunto.

— Não estava prestando atenção. Meus olhos apenas caíram momentaneamente na sua tela. Ao contrário de você, mesmo com todos esses anos de magistério, minha vista segue impecável.

— Imagino que olhar aluno correr de um lado para o outro não deva mesmo cansar seus olhos. — Encarou o grego dando um sorriso irônico.

— Ei… Vai mesmo começar com o estereótipo? — Fingiu-se de ofendido.

— Claro que não meu amigo, jamais. — Riu.

— Ótimo! Esse é o Espanhol que eu conheço. — Colocou o braço no ombro do amigo e falou mais baixo. — Shura… A gente se conhece há muito tempo. Mais até do que gosto de contar porque percebo que estou ficando velho, mas se tem uma coisa que eu sempre gostei em você é o seu senso de lealdade. — Sorriu. — E ao mesmo tempo sempre foi a coisa que eu mais detestei em você.

— Estou confuso Aiolos. — O encarou sério. — Olha que ainda nem chegamos na sua despedida e eu nem comecei a beber.

— Sempre admirei a forma como você cuida das pessoas e é leal aos seus amigos, familiares e princípios, ao mesmo tempo sempre me irritou o fato de você não fazer as coisas para si mesmo. Acabando sempre preocupado com a felicidade desses mesmos amigos e familiares, mantendo esses princípios independente de te machucarem ou não. O que eu quero dizer… — Coçou a cabeça — É que… Independente do que esteja acontecendo parece que dessa vez você está fazendo algo para você e por você. Não me parece que todos os envolvidos vão terminar felizes, senão você já teria me contado. Mas… Espero que esteja ao menos te fazendo feliz. Tenho certeza que você sabe que eu jamais te julgaria. Muito pelo contrário...

— Aiolos… — Suspirou. — Lembra do dia em que me buscou para provarmos os ternos?

— Uhrum… Tinha um cara com você, não lembro o nome. Não sou um ótimo fisionomista, mas algo me diz que pela sua reação é a mesma pessoa. O tal cara da TI, não é?

— É ele mesmo. Eu só… Não sei muito bem o que fazer agora. Na verdade eu sei… Mas... — Falou em um fio de voz.

— Tudo bem. — Puxou Shura para mais perto, o braço ainda sobre os ombros dele. — Não importa por agora. Esqueça disso ao menos hoje e faça o melhor quando chegar a hora. Não esqueça que tudo tem uma consequência. No mais… Quero que você seja feliz e pode sempre me procurar. Não importa o que aconteça, você sempre será meu amigo.

Abraçaram-se sendo observados pelo motorista do carro que só tinha ouvido as palavras despedida de solteiro, marido e seja feliz. Estava um pouco confuso com a situação que se desenrolava no banco de trás, mas o que importava mesmo era conseguir seu pagamento. Avisou aos dois homens que já haviam se separado que tinham chegado ao destino. Desceram do carro, Shura olhou uma última vez o telefone já na porta do Imperador e encaminhou Aiolos ao lugar no qual ele se despediria definitivamente de sua vida de solteiro. Ao menos esperava que para o amigo, fosse efetivamente uma despedida.

***

Não costumava fazer horas extras, seu cotidiano já era bastante agitado, porém com o fim do semestre e a ausência de Milo que estava em uma festa acabou aceitando. Um pouco de dinheiro ajudaria, é claro, mas se sentia entediado e solitário. Passou as últimas horas desejando que algo acontecesse e ao sair do trabalho desejou chutar seus próprios dentes. Existia um ditado antigo que dizia mais ou menos assim: “Não chama que aparece” ele não conhecia a origem de tal máxima, naquele momento, no entanto, nada poderia fazer mais sentido.

Encostada em um carro de luxo, as roupas elegantes contrastando com a dos trabalhadores que circulavam por ali. O vestido negro como seus cabelos e olhos contrastava com o brancura de sua pele. Justo, sedoso. Ela era impressionantemente linda, isso ninguém conseguiria jamais negar. Ela basicamente brilhava sob a luz da lua. Pandora. Por algum tempo até havia esquecido que essa mulher existia. Aceitava que boa parte do que aconteceu entre eles foi devido a sua permissividade. Mas na época ele era decididamente um alvo fácil. Tinha aprendido a lição.

Franziu o cenho sem disfarçar sua surpresa, nada agradável, diga-se de passagem.

— Hyoga, estou há duas horas aguardando aqui. Quanto tempo! Podemos conversar?

Com certeza não teria como escapar dessa conversa que em nada o interessava.

— Não temos nada para conversar, Pandora.

— Você no mínimo deveria me ouvir, não acha? Tivemos uma história juntos…

— Na realidade nem tanto…

— Entra por favor, vamos jantar e conversar, pode ser? Eu sei que você está sempre com fome nesse horário. Por favor, vamos?

As pessoas pareciam sempre dobrar sua vontade com comida. Estava cansado e sem paciência, ainda assim não conseguia ser completamente grosso com ela. Sim, eles tiveram uma história. Uma história bem estranha cheia de sexo, manipulação e ciúmes. Bufou.

— Está bem, mas apenas por uma hora. Estou realmente cansado.

— Perfeito! — Ela sorriu suavemente o que destacava ainda mais sua beleza inegável.

Hyoga entrou no carro acomodando-se no banco do carona. Ela continuava linda e convincente, mas não mais lhe causava arrepios ou frio na barriga. No entanto não era cego, conheceu aquele corpo a fundo, ela era muito gostosa. Nada mudou. Pandora era uma caixa de surpresas, em geral somente ela se divertia com o que aprontava.

Já que foram abertas as porteiras do inferno aceitaria o jantar e finalizar de vez esse capítulo de sua vida. Chegava a ser irônico. Primeiro Ikki e agora ela. Entre todas as noites justamente nesta. A saudade de Milo só fez crescer em seu peito. Ajustou o cinto de segurança e sentiu o suave perfume que exalava dela. Seus olhos se encontraram.

— O que quer comer, Hyoga?

— Qualquer coisa rápida.

— Não nos falamos em meses, creio que podemos conversar com calma, eu sei que terminamos bem, com tudo às claras. Não existe motivo para você ter ressentimentos. Você não era apaixonado. Mas, nos dávamos muito bem na cama. Isso tem que significar algo.

— Significava apenas sexo, Pandora. E você tem razão. Eu não era apaixonado.

Ela desviou por segundos os olhos do caminho, observou o rosto de Hyoga e suspirou. Mordeu os lábios vermelhos e voltou a concentrar-se em guiar o veículo.

— Vou te levar em um lugar que adoro, a melhor comida italiana da cidade. Para falar a verdade não sei o nome. Todos chamam de Restaurante do Mani.

— Tudo bem por mim, adoro comida italiana...

Hyoga a conhecia o suficiente para ter certeza de que ela estava ali em busca de alguma informação. Obviamente ele não era seu objeto de interesse ou afeição há meses então…

Chegaram no restaurante. Ela deixou o carro em um estacionamento próximo.

— Não servem só comida italiana, tenho certeza que você vai aproveitar… É apenas a melhor comida tradicional da Itália. Uma amiga recomendou este lugar, é muito acolhedor.

Foram bem recebidos por uma funcionária que se apresentou como Yuzuriha, e os encaminhou até uma mesa discreta.

Hyoga olhou a volta e se agradou bastante do ambiente. Felizmente não tão suntuoso ou ostensivo como se lembrava ser a maior parte dos lugares que ela gostava de frequentar. Na realidade era até bastante rústico, algo surpreendente. Melhor assim, preferia mesmo estar em lugares aconchegantes e sem gente entojada por perto.

Não quis beber vinho se contentando apenas com água com gás. Pandora o observou por algum tempo.

— Você segue lindo. Mas, está com um ar mais maduro, másculo.

Um garçom de aparência jovem veio retirar os pedidos.

— Boa noite, meu nome é Tenma e vou servi-los essa noite. — Sorriu entregando o cardápio. — Posso sugerir a entrada?

Pandora se encarregou dos pedidos e Hyoga aproveitou esse momento para respirar fundo. Talvez não devesse ter vindo. Pandora lhe dava nos nervos. Conseguia sempre tirar o pior de si. Assim que o funcionário de afastou sustentou o olhar analítico dela sem nenhum receio.

— Você também é linda. Sem surpresas. Beleza é algo efêmero. Vamos direto ao ponto: O que você quer comigo?

Falava tranquilo mirando o movimento de famílias e casais. Toda vez que alguém entrava as bandeirinhas da Itália balançavam graciosamente. Gostaria de ter conhecido o local em outra circunstância.

O sorriso dela era encantador, mas o brilho no seu olhar deixava claro que ele estava certo. Sim, Pandora queria algo e ela sempre tinha tudo que desejava.

***

Aiolia estava absurdamente satisfeito com a conversa que teve há pouco com a Senhorita Hilda. As moças já estavam quase prontas e tudo corria bem. Voltou ao salão sorrindo e buscou uma banqueta ao lado de Defteros e Kanon, ambos bebendo e rindo juntos. Era um tanto raro ver Kanon conversando com ele, nessa noite entretanto mostravam-se entretidos. Fez um sinal discreto para um dos garçons que se aproximou de pronto.

— Oi Sorento, como vai? Posso te pedir a gentileza de maneirar um pouco no que for servido para o Kanon?

Sorento ergueu suavemente uma sobrancelha enquanto concordava educadamente. Enquanto Aiolia se afastava indo conversar com outros convidados ele correu os olhos pelo Salão e disfarçadamente observou os dois homens conversando. Muito parecidos, apesar dos cabelos de cores bem distintas, obviamente pertenciam à mesma família. Ikki se aproximou com um brilho divertido no olhar.

— Você pode me servir mais um chopp, senhor garçom?

Era divertido no fim das contas ter encontrado com ele ali. Quando poderia imaginar tal triangulação da vida?

— O rapaz que conversava com você há pouco…

— O irmão do noivo? — Sorento comentou enquanto tirava o chopp com perfeição

— É o meu chefe.

O entendimento trouxe um ligeiro sorriso aos seus lábios.

Mundo ridiculamente pequeno ou destino tecido em pequenas ironias? No bolso do avental sentiu seu celular vibrando. Entregou o chopp para Ikki com a mesma elegância que atendia a todos os convidados e após verificar que havia tempo hábil pescou o celular e leu discretamente a mensagem. Sentiu seu coração disparando e uma apreensão crescente.

Ikki pensava em voltar para a mesa de Dohko quando notou uma mudança muito sutil na expressão de Sorento. Seus olhares se cruzaram.

— Aconteceu alguma coisa?

— Nada grave por hora… — Passou a mão pelos cabelos disfarçando a preocupação. — Mas, temo que não possa acudir um amigo que me pediu ajuda.

— Alguém… Que eu conheça? — Perguntou impulsivamente

— Sim. — Encarou Ikki seriamente analisando uma possível alternativa.

— Eu quero ajudar. Você está trabalhando, mas, eu estou livre… Posso ajudar em algo?

— Bom… Acredito que você já tenha percebido que o amigo em questão é o Camus. — Ikki fez um gesto afirmativo com a cabeça e Sorento o chamou discretamente para um canto mais afastado do salão. — Antes de tudo preciso que você seja sincero comigo, Ikki. Tão quanto você seria com o seu irmão, mesmo que eu não seja ele.

— Algumas vezes até acredito que seja. — Sorriu irônico.

— Vou entender isso da melhor forma possível. — Olhou o salão e viu que Io estava levando o serviço de forma primorosa, poderia se distanciar por alguns minutos. — Ficarei eternamente grato se você for ao encontro do Camus e lhe fizer companhia por todo o tempo que ele julgar necessário, mas como amigo. — Aplicou um tom mais enfático a última parte. — É disso que ele precisa no momento e nada mais além. Eu sei que ele é um homem atraente e interessante, já presenciei e senti o quão enérgico ele pode ser em uma investida, e é sabendo de tudo que você precisa me responder com honestidade se está disposto, por hora, a ser apenas um ombro amigo e nada mais. Ele não precisa de mais bagunça e definitivamente não precisa buscar falsas soluções no sexo.

Ikki escutou com atenção as palavras de Sorento e percebeu pelo tom que o garçom usou que ele estava falando muito sério sobre aquela questão. Queria realmente ajudar o ruivo, retribuir de certa forma o tempo que ele havia dedicado a sua pessoa. E com isso, não estava se referindo apenas ao beijo e a pegada gostosa, claro que aquilo também era digno de nota e o ajudou a finalmente perceber que sentia-se atraído por outros homens e não apenas por Hyoga. Mas também sentia que devia a Camus por ter escutado sua história sem julgamentos ou falso moralismo. Além de ter retribuído com uma sinceridade que sabia não ser comum a todos.

— Onde encontro ele? — Questionou sério, sustentando o olhar do garçom.

— Vou verificar onde ele está e já te passo o endereço. — Aproximou-se de Ikki. — Obrigado, Ikki. Passaria a noite preocupado sem poder estar com ele. Você ajuda duas pessoas com isso.

— Acho que ajudo três… Ele me ajudou… Muito, de certa forma.

Sorento apenas balançou a cabeça em concordância, digitando rapidamente uma mensagem, recebendo a resposta de imediato.

— Ele está em casa. Vou te passar o endereço por mensagem. Expliquei que estou trabalhando, mas que estava enviando outro amigo em meu lugar. — Sorriu. — Ele nem perguntou quem era… Aahhh Camus… — Respirou fundo mais uma vez passando a mão pelo cabelo. — Trate-o bem Ikki. — Falou com severidade.

— Fique tranquilo. — Olhou o celular vendo a mensagem de Sorento com o endereço. — Vou sair de fininho e pedir um carro. Aiolia não vai nem perceber.

— Ótimo! Preciso voltar… E mais uma vez obrigado. — Colocou a mão no ombro de Ikki. — Me avisa, por favor, quando você chegar na casa dele. Aah… — Deu um sorriso de canto. — E diz pra ele que finalmente eu entendi a questão do conhaque. Ele vai entender.

Ikki acompanhou o caminhar do garçom de volta ao serviço e pensou em perguntar sobre o que diabos ele estava falando, mas achou mais prático pensar em uma forma discreta de deixar a festa sem ser abordado pelo chefe ou qualquer outra pessoa, principalmente o tal Seiya, um chatinho que não sabia beber e que estava lá por ser o irmão da noiva. Lembrava dele sempre falando alto e aprontando presepadas anos atrás. Ao que tudo indicava em nada havia amadurecido. Sujeito irritante!

Traçou uma estratégia e quando estava prestar a colocá-la em prática, estancou seus movimentos ao ouvir uma algazarra generalizada na parte principal do salão. Definitivamente algo estava acontecendo e pelos sons não sabia identificar se era uma briga ou algo semelhante. Apertou o punho com irritação, teria que atrasar sua saída, ao menos até saber o que estava acontecendo.

 

Do outro lado do salão Milo acompanhava discretamente a movimentação de seu irmão ao redor do Diretor. Acompanhava o ritmo da música com os dedos e bebericava de seu drink. Ao seu lado Saga e Afrodite sorriam bobamente um para o outro. O artista plástico observou sua bebida.

— O que você está bebendo? — Perguntou espontâneo como sempre.

— Para falar a verdade não sei, o jovem Io escolheu para mim.

— Lindas cores.

— Quer um também? É bem suave para falar a verdade.

Voltou-se para chamar um garçom e percebeu que o tal Ikki estava em um canto mais discreto aos cochichos com um dos funcionários. Não pôde deixar de sorrir.

Antes que percebesse Io se materializou do seu lado com mais um copo do colorido drink, Milo riu pedindo que ele trouxesse mais um e cedeu o seu a Afrodite. Saga seguia bebendo uma dose de whisky e planejava iniciar uma conversa quando sua atenção foi captada pela risada alta do irmão que estava ao lado de Defteros e tocava o primo a cada segundo. Estreitou os olhos por alguns minutos, sendo observado por Afrodite e Milo.

— Kanon está indo rápido demais… Até mesmo para uma despedida. — Olhou para Milo. — O que está acontecendo?

— Não sei direito, Saga… Não falei com o Grandão nessa semana…

— Ele parece alguém que deseja esquecer… — Afrodite falou olhando o copo de bebida com certo fascínio. — Algumas vezes esquecer não é ruim. Ele está entre amigos, pessoas que o amam… Deixa ele se afundar hoje, aqui, pois tem várias mãos para o puxar de volta. Tenho certeza que amanhã ele estará melhor… De ressaca… Mas, melhor. — Sorriu olhando para Saga e depois para Milo.

— Saga… Gostei muito do seu namorado. — Milo falou sinceramente dando um tapinha no ombro do primo.

Olharam-se por alguns segundos e o grego mais novo captou o clima alargando o sorriso. Por mais que sentisse como se tivesse regredido uns anos e voltasse a ser a “vela” dos encontros dos primos mais velhos, estava feliz. Percebeu que Afrodite ia dizer algo mas um estardalhaço na frente do salão chamou a atenção dos três que olharam ao mesmo tempo naquela direção. A única coisa que conseguiram enxergar antes de se levantar e caminhar até lá, foi as costas de Kardia, Aiolia e Dohko, além do enxerido Seiya que parecia tropeçar nas próprias pernas.

Foi ele que anunciou a plenos pulmões:

— O noivo chegou!

O salão foi preenchido por palmas e saudações. A festa finalmente podia começar.

Chapter 39: É a coisa real

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Subiu as escadas ao lado do querido Shura, não podia evitar de se preocupar com o amigo. Contava que ele soubesse que podia lhe procurar não importava qual fosse a situação. Naquela noite, entretanto, não conseguiriam mais conversar…

Era afinal sua última noite solteiro na face da terra. Não exatamente, mas, nas próximas semanas com certeza todas as suas atenções estariam voltadas para o iminente casamento.

Mal podia esperar para finalmente ser um homem casado. Seu coração explodia de felicidade cada vez que pensava que acordaria todas as manhãs ao lado da mulher que amava. Seika era a luz de sua vida. Uma amiga dedicada, uma irmã, um exemplo de pessoa e uma guerreira para lutar ombro a ombro qualquer batalha que a vida trouxesse para ambos.

Ele não fazia questão da Despedida de Solteiro. Mas para Aiolia, os amigos e os primos isso parecia ser algo vital.

Não que Aiolos fosse algum tipo de santo, muito longe disso, mas assim que conheceu e se apaixonou por aquela professora dedicada de delicados traços e vontade de ferro não conseguiu tirá-la da cabeça e em breve seriam um casal… Quem sabe um dia uma família. E era qualquer parcela dessa felicidade que desejava àquele grupo de rostos sorridentes e animados que o recebeu assim que adentrou o salão superior do Imperador.

O primeiro a gritar sua chegada foi seu futuro cunhado. Seiya… Já estava bêbado. Sabia que ele era peso pena no que dizia respeito a álcool, mas não imaginou que fosse tanto. Dohko havia prometido que só deixaria o moço consumir chopp, nada de destilados, mas aparentemente era o suficiente para deixá-lo assim. Segurou a risada ao receber o abraço do cunhado. Não desejava que ele se sentisse desconfortável. Não conseguia evitar, entretanto, e por cima da cabeça do rapaz, mais de um palmo mais baixo pôde ver o sorriso mal disfarçado dos outros convidados.

Aos poucos foi cumprimentando calorosamente a todos. Feliz demais com a presença deles e por saber que todos aprovavam e comemorariam com ele seu casamento.

Foram mais de cinco anos de namoro, todas as pessoas importantes em sua vida conheciam seu apreço por Seika.

Conforme avançava para o interior do salão notou a decoração em tons de vermelho e dourado. Assim que teve oportunidade Julian o abraçou, seguido por Aiolia. Na sequência Milo passou uma gravata vermelha pela sua cabeça deixando-a frouxa a volta do seu pescoço.

Estava muito feliz. Logo encontrou Dégel e muito surpreso o abraçou.

— Não acredito que eles conseguiram te arrancar da biblioteca! Que bom que está aqui!

— É meio lenda urbana isso que eu vivo na biblioteca e você sabe Aiolos! Aliás respeite os mais velhos, você sempre será meu eterno calouro!

Kardia sorriu vendo a interação deles e seu coração se encheu com uma energia nova.

— Que bom que você está aqui Dégel! Meus primos estão te tratando bem?

Kardia abraçou Aiolos lhe dando alguns tapinhas amistosos nas costas.

— Pode apostar que sim! — Piscou maroto para Dégel que o ignorou solenemente respondendo diretamente para Aiolos.

— Fique descansado. Estou me divertindo.

O noivo olhou de um para o outro e pretendia dizer algo mais quando foi interrompido por seu empolgado irmão.

— Vem sentar na sua cadeira especial, seu trono, que hoje Aiolos você é o rei do mundo! — Aiolia o puxou pela mão e a maior parte da turma gargalhou. Dohko ergueu seu copo e convidou

— Vamos brindar o noivo! Caiu o primeiro guerreiro. Ught! — Reclamou da cotovelada que recebeu de um vermelho Seiya.

Diversos copos foram erguidos. Aos poucos os convidados se aproximavam para brindar e cumprimentar Aiolos que não conseguiu chegar até seu trono.

Kanon o abordou sorrindo quando puxou Aiolos para um abraço apertado.

— Finalmente chegou o motivo da festa! — Falou carinhoso com o primo — Parabéns Noivo! — Deu um beijo no topo da cabeça de Aiolos que sorriu afagando o ombro de Kanon.

— Fico grato! Pelo jeito você já iniciou os trabalhos, dedicado. — Falou divertido ao mesmo tempo em que continha a surpresa ao perceber o quão alterado o primo estava.

A gargalhada de Kanon correu o salão, dentre todos os primos ele acabava sendo o mais discreto e isso chamou a atenção dos familiares. Saga pendeu a cabeça para o lado pensativo e Milo ergueu uma sobrancelha começando a se preocupar. Eram reconhecidamente barulhentos e espalhafatosos, o biólogo no entanto sempre esteve ligeiramente fora dessa curva. Assim, eles sabiam que em breve ele cruzaria um limite não tão divertido assim.

Kanon puxou a gravata que há pouco Milo colocou no pescoço do noivo a posicionando na testa de Aiolos, bem ao estilo Rambo. Aiolos tocou o tecido erguendo os olhos questionadores, recebeu como resposta mais uma gostosa gargalhada e um belisco leve em suas bochechas. Kanon estava afetuoso, bem mais que cotidianamente.

— Você é tipo nosso herói… — Deu um sorriso caloroso olhando para Aiolia que estava ao seu lado.

— Estou ótimo hoje! — Acompanhou o sorriso ajeitando a gravata na testa colocando-a de lado. — Rei, herói, que me falta ser? Já, já vou virar o dono do mundo.

— Nada… Os arroubos megalomaníacos são território do Saga. — Kanon sussurrou como se falasse um grande segredo, gargalhando mais uma vez, sendo desta vez acompanhando por Aiolos.

Ao lado deles Aiolia sorriu analisando o novo uso do acessório vermelho enquanto falava:

— Lembra aquela bandana que o Aiolos usava na adolescência?

— Ele se sentia o próprio roqueiro! — Kanon deixou-se cair na banqueta rindo — Como esquecer?

Julian chegou ao lado de Kanon e sussurrou em seu ouvido

— Vamos dar uma seguradinha na emoção? A noite mal começou.

— Seguro melhor outras coisas Senhor Solo, quer me dar uma chance de provar? — Murmurou rente a orelha de Julian que arregalou os olhos. Kanon o abraçou pelos ombros rindo alto — Bebe algo comigo Julian! Eu te amo, você é meu melhor amigo.

— Certo, claro que eu bebo, você também é meu melhor amigo, então, tem que confiar em mim e maneirar um pouco. Ou vou te levar embora Kanon, você sabe que eu levo.

— Vai me levar para onde? Não quero voltar para minha casa. — Falou perigosamente próximo — Me leva para a sua. Quero ver o mar. Vamos para a praia?

— Mais tarde. — Foi mal sucedido em performar irritação. — Prometo.

— Mais tarde, então. — Concordou. — Vou beber uma soda limonada agora.

Julian fez sinal para um dos garçons que se aproximou, e solicitou a ele o refrigerante para o amigo além de pedir que diminuísse um pouco as doses entregues a Kanon.

Seu olhar encontrou o de Defteros que lhe ergueu o copo divertido. Deu de ombros. Não podia se dar ao luxo de ficar constrangido pelo primo de Kanon ter presenciado a pequena cena anterior.

Toda família conhecia Kanon bêbado e suas atitudes exageradamente carinhosas. Caso existisse uma classificação para os bêbados, o biólogo se enquadraria na categoria carinhoso inveterado, externalizando todo o afeto e amor que costumeiramente demonstrava de forma discreta e contida. No geral, não era o pior tipo de bêbado, mas configurava sim um dos mais problemáticos, uma vez que, as noções de pudor do amigo tornavam-se quase nulas. De todo modo, os dois no fim das contas tinham sua parcela de história juntos e aquela não era a primeira vez que presenciava aquele modo... Amável.

Sua única preocupação no momento era resguardar para que as atitudes dele não ultrapassarem certos limites e que todo aquele bem querer banhado a misturas randômicas de destilados e fermentados, não alcançassem uma escala desastrosa.

Encaminhou o biólogo até a mesa que ocupavam originalmente e em poucos minutos Sorento apareceu equilibrando na bandeja um copo alto repleto de gelo para a Soda limonada, uma dose de whisky e duas canecas de chopp.

Sorento dispôs as bebidas na frente dos convidados recebendo os agradecimentos e dedicou uma discreta atenção a figura de Kanon.

Alguma coisa lhe dizia que algo estava acontecendo. A barba por fazer, a mistura alarmante de bebidas e a atitude quase juvenil de quem está aproveitando sua última passagem pela terra, não pareciam combinar com o homem de aparência e modos agradáveis que viu desfilando pelo bar. Não que o nível alcoólico estivesse de alguma forma alterando significadamente algum desses aspectos, mas estava adicionando um grau de permissividade que parecia não estar ali antes, ao menos não de forma tão latente.

Não conhecia aquele homem há tempo suficiente para dizer qual seria seu comportamento mediante o elevado nível alcoólico, mas lá no fundo tinha uma certeza, aquela atitude definitivamente indicava que ele estava buscando na bebida alguma forma de escapar da realidade, ou no mínimo ignorar momentaneamente algo que o que incomodava, afinal, não era a bebida a mãe de todos os sofredores. Músicas, filmes, peças e todo o tipo de enredo embalava-se na urgência da bebida e no acalento que ela trazia aos diversos males.

Kanon estava apenas desempenhando seu próprio imbróglio.

Por alguns segundos se pegou pensando se Isaak tinha conhecimento do estado no qual o seu… Bem, não sabia exatamente como categorizar a relação que os dois tinham. Portanto, Kanon seguiria até segunda ordem, sendo o “loiro do Isaak”, ou variações disso.

Parou em frente ao bar aguardando uma nova leva de drinks e constatou o nítido carinho que Julian Solo dedicava a Kanon.

Ergueu uma sobrancelha ao ver os sussurros ao pé do ouvido que os dois trocavam e os toques. Caso não soubesse do envolvimento que o loiro alto, estava aí uma das variações, tinha com o outro garçom, certamente apostaria que alguma coisa estava acontecendo entre ele o o Senhor Solo. E algo que ia muito além da amizade que pareceu sempre permear a relação dos dois. Era algo sútil, mas que para um bom observador, mostrava-se de uma clareza ímpar e não estava relacionado com a bebida.

Mesmo em seu estado não alterado, já havia percebido o afeto que aqueles dois tinham um com o outro. Talvez justificasse algumas das atitudes de Isaak… Quem sabe. Sorriu minimamente ao perceber que tinha chegado ao ponto de ver algum sentido nas atitudes do outro garçom.

Eventualmente, o tempo acaba mudando tudo.

De todo modo, não podia se perder naquelas divagações.

Afastou-se dando um suspiro cansado e trocando olhares com Ikki. No momento em que ele pretendia sair, o noivo chegou. Camus precisaria esperar mais um pouco. Preocupava-se com o amigo sozinho, ao mesmo tempo, sabia que o ruivo precisava praticar um pouco a auto reflexão e que nem sempre seria possível ter alguém por perto. O ideal seria que ele conseguisse aprender a lidar consigo mesmo, esperava que chegasse o tempo em que ele saberia definir uma caçada de um flerte sem precisar de auxílio, e acima de tudo, que não buscasse no sexo o bálsamo para todas as suas frustrações. Existiam outras formas de resolver seus problemas, acreditava nisso e esperava que o amigo em algum momento percebesse. Contudo, aparentemente naquele momento ele ainda não estava preparado para chegar a essas conclusões sozinho, ou enfrentar qualquer que fosse o problema sem um apoio extra.

Passou a mão pelos cabelos ponderando se tinha sido mesmo uma boa ideia pedir a Ikki que fosse em seu lugar. Conhecia o magnetismo de Camus e tinha noção da atração que ele sentia por Ikki, dá última vez que conferiu a recíproca era verdadeira. Queria acreditar que existia algum pingo de racionalidade naqueles dois e que os anos de evolução humana tinham ensinado alguma coisa a eles. Uma breve alusão a animais no cio passou por sua mente, espantou o pensamento.

Desejava do fundo do coração não está complicando mais ainda a situação do amigo, mas alguma coisa remexia dentro de si dizendo que nada sairia da forma como ele esperava. Continuou o serviço, não tinha nada que pudesse fazer naquele momento além de servir as mesas, afinal, aquela festa não parecia ter hora para acabar.

***

Aiolos abraçou Defteros que finalmente conseguiu chegar perto do primo depois de todo o alvoroço com a chegada do noivo. Estava genuinamente satisfeito com a presença do primo mais velho lá.

— Muito obrigado por estar aqui meu velho, enche meu coração de felicidade te ver entre as minhas pessoas preferidas.

— É uma honra e um prazer. Não fique muito emocionado Arqueiro — Deu uma cotovelada de leve no corpo de Aiolos — A noite está apenas começando. — Falou em um tom quase malicioso olhando os demais convidados no salão.

Shura conseguiu se manter o mais distante possível depois da chegada com Aiolos e cumprimentou boa parte das pessoas com acenos e sorrisos. O que quase todos ali sabiam que vindo dele, era a saudação padrão.

Mesmo tentando se manter afastado teve que lidar um tempo com Seiya, que o arrastou na direção de Dohko que estava em pé próximo a mesa na qual Saga e um homem muito bonito, que ainda não tinha sido apresentado estavam sentados. O rapaz borbulhava de felicidade por finalmente ter-se dado conta de que Shura era amigo de Aiolos. Tal constatação teria se realizado muito antes, se ele se desse ao trabalho de ouvir com atenção as palavras das outras pessoas.

Como a prática do espanhol, em geral, era a de observar e escutar muito mais do que falar logo que começou a trabalhar na mesma firma captou Seiya repetindo o nome da irmã Seika que se casaria em breve e não foi difícil conseguir dele o nome do noivo uma vez que ele parecia nutrir certo orgulho ao declarar que seria cunhado de um grego gentil e inteligentíssimo.

Foi uma surpresa agradável e interessante e ponderou comentar isso com o rapaz, mas a chance não apareceu e como não era sempre que tinha disposição ou tempo para dar atenção aos disparates e fofoquinhas de Seiya a pauta nunca foi retomada.

Dohko se apresentou para Shura; simpatizando imediatamente com o ar sério do rapaz; bateu levemente em seu ombro lançando um olhar quase cômico para o irmão da noiva.

— O mocinho aqui só está autorizado pela Noiva a beber chopp, a equipe está ciente, se ele tentar te coagir para que peça algo diferente para ele, Shura, não acredite!

— Eu conheço a peça! Seiya faz estágio lá na empresa. Não se preocupe Senhor Dohko.

— Cruzes! Não me chame de senhor nunca mais! Isso me dá um arrepio ruim. — Os dois riram e Shura sentiu-se estranhamente acolhido na presença leve daquele homem. — Nem sou tão mais velho que você. Então, você trabalha com o Carneiro Velho! — Riu alto — Você deve ser um homem paciente Shura, aquele Shion é um bagunçado! Vou até o bar, quer algo?

Agradeceu pensando que Dohko poderia ter aguardado um garçom, provavelmente só precisava de uma folga da companhia de Seiya, que ao que tudo indicava permaneceria ao seu lado como um leal escudeiro. Estalou os dedos, um pouco desconfortável e olhando ao redor viu quando o homem que estava com Saga fez um gesto com a mão o convidando a se sentar com eles. Saga sorria de uma forma inédita e puxou a cadeira dando um tapinha nela. Shura apontou discretamente com a cabeça na direção de Seiya que falava sobre alguma coisa que ele não conseguia captar muito bem, e sorriu abertamente quando notou que Saga batia com mais força na cadeira.

— Vem Seiya, vamos sentar ali. — Colocou a mão no ombro do garoto e o encaminhou até a mesa.

— Há quanto tempo Shura! — Saga levantou da cadeira. — Vi seus usuais acenos e sorrisos, mas vem aqui e me dê um abraço. — Abraçaram-se e Seiya sentou na outra cadeira. — Esse aqui é o Afrodite Nyman, um excelente artista plástico e meu… Amigo.

— Muito prazer, eu sou o Shura. — Esticou a mão para cumprimentar Afrodite e foi puxado para um abraço. Estranhou o fato de não se sentir desconfortável.

— Olá, Shura, também é um prazer conhecer você. Sente… Não vai beber nada?

— Vou sim. Acho que uma Cuba Libre. — Falou fazendo um gesto para o garçom.

— Você sempre bebe isso, né? — Seiya perguntou rindo, sendo observado por Saga e Afrodite. — Lá na empresa, tem festa sempre. E ele e o Máscara sempre bebem isso. — Riu.

Shura sentiu o corpo inteiro gelar e fez o pedido ao garçom em um fio de voz. Por ironia do destino assim que terminou de pedir a bebida notou a tatuagem no braço do rapaz e lembrou dele. Na verdade, lembrou exatamente a ocasião na qual visitou aquele bar.

Não fosse todo o cenário torto, seria minimamente divertido pensar que ele e Aiolos tiveram suas Despedidas de Solteiro iniciadas no mesmo estabelecimento. Não lembrava o nome do garçom, mas sabia que era o mesmo que tinha trazido as inúmeras canecas de chopp zero grau que ele e Ângelo tinham bebido naquela noite, antes de finalizarem as comemorações em um Motel. Na verdade, segundo o italiano, aquela sim era a comemoração, a cerveja era só o abre alas.

Apertou mais uma vez os dedos em uma tentativa de disfarçar o nervosismo. Até o momento não tinha percebido como andava imprudente. Ele sugeriu ao italiano que fossem naquele bar, mesmo sabendo que pertencia a Julian Solo e tendo a ciência que ele conhecia seu atual esposo. Tudo bem que não se viam há muito tempo, e o Imperador poderia apenas acreditar que o relacionamento dele tinha terminado. Mesmo assim, jamais se julgou tão imprudente.

Uma coisa era certa, Máscara da Morte realmente tirava seu juízo.

Lembrou com carinho do pedido de “juízo”, que o outro lhe deu assim que saiu do trabalho. Conteve o sorriso mordendo a parte interna da bochecha. A voz agradável do amigo de Saga o trouxe de volta.

— Máscara? — Afrodite questionou sorrindo.

— Ah sim… É um dos nossos colegas de trabalho. — O Espanhol respondeu sem graça.

— É o Máscara da Morte, o responsável pela TI. O cara tem uma pinta de mafioso de filme preto e branco. Seu Amigo, né Shura? — Falou com uma pitada de malícia.

— Acho que de ambos. — Manteve o tom de voz firme e o rosto sério, mesmo que por dentro sua vontade fosse a de sair dali o mais rápido possível.

— Que nada. Muito mais seu. Ainda mais nas festas e nas bebedeiras… Você casou mesmo, Shura? — Seiya perguntou com nítido interesse e indisfarçada malícia.

Shura o encarou sério, estranhando a atitude do rapaz. Ele era impertinente, fofoqueiro e um pouco insistente, mas jamais havia notado nenhum um resquício de malícia, astúcia ou algo do gênero vindo daquele garoto.

— Casei Seiya. Inclusive você estava no chá de casa, pelo que me lembro.

— Uma coisa é casar, out…

— Olha só, casou e não convidou ninguém. — Saga cortou o garoto ao notar o rosto normalmente sério de Shura se transformar em algo inominável.

— Não fizemos uma festa nem nada. Apenas começamos a morar juntos. Shaka se mudou tem pouco tempo e o pessoal do trabalho fez um chá de casa pra mim.

— Poderia ter comentado, meu amigo. Providenciaríamos uma despedida pra você também.

— Não me vejo em algo assim… — Fez um gesto apontando para o salão e corando fortemente em seguida.

Teve uma despedida no final das contas, uma que se encaixava muito mais no seu perfil discreto e introspectivo. Não estava no direito de estabelecer comparações, afinal, cada ação serve a um mestre a atende a um temperamento específico, mas podia afirmar sem sombra de dúvidas que se perder na firmeza do corpo de Ângelo, lhe trouxe muito mais diversão do que uma noite de bebedeira e algazarra poderia trazer.

— O Máscara iria se amarrar em ir na sua despedida… — Seiya falou puxando o copo de Cuba Libre que Io colocou na mesa.

— Você por acaso nutre algum sentimento romântico por esse Máscara? — Afrodite questionou puxando a bebida das mãos de Seiya e colocando na frente de Shura.

— Claro que não! — Falou mais alto.

— Não para de mencionar o… Esse não é o nome dele, né? — Sorriu.

— Não… É Ângelo. — Acompanhou o sorriso.

— Tão mais bonito. Mas, então, menino Seiya, você gosta do Ângelo? — Apoiou o rosto nas mãos olhando para Seiya.

— Porra, não! Porque você está perguntando isso? — Remexeu-se na cadeira incomodado.

— Já disse, você não para de falar sobre ele… Vai saber, né? — Deu de ombros.

— Vou ao banheiro. — Seiya levantou nitidamente irritado e cambaleando foi até o banheiro.

— Será que ele vai ficar bem? — Shura perguntou preocupado.

— Vai sim. O máximo que pode fazer é vomitar nele mesmo, ou se mijar… Essas coisas. — Saga comentou divertido bebendo o whisky. — Ao menos ele não te incomoda mais. Além disso, cada um que cuide dos seus. Vê… — Apontou para Kanon. — Só não preciso resgatar porque Julian é mais sensato do que eu. Mesmo que eu ache que ele deveria é agarrar o Kanon de uma vez e dar um jeito no meu irmão. Muito cu doce. — Gargalhou alto no melhor estilo madrasta da Branca de Neve.

— Saga… — Afrodite o olhou surpreso. — Ainda não conhecia esse seu lado.

— Tem muita coisa que você não conhece ainda. — Encarou o artista — Te desagrada?

— De forma alguma… — Sorriu aproximando-se mais dele. — Vamos ver se descubro quantas faces tem você.

— Não posso garantir que você vá gostar de todas. — Falou próximo ao rosto do outro.

— Duvido muito querido. — Passou o dedo indicador pela linha do queixo de Saga o encarando sem seguida. — Me dê o benefício da dúvida e depois eu te digo o que eu acho de cada uma das suas faces. — Sorriu.

Shura provou sua bebida e observou a interação entre eles pensativo. Alguns encontros pareciam simples.

A essência da realidade, sabia ser potencialmente bem mais densa.

Chapter 40: Não há nada mais

Chapter Text

Hyoga respirou fundo e analisou o rosto de Pandora como ela fazia consigo há alguns minutos. Não estava verdadeiramente irritado com ela. Meramente não via nenhum motivo real para que estivessem ali reunidos, papeando como se fossem coleguinhas.

Na última conversa que tiveram a morena havia lhe direcionado palavras duras. E não, ela não estava errada. O peso do que por ela foi dito, no entanto, havia sido mais do que podia suportar naquele momento em que já estava arrasado pelas atitudes de Ikki. Algumas pessoas não têm qualquer pudor em chutar cachorro morto, bem, no caso específico de Pandora ela não possuía pudor de natureza alguma. Talvez fosse sua maior qualidade.

Deixou que ela tomasse a dianteira em toda performática de pedidos. Não estava interessado em gastar energia tentando marcar posição em sentido algum com ela.

Nos últimos minutos estudando a maneira como ela preparava o terreno de forma habilidosa já havia se dado conta exatamente de qual era a motivação de Pandora para o ter abordado.

Não pretendia, entretanto, facilitar para ela em nada.

O restaurante era agradável. O aroma dos pratos que passavam sendo carregados pelos funcionários o deixavam ainda mais faminto e a vista era maravilhosa. Provavelmente o lugar era abençoado em algum nível, já que pode contabilizar pelo menos dois homens impressionantemente lindos com seus cabelos rebeldes e olhares que emanavam promessas de intensidade, além da recepcionista que também era bem gata.

Sorriu internamente, há bastante tempo não se percebia reparando no entorno. Era uma sensação interessante, especialmente por se sentir de uma forma completamente inesperada seguro com seus sentimentos e essa relação ainda germinal que cultivava com Milo. Só de lembrar dele um brilho de satisfação passou por seus olhos e este não passou despercebido pela mulher a sua frente. Pandora era uma estrategista, uma jogadora que em tempo algum perdia.

A faceta mais arrogante de Hyoga, aquela que ele pouco mostrava sempre aflorava na presença dela. Provavelmente o relacionamento deles foi uma eterna competição por dominância e prazer. Incrível como algumas pessoas têm a capacidade de extrair o pior de outras. O contrário também é verdade. A situação ali, no entanto, era compatível com um embate de jogadores de poker. Todas as expressões que eram captadas poderiam ser apenas um truque proposital, um blefe.

Nessa disputa disfarçada de cordialidade por ela e paciência por ele, o tempo passou bem mais rápido do que Hyoga imaginava e aquela primeira hora que havia concordado ceder já se fora há muito. Pandora era inteligente, culta e viajada. Realmente era uma companhia agradável.

Irônico dado a todo o contexto. Inegável ainda assim.

O estudante pensava que de sua parte não há nada mais a falar com e para ela. Mas Pandora o sonda, ela quer saber de um amante, seu objeto de desejo atual, o interesse que sempre vibrava mais forte naquela mulher. O homem em questão obviamente era Ikki, aquele que também o procurou há algum tempo. Não foi exatamente fácil resistir ao magnetismo de Ikki, mas conseguiu, tinha orgulho de si mesmo. Felizmente Hyoga sentia-se livre daquele triângulo perigoso.

***

Olhou com certo desalento para o visor do celular. Havia se passado mais ou menos vinte minutos desde a última mensagem que tinha recebido. Por mais que às vezes reclamasse do conteúdo e das fotos randômicas de sua rola que aleatoriamente anexava, sabia que Shura gostava de suas mensagens.

Bufou com certo desgosto ao constatar que era uma sexta feira à noite e estava sozinho por pura opção.

Declinou o convite da namorada para ir ao cinema e findar a noite em algum motel. Nunca foi um exímio mentiroso então fez uso de uma das desculpas mais antigas já cunhadas pela espécie humana: “Estou cansado do trabalho e prefiro ir direto para casa descansar.” Por mais que nutrisse um grande carinho por Helena, não era dela que ele precisava naquele momento. E notou com nítido desagrado que caso fosse um certo Espanhol, cansaço algum lhe impediria de passar a noite em um motel, ou onde quer que fosse, desde que estivesse com ele… Dentro dele… Sendo dele.

Mesmo que uma voz lá no fundo tentasse o alertar para os perigos do jogo que andava praticando, naquele momento, necessitava apenas de uma pessoa e essa estava ocupada na despedida de solteiro do tal amigo de infância.

Rolou os olhos com tanta força que quase os sentiu sair de órbita, enquanto caminhava em meio à noite soltando a fumaça do cigarro.

A sua outra opção, sem demérito nenhum nessa posição, era ir ao encontro daquele que sempre seria seu baluarte durante todo o tempo em que vivesse. A única pessoa que o conhecia talvez melhor do que a si mesmo e que por constatação seria o único capaz de levar um belo soco por ele, seu irmão, Dario.

Assim como ele, o irmão preferia ser chamado pelo apelido, carregavam motivos diferentes naquele pedido, e sempre achou que o segredo era mais interessante do que a história em si.

Sendo assim, apagou a bituca do cigarro e jogou na lixeira que ficava na porta do restaurante, afinal, por mais que lhe amasse incondicionalmente Dario Tomazzo D’Oro, jamais permitiria que ele entrasse fumando em seu restaurante, o famoso D’Oro, restaurante tradicional e familiar, que contava com mais de sessenta anos no mesmo lugar.

Atualmente, o lugar era mais conhecido como restaurante do Mani, o que causava grande júbilo a Nonna Telma e uma parcela de incompreensível dissabor ao atual patriarca da família, Donato.

Jamais entenderia a linha de raciocínio do pai e talvez, só talvez, devesse seguir o exemplo do irmão mais velho e não se importar tanto com isso.

Há anos que o irmão, agora na faixa dos trinta, havia rompido com os planos e expectativas que o pai tinha desenvolvido sobre a vida dos filhos, e aparentemente seguia feliz. Nunca tinha efetivamente entendido porque se auto incubiu da demanda de atender às exigências do pai.

— Olá, Ângelo, como vai? — Uma moça de longos fios loiros presos em um rabo de cavalo, vestida com uma calça e camisa social na cor preta falou assim que o italiano entrou no restaurante.

— Vou bem Yuzuriha. Tem um tempo que não nós vemos. — Tirou o casaco que vestia. — Como vão as coisas? — Olhou o movimento do estabelecimento.

— Estamos indo bem, como pode ver. Além da tradição que a Nonna deixou, Mani cozinha muito bem… E é atencioso… Para não dizer um galanteador barato. — Sorriu de lado.

Máscara soltou uma risada alta ao ver o irmão vestido com a típica doma de cozinheiro, fazendo uso dos gestos contidos e milimetricamente estudados que costumava demonstrar aos clientes. Para Manigold, cozinhar e seduzir, tinha uma essência semelhante.

— Ele está dedicando uma atenção especial aquela mesa. Acho que a moça de cabelo preto chamou a atenção dele.

— Bonita? — Máscara questionou tentando ver melhor a mulher na mesa que parecia acompanhada de um rapaz loiro.

— Muito. O rapaz que está com ela também é um desses tipos agraciados pela natureza. — Falou com certo desdém.

— Oras… Assim como você. — Sorriu.

— O galanteio é de família? — Levantou uma sobrancelha mantendo o rosto sério.

— Creio que sim. — Riu. — Mais do que isso, a sinceridade. — Piscou. — Vou sentar na mesa de sempre. Mani parece que ainda vai demorar um tempo ali.

— Provável. Essa moça vem aqui com alguma frequência. Ela é amiga da Eurídice. Lembra?

— Claro. A namorada do Orfeu. Lembro sim. Qual a novidade, então?

— Das vezes em que elas vieram o Mani sempre estava sozinho na cozinha, Sage tinha algum imprevisto, ou era algo relacionado aos fornecedores. Entre as ironias da vida, seu irmão nunca tinha colocado os olhos nela, até hoje.

— Entendi… Bom, vou sentar. Prazer em te ver. — Deu um beijo no rosto da moça.

— Igualmente, Ângelo. — Retribuiu o beijo no rosto dele. — Vou pedir ao Tenma para levar um vinho pra você.

Caminhou até umas das mesas mais afastadas e próxima a entrada da cozinha. Era um lugar praticamente não utilizado pelos clientes a não ser em dias de movimento extremo. Mesmo sendo um tanto escondida, a mesa tinha uma visão privilegiada do salão. Seria um daqueles lugares que algum mafioso escolheria para esperar e espreitar, ao menos era isso que ele e o irmão sempre pensaram e por isso elegeram aquela mesa “da famiglia”.

Aguardou que um dos garçons trouxesse uma garrafa de vinho e sorriu sinceramente levantando da cadeira ao ver o irmão andando em sua direção com o vinho e duas taças em mãos.

Aquele mesmo sorriso jocoso, o ar canastrão e ao mesmo tempo perigoso.

Dario era alguns centímetros mais alto e também mais corpulento, “Braços de cozinheiro”, costumava dizer. Alguma especificidade havia ocorrido na genética familiar que apenas Ângelo mesclava desde a tenra idade os escuros frios castanhos com o grisalho. Já o irmão, mantinha uma cabeleira escura e um pouco maior que a sua, mas tão indomável quanto, atestou assim que ele colocou a garrafa e a taça na mesa, tirando a bandana que usava para proteger os cabelos.

Abraçaram-se e permaneceram durante algum tempo naquele enlace, até que Máscara sentiu o irmão afastar-se levemente, colocar a mão em seu rosto beijando cada uma de suas bochechas. Riu, sendo acompanhado pelo outro e repetiu o gesto. Olharam-se em seguida, olhos idênticos, o mesmo peculiar tom de terracota.

— Estava com saudades, Ângelo. Esqueceu que tem um irmão? — Puxou uma cadeira sentando ao lado do mais novo.

— Jamais… Só ando um pouco… Enrolado. — Riu.

— Sei, sei. — Despejou o vinho que já havia trazido aberto em ambas as taças. — Então vamos brindar ao dia em que meu irmão deixou de ser enrolado e veio me ver.

— Gosto desse brinde. — Sorveu o vinho e finalmente conseguiu ver com clareza o casal da mesa a qual Yuziriha falava.

— Bella Donna aquela ali, não acha? — Manigold falou assim que percebeu o olhar do irmão.

— Belíssima! — Máscara respondeu com certo desânimo que não passou despercebido.

— O rapaz que está com ela também não deixa a desejar. — Comentou.

— E desde quando você se importa com a beleza de rapazes, Dario? — Perguntou franzindo o cenho.

— Não sei Ângelo, o que você acha? — Sorriu.

— Meu irmão… — Falou em tom de advertência. — O que se passa nessa sua mente caótica?

— Nada que ambos não saibamos. Mesmo assim… — Desconversou. — Formam um belo casal.

— Não sei se são bem um casal… Ou se ainda são um casal. — Ângelo comentou observando os dois. — Mas, sem dúvida são irritantemente bonitos. — Suspirou. — Nenhum dos dois faz muito o meu tipo…

— Pelo que percebi, eles têm um nível de intimidade que só permeia quem já conheceu o corpo alheio. Caso não sejam um casal, algum dia já foram um… Ou pretendem voltar a ser. Mas agora fiquei curioso. Qual seria seu tipo, Ângelo? — Riu enchendo de vinho a taça do irmão.

Alto, forte, ombros largos, olhos verdes, cabelo escuro, rosto sério, voz rouca, sotaque espanhol, coxas grossas e musculosas, além de um belo pau pensou enquanto inconscientemente balançada a taça, um sorriso malicioso se formando em seu rosto.

Manigold bebeu o vinho estalando a língua em seguida e olhando com mais atenção o mais novo.

— Parece que tem uma descrição bem precisa, meu irmão.

— Talvez. E qual seria a sua, se é que você tem um tipo?

— Bom… — Alargou o sorriso. — Ando às voltas com um belo par de olhos azul piscina, cabelo loiro e longo, sorriso límpido, por mais que boa parte do tempo o rosto esteja fechado e uma charmosa pintinha perto do olho. Você devia ver… Espetáculo! — Estalou a língua mais uma vez, bebendo o restante do conteúdo da taça.

— Fico feliz em saber que você já está recuperado…

— As dores do amor não são eternas, irmãozinho. E aprendi muito com Verônica. Agora me diga o que realmente importa… — Olhou sério para o irmão. — Como esta Primo?

Máscara da Morte gargalhou mais alto que o de costume, definitivamente tinha sido uma boa ideia ir até ali.

— E eu achando que iria perguntar pela Helena.

— Pensei em perguntar, mas levando em conta que hoje é uma sexta feira, e você, o segundo homem mais atraente de nossa família, está aqui, ao invés de estar com ela, imaginei que seria melhor deixar você tocar no assunto.

— Gostaria de dizer que não existe nada de errado. — Sorriu triste balançando a taça. — Mas nunca consegui mentir direito pra você.

— Existe outra pessoa?

— Sim. — Bebeu o resto do vinho.

— Quer me contar quem é? — Encheu as taças.

— Quero… Mas, não agora.

— Assim seja. Bem, uma coisa é fato. Sabe aqueles dois ali? — Fez um gesto com a cabeça apontando discretamente a mesa. — Por mais que eles pareçam um casal em crise, ou quem sabe tentando se recuperar de uma, eles ainda parecem um casal. Você e Lena, sempre me deram a impressão de que eram amigos que eventualmente transavam. E não um casal que está junto há anos. Em alguns momentos, Máscara, acho até que vocês são quase irmãos.

— Já pensei sobre isso… — Falou com pesar. — Mas… — Suspirou. — Eu tenho um dever com ela, né?

— Se você precisa me perguntar, quer dizer que não está certo disso. — Levantou a garrafa de vinho vendo que estava vazia. — Preciso voltar para a cozinha… Vejam só… — Chamou a atenção do irmão. — O rapaz loiro, Hyoga pelo que ele disse, parece que está indo ao banheiro. — Escaneou o corpo do rapaz com o olhar. — Decididamente muito bonito.

— Dario, se não te conhecesse acharia que está mais interessado no rapaz do que na moça.

— Será? — Piscou um olho rindo em seguida. — Estou voltando pra cozinha irmãozinho. Fique a vontade. — recolocou a bandana.

— Precisa de ajuda em algo? Estou com tempo…

— Cozinha ou salão? — Questionou.

— Salão. Não estou com roupa para a cozinha.

— Verdade. Só avise a Yuziriha. Depois que fecharmos a gente bebe mais umas garrafas de vinho.

Máscara concordou vendo o irmão se afastar e seguiu na direção de Yuzuriha apresentando-se como o novo garçom da noite. A moça balançou a cabeça com falso desagrado e o entregou um avental que ele amarrou na cintura, dobrando as mangas da camisa. Andou em direção ao salão e passou ao lado do rapaz loiro.

Muito bonito! Repetiu mentalmente a fala do irmão. Ao que tudo indicava, ao menos dele não precisaria se esconder. Sentiu uma vontade de enorme de ligar para o Espanhol, seu Bello, ouvir aquela voz rouca e se imbuir de coragem. Desistiu no instante seguinte, assim que viu a tal Bella Donna o chamando. Aquele não era o momento, ainda não era a hora. Só não sabia mais se aguentava esperar esse tal hora chegar.

***

Ikki só conseguiu deixar a festa depois de cumprimentar Aiolos e explicar a Aiolia que tinha surgido um imprevisto e precisava ajudar um amigo.

Foi um momento um tanto inesperado com o noivo agradecendo sua presença e o elogiando por estar indo acudir um amigo, sem qualquer pergunta apenas estendeu o convite para sua festa e lhe disse que Aiolia sempre o elogiava. Uma sensação boa encheu seu peito. Aiolia não costumava espalhar elogios, sabia que sua presença ali significava uma confiança que palavra nenhuma teria condições de espelhar. Estava grato, mesmo com o momento tenso com Milo, havia se sentido acolhido e a vontade naquele lugar. Talvez a presença de Sorento tenha contribuído. O rapaz talvez fosse uma entidade, alucinação coletiva. De qualquer forma sentia-se agora seu emissário.

Apesar da acolhida na festa. Apenas não podia deixar de encontrar Camus. A festa estava animada, selfies, risadas, bebida e a expectativa para o show, sim… Aiolia e seus primos planejaram uma festa muito boa. Deixou sem pesar o bar.

Lá fora o ar um pouco mais frio e úmido parecia o prenúncio de chuva. O vento balançou seus cabelos no mesmo ritmo em que açoitava os galhos das árvores. Folhas corriam soltas em caminhos de vento. Subiu a gola de sua camisa, cruzou os braços e avistou o carro que havia solicitado há pouco.

Tomou lugar no banco de trás e manteve o olhar na janela. Não via a paisagem, não via seu reflexo. O coração disparado enquanto remoía todas as recomendações enfáticas de seu inquilino. Elas se mesclavam as suas próprias questões. Quanto tempo ainda sofreria pela ausência de alguém que deixou explícito que não tinha qualquer interesse em seus afetos?

Seria apenas a rejeição, ou ele mesmo estava alimentando em seu coração alguma esperança que já deveria ter enterrado? Fechou os olhos por alguns instantes. De uma coisa estava certo: não tinha qualquer estrutura para jogos de poder.

Assim como Camus ele também estava em uma jornada para se tornar uma pessoa que não se envergonhasse de seu próprio reflexo. Os motivos podiam não ser exatamente os mesmos, conseguia entretanto sentir-se relacionado aos esforços que ainda não havia desvendado totalmente naquele homem. Sentia uma conexão. Todos precisam de conexão.

***

O salão estava apinhado. Mesas barulhentas, o barulho das risadas, brindes e o clima típico de um bar em uma sexta a noite. Apesar dos 3 funcionários extras, 2 no salão e um na cozinha, estava tudo bastante corrido e Isaak não pode acompanhar a movimentação da festa que se desenrolava no piso superior como gostaria. Há pouco meia noite marcou uma surpresa inesperada. Testemunhou Ikki deixando a festa. Mal pode conter o sobressalto que a visão daquela assombração lhe trouxe. Ficou feliz por não ter pedido para que Hyoga viesse lhe encontrar como fazia às vezes.

“Mas que diabos esse bosta está fazendo na festa do primo do Kanon?” — Pensou enquanto aguardava Thétis fechar a conta de uma mesa, para levar para os fregueses a bendita cobrança.

Lembrou-se da figura de Kanon algumas horas antes. Estava de tirar o fôlego como sempre. A barba por fazer era novidade, lembrou-se com carinho e certa nostalgia de diversos momentos entre eles e lamentou silenciosamente. Algumas coisas realmente não tinham como ser.

Levou a máquina de cartões e a conta para a mesa e respondeu educadamente aos agradecimentos dos clientes quando finalizada a transação.

Retornou a via do bar e a máquina para Thétis no caixa e retornou ao salão ao perceber em uma mesa algumas mulheres gesticulando animadas.

Seguiu com as atividades tentando não se perder em pensamentos. Ainda que tenha se focado em atividades acadêmicas como nunca antes um pensamento era recorrente. Dizia respeito a uma pessoa em especial.

Sentiu o frio na barriga e seu olhar foi atraído para o teto.

Não conseguia evitar, por mais que no fundo uma voz ancestral lhe provocasse com a certeza de que jamais seria bom o suficiente, uma vez que o conhecimento é revelado não há como abandoná-lo e Isaak havia aprendido algo sobre si mesmo. Restava descobrir se poderia ir adiante com isso ou se deveria afogar logo essa semente de esperança. Retirou alguns copos sujos e guardanapos da mesa depois de entregar o cardápio para as mulheres na mesa, afastou-se prometendo retornar em seguida.

Seu turno deveria terminar em breve, mas pela movimentação provavelmente seria solicitado para fazer hora extra. Em geral ele recusava. Ponderou se decidiria dessa forma nessa noite também.

No pé da escada "uma muralha" permanecia parado com ar plácido. Realmente não teria como dar uma espiada no que acontecia no primeiro andar.

Retornou sorrindo para anotar os pedidos. Por dentro decantava sua confusão. Apesar da insegurança de alguma forma sentia que alguma coisa havia se transformado, quem sabe evoluído e essa fagulha o confortava.

Chapter 41: Então você engole outra dose

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Acreditou caminhar altivo pelo salão, em uma das mesas um copo baixo contando com pelo menos 3 dedos de líquido ambarino. Em um impulso recolheu o copo e o virou boca a dentro depositando-o vazio na próxima mesa. Sentiu o calor arranhando sua garganta e no mesmo instante pareceu ter acordado. Avistou mais um copo quase cheio displicentemente abandonado na mesma mesa e este teve o mesmo destino do primeiro. Olhou para o salão e ninguém parecia ter notado sua travessura, tateou as paredes do corredor propositalmente pouco iluminado e encontrou o banheiro masculino, abriu uma fresta e escutou vozes lá dentro. Uma nova ideia genial lhe ocorreu e percebeu pouco a frente a porta do banheiro feminino. Em uma festa como aquela o banheiro das mulheres estaria com certeza vazio. Abriu a porta e sorriu orgulhoso com sua atitude. Acendeu as luzes e observou seu reflexo no espelho. Estava ainda um pouco vermelho.

— Que folgado aquele Afrodite — Disse para seu reflexo no espelho que obviamente concordou. — Sou o irmão da Noiva e ele… Ele nem é parente de ninguém!

Jogou um pouco de água no rosto e sentiu a cabeça pesar. Apoiou as duas mãos sobre a fria e escura superfície da pia evitando se encarar no grande espelho à sua frente. Alcançou algumas toalhas de papel para secar o rosto e depois as jogou no cesto de lixo.

Decididamente precisava se sentar. Talvez o segundo drink não tenha caído muito bem, era um tanto doce. Fez uma careta de desgosto para o espelho, abriu a torneira e pegou um pouco de água que bochechou em sua boca. Cuspiu. Sentiu o cômodo se inclinando alguns graus. Observou o aquela mudança e notou que o banheiro estava impecavelmente limpo. Analisou suas possibilidades. Podia se sentar no banco que ficava ao lado oposto dos espelho ou sobre a tampa de um dos vasos.

Seiya olhou novamente para seu reflexo como se aguardasse concordância e decidiu por sentar em um dos vasos, não por estarem mais perto, claro, apenas pela comodidade. No meio do caminho sentiu vontade de urinar e decidiu o fazer sentado. Fechou a porta do reservado. O assento era bastante confortável. Abriu suas calças e dedicou-se a aliviar a bexiga. Finalizou suas necessidades, se organizou com as roupas e deu descarga. Sentiu um pouco de tontura e aproveitou que a tampa estava fechada para sentar-se só um minutinho. Então ouviu o som de alguma confusão. Instintivamente abraçou os joelhos sobre o vaso e aguçou os ouvidos.

Conseguia ouvir as vozes que pareciam alteradas, mas não pelo álcool. Ao contrário do seu primeiro palpite aquelas pessoas não estavam brigando. Estavam se agarrando bem ali no banheiro! Tapou com a mão sua boca para evitar a risada que o denunciaria. Por algum motivo estava achando muita graça da situação.

 

Dentro do banheiro uma batalha de dominância se iniciava. Nenhum deles poderia culpar o álcool. Era uma loucura completamente fora da curva para ambos.

Dégel era um homem ponderado. Confiante e de certa forma até austero. Não costumava se perder em arroubos apaixonados. Especialmente com heterossexuais curiosos.

Acontece que essa era a terceira vez que encontrava com Kardia. Na primeira um esbarrão. Que lhe fez olhar atento para o homem que parecia de alguma forma conhecido. Percebeu tarde demais que havia encarado o loiro de forma bastante aberta. Nessa noite entendeu que na realidade ele se parecia bastante com o simpático irmão mais novo, Milo, esse sim com o qual já havia cruzado em alguns eventos da escola. Aiolos sempre convidava seus familiares e vez por outra Aiolia aparecia acompanhado de Milo e as vezes de um dos gêmeos, não sabia dizer quem era quem.

Então no dia do esbarrão na cafeteria de sua livraria preferida Kardia o olhou com curiosidade, em retorno ao seu próprio olhar. Talvez um magnetismo tenha quase despontado, desculpando-se Dégel deixou o local rapidamente. Estava quase se atrasando para uma reunião na Escola. Semanas se passaram antes que se vissem novamente, mais uma vez por acaso.

O segundo encontro havia sido no Parque Central, local escolhido por Dégel para ler em uma manhã de sol e onde Kardia estava correndo, mesmo não sendo um hábito seu, já que preferia correr em locais menos movimentados. Naquela manhã, no entanto, obedeceu o ímpeto de ir para o parque e não podia estar mais satisfeito por ter seguido sua intuição e naquele dia Kardia havia puxado assunto. Conversaram por alguns minutos, antes que Dégel determinasse o fim do encontro. Aproveitou a companhia. O olhar caloroso, a aura passional. Uma cantada barata sobre destino, a qual respondeu que se houvesse um terceiro encontro aí sim ele poderia considerar como obra do destino. E lá estavam.

Seu coração falhou uma batida quando viu aquele homem na festa de Aiolos.

Não precisou de muito para entender de quem se tratava. Quando foi apresentado reconheceu o nome na hora. O amigo professor sempre falava de seus familiares.

Aiolos já havia citado inclusive que Kardia e Saga, um dos gêmeos, tinham uma firma de advocacia e que ambos estavam preparando alguma surpresa para sua despedida de solteiro.

O Diretor da Escola não sabia ainda do que se tratava, surpresa alguma superaria, ao menos para ele, a entrega daquele homem.

Kardia o seguiu até a entrada do banheiro e o puxou para o banheiro feminino, olhou em volta e conferiu que estava vazio.

— Está bom de destino para você? — Se aproximou e sorriu como um predador — É a terceira vez.

— Talvez. Certamente é. Devo presumir que você atribui algo místico a isso?

— Os Deuses sabem o que fazem, caro Diretor. Existe a vontade Deles e ainda o nosso livre arbítrio. Eu, sei muito bem o que desejo agora.

— É a festa de seu primo, Advogado. Não pega bem ficar cerceando a liberdade de outros convidados ou puxando-os para o banheiro feminino em uma festa onde todos os convidados são homens…

— Pode ser nossa festa também — Falou olhando fixamente para a boca de Dégel — Pega bem sim. Garanto a qualidade da pegada.

— Aiolos é um dos meus melhores amigos, se você não pensa nas implicações de seu momento de curiosidade — Foi interrompido por Kardia que se afastou um passo claramente ofendido

— Como assim? Acaso acha que isso é algum capricho? Que não me importo com Aiolos, meu amigo, família que conheço por toda vida? Olha para mim. — Manteve o olhar magoado fixo nos olhos castanhos de Dégel — A primeira vista, eu me apaixonei. Isso nunca me aconteceu. Nunca. Longe de você meu coração parece a ponto de explodir.

Kardia falou solene, com a mão direita sobre o lado esquerdo de seu peito.

Dégel sentiu um frio correr-lhe a espinha. Aquele homem tinha olhos muito intensos. Olhar no fundo daqueles lagos de um azul quase escuro e misterioso era como olhar para um ser de natureza selvagem, místico quem sabe… Não podia se deixar levar. Era um homem racional, um educador e acadêmico.

Não um jovenzinho que compraria um discurso passional de alguém que obviamente só queria foder com sua vida, literalmente foder.

— Kardia, você bebeu?

— Pedi um drink e ele está intacto na mesa. Não bebi nada. É esse o seu receio? — Já estava novamente próximo.

— Você não é gay…

— Eu não era. Ou não sabia que era. Dégel — O nome dançou em seus lábios e acariciou os sentidos do Diretor da escola — Me dê uma chance… Eu me apaixonei por você.

— Permaneça uma hora sóbrio e poderemos conversar a respeito… Combinado?

— Sim… Você não vai nem me dar um beijo? — Falou se aproximando ainda mais de forma sensual. — Por favor...

Um longo e pesaroso suspiro deixou os lábios de Dégel antes que ele em um só movimento erguesse o corpo de Kardia o erguendo e posicionando sentado sobre a pia e o agarrasse para um beijo que não só surpreendeu como basicamente fez o advogado derreter em seus braços.

Era infinitamente melhor do que jamais pode sequer projetar. Estava perdido. Perdidamente apaixonado.

Dégel nem tirou os óculos para o beijar. O deixou sem fôlego sentado na pia, levantou um dedo simbolizando o número um e lhe dedicou um olhar safado cheio de promessas. O Diretor saiu do banheiro.

Kardia estava sem ar, afogueado e tremendo.

Apenas uma hora o separava de seu destino. Aiolos e sua família o entenderiam. Milo sempre entrou e saiu de relacionamentos, constantemente falando sobre amor e paixão e a ele sobrava o papel de ser o desgarrado. Nunca nenhuma mulher havia lhe despertado esse lado. Sabia que era uma pessoa passional, mas descarregava toda esse energia no trabalho, nos estudos e nas amizades.

Porém, desde que viu aquele homem pela primeira vez uma chave virou em seu interior. Era a ignição de algo impressionante e que mudava toda a sua programação mental. Cada detalhe de Dégel, o formato de suas mãos. Seu nariz estreito, os olhos castanhos quase puxados, os cabelos da mesma cor, finos esvoaçando enquanto caminhava apressado. O corpo… O corpo que ele sentiu há pouco contra o seu. Era um homem em todos os melhores aspectos que o conceito pudesse compreender e Kardia estava sim apaixonado por ele.

O beijo que trocaram, o sabor daquela boca, o frescor da pele de Dégel, a voz e a força dele… Tudo isso apenas reforça o que ele já sabia.

Remanescia agora uma lacuna a ser preenchida: Dégel tinha que se apaixonar por ele também.

Olhou para a porta que se fechava com a saída tranquila do Diretor. Levou uns segundos ainda respirando fundo antes de confiar em suas pernas e descer do balcão da pia para também deixar o cômodo. Sorriu confiante, aguardou alguns momentos e saiu.

 

No reservado Seiya permanecia estático e parecia pensativo, olhava para a porta fechada abraçando os próprios joelhos. Ele ainda não estava pronto para admitir, mas também desejava mais do que tudo se apaixonar.

***

A ideia de beber um refrigerante havia sido ótima, o açúcar o animou ainda mais e Kanon levantou para dançar. Olhou para Julian e estendeu a mão, o dono do bar apenas negou com a cabeça e continuou prestando atenção na conversa que se desenrolava entre Aiolos, Milo e Kardia que havia se sentado com eles muito animado.

Kanon se viu ligeiramente incomodado mediante a recusa, deteve por alguns segundos o olhar em Julian, soltou o ar pelo nariz de forma ruidosa em um gesto contrariado e por fim deu de ombros esquadrinhando o salão em busca de um novo parceiro de dança.

O sorriso enviesado que ostentava desde o momento em que seu nível etílico atingiu um patamar no mínimo curioso, alargou-se ao identificar a face que fazia com que tivesse a nítida impressão de estar mirando um espelho. Mesmo que nesse momento a barba cumprisse seu papel e tornasse mais fácil identificá-los.

Em outros tempos, fitar aquele rosto já lhe causou irritação, raiva e até ciúmes, na mesma medida em que lhe despertava carinho, companheirismo e amor. Nesse instante ele trazia a tona a saudade que guardava dentro de si. E foi tomado por esse sentimento que Kanon se dirigiu a mesa, com encantadoras passadas ritmadas, embalado pela música que tocava e estendeu a mão a Saga parando ao lado dele. O gêmeo três minutos e trinta e três segundos mais velho, analisou brevemente a mão estendida e retribuindo o sorriso aceitou o convite, olhando brevemente para Afrodite que apoiou o rosto nas mão e observou os dois com um olhar enigmático. Um misto de curiosidade e… Algo mais.

— Dança com a gente? — Kanon perguntou esticando a outra mão. — Você é tão bonito! — Sorriu primeiro para Afrodite e depois para Saga, que apenas balançou a cabeça concordando.

— Vejam só, a lisonja é de família. — Afrodite respondeu em um tom carinhoso. — Hoje eu vou só observar, meu querido. Você diz que sou bonito, mas não é todo o dia que eu vejo tanta beleza, ainda mais em dobro. Vocês sim são lindos!

— Viu, Saga, somos lindos! — Kanon falou rindo. — Gostei do seu namorado.

Saga piscou um olho para Afrodite e se deixou puxar pelo irmão. A música dançante que tocava deu lugar a uma balada mais calma e Kanon enlaçou os ombros do gêmeo enquanto guiava a dança.

— Vai me deixar guiar? — Kanon questionou sacana.

— Claro irmãozinho. — Respondeu no mesmo tom. — Digamos que hoje estou muito bem humorado e você pode fazer o que quiser.

— Aaaah, eu quero te ver mais Saga. Você some, estou com saudades. A única coisa conveniente de ter uma irmão gêmeo seria a tal conexão e a proximidade, mas nem isso… — Fez um muxoxo desviando o olhar.

— Ei… — Saga o chamou. — Desculpe. Você tem razão. Mas você sabe como eu sou. Tem momentos em que nem o Kardia me vê direito, e olha que trabalhamos juntos. — Sorriu. — Você só precisa saber que nada disso muda o fato de que você é meu irmãozinho, e que sempre estarei aqui pra você. Inclusive acho que você deveria maneirar na bebida.

— Todo mundo tirou a noite para me dizer isso. — Fez um bico quase infantil que tirou uma gargalhada alta do irmão. — Julian só fica dizendo que vai me levar embora, que estou bebendo demais, que tenho que maneirar.. — Fez uma careta.

— Tenho outra sugestão, então. Beba, beba bastante e depois caia de boca em cima do Julian, que tal? — Sussurrou no ouvido do irmão. — Vai que a bebida dá o empurrão necessário. — Essa foi a vez de Kanon gargalhar com a sugestão e balançar a cabeça em concordância.

Os dois lançaram olhares maliciosos na direção de Julian, que mesmo de costas, passou a mão pela nuca, como se sentisse que estava sendo observado. Riram mais uma vez ainda em meio a dança, sendo acompanhados por Afrodite e Shura.

— Definitivamente não é todo dia que eu vejo isso… — Afrodite falou em um tom baixo, como se falasse consigo mesmo.

— Nem me fala. — Shura respondeu sério. — Os conheço há alguns anos e ainda sim não me acostumei completamente.

— Belo ciclo social esse seu, hein. — Comentou sem tirar os olhos de Saga.

— Realmente não posso reclamar. — Trocaram um sorriso breve e continuaram a observar os gêmeos que dançavam, riam e trocavam cochichos.

A atenção de Kanon foi captada quando notou que Dohko e Defteros pareciam empreender uma competição de quem consumia mais doses de tequila. Segurou o queixo do irmão e virou o rosto dele na direção do bar e soltou mais uma sonora gargalhada, que foi prontamente acompanhada seguida de um “Faça as honras, meu irmão. Vamos ver até onde você consegue ir.”

Julian virou a cabeça ao ouvir a risada dos dois gêmeos misturadas e captou o olhar malicioso de Kanon. Respirou fundo, tentando somatizar toda a calma e autocontrole que conseguia evocar. Franziu o cenho ao ver que o biólogo puxava Saga em direção ao bar e notou o sorriso debochado que o gêmeo mais velho lançou em sua direção.

 

O noivo acompanhado dos primos mal pode conter a gargalhada com o desenrolar da cena protagonizada pelos gêmeos. Aiolia se aproximou deles e tratou de emendar a piada

— Achei que era o momento da valsa dos irmãos e vim conferir. Mas, pelo jeito o apelo da tequila foi maior. — Indicou com o polegar a aglomeração ao lado do bar.

— Que coisa linda de se ver não é mesmo? — Milo disse apontando pro irmão — Não quer dançar comigo?

— Quero dançar Maçãzinha, mas não com você. — Ergueu o copo em um brinde maroto. Aiolos e Aiolia deram de ombros. — Chama o Aiolia, vocês viviam aos abraços na adolescência, quem sabe não reacende a velha chama.

— Ta com ciumes, Kardia? Eu te abraço também! — Aiolia disse apertando a bochecha do mais velho que o afastou com um safanão teatral.

— Não queimem meu filme, seus moleques. — Respondeu Kardia enquanto ajeitava sua camisa e olhava para um canto mais afastado do salão.

Enquanto um corado Milo e Aiolia riam e se abraçavam enquanto se lembravam de alguma história da juventude, Aiolos seguiu a direção do olhar de Kardia e ergueu uma sobrancelha relativamente surpreso com o alvo das atenções do irmão mais velho de Milo. “Por essa eu não esperava… Mas se for pensar bem faz bastante sentido. O equilíbrio perfeito” — Pensou maquinando alguma forma de facilitar esse encontro. Já tinha percebido o flerte de Kardia, que não se interessava em ser sutil, mas encontrar o olhar de Dégel retornando essa dedicação era um fator novo e muito agradável. Aiolos desviou o olhar, quando o grupo de primos se encaminhou para o bar para acompanhar seja lá o que estava acontecendo lá que rendia gritos de torcida ele resolveu ir até Dégel, quem sabe pudesse finalmente ajudar o amigo a se divertir.

Saga olhou rapidamente para a mesa e viu que Afrodite acompanhava seus movimentos com um sorriso divertido, enquanto trocava algumas palavras com Shura que parecia incrivelmente à vontade em sua companhia.

Focou na conversa animada que o irmão iniciou e quando percebeu estava fazendo as vezes de juiz juntamente com Defteros e computando quem virava mais doses de tequila em maior velocidade. Contrariando todas as expectativas e mostrando uma resistência invejável Dohko virava uma dose atrás da outra, sem esquecer do sal e do limão, enquanto mantinha um sorriso quase maroto no rosto jovial.

As risadas e a fala alta chamaram a atenção dos convidados que basicamente se posicionaram ao redor dos dois homens, notando que há muita já existia um vencedor naquela competição. Saga percebeu o momento em que Julian se aproximou e tentou de forma discreta chamar a atenção de Kanon.

— Muito bem irmãozinho… — Falou mais alto. — Acho que já temos um vencedor. O que acha Defteros?

— Sem dúvida, Saga. Desculpe Kanon, mais o velhote aqui… — Apontou para Dohko. — Ganhou disparado.

— Como assim, velhote? — Dohko perguntou em meio ao riso. — E agora que ganhei essa competição de forma justa, qual será meu prêmio? — Questionou olhando as garrafas de bebidas dispostas no bar. — Olha eu acho que...

A fala de Dohko foi interrompida e um assovio alto da parte de Saga seguida de uma risada e um “Se deu bem, meu velho”, da parte de Defteros foi ouvido quando Kanon inesperadamente se inclinou dando um selinho nele. Os demais convidados permaneceram em silêncio aguardando a reação daquele que praticamente era um dos poucos ali que não estava acostumado com o que poderia ser definido como “Kanon carinhoso.”

O biólogo lançou o melhor sorriso que as inúmeras doses de tequila o deixavam demonstrar, assim que separou os lábios e encarou os olhos escuros que mantinham-se arregalados.

— E então, gostou do prêmio?

— Bom… — Pigarreou. — Não esperava, mas, da onde eu venho acreditamos que as coisas precisam ser feitas por completo. Sem a língua não tem graça, Kanon. — Gargalhou. Sua risada desanuviando o pequeno clima de tensão que se instaurou por alguns segundos. — Já que você é o prêmio tem que fazer isso direito, não acha? — Piscou dando um sorriso lascivo.

— Não seja por isso… — Inclinou-se mais uma vez, mediante o olhar divertido de Dohko e dos demais.

— Kanon! Chega disso! — Julian falou contendo a irritação e segurando o cotovelo do outro o encaminhou para longe do bar.

Defteros e Dohko começaram uma nova disputa e Saga caminhava de volta para a mesa na qual Afrodite e Shura conversavam animadamente, enquanto observava seu irmão mais novo sendo conduzido pelo próprio Imperador.

— Definitivamente está bom de bebida para você, Kanon. Onde já se viu… Beijar o Dohko! O homem mal entrou para essa família e você já o recebe assim?

— Acho que é uma bela forma de receber as pessoas. — Sorriu.

— Kanon… Você não sai do meu lado, entendeu? — Falou de forma enérgica colocando uma das mãos no braço do outro. — Depois reclama que eu deixei você passar vergonha, mas não me obedece… Inferno. — A última palavra quase inaudível, Julian não costumava usar esse tipo de artifícios em suas narrativas.

— Isso é uma ordem? — Encarou a mão em seu braço sorrindo em seguida.

— E se for? — Aproximou-se de forma desafiadora.

— Huuum… Não posso dizer que me desagrada. Tudo bem senhor Solo… — Lançou um olhar profundo e significativo, dando mais um passo em direção a Julian. — Não sairei mais do seu lado. Espero que saiba lidar com isso e assuma a responsabilidade.

 

Dégel acompanhou a aproximação do Noivo sabendo que ele havia captado no ar que algo se desenrolava com seu primo.

— Por que está aqui sozinho, Dégel? Achei que estaria mais entrosado…

— Estava mesmo pensando em falar com você — Buscou o olhar do amigo com franqueza. — Lembra do história do “Cara do Parque” ?

— Hurrumm — Aiolos concordou até que o entendimento o atingiu e um imenso sorriso se fez em seu rosto. — Você está me dizendo que ele… Ele é o Kardia?

— Droga Aiolos, fala mais baixo. — Disse o Diretor da escola olhando em volta para ver se mais alguém havia escutado aquilo.

Ele tinha acabado contando para Aiolos sobre o tal Cara do Parque e suas cantadas misteriosamente charmosas. Falou para se esquivar dos amigos tentando lhe arrumar algum parceiro. Bom, lá estava ele frente a frente com o primo do tal cara que agora sabia ser Kardia.

— Eu não poderia estar mais surpreso e feliz… — Interrompeu sua fala ao acompanhar o olhar analítico que Dégel lançava sobre seus óculos em direção ao bar. — Talvez exista algo que me surpreenda mais, afinal…

Lá agora estava no centro das atenções um desenvolto Dohko girando no ar sua camisa antes de lançá-la no rosto de Defteros. Os homens à volta estavam agitados e rindo cada vez mais alto.

— Pois eu sou um homem de palavra, senhores. — Dohko falava de forma teatral enquanto olhava para sua recém formada platéia.— Não costumo perder em competições alcoólicas, mas encontrei um oponente a altura. — Fez uma mesura para Defteros que repetiu o gesto contendo o riso. — E agora cá estou descamisado.

Um coro de risadas foi ouvida, enquanto Defteros passava o braço pelos ombros de Dohko agradecendo internamente por ter ido a despedida. Parece que alguns dos familiares da noiva eram mesmo gente boa e Aiolos tinha feito uma escolha acertada.

Enquanto as risadas aumentavam alguns decibéis, Io tentava da melhor forma possível passar em meio aos convidados e recolher os diversos copos de dose que estavam espalhados pelo balcão do bar e das mesas. Sorento parecia se ocupar da mesma tarefa e os dois trocaram olhares no momento em que Io sorria curioso ao reparar o enorme tigre tatuado nas costas de Dohko. Pararam um ao lado do outro, a bandeja cheia de copos vazios.

— Animado esse grupo, hein. — Io comentou em um tom divertido. — Olha que tatuagem linda nas costas daquele ali. Muito bem feita, não acha?

— Não entendo de tatuagem… — Comentou sincero analisando as costas do convidado. — Mas o desenho é muito bonito mesmo. Tão quanto a sua.

— Não sabia que gostava da minha tatuagem Sorento. — Deu uma cotovelada de leve no colega de trabalho. — Não me parece o tipo de coisa que te agradaria.

— Sempre acho graça da visão que vocês tem de mim. — Sorriu de lado.

Por mais que não quisesse admitir, mais surpreendente do que a tatuagem do homem que agora parecia incitar os demais a continuar com mais uma rodada de competições, eram as atitudes que conseguia registrar no “Loiro alto do Isaak”.

Há pouco testemunhara o homem trocar um beijo com o moreno da tatuagem. Estava ocupado levando mais um drink para a mesa na qual um homem de aparente sotaque espanhol conversava com um dos tipos mais bonitos que já tinha visto em sua vida, quando foi pego de surpresa ao identificar que Kanon não parecia se comportar como havia mapeado em outros momentos em que pode observá-lo no Imperador. Não pôde conter o espanto e somou ao escopo de atitudes no mínimo contraditórias que estava identificando naquele sujeito.

Isaak podia fazer o típico espírito livre, mas jamais sonhou que fosse tanto. Na verdade, sequer acreditava que fosse realmente esse o caso, levando em conta que havia sido abordado anteriormente com a estapafúrdia exigência de uma explicação sobre algo relacionado a um número de telefone. Não, definitivamente Isaak não estaria de acordo com o peculiar comportamento que estava presenciando. Um comichão começava a criar corpo, na mesma medida em que a curiosidade se aflorava.

Franziu o cenho ao notar mais uma vez a proximidade de Kanon com Julian e se pegou pensando no beijo que havia compartilhado com o charmoso Ciclope, na sutil mudança de comportamento, no rosto corado e prendeu a respiração no momento em que a voz de Io chegou aos seus ouvidos.

— Acho que cada um lida da sua forma, não é mesmo? Não sabia que a relação dele e do Isaak era tão profunda.

— Desculpe Io, eu me distrai por alguns segundos. Pode repetir, por favor?

— Claro. — Sorriu. — Isaak e o bonitão ali, não estão mais juntos. Acho que por isso ele está bebendo tanto.

— Desde quando? — Questionou com indisfarçado interesse.

Chapter 42: Meio segundo de divindade

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Io alargou o sorriso antes de responder, tinha fisgado o peixe. Seu comentário não tinha sido tão despretensioso como queria aparentar. No final das contas, esperava que os colegas se acertassem de uma vez por todos. Ainda conseguia lembrar do primeiro dia de Sorento no bar e do interesse mútuo que identificou entre os tipos tão distintos.

— Não sei ao certo. Bian deve saber melhor, mas… Acho que já tem mais de uma semana. De qualquer forma… — Mexeu na gravata afrouxando o nó. — Já passou da hora, não concorda comigo Sorento?

O flautista sorriu, sim, já tinha passado e muito da hora. Agora precisava recuperar o tempo perdido, foi o que pensou enquanto observava o irmão do Noivo começar a movimentar o que parecia ser a grande atração da noite. Conferiu o relógio de pulso e suspirou. Provavelmente teria que esperar um pouco mais.

— Poucas vezes concordei tão vigorosamente com alguém. — Sorriu minimamente. — Mas acho que ainda vou precisar de mais tempo. — Apontou discretamente para os convidados. — Algo me diz que eles não estão preocupados com o horário de encerramento da festividade.

— Bem… Ao menos vocês vão sair desse impasse. — Encarou Sorento. — Na verdade nunca entendi o motivo dessa enrolação de vocês. Estava na cara, desde o primeiro momento, que pelo menos desejo vocês sentiam um pelo outro... Sempre achei que poderia virar algo mais. — Olhou a movimentação dos convidados. — Vamos, parece que o show vai começar.

Encaminharam-se na direção do bar e ficaram posicionados. De acordo com a orientação que haviam recebido previamente, quando o show começasse deveriam suspender temporariamente o serviço e aguardar. Registraram o andar cambaleante e o rosto nauseado do rapaz que parecia ser o integrante mais jovem do grupo, pelo que podiam lembrar do dossiê entregue por Thétis era o irmão da noiva. Io riu discretamente e Sorento olhou o jovem com certo desdém, certamente aquele ali não conseguiria aproveitar completamente o show.

***

Trocaram silenciosamente um olhar que indicava a hora mais aguardada da festa, ao menos para aqueles que estavam envolvidos na linha de da organização.

Julian tratou de desligar o aparelho que projetava um sem número de fotografias que narram toda a vida de Aiolos, mesmo por que naquela altura do campeonato e depois das performances de Kanon e Dohko ninguém mais estava prestando atenção na projeção.

Shura encaminhou o Noivo para seu lugar de honra, Dégel os acompanhou.

Aiolia seguiu para o camarim. Alguns minutos depois ele retornou com um sorriso misterioso e a luz se concentrou no pequeno palco onde perceberam já se encontravam três mulheres se apoiando no típico poste de pole dance.

Dohko e Kanon comemoraram ao mesmo tempo. O primeiro com um potente "Urruhhh" e o segundo com um assobio muito alto. Pelo jeito ambos eram a alma da festa.

O restante dos outros convidados bateram palmas.

No palco seguindo o ritmo de uma música densa e sensual as três silhuetas se destacaram. Elas dançavam suavemente indo e vindo no palco. Deslizando como a flutuar, se alternando entre giros de impressionante leveza no poste e uma ao redor da outra.

Aiolos não sabia para onde olhar. Imaginou que seus primos pudessem arrumar algo nesse sentido, mas havia pedido para que o irmão mantivesse as coisas sob rédeas curtas. Pelo jeito Aiolia também pretendia que a noite fosse memorável. Ele e Milo já estavam de pé dançando. Uma das moças efetuava algumas poses no poste que podiam ser classificadas como acrobacias. Segurava todo peso do corpo em um ângulo peculiar que produzia um efeito muito plástico entre sua perna e a barra de metal. De cabeça para baixo.

Ela se movimentava esticando as pernas e se posicionando de diversas formas, a peruca vermelha esvoaçante. As outras duas uma mulher alta com peruca prateada, assim como suas roupas e sapatos, se movimentava no fundo do palco e a outra mais baixa com peruca azul desceu do palco se aproximando sensualmente do Noivo.

Aiolos não pode evitar engolir em seco, era uma mulher muito bonita. Olhou em volta em busca de socorro. Estava ladeado por Shura e Dégel. Um pouco distante Aiolia e Milo haviam interrompido sua dança particular para observar o momento que ao que tudo indicava não era nada espontâneo.

Ele acompanhou os movimentos fluídos com que ela executava cada passo, cada gesto. Se aproximando muito devagar. Shura bateu levemente em seu ombro mal contendo o brilho malicioso em seu olhar, algo que não transparecia levianamente

— Aiolos, meu amigo, boa sorte! — Afastou-se e Dégel o seguiu cobrindo a boca com uma mão disfarçando seu sorriso ladino.

Antes que pudesse sequer protestar notou que a mulher com a peruca azul já estava praticamente a sua frente. Respirou fundo, aguardando o próximo movimento dela, enquanto definia se tinha ganas de estrangular o irmão ou de lhe dar um forte abraço.

Acomodaram-se em uma das mesas e passaram a acompanhar os movimentos quase felinos e bem orquestrado das dançarinas. Dégel desviou o olhar, no momento em que a mulher mais alta, de peruca prateada deslizou a mão pelo próprio corpo insinuando tirar a primeira peça de roupa, em um movimento sensual.

Para sua surpresa seu olhar encontrou com o de Kardia, que parecia mais interessado em suas reações do que no desenrolar do show, o que o assaltou de forma positiva. Enquanto mantinham-se perdidos naquela troca de olhar, embalados pela melodia contagiante da música e por todo o clima de sedução que as dançarinas empreendiam em sua tarefa, não notaram que eram observados por um outro par de olhos, que não disfarçava sua surpresa.

— Essa pra mim é uma novidade… — Milo murmurou acompanhando o flerte nada discreto do irmão.

— O que seria novidade? — Aiolia questionou apoiando a cabeça em seu ombro. Permaneceram lado a lado, após a dança particular que inexplicavelmente empreenderam um para o outro.

— Kardia… — Milo respondeu em um sussurro corando levemente. — Parece muito interessado no tal Diretor. Não sabia que ele… Bom… — Deu de ombros.

— Acho que tem muita coisa que você não sabe Milo… — Falou próximo ao ouvido dele. — As pessoas podem mudar de opinião, descobrir coisas novas, ou simplesmente se apaixonar. Você melhor do que ninguém deveria saber disso.

— Tem razão Leãozinho… — Riu passando a mão pelo cabelo de Aiolia. — Você fez uma bela escolha com relação às moças. São lindíssimas e dançam muito bem.

— Habilidade refletida? — Questionou sustentando a ambiguidade da pergunta.

— O que quer dizer com isso? — Milo perguntou encarando o rosto do primo que permanecia encostado em seu ombro.

— O que você acha? — Sorriu. — Vem, vamos sentar ali. — Apontou para a mesa na qual Julian e Kanon estavam sentados.

Milo pendeu levemente a cabeça para o lado, mordeu o lábio inferior e seguiu Aiolia, sentando ao lado dele. Talvez, assim como Kanon, já estivesse exagerando… — Pensou enquanto afastava um copo para o centro da mesa. Respirou fundo e tentou se concentrar no show. A mulher de peruca prateada agora também andava entre os convidados, não tocava nenhum deles, como se avaliasse qual seria seu próximo passo.

Na outra ponta do salão, Afrodite mantinha o olhar vidrado no movimento que a dançarina de peruca vermelha fazia na barra de pole dance. Ela se agarrava de forma tão vigorosa ao objeto que seria impossível não acompanhar aquele movimento com uma boa dose de interesse e luxúria. Saga analisou a face do “amigo”, enquanto ele estreitava os olhos e dava um sorriso enviesado cada vez que a “ruiva” deslizava pela barra.

— Ao que parece você está gostando do show. — Sussurrou aproximando-se de Afrodite.

— Muito. — Olhou para Saga. — Aprecio as diversas manifestações artísticas… Além disso… — Aproximou o rosto olhando com desejo a boca do outro que continha um sorriso safado. — Gosto muito de corpos desenvoltos, ainda mais despidos de roupa.

— Muito me agrada saber disso. — Alargou o sorriso. — Será que também posso te mostrar minha desenvoltura?

— Você consegue fazer aquilo? — Apontou para a moça deslizando mais uma vez pelo pole dance e parando em uma pose provocante.

— Sou bom nesse movimento… — Passou a língua pelos próprios lábios. — Acho que ele te interessa bastante…

— Veremos. — Afrodite decretou com um olhar intenso para Saga. Ergueu o queixo levemente e voltou sua atenção para a mulher que agora caminhava ao lado deles.

Ela observava a todos com calma. Um sorriso muito suave em seu rosto delicado, olhos cinzentos e a pele brilhando, provavelmente pela aplicação prévia de glitter.

Defteros e Dohko sorriam largamente analisando o movimento das dançarinas e pela primeira vez desde que havia deixado o rapaz aos cuidados de Shura, lembrou da existência de Seiya. Olhou rapidamente ao redor e percebeu que o irmão de Seika estava esparramado em uma das cadeiras, diga-se de passagem em um ângulo muito estranho para alguém que estava apreciando o show. Apertou os olhos tentando enxergar melhor e notou que ele estava dormindo. A boca aberta e podia jurar que via uma linha de baba escorrendo por seu rosto. Colocou a mão na boca para segurar a gargalhada e cutucou o braço de Defteros apontando na direção do jovem. Este olhou para o local apontado por Dohko e seguiu o exemplo dele segurando o riso.

— Parece que aquele ali não vai ver um peitinho tão cedo. — Dohko comentou divertido.

— Não sei se sinto pena dele ou alívio por você. Imagina esse moleque presenciando tudo isso? Poderia até surtar…

— Não seria difícil! A última teta que aquele ali viu foi a da próxima mãe.

Os dois homens pararam de rir ao perceberem que a dançarina de peruca prateada parou em frente a eles e com um movimento de mão fez com que Dohko se levantasse. Acompanhou a mulher ouvindo um sonoro: “Vai lá Tigrão!”, seguido da risada de Defteros.

Shura mantinha o olhar malicioso enquanto registrava o clima geral da despedida. Ao que parece não seria apenas Aiolos que se daria bem aquela noite, constatou ao notar a significativa troca de olhares entre Dégel e Kardia. Conhecia muito bem o que aquilo indicava, não andava ele mesmo lançando aquele tipo de sinal? Involuntariamente deu um sorriso triste ao registrar que conhecia um certo alguém que também se divertiria em meio aquela balbúrdia e na cadência ritmada do movimento das dançarinas. Soltou um longo suspiro e conteve o ímpeto de pegar o celular e verificar se havia alguma mensagem.

Dégel desviou brevemente do par de olhos azuis que lhe dedicavam as mais devassas promessas e mirou por alguns segundos o homem ao seu lado.

— Algum problema, Shura? — Questionou empurrando os óculos de grau.

— Nada que mereça sua atenção. — Sorriu minimamente. — Acho que Seiya vai ficar muito decepcionado quando acordar. — Apontou para o jovem jogado em um das mesas. — Se não fosse a música acho que poderíamos ouvir os roncos dele.

— Não tenho dúvida disso. — Acompanhou o sorriso discreto. — Você parece uma pessoa muito paciente. Ao menos lidou com tranquilidade com o jovem cunhado de Aiolos.

— Trabalhamos na mesma empresa, ele é estagiário. Conheço um pouco a figura.

— Mesmo? A empresa abrange qual área de atuação? — Questionou tentando desviar do olhar cobiçoso que sabia cair sobre si.

— Engenharia Ambiental. — Shura respondeu rindo.

Sabia muito bem o objetivo daquela conversa. Quantas vezes já havia iniciado diálogos com o único objetivo de escapar das intenções de Ângelo. Caso Dégel lhe desse liberdade, poderia atestar que aquela não era uma tática eficaz.

— Você é engenheiro? — Ergueu uma sobrancelha.

— Não, geógrafo. — Coçou a cabeça. — É uma longa história… — Fez um gesto vago com as mãos. — Mas basicamente eu reviso os relatórios da equipe técnica.

— Nunca pensou em lecionar? Ao menos a paciência para lidar com alunos e pais você parece ter.

— Sinceramente… — Pensou por alguns minutos. — Já sim. Mas não fui muito feliz nas buscas.

— Bom… — Dégel tirou um porta cartões de visita do bolso e entregou um a Shura. — Guarde o meu cartão. Caso decida em algum momento tentar ingressar no magistério, basta me procurar.

Shura olhou o cartão, sorriu largamente e guardou dentro da carteira.

— Vou pensar com carinho. Não posso dizer que realmente me agrado do meu atual trabalho.

— Pode começar a pensar em trocar se não há nada que te agrade nele.

— Sim… — Mordeu o lábio inferior. — Vou pensar com cuidado. — Registrou o olhar felino de Kardia. — Acho que o show não deve se delongar por muito tempo.

— Acredito que não… Em breve vou embora. Planejei ficar por mais uma hora… O tempo já está passando...

Trocaram um sorriso significativo e Shura não pôde deixar de lembrar que o comportamento de Kardia fazia com que recordasse as atitudes de um decidido e sedutor Italiano.

Balançou a cabeça espantando o pensamento e tentou focar a atenção no show que se desenrolava.

Por motivos que não eram segredo para ninguém, a apresentação das jovens não lhe causava a mesma reação que em Aiolos, que nesse momento olhava para os lados como se buscasse socorro, ao ter a dançarina de peruca azul concentrando suas atenções completamente nele.

O Noivo teve um sobressalto quando a mulher se inclinou dando-lhe uma visão profunda do decote de sua parca vestimenta e na sequência o cobrindo de pétalas de rosas e glitter que ela tirou de algum lugar misterioso que ele não soube mapear. Engoliu em seco ao ouvir a voz doce em seu ouvido:

— Parabéns pelo casamento — A moça virou o rosto que ele tentava desviar e sorriu com uma malícia delicada que quase o convenceu — Vamos somente até onde você quiser, tudo bem? — Ele apenas concordou com a cabeça.

Aiolos pensava que era sua despedida de solteiro e podia se divertir, sem trair a confiança de sua noiva, obviamente, mas era sempre ela a primeira a dizer que apreciar a beleza de outras pessoas não era em si traição, que o problema residia nas intenções das pessoas, em enganar o outro. Tentou se concentrar na voz de Seika em sua mente. A jovem sentou-se inesperadamente no seu colo e ela era forte apesar de leve, pois com um movimento firme colocou as duas mãos do grego em sua cintura. Olhou para trás, ele parecia bastante dividido entre aproveitar o momento e sair dali correndo, a dançarina ergueu-se e dançou um pouco antes de novamente baixar o corpo rebolando lindamente no colo de Aiolos, acompanhando o ritmo da música.

Dohko foi levado até o palco, aparentemente escolhido por estar sem camisa. As duas dançarinas passaram a coordenar movimentos sinuosos entre ele e o poste. Logo a moça com a peruca vermelha tirou uma peça de renda transparente que se moldava em seu corpo pouco escondendo e passando isso pela nuca do moreno. Ele era só sorrisos entusiasmados e uma impressionante habilidade para acompanhar os movimentos da dançarina que sorria ela também iluminando seu belo par de olhos azuis.

***

Ajeitou automaticamente os cabelos encarando seu reflexo no espelho do elevador. Assim que saiu no décimo primeiro andar avistou Camus na porta do apartamento. Era um edifício luxuoso, apenas 2 apartamentos por andar. Não pode conter o sorriso mínimo que curvou seus lábios.

— Ikki! Pelo tom que Sorento usou imaginei que ele estivesse no trabalho, e não em casa… Aconteceu algo? — Estendeu a mão para cumprimenta-lo e o convidou a entrar.

— Ele estava no Imperador, e coincidentemente eu também…

— As coincidências dessa Cidade parecem se agradar da presença de nosso querido Flautista. Entre fique a vontade. Estou aquecendo uma torta, e pretendia servir uma salada, mas não consigo abrir o vidro de palmito. — Fez uma careta olhando para o braço imobilizado. — Espero que esteja com fome.

— Preciso tirar os sapatos Camus?

O dono da casa pareceu considerar profundamente por alguns instantes aquela pergunta. Ikki franziu o cenho, não entendeu o motivo mas aquilo pareceu despertar em Camus algum desconforto.

— Faça como quiser… — Falou com certo pesar. — Não há nenhuma regra. — A frase continha um “quê” de liberdade. Algo comparado a sensação juvenil de cabular uma aula.

Ikki preferiu tirar seus sapatos, manteve as meias escuras. Camus percebeu isso e sentiu algum divertimento. O último homem que esteve em sua casa havia feito o mesmo. Era novidade para ele receber em seu templo pessoas que mal conhecia. Estranhamente, assim como tinha acontecido na visita de Kanon, há algum tempo, ter Ikki ali também não lhe trazia nenhum desconforto.

— Quer algo para beber? — Questionou fechando a porta assim que Ikki entrou.

— Pode ser… Suco se tiver.

— Tenho, de uva, para matar minha vontade de vinho. Gosta?

— Sim. De ambos. — Ikki respondeu caminhando pouco atrás dele, olhando discretamente o cômodo.

— Quer beber vinho? — Apontou o pequeno móvel que fazia o papel de adega.

— Não Camus, suco está ótimo.

Na cozinha era possível sentir um delicioso aroma da torta que era assada no forno. Camus indicou uma das cadeiras e Ikki sentou-se, logo um copo alto com suco de uva estava a sua frente. Camus respirou fundo e sorriu para ele.

— Obrigado por ter vindo Ikki. — Falou com sinceridade. — Sei que pode parecer ridículo, mas por um momento eu acreditei que pudesse colocar tudo a perder e bem… Ouvi muito que temos que aceitar nossas fragilidades e pedir ajuda quando necessário, mas não é tão fácil assim na prática.

— Não precisa se explicar. Mesmo que eu não entenda exatamente o que você está passando me sinto bem por estar aqui. Nunca mais darei as costas a ninguém com quem eu me importo. Quando nos encontramos você me ajudou muito… Acho que Sorento pensou que eu pudesse de alguma forma te ajudar também.

— Sim, Sorento! — Camus sentou-se também do outro lado da mesa — Você estava no bar que ele trabalha… E ele te tirou do seu divertimento! Fico um pouco envergonhado por estragar sua noite.

— Eu nem ao menos sabia que ele trabalhava lá — Ikki bebeu um gole do suco apreciando seu sabor, ao que tudo indicava eram apenas uvas, sem a adição de açúcar, delicioso — Está aí mais uma coisa na qual eu deveria me aprofundar. Sorento mora com a gente há pouco mais de um ano e ainda que eu converse com ele as vezes, não me entenda mal, ele é uma pessoa que tende a não compartilhar muito, apesar de ser ótimo observador, ouvinte e conselheiro. — Camus concordou com a cabeça sorrindo e corando levemente ao se lembrar de quando conheceu o garçom e seu posterior encontro na livraria. Serviu suco no seu copo.

— Uma pessoa bastante intrigante, sem dúvidas. Estou curioso, como foi então que ele te entregou essa missão de cuidar do amigo surtado aqui?

— Eu estava ao lado dele quando recebeu suas mensagens. Estava em um evento, não no bar exatamente, no primeiro andar eles tem um espaço muito agradável. Um palco, lounge e até pole dance — Sorriu ao notar as sobrancelhas erguidas de Camus que se inclinou levemente na mesa demonstrando interesse, Ikki notou que ele usava roupas confortáveis, escuras como das outras vezes em que o viu e mantinha os cabelos presos em um rabo de cavalo alto, desviou os olhos daquela beleza intrigante enquanto respondia — Eu fui convidado para a festa de despedida de solteiro de um familiar do meu chefe, que foi um dos organizadores do evento…

— Mas veja só! Que trabalho interessante esse seu! E seu chefe deve ser uma pessoa bem animada, suponho.

— Sim, acredito que é algo que se aplique a ele. No meu último ano da faculdade consegui um estágio super concorrido neste escritório, no ano seguinte ele me efetivou e agora sou seu assistente. Não tenho do reclamar, o trabalho é pesado, mas tenho a sorte de fazer o que gosto e ser remunerado justamente por isso.

— É escritório do que mesmo? Me perdoe, não me lembro se você já me disse com o que trabalhava…

— Arquitetura... Trabalho no escritório Santuário Arquitetos Associados. — Falou sem disfarçar o orgulho.

O nome pareceu estranhamente familiar para Camus e ele buscou na memória da onde conhecia. Percebendo isso Ikki completou:

— É um escritório grande, já fez alguns projetos bem famosos. Vencemos o concurso para o projeto de restauro do antigo Teatro da Ilha da Rainha da Morte, você deve ter visto algo, foi largamente noticiado. O meu chefe, ele passou a ser sócio neste ano, além de ter seus projetos particulares e sempre me inclui em tudo. São oportunidades imperdíveis profissionalmente.

— Tenho a impressão de que já escutei esse nome mesmo… E pelo jeito ele é um amigo, não? Te levou em uma festa da família!

— Sim… Acho que posso afirmar que somos amigos. Então, a festa é do irmão mais velho dele. Estava bastante movimentada…

— Você não parece muito animado ao narrar isso Ikki — O ruivo pontuou enquanto ía checar se a torta já estava pronta.

— Bom, eu não sou tão sociável, mas a princípio bebida de graça e gente bonita, não teria do que reclamar…

— Mais dez minutos e poderemos comer. Então por que você fez uma cara de desagrado quando contou da festa? — Camus inquiriu divertido voltando a se sentar. Ele achava Ikki tão transparente que praticamente legendas corriam abaixo de suas expressões.

— Na realidade um dos primos dele é o atual do meu ex — Frisou as aspas com as mãos — Da história que te contei e eu não me contive e acabei impulsivamente provocando o cara. Bom, ele respondeu a altura e fiquei constrangido… De certa forma foi um alívio poder sair de lá. Ãhn! Antes que eu me esqueça! Sorento pediu para te falar que ele entendeu finalmente a história do conhaque. Ele disse que você saberia do que se trata.

Camus ouviu aquilo com atenção mapeando em sua mente como seria possível que Sorento tivesse entendido “aquilo” — O que aconteceu com ele naquela noite recheada de trapalhadas. Ikki bebia o suco tranquilamente e se assustou um pouco com a palidez que viu surgir no rosto do ruivo. Ele parecia estar prestes a desmaiar.

— Ikki, como é mesmo o nome do seu chefe?

— Aiolia Íroas… — Tencionou levantar da cadeira, assustado com a palidez do outro. — Camus, você está bem?

Os olhos de Camus pareciam querer saltar das órbitas. Sua vida era ridiculamente cheia de coincidências. Acenou afirmativamente com a cabeça para seu convidado e respirou fundo antes de perguntar:

— E com certeza nesta festa estavam também Kanon e Milo?

Foi a vez de Ikki arregalar os olhos e empalidecer. Seria possível mais uma surpresa nesta noite? Pensou enquanto analisava a expressão de Camus que passou de consternada para extremamente irônica em uma fração de segundos.

— É a despedida do Aiolos, irmão mais velho do Aiolia. Estavam os gêmeos, não sei qual é qual, outro primo de cabelo escuro que esqueci o nome, Milo e o irmão dele também. — Não pode evitar de torcer o nariz quando disse o nome do atual namorado de Hyoga — Mas que droga, da onde você conhece toda essa gente?

Camus terminou de beber seu suco refletindo como abordar o assunto. Ikki ergueu uma sobrancelha, a cabeça a mil sem no entanto conseguir formular uma teoria sobre a ligação entre todas estas pessoas.

Chapter 43: O êxtase, você pode rezar

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Provavelmente nenhuma pessoa ousaria afirmar que aqueles momentos eram menos do que artísticos. Milo entendia, obviamente o apelo estético e mesmo erótico. Mulheres são lindas, sempre achou, apesar de jamais ter tido qualquer desejo por elas, conseguia entender de pronto o interesse e a volúpia que suas formas despertavam.

As moças em questão possuíam aquele tipo de beleza lasciva mesclada a uma sofisticação e pitadas de frieza. Uma combinação que parecia agradar em cheio os homens hétero e bissexuais no recinto. Sorriu, estava feliz com a festa de Aiolos, ainda que tenha ajudado praticamente em nada, no fim das contas, sentia júbilo por fazer parte de mais este capítulo na história dos amigos que adotou desde sempre como família.

Elas se moviam com elegância e uma aura quase mágica precedia cada movimento. Calculou que deveria demandar muito treino e preparo físico executar os movimentos dignos de ginastas no poste e também no solo. Lembrou-se que Hyoga havia feito ginástica olímpica quando mais novo e por alguns momentos o show lhe pareceu ainda mais atrativo. Será que seu loirinho conseguiria fazer algum daqueles movimentos? — Pensava alisando as mãos.

Ao seu lado Aiolia ergueu uma sobrancelha analisando surpreso as reações que testemunhava. Jamais imaginaria uma apresentação feminina chamando tão completamente as atenções de Milo. Aproveitou o momento para analisar o perfil do amigo. Ele parecia mesmo feliz e isso era um alívio, depois do “Ruivo Escroto”; como costumava chamar Camus; em muito se preocupou com Milo.

Paralelamente notou a aproximação da Dançarina com peruca azul; que havia finalmente deixado o pobre Aiolos após um bom tempo de tortura; ao seu lado com um olhar inequívoco de desejo.

Aiolia gostou de ver claramente nela explícitas suas vontades. Era uma moça linda afinal. E ele após aceitar que a festa estava bem encaminhada e com a partida de Ikki sentia-se enfim a vontade para também aproveitar mais do que estava a sua disposição. Não podia se esquecer que nem tudo que desejava estava a seu alcance, então, o mais seguro era sempre jogar com as cartas que recebeu da vida e não com fantasias juvenis que nunca puderam se concretizar realmente. Suspirou focando sua atenção a mulher que lhe estendia uma mão e a acompanhou até o palco.

Alguns assobios e gritos de incentivo. Ela sussurrou elogios ao seu ouvido e Aiolia sentiu-se bem, fechando os olhos e permitindo que a mulher guiasse seus movimentos. Teve seu corpo apoiado no poste e ela dançava a sua volta tirando aos poucos uma ou outra peça de roupa. E o tocando de forma sensual, sem realmente ser invasiva. Era bonita, tinha um corpo bem atlético, ainda que delicado e uma boca muito bonita, formato de coração e carnuda. Observou a pouca roupa em tons de azul marinho e chumbo que pouco escondia de sua pele clara. Ficou curioso para saber a cor dos cabelos dela por baixo da vibrante peruca. Ela estava em uma posição muito interessante neste momento, com o traseiro a milímetros de sua virilha e inclinando o corpo para frente, dando uma bela visão a quem acompanhava o show.

O irmão do noivo ficou impressionado com o movimento e também ao perceber que do palco era possível ter uma boa visão de todo o ambiente, especialmente daquela região onde estavam alocados os convidados neste momento. Ele vê seu irmão comendo e conversando em uma mesa com Kardia e Julian, Kanon os acompanhava bebendo algo que não devia ser alcoólico já que o Grandão não parecia mais tão animado; na mesa ao lado Shura e Dégel dialogavam sem dar muita atenção ao espetáculo proporcionado pelas dançarinas. Pouco adiante estavam Dohko e Defteros ainda bebendo bravamente, entretidos com os movimentos da Dançarina de peruca prateada, em outra mesa Milo que o encarava. Torturante. A moça da peruca vermelha interrompeu esta troca dos olhares se aproximando do tradutor e Aiolia engoliu em seco. Desviando o olhar percebeu que a equipe estava toda na parte interna do balcão, provavelmente aproveitando para descansar um pouco. Engoliu em seco quando sentiu as mãos delicadas tocando os botões de sua camisa.

— Eu gostei de você, Irmão do Noivo. — Ela sussurrou quando se ergueu sinuosamente até que puxasse os ombros de Aiolia o abaixando para que pudesse ouvi-la.

— Que bom, Moça do cabelo azul... — Posicionou as mãos do grego em sua cintura e tocou com o polegar seu lábio inferior, o arquiteto não conteve o leve arrepio que o contato lhe proporcionou, sua voz grave soou — Eu sou Aiolia.

— Aiolia… Hunmm… Você pode me chamar de Lyfia. — Ela o encarou diretamente e neste olhar franco parecia bem mais jovem do que durante toda a noite — Tome um drink comigo depois do show, Irmão do Noivo.

Aiolia concordou apertando de leve as carnes tenras da cintura feminina entre seus dedos calejados. Deixou-se levar pelos encantos da moça, era o mais acertado a se fazer, afinal. Ela gentilmente o tirou do palco depois de mais alguns momentos. O grego sentou-se em uma das cadeiras próximo ao irmão. E antes de retornar ao palco Lyfia depositou um casto beijo na testa de Aiolia, fato que não passou despercebido ao Noivo que se agradou do que presenciou.

As três moças se reuniram no palco mais uma vez. Seguiram-se mais alguns minutos de sedutores olhares e movimentos felinos e sugestivos intercalados por rodopios e acrobacias de relativa complexidade. As moças de peruca vermelha e azul ameaçaram trocar um beijo, enquanto mantinham os movimentos seguindo o ritmo da música. Foi a vez da mulher que usava a peruca prateada girar no poste algumas vezes, elevando suas longas pernas em ângulos absurdos e exibindo a beleza impressionante de seu corpo escultural.

Posicionados atrás do balcão de bebidas, Sorento, Io e o barman que descobriram se chamar Alberich, aguardavam que seus serviços fossem requisitados, mas no geral, o público daquele show parecia mais interessado em suas tramas pessoais. Sorento computou que ele não fugia a essa regra quando sorriu discretamente ao ver uma mensagem de Ikki, seguida de uma de Camus chegando em seu celular. Respirou com certo alívio, colocando o aparelho novamente no bolso frontal do avental. Focou sua atenção no show, por alguns segundos, tendo seu olhar direcionado a Kanon e mais especificamente a Julian Solo, que ao mesmo tempo em que parecia tentar lidar com o “ex Loiro alto do Isaak”, disfarçava da melhor forma possível suas reações mediante as investidas dele.

Estava distante e certamente não ouvia nada da conversa deles, mas não era cego e conseguia identificar os leves sobressaltos mediante os sussurros ao pé do ouvido que acometiam O Imperador, toda vez que o homem que parecia atender pelo apelido de Grandão falava junto a ele.

Mordeu a parte interna na bochecha passando a mão pelos cabelos, o movimento foi acompanhado por Io que parecia aguardar alguma atitude de Sorento desde que tinha anunciado que Isaak estava solteiro.

E Então? — Io questionou falando baixo, de forma que o barman não pudesse acompanhar a conversa. Alguma coisa no olhar daquele baixinho invocado o incomodava.

— E Então o que? — Encarou Io.

— Quero saber o motivo pelo qual você ainda não deu uma escapada e foi lá no térreo? O show ainda vai demorar e todas as mesas estão abastecidas com bebidas. Ninguém vai nos chamar, por hora.

— Io… — Passou a mão pelo cabelo mais uma vez, suspirando em seguida. — Caso as coisas tivessem se desenrolado de outra forma, não me furtaria de me ausentar por alguns minutos e falar com Isaak. Mas não é do meu feitio começar algo e não terminar. Não podemos sequer precisar a hora que essa despedida vai acabar, e de que valeria dizer a ele que precisamos conversar, sem realmente empreender a tal conversa? Não faz o meu estilo.

— E o que faz então? — Io perguntou ligeiramente impaciente. — Não vai me dizer que pretende ficar mais um ano nesse chove não molha, até aparecer outro bonitão e vocês se distraírem... — Fez um gesto de aspas mediante a palavra. — Por mais algum tempo.

— Não, Io… — Respondeu de pronto, sabia que já não dispunha de mais um ano livre para continuar naquela brincadeira de gato e rato. — Não pretendo demorar tanto. Só não vou conseguir resolver nada hoje. Isaak sequer faz hora extra, não acho que ele esperaria por tempo indeterminado só porque eu pedi.

— Sei... Tenho minhas objeções com essa sua frase, mas algumas coisas você tem que ver sozinho. — Sorriu ao ver as sobrancelhas erguidas do outro.— Bom, então vamos dividir um carro? Minha casa é basicamente na mesma direção que a sua… Melhor ainda… — Falou animado. — Não quer dar uma esticada lá em casa? Amanhã não trabalhamos e você precisa se distrair um pouco. Muito trabalho e pouca diversão fazem do Sorento um bobão. — Piscou um olho.

— Nesse caso eu também deveria pegar um machado e sair perseguindo as pessoas? — Sorriu de leve.

— Persiga o Isaak, mas sem o machado. E aceite finalmente o convite para ir a minha casa. Bian acredita piamente que você não gosta de nós. Onde já se viu? — Colocou dramaticamente as mãos sobre o peito.

Sorento sorriu mais abertamente e balançou a cabeça de forma positiva concordando finalmente com o convite. Realmente não parecia uma má ideia relaxar um pouco ao lado de pessoas agradáveis, e ao contrário do que Bian poderia imaginar, apreciava e muito a companhia do casal.

Io comemorou internamente, finalmente as coisas pareciam estar seguindo um rumo. Afastou-se com a justificativa de buscar um pouco de água para todos e sacou rapidamente o celular digitando em velocidade ímpar: Não deixe Isaak ir embora! Não importa o que você tenha que fazer, mas ele tem que ir para a nossa casa hoje. Confio na sua persuasão. Te amo. Sorriu, pegou uma jarra com água na geladeira, três copos e voltou para o balcão. No andar inferior Bian abriu um enorme sorriso ao ler a mensagem e podia imaginar o que passava pela cabeça do namorado. Notou Isaak atendendo algumas mesas e foi em sua direção, aquele Ciclope não tinha mais escapatória.

O show todo durou pouco mais de uma hora e ao fim muitos aplausos fizeram tremer o primeiro andar. No térreo os últimos clientes riram olhando para cima antes de deixarem o Imperador.

As mulheres deixaram o salão prometendo que retornariam em breve, já que foram convidadas para um drink.

Aiolos avisou aos amigos que pretendia apenas agradecer as moças e que logo iria para casa, pois estava bastante cansado. Elogiou a festa e abraçou os presentes emocionado com o carinho e amizade deles.

 

Thétis passou as costas da mão pela testa, estava mesmo cansada. O movimento foi grande e com os garçons extras não tendo a mesma desenvoltura dos que faziam parte de sua equipe acabou por atender muitas mesas também. Krishna, do bar onde contava suas comandas, lhe lançou um olhar caloroso e ela correspondeu antes de voltar sua atenção ao caixa que estava fechando. Estava contente com o resultado da noite.

 

Mapeou com atenção o cenário pós show e computou que todos pareciam minimamente distraídos com questões mais urgentes que seu “plano de fuga”. Aguentou bravamente a uma hora que lhe foi imputada e agora, não conseguia deixar de pensar no quão necessitado estava de provar novamente o beijo devastador daquele Diretor com pinta de certinho.

Era uma homem passional, talvez fosse um traço de família, já que o caçula compartilhava de seus arroubos. Contudo, até aquele momento, não havia dedicado seu furor a um enlace romântico. Sendo assim, podia dizer sem sombra de dúvidas que desde o primeiro momento em que viu Dégel, percebeu que estava liquidado. Não lhe importava de forma alguma questionar sua sexualidade ou o que aquilo representava. Estava apaixonado e era isso que importava.

Felizmente sua família já havia sido agraciada com toda a sorte de saída do armário e o assunto já não era mais uma questão, então, não havia motivo para se prender a algo tão ínfimo. Queria Dégel e não estava acostumado a desistir com facilidade.

Considerando os olhares que havia recebido do irmão e até mesmo do discreto Shura, estava certo que sutileza não tinha sido um dos elementos que aplicou ao seu flerte, portanto, acreditava piamente que os amigos e familiares entenderiam sua ausência.

Algo maior estava em curso. Não era todo dia que Kardia Kókkino era flechado pelo cupido. Lembrou com certo divertimento que um dos convidados se chamava Afrodite, a dinâmica mitológica lhe acometeu e deixou um lembrete mental de voltar ao assunto com o sócio, enquanto em direção caminhava ao irmão.

Ouviu Aiolos falar algo sobre estar com fome e em outra ocasião não perderia aquela deixa, o Arqueiro devia ter alguma noção sobre o duplo sentido das coisas.

Apenas ignorou, tinha um objetivo mais concreto e poderia empreender outro dia a piada maliciosa. De preferência depois que tivesse o reservado Diretor em seus braços, correspondendo em igual escala seus sentimentos.

— Algum problema, Kardia? — Milo questionou ao sentir uma das mãos do irmão em seu braço e notar o olhar ansioso que ele tentava disfarçar.

— Mais ou menos Maçãzinha. Estou indo embora. Não acho que será um grande drama, mas achei prudente avisar a alguém.

— Achei que você estava inclinado a dar PT como disse mais cedo.

— Os planos mudam… — Sorriu. — Pretendo me perder, mas de outra forma. — Olhou para Dégel que falava algo com Shura. — Preciso mesmo ir.

— Imagino onde e em quem você quer se perder, Coração. — Pegou uma das mãos de Kardia. — E tem meu apoio. Pode ir tranquilo… Divirta-se e se estiver em condições, me liga amanhã. — Piscou um olho.

Kardia riu e abraçou o irmão sussurrando algo no ouvido dele, e ouvindo um “Você sabe que eu também”, em troca.

Encarou Dégel com intensidade e captou o movimento de cabeça que ele fez, indicando que Kardia o deveria seguir, já estava saindo da festa.

— Agradeço a companhia, Shura. — Dégel falou virando de costas se direcionando para as escadas.

— Digo o mesmo. — Observou a aproximação de Kardia que passou pela mesa lançando um olhar ao Diretor.

— Não esqueça de me procurar caso deseje mudar de profissão. Até breve. — Acenou deixando o local, sendo seguido por Kardia que não fazia a menor menção de ser comedido.

— Parece que a festa está mesmo acabando. — Milo falou parando ao lado de Shura, acompanhando o irmão descer as escadas.

— Para alguns a verdadeira festa está só começando. — Shura comentou maliciosamente olhando de esguelha para o homem ao seu lado. — De todo modo também preciso ir, se não quiser perder o marido. — Sorriu minimamente.

— Não sabia que tinha casado. — A surpresa na voz.

— Acho que foi repentino para todos… — Estalou os dedos um pouco nervoso. — Vou falar com Aiolos e chamar um carro. — Colocou a mão no ombro de Milo se afastando em seguida.

Milo seguiu o afastamento de Shura e riu com gosto ao notar Dohko e Defteros empurrando um copo de água para Seiya que parecia realmente irritado. Agora, sem a música alta conseguia ouvir o rapaz dizer em um tom de voz desgostoso, misturado a fala embolada, consequência do álcool:

— Alguém deveria ter me acordado… — Seiya resmungou empurrando o copo de água. — Eu não vi nenhuma teta e aqui tinham seis… — Fez o número com os dedos. — Seis tetas e eu não vi nenhuma. — Emburrou ao ouvir a risada de Dohko e Defteros.

— Ora Seiya, você é jovem. Tem todo o tempo do mundo para ver uns peitinhos. — Defteros falou bagunçando os cabelos do rapaz.

— Só que aqui tinham seis de uma vez… Eu não vejo nem um… Imagina seis. — Aceitou o copo de água. — Só vi homem se pegando… Peitinho que é bom…

— Homem é? — Dohko deu um sorriso enviesado. — Quem especificamente?

— Sei lá… — Olhou em volta. — Acho que não estão aqui… Minha cabeça doí.

— Por isso que sua irmã mandou você beber só cerveja. Acha que não sei que você bebeu algo mais? E veja pelo lado positivo… — Dohko sentou ao lado dele. — Ao menos você viu algo excitante antes de capotar.

— Eram dois caras. — Seiya fez uma careta.

— E qual o problema nisso? — Dohko deu de ombros.

— Problema nenhum. Eu só não curto.

— Já experimentou para saber? — Foi a vez de Defteros falar e sentar ao lado dele.

Seiya olhou o sorriso dos dois homens e levantou rapidamente dizendo que precisava vomitar. Os dois começaram a rir trocando olhares divertidos.

— O moleque vai ficar traumatizado.

— Vai nada… — Dohko riu. — Ele precisa aprender algumas coisas sobre a vida. Pelo jeito não será essa noite. Preciso deixar essa peste em casa, em segurança. Caso contrário a irmã dele pode furar meus olhos. Nossa família tem um histórico com coisas do tipo… — Riu.

— Pois vou te ajudar com essa missão. Não é todo dia que encontro um companheiro de copo a altura. Esse é o tipo de amizade que gosto de cultivar.

Apertaram as mãos sorrindo e Dohko soltou um muxoxo ao ver Seiya gesticulando na entrada no banheiro.

— Vai mesmo me acompanhar nessa?

— Vamos lá meu velho. Ao contrário do meu irmão, e mesmo que não conviva muito com todos hoje em dia, já segurei a cabeleira da maioria desses caras aqui em frente ao vaso. É quase um dom que deve ser passado para as próximas gerações. — Falou de forma teatral enquanto caminhavam em direção ao banheiro.

Defteros acenou para Saga que o olhava com uma sobrancelha levantada.

— Parece que ele fez mesmo amizade com o novo membro da família. — Saga comentou com Afrodite que escondia um bocejo. — Cansado? Vou te levar em casa.

— Depende... — Sorriu enigmático. — Estou cansado o suficiente para irmos embora, mas não para deixar passar a minha curiosidade de ver sua tal desenvoltura.

— Não achei que estivesse tão interessado.

— A propaganda foi boa. Além disso… — Aproximou-se dando um beijo no canto da boca de Saga. — Você acha que eu estaria aqui se não houvesse genuíno interesse?

— Você realmente me intriga, senhor Nyman. — Falou passando a mão pelo rosto de Afrodite.

— Já notei, Senhor Chrysó. Que tal desvendar parte dos meus mistérios hoje? — Sorriu ladino.

Saga segurou uma das mãos de Afrodite e se encaminhou na direção de Aiolos almejando se despedir. Encontrou o Noivo em uma conversa amena com Julian, que era observada por um entediado Kanon. Puxou o gêmeo mais novo para um abraço e falou em seu ouvido que estava indo embora.

— Aaah você está indo embora com seu namorado bonitão… — Kanon falou o mais baixo que conseguia. — Estou feliz por você… Mas estou entediado aqui. — Olhou para Afrodite que sorria. — Me leva com vocês?

— Hoje não posso irmãozinho. Tenho alguns assuntos para tratar.

— Sei o assunto de vocês… — Olhou para Julian. — Queria uns assuntos assim também.

— Não se preocupe, Julian vai cuidar direitinho de você, tenho certeza. — Saga falou um pouco mais alto captando a atenção do Imperador.

— Que nada… — Fez um muxoxo. — Ele nem me dá atenção. E olha que passei a noite toda do lado dele… — Cochichou no ouvido de Saga. — Acatei a ordem direitinho e não ganhei meu prêmio.

— Meu irmão… Desde quando você precisa esperar pelo prêmio? Joga seu charme Kanon, seduz o “Senhor dos Mares.” Essa beleza toda não está aí por nada. — Piscou um olho.

— Saga… Você é o melhor gêmeo desmiolado e sem noção que eu poderia querer. — Riram.

Afrodite acompanhou a cena sorrindo ao ouvir os sussurros e os conselhos nada castos de Saga. Observou Julian com interesse e registrou que provavelmente Kanon não teria muito esforço em sua sedução. Despediu-se de Aiolos que agradeceu pela presença e o convidou para o casamento, o que o deixou intrigado, afinal, aquele homem parecia ser peculiarmente simpático.

Aguardou Saga terminar de falar com o irmão, despedir-se dos demais e deixaram o bar, entrando no primeiro táxi que passou pela rua. Ao que tudo indicava a despedida de solteiro realmente não servia apenas ao Noivo.

Shura passou por Saga e Afrodite enquanto caminhava até Aiolos. Acenou para os dois e trocou um sorriso sincero com o homem que parecia ser o namorado do irmão de Kanon.

Não costumava se sentir à vontade em eventos sociais, e definitivamente sua validade no que dizia respeito a interação humana já estava acabando. Mesmo assim, precisava admitir que tinha sido uma noite divertida. Além de rever aquele panteão grego, ainda conheceu os dois homens que pareciam estar adentrando aquele ciclo social. Ambos absurdamente agradáveis.

Colocou a mão no cotovelo de Aiolos chamando a atenção dele.

— Já deu minha hora...

— Gostaria que ficasse um pouco mais. — Aiolos falou colocando a mão no ombro de Shura. — Não conseguimos nem conversar direito, mas acho que seu marido vai me matar se você demorar mais para chegar. — Riu.

— Não acho que seja o caso. — Passou a mão pelo cabelos sem jeito. — Você me conhece… Preciso ir...

— Claro meu amigo, entendo. Mande um abraço para o Shaka. Fiquei surpreso por ele não ter vindo. O convite era extensivo…

— Eu sei, ele também sabia. — Deu de ombros. — Acho que ele quis me dar um vale noite. Além disso, você consegue imaginar o Rubio em meio a um show de strippers? — Riu sendo acompanhado por Aiolos.

— Seria uma cena interessante. Fique bem, Shura. — O abraçou. — E não esqueça o que conversamos… Sempre estarei aqui para você.

Shura balançou a cabeça afirmativamente e direcionou a despedida a Kanon e Julian, que parecia preocupado com o estado alcoólico do gêmeo mais novo. Acenou para Dohko e Defteros que saiam do banheiro escorando um alcoolizado Seiya e abraçou Aiolia que apareceu pouco depois ao lado de Milo.

A festa parecia mesmo estar chegando ao fim, pensou ao descer e avistar alguns garçons no primeiro andar. Os que tinham trabalho na despedida ainda se encontravam a postos no piso superior, por isso, não entendeu muito bem o que os outros dois ainda faziam ali já que o bar estava fechado.

Não se deteve nesse pensamento, pegou o celular e antes de abrir o aplicativo para chamar um carro mandou duas mensagens para diferentes destinatários.

Ao contrário do que imaginava conseguiu um carro com facilidade e já estava dentro do veículo quando o celular apitou indicando a chegada de uma mensagem. Mordeu o lábio inferior antes de destravar o aparelho e sorriu abertamente ao ver quem estava lhe respondendo. Escreveu de volta e mexeu no aparelho verificando que o esposo ainda não tinha visualizado sua mensagem. Suspirou. Parece que Ângelo também estava pensando nele, mas… Em quem será que Shaka pensava?

Dohko acomodou Seiya em uma das cadeiras e seguiu junto com Defteros em direção aos convidados restantes. Abraçou Aiolos com força, ao que foi correspondido, estava feliz com aquele casamento. Kanon também o abraçou e sussurrou que lhe devia um correto pagamento pela aposta. Julian se interpôs antes que o Grandão agarrasse Dohko que parecia estar realmente se divertindo com a situação.

— Desculpe qualquer coisa, Dohko. — Julian falou olhando de esguelha para Kanon.

— Imagina. Foi tudo muito divertido. Só não fico para o brinde com as moças, porque tenho a tarefa de levar aquele fedelho em segurança. Senão, a noiva me mata. Você sabe como a Seika pode ser… — Olhou para Aiolos que sorrindo concordou. — Defteros vai me ajudar nessa tarefa hercúlea.

— Arrumou um escudeiro? — Kanon questionou rindo.

— Pois quem disse que amizades não podem surgir em meio a moças em trajes diminutos e muito álcool? — Defteros falou colocando a mão no ombro de Dohko. — Somos dois Cavaleiros no fim das contas e estamos na missão de salvamento do Seiya.

— Sempre o Seiya… — Dohko revirou os olhos rindo em seguida.

— Pois acho justo e me agrado com isso. — Aiolos respondeu abraçando os dois, olhando para Dohko. — Você pretende mesmo ir embora sem camisa?

— Olha… Acredita que eu nem lembrei disso. — Olhou ao redor. — Não sei nem onde coloquei…

— Eu posso te dar a minha. Vou pra casa do Julian mesmo… — Kanon fez menção de tirar a própria camisa.

— Achei que o exibicionista fosse o Saga… — O Imperador falou olhando sério para o gêmeo mais novo.

— Não precisa, Kanon. — Dohko notou o olhar do dono do bar. — Ali… Já estou vendo minha blusa. A sua não me vestiria tão bem quanto mereço. — Riu mais uma vez sendo acompanhado por Defteros, que pensava no quanto Dohko era visivelmente bem mais baixo que o primo — Mesmo assim obrigado.

Terminaram de se despedir, Dohko vestiu a camisa e voltaram para buscar Seiya que tinha voltado a dormir, bufou irritado e junto com Defteros apoio o rapaz o encaminhando para fora do bar.

— Você trabalha amanhã? — Defteros perguntou enquanto apoiava Seiya e o novo amigo fazia sinal para um táxi que passava na hora.

— Não… — Sorriu maroto. — Quer deixar o garoto e continuar a noite?

— Você leu meus pensamentos, meu velho...

Seguiram para cumprir sua missão e depois continuar a festa, afinal sempre existiria um outro bar.

Chapter 44: Abismo da miséria

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Depois de algum tempo as moças retornaram, sem as perucas e vestindo roupas casuais. Lyfia se aproximou de Aiolia sorrindo, ela tinha cabelos e olhos castanhos e vestia calça jeans e uma blusinha, neste visual e em uma situação cotidiana passaria talvez despercebida por ele. O cabelo liso estava preso de uma forma engraçada e Aiolia desejou soltar aquele semi coque, o faria, mas não agora. Nenhum dos dois mantinha dúvidas de que terminariam juntos esta noite em uma festa mais intimista. Ela pediu um coquetel sem álcool no balcão do bar e sentou-se em um dos bancos altos.

Kanon e Milo estavam animadíssimos tirando fotos com as outras duas moças. Freya que sem a ousada peruca vermelha era uma loira muito bonita. Usava uma camiseta cinza bastante comportada, shorts e coturnos. Ela e Milo se deram bem imediatamente. Ela ainda brincou que eles se pareciam mais do que ela com a própria irmã.

No caso Hilda, irmã mais velha de Freya, que mantinha cabelos loiros claríssimos, quase do mesmo tom da peruca prateada que usou durante a apresentação. Ela usava agora uma roupa bastante formal, camisa branca e calça preta. Parecendo a mulher de negócios que certamente era. Elas não eram mesmo muito parecidas fisicamente. Enquanto uma era solar, curvilínea e despojada a outra emitia uma aura bastante séria que confundiria qualquer um que esperasse sensualidade da dançarina fora dos palcos. Ela conversava com Julian e Aiolos, depois de cumprimentar os outros rapazes. O clima já era de fim de festa.

Rindo escutou a dupla encontrando afinidades múltiplas, brincando que eram realmente irmãos perdidos. Kanon concordou e fez questão de tirar uma foto dos dois juntos. Enviou a foto para o primo e observou um pouco mais a interação entre eles. Às vezes sentia falta de ter mais companhias femininas. As mulheres sempre tinham um olhar mais apurado frente as coisas da vida. Teve tão poucas amigas, a maior parte delas na época da faculdade, entretanto, todas elas o marcaram muito, admirava a amizade entre as mulheres. Com certeza Milo se beneficiaria se tivesse uma irmãzinha, o garoto sempre foi sensível e adorável.

Sorriu observando um analisando cuidadosamente uma mecha de cabelo do outro.

Voltou sua atenção para o salão, já quase vazio, os funcionários organizavam a tudo de forma bastante eficiente e elegante. Copos, pratos e guardanapos recolhidos discretamente. Julian falava com a outra moça e seus olhares se cruzaram por uma fração de segundo.

Kanon segurou o ar nos pulmões. Queria beber mais. Não estava completamente sóbrio, mas a maior parte da euforia alcoólica havia evaporado.

Esteve por tantos dias mergulhado em uma imensidão de miséria pessoal, revisitando todas as desventuras amorosas significativas pelas quais já havia passado. Desde que se aproximaram Julian havia sido uma figura constante em sua vida. Engraçado que por mais que brincasse a respeito jamais o viu como um primo ou irmãozinho como acontecia com os outros gregos de seu convívio.

Ficou pensativo observando o que quase se assemelhava a uma reunião de negócios entre Julian e Hilda. Apesar da quantidade descomunal de bebidas que ingeriu durante toda a noite não estava mais tão bêbado quanto gostaria.

E mais uma vez este fato o incomodou.

Pensou em solicitar algo no bar. Ponderou. Uma ideia recorrente não deixava sua mente. Uma pendência bastante antiga. Analisou a figura de Julian cumprimentando a todos, abraçando Aiolos e se aproximando dele com a desenvoltura elegante e calculada de sempre.

Passou direto e foi falar com a equipe. Voltou-se em tempo de capturar o olhar de um dos garçons em sua direção e subitamente se lembrou de uma outra ocasião em que havia percebido aquela pessoa. Para um homem que se considerava vivido, às vezes, ele se pegava percebendo que havia sido bastante distraído. Certamente ele não havia sido o único a notar a existência daquele rapaz e uma certa aura de entendimento o acometeu, acreditou ter testemunhado o mesmo reconhecimento no olhar que parecia inquiri-lo sobre algo, antes de desviar como se estivesse finalmente ciente de todas as respostas.

Acreditava, no entanto, que cedo ou tarde as coisas sempre se encaixam. Que o que tinha que ser, sempre seria.

Não como destino dado, mas como algo a se buscar com afinco.

Já havia passado da hora de encadear sua vida, de retomar questões em aberto e aproveitar a onda de resoluções para que pudesse finalmente começar do zero. Era uma decisão e para um geminiano como ele, pois sim Kanon era interessado por astrologia, esse tipo de ação deveria não só ser valorizada como celebrada.

Friedrich Nietzsche escreveu “Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você.”

Uma passagem retomada a exaustão por tantos outros pensadores, em concordância ou discordância. O irmão mais novo de Saga estava certo de que o tempo de encarar seu abismo de miséria findava. Tinha em mente focar-se em uma paisagem muito mais encantadora.

Um sorriso leve curvou o canto de sua boca. Levantou-se e foi se despedir de Aiolos.

***

Hyoga entrou em sua casa de cara fechada. Apesar do jantar maravilhoso algo o incomodava profundamente.

Sabia exatamente o que era. Estava farto de Pandora tentando manipular todos a seu redor. Não esperava mais ter a influência dela de forma alguma em sua vida. O fato de tanto ela quanto Ikki terem reaparecido fazia com que seu sangue fervesse. Só não sabia dizer ao certo se era pelo mesmo motivo, afinal, ambos o desconcertam, mas, de formas diferentes.

Logo, não conseguia precisar se a crescente irritação que sentia ao recordar dos dois tinha exatamente a mesma origem.

Dificilmente ficava irritado e o fato de perder assim sua calma em função dela o irritava ainda mais. Ela foi educada todo tempo, fez questão de trazê-lo em casa, algo que não era comum nem no período em que ficaram juntos.

Trancou-se em seu quarto, assumir seu ressentimento arranhava seu orgulho. Pandora o tratou como algo descartável e agora o procurava toda sedutora em busca de informações. Ela sequer tinha a decência de disfarçar que o estava apenas usando, mais uma vez, como uma ponte para chegar até Ikki. Sempre aquele maldito mestiço de japonês com fogo do inferno. Riu desgostoso e num impulso pegou o celular e buscou na lista de contatos um nome que esteve bloqueado por meses.

Desbloqueou e escreveu uma mensagem movido pela raiva sem muito pensar a respeito. “Ikki, sua mulher me procurou para te sondar. Por favor resolvam as coisas de vocês sem me arrastar para isso. Eu só quero ter paz.” Hyoga enviou e se arrependeu no segundo seguinte.

— Merda, claro que Pandora calculou que eu entraria em contato com ele… Quão estúpido eu ainda posso ser nesse caralho de vida? — Resmungou consigo mesmo cobrindo os olhos com as duas mãos.

Seu celular vibrou com a chegada de uma mensagem e ele gelou. Visualizou a mensagem tentando entender seu conteúdo por alguns segundos. Quando finalmente conseguiu ligar os pontos de realidades paralelas mal pode conter seu espanto

— Só pode ter alguém rindo muito da minha cara… Inacreditável.

***

Jantaram quase engasgando com as risadas que ressoavam pela cozinha. Camus explicou para Ikki que conhecia os convidados da festa de Aiolos por ter sido namorado de Milo por alguns anos.

Ao receber a notícia Ikki quase cuspiu o suco em sua boca. E a partir daí, a cada informação e coincidência trocada eles riam mais. Quem os visse neste momento com certeza os julgaria amigos de longa data.

O absurdo era tanto que qualquer ressalva entre eles simplesmente desapareceu.

— Por esta eu acho que nem Sorento esperava! — Camus riu limpando a boca com o guardanapo de tecido. Sua barriga estava doendo de tanto que riram nesta noite.

— Nem ele e nem ninguém, não acha? É tão despropositado que beira o ridículo, quem teria esse tipo de ideia? — Ikki comentou balançando o rosto negativamente.

— Tem razão… O meu ex está com o seu ex. E você provocou Milo… — Apertou os lábios para segurar a risada. — Ele aparentemente amadureceu, há alguns meses provavelmente a conversa de vocês terminaria separada pelos seguranças do bar!

— Ou com ele no hospital. Está me estranhando, Camus? Não cresci em condomínio não, eu sei me defender…. De qualquer forma minha fase briguento e rebelde acabou lá no Ensino Médio. Hoje em dia eu desconto esses instintos treinando…

— E você treina o que exatamente, meu rapaz?

— Boxe. É uma paixão, se bem que ultimamente mal tenho tido tempo para correr, quem dirá para dar uns socos…

— Surpreendente Ikki, eu gosto bastante de lutas… Treino Muay Thai.

— Não à toa está em tão boa forma física…

— Está flertando comigo Ikki?

— Nossa, não me entenda mal Camus, mas você é… — Coçou a nuca enquanto tentava formular as palavras da melhor forma. — Por falta de uma expressão melhor, vamos dizer que você é muita areia para meu caminhãozinho… Além disso, toda essa gama de coincidências soam como um alerta de confusão para a qual não estou preparado, definitivamente!

— Sábio… Fique tranquilo, eu estou procurando conexões sim, mas não sexuais por hora.

O celular de Ikki vibrou em seu bolso. E ele aproveitou a deixa para fugir de qualquer comentário que Camus pudesse esperar de si.

Definitivamente não teria qualquer condição de resistir a este homem caso ele o quisesse e mesmo que Sorento o tivesse alertado para a demanda de Camus naquele momento, achava pouco provável que até mesmo o inquilino fosse capaz de manter alguma imunidade perante aquele homem, mas não existia também nenhum motivo para admitir isto para o Ruivo.

Ele era muito bem resolvido com suas qualidades e neste momento estava em tratamento, se recuperando de um relacionamento abusivo antigo que havia deixado marcas muito profundas em sua vida. Estava surpreso e grato por Camus ter confiado tantas informações pessoais a ele. Sentia que a amizade que podiam desenvolver seria algo muito mais frutífero do que qualquer prazer efêmero que fosse cedido a ele, mesmo que o Ruivo já tivesse deixado claro, em momentos posteriores, seu vasto conhecimento acerca de corpos masculinos, o que ressalta o fato de estar abrindo mão de uma experiência praticamente louvável.

Ainda sim, sabia que estava tomando a decisão correta. Foi até aquele lugar pois Camus precisava de um amigo, bem sabia que ele também precisava.

— E por falar em confusão… — Mal acreditou na mensagem que acabou de ler.

Camus estranhou a mudança em seu semblante e ele também fez uma expressão confusa, ainda que não tenha diretamente questionado o que havia acontecido. Ikki estendeu-lhe o celular e Camus leu a mensagem perdido por poucos segundos antes de finalmente compreender do que se tratava. E especialmente quem era o remetente.

— Sincronicidade… — Comentou casualmente antes de terminar o seu suco.

— Ou azar… Só isto já faz meu coração disparar, Camus. — Ikki admitiu relendo a mensagem. Sabia que não existia nenhuma entrelinha ali, o anfitrião acompanhou as mudanças em seu rosto e quando falou parecia ter escutado seus pensamentos.

— Se ele fosse completamente alheio a você não teria enviado esta mensagem… Claramente o fez impulsivamente, porém muitas vezes são nos impulsos que deixamos escapar algumas verdades Ikki…

— Ele está com Milo, o qual você bem conhece…

— É fodidamente gostoso. — Camus falou, o rosto ornado por um intrigante sorriso malicioso como se acessasse um arquivo íntimo em sua mente.

— Não posso discordar, apesar do meu despeito. — Ikki comentou com uma careta — E de não ter tido essa oportunidade de conferir como você e Hyoga — Riu de si mesmo.

— Mas vejam só! E ele começa a abrir suas asinhas! O mundo dá voltas, Ikki. Não quero alimentar nenhuma chama de esperança para você, meu jovem amigo — Os olhos de Ikki brilharam com estas palavras — Mas, é importante que você perceba o quanto aparentemente também foi importante para este rapaz, que mesmo tendo um Milo a disposição, te escreveu estas palavras. — Sorriu. — Ãhn a juventude… Por vezes só saber que viveu algo relevante, com alguém especial, independente disso ter dado frutos ou não, é algo que devemos celebrar, valorizar. Nem todos tem esta oportunidade.

— Você tem razão. Pode parecer imaturo ou ingênuo da minha parte, mas eu acredito que uma paixão pode renascer… Quem sabe um dia?

Camus observou o outro rapaz sentindo os efeitos daquela afirmação. Ikki resumiu em poucas palavras um sentimento que há muito buscava organizar em seu coração.

Não pode evitar de pensar em Shaka, mas não sentia nenhuma angústia. Quem sabe eles também pudessem, como dito por seu convidado renascer… Começar de novo, juntos?

Lembrou-se das fotos que mantinha guardadas em seu celular, imagens de quando conheceu Shaka, da afinidade cálida que mantinham antes de Surtr se infiltrar em sua vida. A época Shaka ainda não havia falado abertamente sobre sua sexualidade e estava às voltas com algum problema familiar. Ele incentivou no início… Por muito tempo acreditou que a vida sempre arrumava uma forma de foder com os distraídos, nem sempre do jeito bom, agora, entretanto, lhe ocorria que apesar do tempo transcorrido jamais romperam completamente o vínculo entre eles.

Então, assim como sugeriu para Ikki, que aguardava pacientemente a sua frente também perdido em seus pensamentos, ele se agarrou a ideia de que qualquer que fosse o futuro, cada segundo passado ao lado de Shaka, mesmo os piores, eram preciosos demais.

E isto por si, era um bom motivo para estar vivo. Para ser uma pessoa melhor.

— Não é imaturo Ikki, é otimista. Um aspecto bastante interessante para quem parece estar sempre de cara fechada como você. Quero te mostrar algumas fotos, eu e meu melhor amigo na época da faculdade. Quer ver?

Ikki concordou com a cabeça e aguardou que Camus lhe mostrasse as imagens. A leveza de poder falar abertamente sobre emoções e sobre sua sexualidade o agradavam de forma muito contundente. Lembrou-se vagamente de uma conversa que teve com seu tio anos atrás e sentiu saudade daquele que era seu único parente vivo além do irmão. Tinha tido nele uma figura masculina tão exemplar, uma pena ter se perdido em algum momento. Ter cedido a imposições e cobranças sociais que o encurralaram em seu próprio medo.

Atualmente tinha outros homens em quem se espelhar. Pessoas bem resolvidas e seguras. Pessoas íntegras, cada um à sua maneira um homem de verdade. Era grato a Aiolia, Shun, Sorento, Camus e especialmente a Hyoga…

Eles retornaram para a sala, se acomodando no confortável sofá. Ao entregar seu telefone para que Ikki pudesse ver suas fotografias Camus pousou os olhos nas botas do convidado que aguardavam silenciosas na entrada de sua casa. Impressionado pela sensação de pertencimento que esta imagem lhe transmitia, nada disse. Fitou o rosto do arquiteto acompanhando as minúsculas mudanças em sua expressão.

Ikki sorriu observando a fotografia em que reconhecia Camus bem mais jovem, franzino, muito sério, os inconfundíveis cabelos vermelhos cortados bem curtos. Ao seu lado um jovem loiro; absolutamente estonteante; com quem parecia formar um par perfeito. Na foto seguinte estava somente o amigo de Camus. Ikki ouvia o Ruivo contar sobre as situações em que as fotos haviam sido clicadas.

Pensou mais uma vez em Hyoga. Eles nem ao menos tinham uma foto juntos. Quem sabe um dia?

***

Aguardava ao lado de Io, simulando atenção ao que era dito por Thétis e aos agradecimentos de Julian Solo.

Estava exausto! Isso era inegável, e sabia que em outro momento de sua vida jamais se imaginaria trabalhando de garçom, quiçá em eventos sem horário para acabar. Contudo, ver as cifras no final do expediente e se sentir mais próximo de seus planos funcionava como frescor em seu ânimo.

E foi pensando exatamente nesses planos que acabou desviando o olhar e se detendo mais uma vez em Kanon. O “ex loiro alto de Isaak”, pareceu notar que era observado e por alguns minutos o garçom teve a sensação que um clima de compreensão se instaurou entre os dois. Ambos estavam onde deveriam estar, bastava apenas começar a movimentar as peças daquele inusitado tabuleiro de xadrez.

Desviou sua atenção ao sentir uma das mãos de Io em seu braço indicando que os detalhes pós evento já tinham acabado. O salão vazio atestava que todos os convidados em algum momento haviam partido. Não costumava se distrair com facilidade, mas o imbróglio que se desenrolava entre O Imperador e Kanon era tão nítido, que estranhou não ter percebido antes. De certa forma, aquilo tudo o deixava um pouco mais tranquilo, afinal, se o grego apelidado de Grandão, já estava às voltas com o proprietário do bar, alguma coisa já deveria existir ali e pelo que pôde observar, parecia ser algo que estava prestes a se concretizar.

Divagou diversas vezes sobre como gostaria que Isaak estivesse solteiro, sendo assim, já que o universo havia lhe dado um limão, estava mais do que na hora de fazer uma bela limonada. Só esperava que o Ciclope também estivesse disposto a degustar da bebida cítrica com ele. Caso contrário, seguiria sua vida, como sempre fazia. Só precisava ter certeza absoluta que aquele rosto corado, os olhares que trocavam e acima de tudo que o bendito beijo, mesmo que tenha acontecido em um momento caótico, não representavam apenas um momento de tesão mal contido.

Também precisava lidar com a possibilidade de ser apenas tesão… Não, alguma coisa dizia que não era só isso. Caso contrário, pelo que conhecia do colega de trabalho, já estariam se alternando um no corpo do outro há algum tempo. Não era só isso que queria, ao menos não com Isaak.

Suspirou passando a mão pelos cabelos e juntamente com Io seguiu atrás de Thétis para um canto mais afastado. Alberich passou por eles acenando e desceu as escadas. Io soltou uma leve bufada, por algum motivo não havia gostado mesmo do rapaz. A gerente desejou um bom descanso a ambos e informou em um sorriso mal contido que eles poderiam pegar as caixas de bebida que ela havia pedido para Krishna deixar no quarto dos funcionários.

— Cortesia do senhor Solo, pelo bom serviço prestado. Tem uma caixa para cada um. — Parou de tentar disfarçar o sorriso ao notar o olhar de incredulidade dos funcionários.

— Olha só… Não poderia ser mais providencial. — Io falou com indisfarçada animação.

— Como assim? — Thétis olhou de Io para Sorento.

— Finalmente nosso querido Sorento decidiu visitar minha casa e preciso dizer que meu estoque de bebidas estava zerado. — Riu.

— Vejam só, nosso digníssimo Flautista vai fazer uma social?

— Isso mesmo, minha ilustre Gerente.

Os três riram do diálogo teatral e Thétis colocou a mão no ombro dos dois rapazes agradecendo mais uma vez pelo serviço e desejando a ambos uma boa noite. Os dois desceram as escadas e ao se aproximar do quarto de funcionários Sorento estancou brevemente, próximo a porta, ao notar que uma outra voz se mesclava a de Bian em uma animada conversa.

Sentiu algo se revirar em sua barriga e pensou que aquilo não tinha nada a ver com borboletas, ao bem da verdade, jamais entendeu aquela comparação. Ainda sim, era uma sensação quente, gostosa. Um misto quase assustador de ansiedade e animação. Entrou no local logo atrás de Io apenas para confirmar suas suspeitas. Isaak estava sentado ao lado de Bian que mantinha um dos braços sobre os ombros do belo Ciclope.

A troca de olhares entre os dois foi digna de nota, ao menos foi o que Bian pensou ao ver o único olho verde de Isaak se arregalar ao notar a presença de Sorento, e ao perceber que involuntariamente o flautista mordeu o canto do lábio ao prender sua atenção em Isaak.

Depois de alguns segundos Sorento olhou para Io, que sem nenhum pudor piscou um olho pra ele e abriu um largo sorriso. Ele piscou algumas vezes, antes de soltar o lábio que ainda prendia entre os dentes e dedicar um sorriso leve, porém sincero, ao outro garçom.

Abençoados sejam os alcoviteiros! — Sorento pensou mantendo o sorriso, afinal, só mesmo pela intervenção daquele casal de Cupidos improvisados que Isaak permaneceria no bar horas depois de findar seu expediente.

— Finalmente consegui convencer nosso amigo flautista a visitar nossa casa. — Io falou em tom divertido olhando para Bian.

— Achei que esse dia nunca chegaria. — Riu. — Inclusive, se alguém me contasse que ele toparia fazer uma social com nós três eu acharia que era mentira. — Falou em tom de brincadeira.

— Fiquei sabendo que você acha que eu não gosto de vocês. — Sorento falou em um tom sereno mantendo o sorriso mínimo.

— Pois achei mesmo que não gostava! Quer dizer que você gosta mesmo da gente? — Puxou Isaak pelos ombros o incluindo na pergunta.

— Claro que gosto. — Sorento fixou o olhar em Isaak. — Sempre achei que isso fosse bem nítido.

Isaak abriu e fechou a boca algumas vezes, antes de finalmente um sorriso caloroso ornar seu rosto enquanto sustentava o olhar de Sorento, ao mesmo tempo em que sentia sua face esquentar.

— Nós também gostamos de você, Sorento. Achei que também fosse nítido. — Isaak respondeu sentindo um crescente palpitar em seu peito, ao perceber o sorriso de Sorento se alargar de uma forma que ele ainda não tinha visto.

Mais que caralho! Você deveria sorrir mais vezes assim. — Isaak pensou dedicando inegável atenção a figura do Flautista que ainda estava na porta do cômodo. — É… Estou mesmo ferrado, não é que finalmente me apaixonei? Parabéns Isaak, você está completamente fodido!

Chapter 45: A carne tão cálida

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Aiolos disse boa noite e agradeceu o motorista do carro particular que Julian havia deixado a sua espera; na porta do Imperador; para que não precisasse se preocupar como voltaria para casa. Bebeu nesta noite um pouco mais do que estava habituado, o sono e o cansaço o carregando para a cama. Estava contente.

Escreveu uma mensagem para Seika. Avisando que já estava em casa e desejando que ela estivesse se divertindo.

Tomou uma ducha rápida. Na penumbra de seu pequeno apartamento de solteiro conseguia divisar os contornos da maior parte de seus pertences já empacotados e encaixotados para a mudança. Pensou em Seika, sua noiva, a mulher com quem pretendia passar o resto de sua vida. Haviam decidido tudo juntos, o novo apartamento, a viagem… Logo dividiriam uma casa, uma vida! Estava ansioso para que tudo acontecesse logo e corresse bem. O casamento, a Lua de Mel...

Sabia que ela neste momento deveria estar em sua despedida de solteira. Torcia para que ela também tivesse se divertido, como ele. Claro que passou um pouco de aperto quando a dançarina sentou em seu colo, mas jamais faria nada para magoar sua futura esposa. Além disso as três moças que se apresentaram agiam de forma estritamente profissional. Mesmo sendo um show de streap tease era notável como se tratava de uma performance digna de um Cirque du Soleil dado a destreza e a cadência com que todos os movimentos eram executados.

A festa proporcionada pelo irmão e seus primos foi tranquila. Apenas Seiya tinha exagerado, o que de certa forma era esperado, já que o futuro cunhado não costumava beber ou ouvir os conselhos dos mais velhos. Sorriu, tinha grande afeto por aquele pirralho.

Estava especialmente satisfeito por sua festa ter proporcionado além de diversão e momentos agradáveis uma chance de aproximação inusitada entre pessoas que ele não previu.

A amizade entre Defteros, primo que via tão pouco, e o querido Dohko. Há anos não ficava tão alegre ao ver as peripécias etílicas criarem laços tão positivos. Os dois e Kanon haviam dado um show a parte, mostrando que era possível beber sem criar confusão.

Pensou no Grandão deixando o bar na companhia de Julian e assim como a maior parte dos presentes desejava que os dois se entendessem. Nunca tinha visto Julian com nenhum homem, independente disso há anos os dois eram próximos de uma forma diferente, acreditava de coração que eles se gostavam… Não entendia o motivo de jamais terem tentado.

Impossível pensar em Kanon sem recordar de seu irmão. Saga surpreendeu a todos com o convidado. Uma rapaz bastante refinado e que trouxe leveza e encantamento para sua festa. Bom sinal que o gêmeo mais velho tenha permanecido comportado por toda noite, fato raro, com certeza ele estava mesmo levando a sério o que quer que fosse que o ligava a Afrodite.

Kardia e Dégel. Se não tivesse testemunhado as trocas de olhares e as intenções nada disfarçadas do advogado talvez duvidasse. Pensando bem fazia muito sentido, a surpresa se devia apenas ao fato de que jamais imaginou Kardia com um homem. Até onde sabia ele não se empenhava muito em nenhum de seus relacionamentos tórridos e fugazes, porém, sempre com mulheres belíssimas.

Dégel, no entanto, estava há algum tempo sozinho. O Diretor era um homem muito discreto, a longa amizade, além da relação profissional, entretanto, lhe permitiam reconhecer nele também a recíproca as atenções de Kardia. Torcia para que desse certo!

O irmão mais novo de Kardia, também demonstrou comportamento diferente do habitual, ao invés de beber todas com Kanon, Milo manteve-se relativamente bem comportado. Tendo dançado menos do que normalmente e no fim da festa parecia amigo de infância com uma jovem loira. Se não soubesse que ele era o gay mais convicto da família poderia maliciar a situação, pois ambos estavam realmente muito a vontade um com o outro. Não era o caso, Milo sempre foi intenso em todos os seus afetos e ficava feliz em ver que ele estava bem, já que um tempo atrás o mais novo entre eles esteve às voltas com o findar de um relacionamento conturbado.

Pensou transbordando de amor em seu irmão. Por um momento na noite se preocupou com ele, entretanto, logo Aiolia mostrava-se tranquilo e no fim da festa, ao que tudo indicava, foi embora com uma das belas dançarinas.

Apesar de sentir que seu melhor amigo enfrentava uma tempestade interior, sabia, movido por algo intangível que Shura precisava de alguma forma passar por isso… Não chegava a ser um consolo, mas, se sua intuição estivesse certa não teria com o que se preocupar em breve.

Enfim, a sua despedida de solteiro parecia ter sido um evento marcante para seus amigos mais queridos. E isso lhe dava, mesmo sem entender o motivo, uma sensação de dever cumprido. Com este pensamento adormeceu com um sorriso em seu belo e másculo rosto.

***

Aparentemente todos os presentes apreciavam a companhia um do outro, bastava saber, pensou Sorento, em que nível estava o grau de apreciação de Isaak. A questão inicial acerca da urgência da conversa estava de certa forma resolvida, graças a providencial intervenção de Io e Bian, que continuavam empreendendo com maestria seu papel de Cupido. O casal acreditava na filosofia de “dividir para conquistar”, o que nesse caso indicava um paciente Bian aguardando no salão do bar acompanhado da pesada caixa de bebidas e um apressado Io que havia entrado no banheiro em velocidade alarmante informando que iria trocar de roupa.

A movimentação do casal foi tão rápida e sincronizada que Sorento continuava de pé na porta do quarto dos funcionários quando finalmente percebeu que estava sozinho com Isaak. Calculou que o tempo que o colega de trabalho demoraria para trocar de roupa não seria o suficiente para iniciar a conversa que desejava, mas talvez, fosse o bastante para ler os sinais que acreditava estar recebendo daquele charmoso Ciclope. Entrou finalmente no quartinho e percebeu que Isaak levantou do banco aproximando-se devagar, os movimentos um tanto contidos, bem diferente da desenvoltura cadenciada que costumava aplicar em suas ações.

— Como foi o evento? — Isaak questionou parando em frente ao flautista.

— Cansativo. — Sorento respondeu dedicando a ele um sorriso mínimo e puxando o nó da gravata.

Isaak acompanhou o movimento e sem entender direito o motivo desviou o olhar ao notar que aquele simples ato despertava em si uma vontade louca de puxar aquele maldita gravata e beijar aquele almofadinha desgraçado, que agora havia aberto os primeiros botões da camisa social.

— Mas foi melhor do que imaginei que seria. Era um grupo muito comportado. — Finalizou a frase com certa seriedade aguardando algum comentário sobre a presença de um convidado específico.

— Melhor assim… — Falou alterando sua atenção entre a gravata e a pele que conseguia ver entre os botões abertos. — Ficou apertada? — Questionou segurando a ponta da gravata que pendia no pescoço de Sorento.

— Nem um pouco. — Sorriu agradado com o fato de Isaak não parecer interessado nos convidados. — Eu te falei que estava ótimo. — Sorriu tirando a gravata do pescoço e segurando por alguns segundos a peça.

Isaak notou que Sorento pareceu ponderar sobre alguma coisa enquanto o olhava fixamente com a gravata em mãos, até que decidido passou a peça pelo pescoço do outro garçom ajeitando em seguida, deixando-a bem frouxa.

— Parece que tem mesmo muita coisa que eu não imagino e você é capaz de fazer. — Falou fazendo menção a conversa que haviam dito mais cedo. — Mesmo que não faça seu estilo, ficou muito bem em você… — Respirou fundo antes de completar. — O que não fica?

— Que nada. — Respondeu encarando o outro com certa incredulidade. — Esse tipo de coisa combina muito mais com você. Mas… caralho Sorento, seria mentira se eu dissesse que não me deixa animado saber que sua opinião sobre mim não é tão terrível quanto imaginei.

— E o que te fez pensar isso? — Sorento questionou acompanhando as mudanças de expressão de Isaak. — Lembro algumas ocasiões em que posso ter emitido uma opinião negativa, mas…

— Não estou falando de quando me chamou de moleque, porque sim, eu agi como um. Na verdade… Acho que nem estou falando de nenhum porcaria de situação específica, eu só… Sei lá… Achei que você tinha outra opinião.

— E qual você acha que é minha opinião agora? — Questionou levantando uma sobrancelha, o sorriso enviesado no rosto.

— Não sei ao certo… — Aproximou-se o rosto em chamas.

Isaak tinha a impressão que desde que havia tomado ciência de seus sentimentos, seu corpo havia decidido reagir como a porra de um adolescente apaixonado e por mais que tentasse se controlar, não conseguia evitar aquele tipo de reação. Achava no mínimo ridículo o calor que sentia em sua face e o tom rosado que sabia que estava manchando suas bochechas. Era tão fodidamente patética aquele situação, que não sabia se tentava empreender um flerte com o homem à sua frente ou se enfiava a cara em um esquife de gelo para ver se conseguia atingir uma temperatura normal.

O sorriso que percebeu no rosto de Sorento deixava claro que ele estava pelo menos se divertindo com tudo aquilo, mesmo que conseguisse perceber algo além da pura diversão.

— Gostaria de descobrir? — O flautista falou dando mais um passo em direção a Isaak que mordeu a parte interior da bochecha formulando alguma resposta que soasse melhor do que: “Mas que caralho, lógico que sim porra!” Sem saber que era exatamente isso que Sorento queria ouvir.

— O banheiro já está livre. — Io falou saindo do cômodo com as roupas trocadas. Vou esperar lá no salão com o Bian. — Saiu rápido do quartinho maldizendo-se por nitidamente ter atrapalhado algo. — Tudo bem Io, eles têm a noite toda. — Pensou consigo mesmo.

— Não vou demorar para me trocar. — Sorento falou encarando Isaak e se afastando. Parece que continuavam naquele jogo, um passo pra frente, dois para trás. — Já encontro com vocês no salão.

— Vou esperar aqui… — Isaak mordeu mais uma vez a parte interna da bochecha antes de continuar. — Vai que você precisa de ajuda.

— Nunca se sabe… — Manteve o sorriso enviesado. — Nunca se sabe… — O flautista pegou suas coisas dentro do armário entrando no banheiro em seguida.

Isaak soltou a respiração que havia prendido sem perceber e riu se si mesmo: Caralho! O que está acontecendo comigo? — Pensou passando a mão pelo rosto em um gesto nervoso.

Dentro do banheiro Sorento se olhou no espelho não reconhecendo a si mesmo. Não costumava tomar decisões dominado pelo impulso, mas depois que julgava estar certo do que queria, não era de seu feitio procrastinar suas resoluções. Porém, ainda precisava saber ao certo o que o bendito Ciclope queria. Continuava achando prudente evitar problemas, o que nesse momento significava interpretar de maneira errada os sinais que o outro garçom estava lhe mandando.

Terminou de se trocar o mais rápido que conseguiu e ao sair do banheiro encontrou Isaak sentado no banco com as mãos na cabeça. Sorento se aproximou devagar.

— Isaak… — Chamou. — Você está bem?

— Não sei Sorento… Realmente não sei. — Levantou a cabeça o encarando intensamente com aquele único olho verde. — Ao mesmo tempo em que as coisas parecem certas… elas também estão… — Suspirou. — Merda… Não sei nem como explicar, mas… É por sua causa, é tudo por sua causa. Desde aquele dia eu percebi que… Droga… — Isaak pegou uma das mãos de Sorento e colocou em seu peito. — Sente… Você consegue sentir? — Sorento balançou a cabeça afirmativamente ao sentir o forte palpitar do coração de Isaak. — Isso nunca me aconteceu antes e… Você só está sentado perto de mim. Eu… Não sei direito…

Isaak não teve tempo de concluir a frase pois Sorento o puxou pela gravata parando a alguns sentimentos dos lábios dele.

— Era só isso que eu precisava saber…

Surpresa, sem dúvida essa foi a primeira reação de Isaak, assim como da primeira vez em que se beijaram, mas da mesma forma que daquela vez não demorou muito para começar a corresponder ao toque macio e exigente que era empreendido em seus lábios. Suspirou em meio ao beijo, xingando mentalmente o quão entregue se sentia e como parecia derreter em meio aos braços daquele homem que com uma facilidade ímpar o levantou do banco e o sentou em seu colo. Caralho, caralho! — Seu cérebro gritava na mesma medida em que a urgência do beijo aumentava e o retumbar em seu peito parecia tão alto que tinha certeza absoluta que Sorento estava ouvindo.

O flautista não seria capaz de dizer quanto tempo aquele beijo durou, mas assim que separou os lábios e seus olhos encontraram com aquela única orbe verde, teve certeza que por mais que o desejo fosse latente, existia muito mais escondido no brilho que conseguia captar no olhar de Isaak.

— Caralho Sorento! — Isaak exclamou escondendo o rosto na curva do pescoço do flautista. — Acho que meu peito vai explodir… Que merda!

— Acho que ainda não falei como aprecio o seu vocabulário. — Riu ao ouvir o muxoxo que Isaak soltou. — É sério…

— Pode deixar que vou arrumar umas palavras bem eruditas para contar ao Bian que você me sentou no seu colo com uma puta facilidade. — Debochou.

— Levando em conta que trabalhamos juntos há mais de um ano, e que o interesse, ao menos da minha parte, existe desde então acho que não foi tão fácil fazer você sentar no meu colo. Mesmo que você me faça acreditar que gosta fazê-lo. — Deu um sorriso malicioso.

— Hunf… — Bufou. — Não vou negar nada, mas também não vou concordar com nada. Sorento… — Levantou a cabeça do ombro dele o encarando. — E agora?

— Agora eu gostaria de começar uma longa e esclarecedora conversa com você. Acho que temos alguns mal entendidos no meio do nosso caminho, depois… Bom… — Sussurrou no ouvido de Isaak. — Ainda preciso confirmar se você gosta mesmo de sentar no meu colo, ou se é só mais um mal entendido. — Isaak sentiu os pêlos de sua nuca se arrepiarem e mordeu os lábios para conter um gemido. — Mas, por hora preciso cumprir minha palavra e fazer essa social. A parte boa é que você estará comigo. A ruim é que adiamos por algumas horas a nossa conversa. — Isaak suspirou com certo desgosto e o encarou como se pedisse alguma resposta. — E só para ficar claro… — Sorento pegou a mão de Isaak colocando em seu peito. — Nem comigo.

O caminho até a casa do casal de anfitriões foi confortável e permeado por uma nada discreta troca de olhares que foi prontamente percebida pelas donos da charmosa casinha na qual agora terminavam o jantar surpreendentemente saboroso feito por Io. A caixa de bebidas trouxe uma grata surpresa ao ser aberta, parece que a “estimada Gerente”, como Sorento costumava chamar Thétis, havia se dado ao trabalho de escolher rótulos alcoólicos apreciados pelos dois funcionários. Inclusive, em dado momento, Bian tinha certeza que a orelha da mulher deveria estar queimando, pois dedicaram um divertido brinde a ela. Entre risos, comeram a sobremesa que arrancou não só elogios, mas sons quase pornograficos da boca de Isaak. Ao menos foi o que Sorento pensou, ao notar que o homem ao seu lado parecia ter um orgasmo cada vez que dava uma colherada no doce. Ele só pode estar de brincadeira! — Sorento pensou, tentando focar sua atenção na própria taça e em Io que contava com empolgação seus planos de estudar gastronomia, mais especificamente confeitaria.

Ofereceram-se para ajudar os anfitriões a arrumar a cozinha, mas ambos negaram alegando que todos estavam cansados e que no dia seguinte dariam um jeito naquilo. Bian retornou com um par de travesseiros, lençóis, toalhas e mudas de roupa.

— Não temos quarto de hóspedes. — Io falou de forma despretensiosa. — Mas o sofá vira uma cama de casal maravilhosa. — Sorento e Isaak se entreolharam. — Mas, se preferirem também temos uns colchonetes…

— Está ótimo! — Isaak e Sorento falaram ao mesmo tempo trocando um sorriso.

— Então eu vou dormir. O banheiro fica ali… — Apontou para uma porta branca. — Podem ficar a vontade. Mi casa es tu casa. — Io falou rindo em seguida.

— Durmam bem… — Bian falou. — Vem Eurrênio… Deixa eu fazer uma massagem nesse seu pezinho…

Os dois se afastaram aos risos, sendo observados por Sorento e Isaak que em um acordo tácito arrumaram o sofá cama, revezaram no banheiro para tomar banho e finalmente estavam sentados, joelhos dobrados, um de frente para o outro decidindo quem começaria a falar

Sorento organizou algumas vezes o pensamento tentando elaborar a forma mais clara e objetiva de externalizar o que se passava em sua mente, quando ouviu a voz de Isaak e teve a sensação de um déjà vu.

— Por que o Kanon tinha o seu telefone? — Isaak questionou cruzando os braços.

— Eu pensei em várias formas de começarmos essa conversa, mas nenhuma delas era mencionando o Kanon. — Franziu o cenho. — Tenho certeza que já lhe disse que não faço ideia de como o meu número foi parar na casa do seu ex namorado. — Mudou de posição no sofá cama encostando em um dos travesseiros esticando as pernas.

— Ele não era meu namorado… — Levantou do sofá caminhando até a cadeira na qual havia deixado as roupas. Tirou a carteira do bolso da calça, pegou um papel e voltou sentando ao lado de Sorento, ficando de lado para olhá-lo. — E isso aqui? — Entregou o papel. — Tenho certeza que é a sua letra.

Sorento ergueu uma sobrancelha olhando para o papel que claramente tinha sido desamassado. De um lado viu o número de seu telefone escrito abaixo de seu nome, definitivamente era sua letra. Mordeu o lábio olhando o papel com claro interesse, até que o virou e seu rosto se iluminou. O sorriso divertido que ornou sua face no momento em que compreendeu o mal entendido se alargou ao olhar para Isaak e ver o bico que despontava no rosto emburrado.

— Definitivamente essa é a minha letra… — Falou com simplicidade sendo encarado por um irritado Isaak. — Antes de qualquer coisa, quero entender o motivo pelo qual você está exigindo uma explicação. — Isaak o olhou com incredulidade. — Você acabou de dizer que Kanon sequer era seu namorado, sendo assim, porque você tem tanto interesse nisso? — Balançou o papel.

— Você só pode estar de sacanagem comigo. — Bufou em nítido sinal de irritação. — Então você deu mesmo seu número para ele?

— Não. Vê? — Virou o papel. — Tem mais um número do outro lado, e foi para essa pessoa aqui que eu dei meu telefone. E acredito que de alguma forma ele deve ter passado esse papel para o seu ex, mas quanto a isso não tenho responsabilidade.

— Então… Você não estava afim do Kanon? — Isaak sorriu tímido.

— Não… — Ponderou por alguns segundos. — O homem é lindo, como acredito que você bem saiba. — Sorriu de lado quando Isaak passou a mão na nuca sem jeito. — Não precisa ficar assim. Uma vez você me disse que ainda tinha um olho que funcionava, e sem dúvida ele enxerga muito bem, mas… Jamais daria meu telefone para um homem comprometido, ainda mais um que estava às voltas com a pessoa por quem nutro interesse. — Entregou o papel a Isaak. — Agora eu gostaria de entender porque estamos falando sobre isso?

— Você não faz ideia como isso me deixou maluco! — Suspirou recostando no travesseiro ao lado de Sorento. — Um dia estava na casa de Kanon e vi esse papel. Fiquei tão puto, mais tão puto. Porra… — Olhou para Sorento. — Então a droga do almofadinha está afim do grego? Foi o que eu pensei. — Riu sem jeito. — E só depois percebi que em momento nenhum me preocupei com o cara que estava comigo. Sabe? — Sorento balançou a cabeça confirmando. — Minha preocupação, irritação, o motivo para estar realmente puto era imaginar que você pudesse estar de olho em outra pessoa. Meio que foda-se se era o Kanon, ou o riquinho do Julian Solo… Me corroia não ser eu. E isso me deixou com muita raiva.

— Por isso você falou comigo daquele jeito?

— Foi… Eu já nem estava mais com o Kanon. Mesmo assim precisava saber se você queria estar com ele… Ou com outra pessoa. No meio do caminho fui um babaca e…

— Vem cá… — Sorento puxou Isaak fazendo com que ele sentasse entre suas pernas e o abraçou. — Sobre isso já conversamos. Mas, acho que vou ter que agradecer ao Camus por ter dado esse papel ao Kanon e por todo o mal entendido, afinal, foi por causa dele que tive que te “dar algo para pensar”. — Sorriu beijando o pescoço de Isaak.

— Não sabia que você era do tipo engraçadinho. — Aconchegou-se virando o rosto e dando um beijo em Sorento. — Mas, você tem razão sobre isso… No fim, aquele dia me deu o empurrão que eu precisava para começar a entender meus sentimentos e… — Sorriu passando a mão pela perna de Sorento. — Comprovar que você é um puta gostoso. — Corou.

— Até onde sei você não comprovou nada ainda… — Fez uma trilha de beijos da nuca até a base do pescoço de Isaak. — Eu gosto de você, Isaak. — Sussurrou no ouvido dele. — De verdade...

Isaak sentiu um arrepio que se espalhou por todo o corpo e uma felicidade que não reconhecia desde a época em que a mãe era viva. Precisava lembrar de perguntar quem era o tal Camus, mas no momento só conseguia focar nas batidas de seu coração que pareciam ter aumentado de compasso e agora estavam em uníssono com as que sentia vindo de Sorento. Respirou fundo virando de frente para o Flautista, mais uma vez sentando no colo dele, não sabia identificar muito bem as sensações que o acometiam, mas de uma coisa tinha certeza, já não sentia mais raiva, irritação e aquele desejo maluco de chutar tudo. Tomou fôlego.

— É… Parece que estou mesmo nas suas mãos seu almofadinha. — Riu sendo acompanhado pelo outro. — Você não faz ideia do quão apaixonado estou por você… E o quanto eu quero você…

Tentavam regular o ritmo da respiração apenas o suficiente para voltar a se beijar e abafar os gemidos em meio ao ósculo.

Isaak fazia um esforço sobre humano para controlar sua voz, e não gozar ao mirar o rosto afogueado do Flautista que no momento mordia os próprios lábios, enquanto aumentava a pressão que exercia ao manipular o seu pau e o próprio, em conjunto, comandando aquela prazerosa orquestra. A maciez da pele em atrito uma com a outra, o cheiro que desprendia dos corpos, o desejo acumulado, os sentimentos recém descobertos e o receio de serem pegos no ato, acometeu a ambos e Isaak mordeu o ombro de Sorento assim que ouviu um gemido melodioso saindo de forma abafada dos lábios do seu Almofadinha, gozando em seguida.

— Parece que tocar flauta realmente tem suas vantagens… — A fala entrecortada.

— Você não faz ideia… — Sorento olhou para a semente de ambos que estava em suas mãos. — Não costumo fazer esse tipo de coisa na casa dos outros. — Respirou fundo. — Você tira parte do meu auto controle.

— Isso me deixa animado… — Sorriu. — Eu já perguntei isso hoje, mas… E agora?

— Agora preciso lavar as mãos. — Beijou Isaak. — E no domingo podemos sair depois que eu acabar o trabalho na livraria. — Levantou do sofá cama.

— Vai me levar a um encontro? — Riu.

— Pretendo. — Sorento foi em direção ao banheiro. — Não gosta da ideia? — Perguntou parado na porta do banheiro.

— Gosto sim… — Isaak falou sentando no sofá cama olhando sem jeito para o Flautista — Só achei engraçado… — Mordeu o lábio medindo as palavras. — Encontros assim, combinadinhos, me lembram aqueles casais de namorados...

— Huuum… — Sorento sorriu piscando um olho para Isaak. — É essa a intenção. — Entrou no banheiro fechando a porta, perdendo o momento em que Isaak se jogou de costas no sofá cama e rolou de um lado para o outro sorrindo.

— Ah merda! Virei mesmo um idiota apaixonado… E agora com namorado. — Pensou feliz.

Chapter 46: É tão irreal, o que eu sinto

Chapter Text

A festa se desfez bem rápido com a partida de todos em um espaço de tempo relativamente curto.

Aiolia aguardou o último táxi partir para só então observar as fotos que havia tirado nesta noite. Apesar de seu charme Lyfia declarou estar realmente cansada e necessitada urgente de repouso. Ele a compreendia, trocaram contatos e ela partiu com o restante de sua equipe. Era um grupo bem coeso e peculiar. O gigante que havia permanecido ao pé da escada do início ao fim da festa lhe endereçou um olhar agudo, não agressivo, mas passível de especulação e ele não ignorou.

Assim que o motorista que havia chamado pelo celular estacionou, conferiu os dados do aplicativo com a placa e detalhes do veículo e embarcou no táxi agradecendo, rumo a sua casa. Estava completamente desperto. Seguiu observando as imagens e não tentou refrear que seu olhar se demorasse sobre a figura de um dos convidados quando este aparecia nas imagens. E ele aparecia em diversas das fotos tiradas por ele e das que outros haviam enviado.

Suspirou apertando os lábios. Todas as pessoas em algum momento já pensaram sobre o que mudariam em suas vidas se a elas fosse permitido retornar no tempo. Ou a maioria das pessoas, pensava… Para o mais novo dos Íroas este tipo de raciocínio sempre o carregava para a mesma tarde de chuva; como a que começava a cair agora, leve e fria; no auge de seus 17 anos. Sabia que era muito jovem, naquela época, para saber que as consequências de suas atitudes poderiam reverberar pelo resto de sua vida. Não se culpava pela decisão e sim pelo que a havia motivado. Foi um covarde. E aparentemente teria que amargar essa perda eternamente.

Condenado a assistir de camarote todos os caminhos e percalços e torcendo, sinceramente torcendo, pela felicidade da pessoa de quem sempre gostou.

Às vezes buscava se consolar com a dúvida, não sabia também se teria funcionado, não sabia de nada. Era apenas isso… Um dia ele foi correspondido. Mas perdeu sua chance, atropelado pelos passos largos da vida. Essa entidade que não espera por ninguém, que não tem clemência ou piedade. A incansável e profunda experiência de viver, colhendo frutos e semeando tempestades… Mesmo quando o desejo é o tempo bom.

O que não daria para poder voltar no tempo e mudar o que disse. Mudar seu olhar assustado, seu gesto culpado que foi compreendido como desprezo. Sua fuga intempestiva. Até hoje seu coração ameaçava estourar em seu peito toda vez que se permitia apenas sentir aquela presença, fingir por alguns segundos que tinha direito de desfrutar da companhia… Dele. Quantas vezes quis abrir seu coração e se refreou por não se considerar digno… Ou por não ter esse direito. Perdeu sua chance. Engoliu em seco. Correu o dedo pela tela desviou seu olhar e guardou o aparelho no bolso. Mudou de ideia no minuto seguinte e retirando o telefone novamente efetuou uma ligação.

— Alô, Defteros, Aiolia aqui… Você e Dohko já despacharam o moleque? Saindo daí agora… Hnmm… — Ouviu que era dito pelo primo sorrindo — Pois é. Acabei sozinho. — Segurou a risada ao ouvir a resposta de Defteros, com certeza Dohko liberava o bom lado dele, não era sempre que se encontrava tão animado ou bem humorado. — Sim, sei onde é, encontro com vocês lá. Até já!

Desligou sério. Não podia voltar para casa ainda, aproveitar o fim da noite com os dois mais novos melhores amigos da família com certeza seria divertido, poderia beber tudo finalmente.

— Mudanças de planos, tudo bem para você me levar para a Rua do Coliseu?

— Sem problemas, Patrão — Respondeu o motorista sem conter seu riso malicioso e já dando seta para entrar no próximo retorno.

Aiolia agradeceu e respirou fundo, logo desembarcaria em uma das regiões mais boêmias e badaladas da Cidade. Dohko e Defteros realmente não brincavam em serviço.

Um pouco de alívio e alegria, era o que precisava.

***

Suspirou desgostoso ao olhar uma última vez para o celular e registrar que havia mais uma mensagem do maldito Italiano. Ângelo parecia estar excepcionalmente animado aquela noite e Shura não podia negar que a ideia de desviar mais uma vez seu destino e passar algum tempo contemplando o sorriso sacana, entorpecente, e desbravando aquele corpo que já conhecia bem, não lhe pareciam uma perspectiva ruim, muito pelo contrário.

Acreditava inclusive, que Máscara se divertiria ao ouvi-lo contar sobre as dançarinas acrobáticas, o “chega pra lá” que Seiya levou de Afrodite, e acima de tudo o inédito interesse de Kardia pelo Diretor. Tinha quase certeza que nesse ponto Ângelo se mostraria muito interessado, afinal, não estava ele mesmo adentrando esse terreno.

Podia até mesmo imaginar a face curiosa e atenta que ele faria, entre um beijo e outro, enquanto o ouvia falar e sussurrava em seu ouvido: “Você deveria falar com mais frequência Bello, gosto dos sons que saem da sua boca… De todos eles.”

Reconheceu o arrepio que acometeu seu corpo e não pôde deixar de morder a parte interna da bochecha ao notar que havia recebido mais uma mensagem do Cabrón. Respirou fundo, havia decidido seu destino.

Estava prestes a responder a mensagem, quando a tela do celular se iluminou e finalmente recebeu a resposta de Shaka.

Acreditou piamente que o marido já estivesse dormindo, e sentiu uma onda de desprezo por si mesmo, somado a um embrulho no estômago ao perceber o que intencionava fazer. Parte de si creditou o mal estar a bebida, a outra parte, aquela mais sincera, deixou claro o quão repulsivo era o seu papel dentro daquela trama intrincada que havia se habituado a desempenhar.

Recostou no banco do carro e respondeu Máscara da Morte com uma negativa, não podia desviar seu caminho, não aquela noite. Fechou os olhos assim que viu pelo aplicativo de mensagens que o Italiano digitava algo. Aguardou a resposta… Ela não veio.

Provavelmente ele tinha desistido. Essa possibilidade o incomodou como nunca antes, afinal, não esperavam nada um do outro. Não era como se fossem um casal, ou se nutrissem algo além do puro desejo. Certo? Sua mente não soube responder.

Colocou o aparelho no colo e estalou os dedos. Seria realmente melhor se ele desistisse… Se ambos desistissem…

Ouviu a voz do motorista avisando que tinham chegado ao seu endereço, olhou pela janela do carro e agradeceu. Desceu, caminhando devagar, quase como se estivesse indo para o próprio julgamento. Ouviu o som do celular e ao olhar o aparelho leu a mensagem: Tudo bem, Bello. Sempre que quiser… E quando quiser.

Inferno!

Olhou pra trás vendo o carro se distanciar, uma vontade absurda de correr e gritar quase o dominou.

Pelos deuses, ele queria, ele sempre queria! E se sabia disso, porque ainda estava ali?

Parou na porta olhando por alguns segundos a maçaneta antes de colocar a chave, respirou fundo, estava em casa. Essa constatação não trouxe a sensação de alegria e calmaria que costumava trazer. Talvez, e só talvez, fosse verdade o que diziam sobre o lar ser o lugar onde o coração está. Por mais brega e piegas que a ideia fosse, não pôde deixar de imaginar como se sentiria se ao abrir aquela porta encontrasse aquele belo par de olhos terracota e o sorriso profano mais bonito que já contemplou. Balançou a cabeça em uma tentativa de espantar a ideia. Estava em casa no final das contas e alguém o aguardava.

Assim que abriu a porta percebeu a claridade que emanava da sala e não pôde conter o suspiro cansado que saiu de seus lábios, sentia-se mais confortável em meio a escuridão. Fechou a porta atrás de si, massageou as têmporas antes de cumprimentar o esposo que estava sentado no sofá munido do que parecia um livro, vestindo apenas uma cueca boxer branca e a surrada camisa verde que já havia sido sua, os cabelos presos em um coque alto, displicente.

Sorriu desanimado, Shaka era sem dúvida alguma uma bela visão, quanto a isso não havia dúvida.

— Boa noite Rubio! — Shura cumprimentou deixando os sapatos próximo a porta.

— Boa noite! — Shaka o olhou sobre os óculos de aro arredondado. — Como foi a despedida?

— Tranquila. — Beijou os lábios do esposo. — As moças eram ótimas dançarinas e acrobatas.

— Acrobatas? — Questionou sorrindo levemente. — Não pensei que o público hétero e bi fosse se interessar por acrobacias.

— Nem eu… — Deu de ombros indo até a cozinha. — Achei que já estaria dormindo. Você costuma ser bem regular nos seus horários.

— É… — Fechou o livro acompanhando os movimentos de Shura. — Fiquei sem sono e resolvi ler…

— Posso fazer um chá pra você. — Sugeriu bebendo um copo de água encostado na bancada da cozinha.

— Já bebi algumas xícaras…

Shura olhou com atenção para o marido e notou um quê de ansiedade nele. Mais uma vez via o Rubio incomodado depois de sair com o famigerado amigo francês. Em momento algum Shaka havia dito que sairia com Camus, mas tinha certeza que era com ele o tal café que mencionou que iria tomar. Sem perceber crispou os lábios, não estava em condições de cobrar nada. Mesmo assim, não conseguia impedir a crescente onda de irritação que estava se formando.

— Saga parece estar namorando… — Comentou desviando o olhar de Shaka, focando no copo de água em suas mãos. — Um rapaz muito gentil, diga-se de passagem, Afrodite.

— Jura? Não pensei que ele fosse do tipo que namora…

— Nem eu. Parece que as pessoas mudam. — Voltou a encarar o esposo. — Como está Camus?

— Bem. — Respondeu depois de alguns segundos. — E Aiolos?

— Animado, como sempre. — Deixou o copo vazio dentro da pia. — Perguntou por você. Inclusive ficou na dúvida se eu tinha te convidado.

— Explicou que não é muito meu tipo de evento?

— Nem precisei… — Sentou ao lado de Shaka. — Ele te conhece minimamente… — Olhou o livro que estava no colo do marido. — Aqui?

— É um quadrinho que fala em certa medida sobre a passagem do tempo e como algumas coisas permanecem, se modificam, enfim… — Explicou esticando o livro na direção de Shura.

— Parece interessante… — Fez menção de pegar o livro quando viu um cartão em cima da mesa de centro, passou os olhos brevemente lendo o conteúdo. — Presente do Camus?

Observou o esposo se mexer no sofá pegando o cartão e colocar dentro do livro. Estalou os dedos repetindo aquele que era seu mantra há pelo menos três meses: “Não estou em condições de cobrar nada.”

— Foi sim. Ele me deu esse livro pouco antes da mudança. Posso te emprestar se quiser ler, sempre deixo na estante.

— Agradeço. — Deu um riso nasalado.

— Algum problema Shura?

— O que você acha?

— Não sei… Por isso estou perguntando. Quer me dizer algo?

Sim, tinha muita coisa que ele gostaria de falar naquele momento e a principal delas girava em torno daquela amizade que sempre lhe despertou indefectível desconforto.

Nunca compreendeu muito bem as intenções de Camus para com Shaka, mas era nítido que o esposo dedicava uma atenção especial ao amigo de longa data. No fundo, sabia muito bem que existia algo ali, e se condenava por não ter externalizado com mais ênfase sua insatisfação, mas agora era tarde. Já não se sentia íntegro suficiente para exigir o que quer que fosse e isso era reflexo direto da segunda coisa que precisava contar ao Rubio.

— Bebi demais, só isso.

— Custo a acreditar. Já te vi consumindo doses alarmantes de álcool…

— Algumas coisas não precisam ser ditas, Shaka. — Tentou levantar do sofá, sendo impedido.

— Como o que, por exemplo? — Colocou uma das mãos no ombro do marido.

— Deixo isso para sua conclusão.

— Certo… — Colocou o livro na mesa de centro. — Como seus olhares preocupados e conspiratórios para o seu celular, ou o cheiro de cigarro que às vezes sinto em suas roupas?

— Não seria mal exemplificar com a atenção descabida que você dá para o seu amigo francês e a falta de tato dele para entender que você não é um homem solteiro.

— Algumas coisas precisam ser ditas, Shura. Você não pode ficar calado o tempo todo.

— Meu silêncio nunca te incomodou antes, ao menos até onde eu sabia.

— Assim como a minha amizade não parecia te incomodar. Ao menos não ao ponto de te deixar nervoso. — Olhou para as mãos de Shura que continuava estalando os dedos. — O que está acontecendo?

— Diga-me você Rubio. — Levantou do sofá se desvencilhando da mão de Shaka que continuava em seu ombro, encaminhando-se para o quarto. — Você que parece averso ao silêncio.

— Aversão alguma. — Seguiu Shura até o quarto. O semblante demonstrando toda a contrariedade com relação às atitudes do esposo. — Você sabe que eu aprecio e muito o seu jeito de ser.

— Então, me explica porque você preferiu ir tomar café com o seu amigo ao invés de ir comigo a despedida? Ou porque assim que transamos você foca seu pensamento naquele francês? Sou um homem compreensivo Shaka, mas ter você falando de Camus logo após o sexo me faz pensar se por acaso não estava pensando nele durante todo o tempo. Me foge o entendimento de tamanha devoção.

Shaka empalideceu levemente, mas não desviou o olhar de Shura que abria os botões da camisa com clara irritação.

— Você está imaginando coisas… — Falou em um fio de voz.

— Estou? — O tom seco.

Não, definitivamente ele não estava. Foi a última coisa que Shaka pensou antes de abraçar o marido, que após breves segundos correspondeu ao enlace com igual intensidade. Sabiam reconhecer o que estava escondido por trás do brilho afiado dos olhos de Shura e do inquisidor de Shaka, a culpa.

Aquele sentimento que parecia transbordar em ambos, de tal modo que já não sabiam o que realmente os incomodava e o que era a tentativa de espelhar suas frustrações.

Não era à toa que estavam juntos há mais de um ano, entendiam-se de uma forma quase singular, excetuando suas peculiaridades, tinham uma personalidade semelhante e sabiam sim registrar a culpa, o receio, o medo, a mágoa e acima de tudo a necessidade de compreensão.

Queriam e precisavam ser compreendidos dentro de suas questões, mesmo que não fossem verbalizadas.

Afastaram-se minimamente, encarando-se com intensidade.

— Vem… — Shaka chamou conduzindo Shura até a cama. — Vou te mostrar a real devoção...

Continuavam a desejar outros olhares, mas não se furtavam de apreciar o que tinham a sua frente e até mesmo a culpa que conseguiram ler um no outro, servia como acalento para aquele momento em que ainda não tinham a coragem para colocar em prática aquilo que precisavam fazer.

***

Esteve tranquilo durante tantos dias, imerso na aura calorosa que emanava de Milo. Perto dele sentia que apenas os melhores aspectos de sua essência se destacavam.

Vinha se dedicando com afinco ao trabalho e a faculdade. Guardando todo dinheiro que conseguia, afinal o pai ainda que ausente sempre o ajudou financeiramente. Estava contente com sua vida, não estava? Mesmo Isaak parecia menos angustiado e por mais que nunca houvessem desentendido de verdade, nem as pequenas desavenças do dia a dia vinham acontecendo.

A vida seguia em um ritmo completamente inédito de bonança.

Hyoga suspirou alcançando mais uma lata de cerveja. Perdeu as contas de quantas bebeu. Isaak havia enviado uma mensagem há algum tempo avisando que estava indo para a casa de Bian e Io. Ficava genuinamente feliz por ele ter tão bons amigos. Não podia, entretanto, deixar de refletir que ele mesmo, não possuía nenhum vínculo mais profundo com mais ninguém. Isto nunca havia sido motivo para qualquer preocupação. Agora, por motivos que não admitia abertamente isso emergia.

Essa inesperada aparição de Pandora, como que invocada por algum passo equivocado de sua parte. Não que a detestasse, eles não tinham mais nada a ver um com o outro. E a impulsiva mensagem para Ikki. Cobriu os olhos com o braço lamentando mais uma vez. Não deveria ter feito isso…

Gostaria imensamente que Milo estivesse ali com ele. A ironia da imagem recebida há pouco foi tanta que o desestabilizou. Deveria rir, não é? Imaginava que faria sentido se divertir com o fato de que uma de suas ex namoradas da adolescência era agora uma dançarina extremamente sensual, e segundo a mensagem de Milo uma “garota encantadora!”. Ironias… Olhou mais uma vez a fotografia.

Inferno eles chegavam a ser parecidos!

Nunca percebeu ter um “tipo” que lhe chamasse mais a atenção. Se bem que Eire também era loira e de cabelo cacheado… Ela no entanto, tingia os cabelos originalmente castanhos. Mesmo assim, isto não chegava a configurar um padrão… Ou não? Namorou duas morenas de cabelos lisos também. Quase riu ao lembrar desse detalhe. De qualquer forma, era quase perturbador analisar que Milo e Freya carregavam características física marcantes, poderiam até ser da mesma família.

Estremeceu. Sentia um constrangimento crescente.

Só podia ser uma coincidência bizarra, essas coisas aconteciam eventualmente. Era provável que existisse inclusive algum algoritmo para calcular a probabilidade de que pessoas completamente randômicas esbarram umas nas outras durante a louca jornada da vida.

De qualquer forma se incomodou em um nível que nem julgava ser capaz. Não queria Milo ao lado de Freya, de ninguém… Sabia que estava sendo infantil, naquele momento não se importava. Estava exausto demais para ser maduro, ou sequer civilizado.

Freya estava ainda mais linda do que se lembrava e Hyoga não suportava a ideia de perder seu homem para uma ex namorada mais uma vez. Estava provavelmente bêbado. Mais uma mensagem de Milo: “Você já deve estar dormindo, já estou chegando em casa. Celular ficando sem bateria. Nos vemos amanhã? Boa noite” Leu sentindo o coração apertado. Respondeu: “Estou acordado ainda”.

Fechou os olhos por um tempo indeterminado massageando suas têmporas. Tentava relaxar lembrando de doces momentos nos braços do Deus Grego com quem vinha se encontrando e sorriu ao sentir o aparelho vibrar novamente em sua mão, estava esparramado no sofá, as latinhas de alumínio se acumulando na mesinha à sua frente.

Sentiu todo corpo tremendo quando leu a mensagem “Estou aqui” antes mesmo de reconhecer o remetente seu corpo ergueu-se por vontade própria e foi até a janela um nó na garganta e o coração acelerado. Como se houvesse voltado no tempo, atordoado reconheceu lá embaixo ninguém menos do que Ikki.

Teve que se apoiar para não cair. Podia sentir o olhar dele sobre si. Mesmo a distância mesmo com a pouca luz.

Todo álcool pareceu deixar seu organismo instantaneamente.

Puxou a cortina devagar a fechando e caminhou até o interruptor apagando as luzes. Sentou-se no chão olhando para o aparelho em sua mão e após buscar o contato o colocou na orelha. Sentia que havia causado essa situação por ter agido de forma impulsiva, a vida sempre responde com coice seus deslizes, deveria já estar mais calejado nesse ponto.

Do outro lado pode ouvir a respiração do homem que poderia estar a seu alcance em poucos passos. Isto já foi tudo o que mais quis.

— Você me odeia? — O moreno perguntou com a voz carregada de receio e pesar.

— Não. — Hyoga imediatamente respondeu sentindo os olhos se enchendo de lágrimas. Estava sendo honesto — Mas…

— Mas não me ama mais… — Ikki completou abatido — Eu já entendi Hyoga. Não vou insistir mais, está tudo acabado. Sabemos a quem culpar por isto, afinal… Por favor, me perdoe. Não vou mais te procurar, aparecer por aqui.

— Ikki… Me desculpe também. Não se culpe mais, prometa, apenas… — Sua voz falhou e ele respirou profundamente antes de continuar — Se cuide por favor e procure um caminho para ser feliz. Eu sei que você é uma pessoa maravilhosa. Precisa deixar outras pessoas descobrirem isso também.

Depois destas palavras a linha permaneceu silenciosa por alguns momentos. Apenas a respiração baixa de ambos.

— Hyoga, eu te amo. Adeus.

 

Desligou sem dizer mais nada. Não havia nenhum motivo. Mais uma vez agiu por impulso.

Saiu da casa de Camus e ao chegar na sua não conseguia parar de pensar em Hyoga. Então lá estava ele, depois de dirigir até ali no meio da madrugada e observar a luz acesa pela janela por longos minutos até ter coragem de enviar a derradeira mensagem.

Sabia qual seria o resultado. Será que precisava ter seu coração esmigalhado mais uma vez? No fundo soube… Precisava dizer que o amava. Nunca havia confiado em si mesmo o bastante para assim o fazer.

Deletou o contato do loiro de seu celular. Entrou no carro e iniciou seu caminho de volta para casa. Hyoga estava livre para voar, viver um amor acolhedor como ele merecia.

E quanto a Ikki, secou a lágrima solitária que lhe cortou o rosto ornado por um sorriso triste.

Finalmente aceitou: A ele só restava renascer das cinzas.

Chapter 47: Você não pode recusar o abraço

Chapter Text

Acompanhou Julian até o carro onde o motorista, um tipo gigante e amigável apesar da face aterradora aguardava encostado vestindo um terno muito elegante. Cassius parecia um mafioso, ou um lutador profissional. Entretanto, desde sempre trabalhava para Julian com fidelidade e adoração caninas.

Solo cuidava dos seus. E em muito já havia ajudado o soturno rapaz. Entraram no luxuoso carro de vidros escuros e blindados, provavelmente, após saudar o motorista que respondeu simpático com seu sorriso quase imperceptível.

No banco de trás Kanon voltou seu rosto para a janela. As palavras do irmão assim como as de Aiolia e Milo ainda estavam frescas em sua memória. Ele e Julian eram amigos há muitos anos.

Mentiria se afirmasse que jamais havia cogitado qualquer contato de natureza sexual ou romântica com Julian. Obviamente isto seria impossível. O jovem Imperador era belíssimo e notavelmente seu tipo. Gênio forte, inteligente, mais baixo, assertivo, instigante e divertido. Tudo que o ex Radamanthys jamais foi.

Ele e Julian… Os amigos apoiavam, incentivavam. Era irônico pensar que nas duas oportunidades em que poderiam ter ficado juntos foi Kanon quem acabou “amarelando”. Ou estragando tudo de forma desastrosa.

Primeiro por achar que o então estudante calouro era muito jovem, absurdo se pensar que há pouco estava envolvido com Isaak que é bem mais novo que o próprio Julian; e na segunda por estar na fossa em função da traição de Radamanthys e não ter tido energia para se posicionar com firmeza ao que quase aconteceu entre ele e o herdeiro Solo.

Entretanto para o Kanon de 25 anos de idade, a diferença de 5 anos entre eles parecia intransponível... Portanto quanto mais a amizade deles se estreitava, mais a possibilidade de se envolverem de qualquer outra forma diminuía. Ridículo. Mas na época fazia sentido sem qualquer espaço para debate. Hoje conseguia entender que sempre teve receio de perder a presença do Imperador iluminando sua vida.

Julian sempre o apoiou e esteve ao seu lado. Foi um amigo dedicado. Tinha certeza de que a afeição entre eles era profunda e verdadeira. Infelizmente as oportunidades perdidas pareciam ter feito arrefecer o desejo do outro. Quanto a ele, Kanon sabia que aquela faísca sempre esteve em seu peito.

Nos últimos dias, enquanto se afundava em auto piedade foi mais um vez Julian quem notou sua ausência e parou tudo em sua agitada vida para ir encontrá-lo, animá-lo e tirá-lo de casa. Ver a maneira como Deusa o olhava com adoração foi o gatilho para trazer a tona esses sentimentos há tempos guardados.

Reparou na beleza dos traços, na profundidade cinzenta dos olhos e na voz máscula que raramente se alterava. Julian era elegante e tinha um corpo construído em muito esforço e dedicação. Lembrava que ele tinha sido uma criança e adolescente gordinho. Mesmo naquela época, com todas as mudanças que deixam a maior parte dos garotos esquisitos durante algum tempo, era bonito e tinha uma personalidade charmosa, magnética. Sempre com aquela aura de quem sabia muito mais do que os outros seres vivos.

Depois de adulto apenas tornou-se cada vez mais envolvente. Lindo, seguro e bem sucedido. Era um homem consciente de seu magnetismo e estava sempre rodeado de lindas mulheres.

Jamais tinha visto ele com nenhum parceiro. Claro que em diversos momentos Julian fazia comentários sobre seus primos especialmente, quase como se tentasse provocá-lo, mas concretamente jamais soube do envolvimento dele com homem algum… E assim, pensar que logo que se reencontraram na faculdade Julian deixou bem claro ter interesse em sua pessoa em muito envaidecia o gêmeo mais novo.

Já havia aceitado o arrependimento por não ter cedido a investida. No fundo, naquela época, tinha além do receio de estragar a amizade entre eles a ideia de que talvez Julian estivesse confundindo seus sentimentos, como se o outro houvesse desenvolvido uma espécie de admiração por ele, em função de alguns eventos da adolescência de Julian em que Kanon o havia apoiado… Mesmo este pensamento hoje o fazia sentir um tanto imbecil, como se fosse uma desculpa esfarrapada, como apontado por Julian na época.

Assim como tentar agarrar o amigo durante sua crise pós Radamanthys também havia sido, realmente não era um momento do qual se orgulhava. Ainda se lembrava do misto de tristeza e irritação que leu no olhar e nos gestos de Julian. Foi rejeitado. “Não desse jeito” — foi taxativo. E estava coberto de razão. Kanon preferiu agir como se nada tivesse acontecido e assim foi feito.

Pensou que a amizade estava acabada naquele momento. Não foi o que aconteceu, poucos dias depois Julian também deixou a Inglaterra e retornou à terra natal. O procurou e o acolheu. Nunca mais tocaram no assunto e tanto tempo depois estava mais uma vez a ideia em sua mente.

Saga por mais de uma vez tinha dito que era perceptível que existia algo entre eles. Mas, o gêmeo mais velho tinha uma tendência maior a ser malicioso, então tentava ignorar.

Entretanto, agora tudo era diferente. Estavam ambos solteiros, desimpedidos e mais maduros.

Arriscou um olhar para o homem ao seu lado e talvez percebendo sua movimentação, Julian o fitou no mesmo momento.

— Está se sentindo bem Kan? Algo te preocupa?

— Estou bem… — Sorriu ante ao apelido que somente Julian usava para com ele, sabia que algo havia mudado, ou quem sabe apenas emergido, nos últimos dias — Acho que nem estou mais bêbado.

— Quanto a isto tenho minhas dúvidas. Você misturou muita coisa nesta noite, exagerou. Sempre fica amoroso quando bebe… Não imaginei que era com qualquer um.

— Obviamente eu não fico amoroso com qualquer um Julian. Fico mais expansivo, inegável, mas amoroso… Você sabe que não é assim.

— Não sei de nada. Você beijou o Dohko…

— Foi uma beijoca de brincadeira. O velhote é muito divertido. Por acaso, você ficou com ciúme?

— Ciúme? — Julian considerou por alguns momentos o que ouviu. — Vergonha alheia, penso que se enquadra melhor.

— Muito ciúme, então Sr. Solo, quem diria? — Kanon sorriu coçando o queixo.

— Você quer tanto assim que eu sinta ciúmes? — Julian perguntou estreitando os olhos. Finalmente chegaram e ele saiu do carro. Disse boa noite para o motorista e aguardou Kanon para entrarem em sua casa.

Era uma casa enorme, em estilo moderno, com uma vista maravilhosa de uma das melhores praias da Cidade. Fazia um tempo que Kanon não via o mar e a brisa que trazia o cheiro da maresia o acalmou como se estivesse nos braços da felicidade. Julian parou ao seu lado e acompanhou seu olhar. Escutaram o carro partindo em direção a garagem.

Era uma madrugada silenciosa e o som do mar chegava até eles suave.

Kanon passou o braço sobre os ombros do amigo que ergueu levemente o rosto para encará-lo.

— Obrigado Julian. Você me resgata há tanto tempo. Que talvez por um costume egoísta eu tenha parado de agradecer. Porém, não é justo que eu deixe de te dizer o quanto é uma pessoa essencial na minha vida. E quanto a sua pergunta. Sim, eu quero.

Neste momento, sentindo o calor do corpo do amigo Julian em nada referenciava sua corrente imagem de Imperador. Pareceu levar alguns segundos para compreender o que lhe era dito em voz tão honestamente doce. Algo familiar acordou dentro dele…

A alegria ou a tristeza, a ironia e o desprendimento. Quase tudo é sincero entre aqueles que não sabem seu limite. Que cantem os bêbados aos sete ventos, aos que assistem sempre sobra, residual ou encorpada a vergonha alheia. Não que fosse ele a pessoa mais controlada do mundo, os Deuses sabiam que não era o caso, mas o espetáculo protagonizado pelo nada discreto loiro de quase 2 metros de altura durante toda a noite foi realmente difícil de ignorar. Em função disso por diversos momentos esteve quase ressentido e talvez ligeiramente mal humorado, fora de sua costumeira postura de superioridade.

Agora entretanto, Kanon demonstrava uma segurança e sobriedade que em muito transcende a ligação desta ideia com bebida. Pela primeira vez em anos apenas não pode sustentar o olhar dele.

Sentia o calor do corpo ao seu lado o envolvendo. Estava sem palavras, fato, não se afastou do contato, não que fosse raro se tocarem, mas algo havia mudado.

Sentiu a primeira gota de chuva em seu nariz e sorriu. A chuva começou suave, adentraram a casa e logo a suave chuva se transformou em um temporal que açoitava as imensas janelas.

— Não creio que será possível ir a praia com este tempo Kanon.

— Teremos que fazer outra coisa então… — Respondeu girando seu corpo para que pudesse o abraçar completamente, de frente.

Sentiu a respiração de Julian em seu peito e foi invadido por uma sensação avassaladora. Um calafrio perdido há muito tempo retornando. Acariciou os cabelos do amigo sabendo que nesta posição ele certamente ouvia o bater desenfreado de seu coração. Fechou os olhos sentindo o calor daquele corpo junto ao seu.

Há alguns anos, pouco antes de engatar o romance com Radamanthys teve a quase certeza de que Julian nutria por ele sentimentos que transcendem a amizade.

Naquela época, no entanto, considerava que a diferença de idade entre eles e o fato de Julian ser um aluno na turma em que atuava como professor assistente de seu orientador do mestrado, eram empecilhos. Óbvio que sentiu vontade. Que ser vivo poderia ser indiferente a Julian Solo? E talvez, provavelmente, em função de ter se assustado com a presença magnética do outro acabou se convencendo de que o melhor para eles era ser amigos. Amizades tendem a durar mais que romances e não estava disposto a abrir mão da presença de Julian em sua vida.

Estiveram um ao lado do outro em alguns momentos que poderiam ser considerados críticos. Logo que soube da traição de Radamanthys deixou a Inglaterra sem pensar muito. Foi o herdeiro Solo quem cuidou de todas questões burocráticas com a sua partida. Resolvendo tudo acerca do apartamento em que morava, despachando suas coisas e dando conta de explicar a situação para todos aqueles que conviviam com Kanon por lá.

E então quando se encontraram novamente Kanon, enfim, houve a situação da rejeição. Hoje entendia melhor o que se passou. É engraçado como na vida as vezes que parecia tão insolúvel simplesmente se desfaz no ar como em um sopro de delicadeza e afirmação.

— Você se lembra quando me disse “Não” Julian? — Sentiu o suspiro do outro em todo seu corpo.

Afastando-se ligeiramente Julian ergueu os olhos para ele. Seu rosto bonito concentrando uma sabedoria que não poderia jamais pertencer a nenhum mortal. Naquele momento o brilho de seus olhos emanava uma energia divina… Foi a vez de Kanon estremecer.

— Eu disse, e me lembro muito bem: não daquele jeito. — Fitou o rosto de Kanon daquela forma que apenas ele conseguia — Tem certeza de que não está mais bêbado?

— Estou sóbrio como há muito não me sentia. — Acariciou o rosto do mais baixo levemente e acompanhou o dilatar de suas pupilas como se fossem os olhos de algum ser sobrenatural — Lúcido. Nada mais turva minha percepção Senhor Julian Solo.

— Interessante — Julian deu um passo para trás com um sorriso indecifrável curvando seus lábios. — A maior parte dos bêbados se auto declara como sóbrios. Repetidamente se afirmam lúcidos e sóbrios.

— O que preciso fazer para te provar? — Kanon questionou enfatizando maliciosamente as palavras.

Estavam já em uma parte coberta que margeava toda a edificação. A chuva engrossou e ouviram alguns trovões retumbando longe. Kanon não pretendia se impor, de qualquer forma não sentia tão pouco nenhuma vontade de recuar. Seu coração estava desgovernado, apesar do peito que parecia em vias de se abrir pela pressão do músculo involuntário bombeando sangue para todo seu corpo, ele estava tranquilo.

— Julian… — Diminuiu a distância entre eles — Por favor…

O dono do Imperador o fitou como se tivesse acesso a todos os mais profundos recantos de sua alma. Ergueu as mãos e rodeou seu rosto levando Kanon a fechar os olhos enquanto armazenava em seu coração aquela sensação.

— Você pretende manter a barba? — Julian perguntou enquanto sentia os pelos passando por seus dígitos em uma carícia inédita para ambos.

— Não pensei… Posso deixar se você gostar. — Kanon abriu os olhos e isso foi o suficiente para que Julian sentisse eletricidade correndo selvagem por todo seu corpo.

— Eu gosto, muito mesmo. Mas, não desta. Esta barba você deixou para zerar seu relacionamento com o menino Isaak. Eu vou te barbear e depois, você pode deixar crescer novamente uma para mim, se assim quiser, não pode?

— Posso. — Kanon falou sem desviar o olhar. Julian estreitou seus próprios olhos e ponderou por uma fração de segundo antes de finalmente quebrar aquele encanto entrando na sua casa.

— Você ainda lembra onde fica seu quarto? Tem algumas coisas suas no armário, mas se precisar de algo me avise. Eu preciso tomar um banho, meus ombros estão me matando… — Julian disse enquanto massageava um dos próprios ombros. Percebeu uma mudança no semblante de Kanon pouco antes de seguir para seu quarto. — Tudo bem?

— Julian… Você me conhece bem o suficiente para saber que não estou brincando, certo? Eu sei que pode parecer repentino para quem não conhece toda nossa história, mas estamos só eu e você aqui. Vamos tentar?

Não existia Imperador naquele momento. Julian sentia as pernas fraquejando. Seu cérebro o alertava para ser cauteloso, seu coração tinha medo de se ferir e seu corpo todo gritava para finalmente sentir Kanon. O biólogo percebeu a quebra em sua postura sempre altiva, não soube interpretar se era adequado insistir e optou por desta vez ser ele a dar um passo atrás.

— Me deixe organizar as ideias Kanon, eu preciso de um banho e… Podemos conversar depois? — O tom de Julian não dava espaço para discussões. Seu olhar era firme como sua postura. Com um meneio de cabeça ele se despediu.

— Está bem… Você está certo. — Kanon respondeu aceitando o que lhe parecia uma derrota, tentou parecer tranquilo sem saber se conseguiria deu de ombros e partiu rumo a seu quarto.

Já lá dentro fechou a porta e se apoiou na parede de olhos fechados. O coração acelerado. Não podia nem se dar ao luxo de se sentir rejeitado. Tão pouco de culpar o amigo.

— Droga! — Resmungou enquanto arrancava suas roupas.

Precisava entrar no mar, sentir a água salgada purificando sua alma, mas com a tempestade que ecoava do lado de fora isto estava fora de cogitação. Abriu o armário e tirou dele um short preto. Deixou as roupas usadas jogadas no chão, estava tão frustrado que o resquício do álcool deixou seu organismo.

Tinha tanta coisa dele e para ele naquela casa. Um quarto, roupas… Tudo tão explícito que sentia-se um cretino por ter demorado tanto a perceber. Escovou os dentes e evitou encontrar seu próprio olhar no imenso espelho. Entrou embaixo da ducha. Um jato fortíssimo de água morna. Deixou que a água lavasse o restante de suas energias. Há um bom tempo tinha perguntas que fazia a si mesmo evitando as respostas.

Não era necessário explicar novamente.

Ele sabia, quase podia ver de fora seus erros. Radamanthys, agora entendia que ele havia feito as piores escolhas, mas não era o único responsável. Terceirizar a culpa era sinal de imaturidade. Kanon era um homem, um adulto há tempo suficiente para saber engolir sua parcela de responsabilidade. Isso não significava diminuir o papel do ex em tudo que aconteceu entre eles. O passado foi-se. Então, Isaak. O garoto incandescente. Talvez nem o próprio soubesse de sua beleza, de sua intensidade, do quanto era especial e intrigante. Nada com Isaak poderia ser entediante e a certeza de prazer em seus braços era fato dado. Então, por que sempre tinha que se esforçar tanto? Qual o motivo de quase se impor ao garoto? Kanon sabia que não passaria do que foi há muito tempo. A camuflagem que parecia tão densa se desfez no ar.

Ele deixou Isaak ir, pois nenhum deles estava lá por completo. Não foi algo que acabou, apenas jamais existiu. Não concretamente.

Seu coração tinha dono há muito tempo. Partes dele sempre tiveram medo de encarar a possibilidade de uma vida sem Julian, assim o mecanismo de mantê-lo ao seu lado como o fiel escudeiro, o amigo incansável… Quando lhe ocorreu que isto seria o suficiente? Quando passou apenas a se enganar e assim arrastar Julian até o ponto onde talvez não restasse mais nada?

Incrível crescer, envelhecer e permanecer apegado a resoluções tão pueris.

Ele chamou Isaak de moleque. Inferno, ele já havia dito ao próprio Julian que a diferença de idade entre eles era decisiva. Não queria agora escutar a vergonha que gritava em seus ouvidos.

O absurdo de duvidar… Duvidar de seus próprios sentimentos. Por quanto tempo ele suportou se enganar? Enterrando em sua própria carne seu desejo, seu… Amor? Será que era o que sentia? Aterrorizante. E… Libertador? Há pouco tinha tantas certezas. No espaço de uma noite, de horas tudo se misturava nele. Sabia qual era a constante. Sempre soube quem era seu porto seguro.

Terminou o banho. Secou o corpo forte e vestiu a mínima peça de tecido macio. Desembaraçou os cabelos e os deixou caindo por seus ombros.

Deixou o banheiro, já no quarto sentiu seu coração falhar uma batida e então acelerar. Lá estava Julian, a sua espera. Quase etéreo, inefável. Soberano. Mais uma vez muito além de qualquer projeção e entendimento. Encostado na porta fechada, seu corpo exalando o frescor do banho que também experimentou há pouco. Mesmo a camiseta simples, branca e a calça de pijama azul marinho que quase cobria seus pés descalços davam a ele ares de divindade. Uma expressão de sublime serenidade.

Kanon tentou tomar fôlego, nenhuma palavra se formou. A toalha que estava nas suas mãos caiu no chão e ele não se importou. Em dois passos estava a frente de Julian, ainda sem tocá-lo. Olhos nos olhos. Seu coração retumbando mais forte que os trovões que ornavam a tempestade lá fora.

O Imperador ergueu a mão mais uma vez lhe tocando o rosto. Os dedos nos macios pelos quase castanhos em seu rosto. Era o suficiente para que nada mais existisse no mundo para Kanon. Nenhuma questão, as sensações que já havia vivido. Tudo era um lampejo de vida quando comparado a conexão que se dava ali. Ele quis gritar, quis chorar. Sabia que seus olhos deveriam estar marejados. Fechou os olhos sentindo fraquejar suas pernas.

— Eu sou seu homem, Kanon. Não fuja mais de mim...

A voz de Julian chegou aos seus ouvidos encaixando todos os elementos do universo. Mais soube do que sentiu as lágrimas que deixavam seus olhos.

Julian observou o gigante a sua frente. Uma alma forte e delicada. Não suportaria ser rejeitado mais uma vez. Sentiu em sua mão a umidade da lágrima e levou aos lábios o líquido salgado na ponta dos dedos. Foi este o momento escolhido por Kanon para abrir seus olhos escurecidos de desejo e sorrir mais por eles que por sua bela boca. Beijou primeiro a testa do herdeiro Solo e em um movimento ergueu todo seu corpo o apoiando na porta. Estavam assim se olhando sem a diferença de altura. Tão próximos que suas respirações se misturavam.

— Você é. Me perdoe por ter estado tanto tempo perdido. Em toda tempestade você foi o meu farol, nunca mais quero ficar longe de você Julian. Meu melhor amigo… — Aproximou a boca da do outro homem cujos lábios tremeram de expectativa. — Meu homem… Meu amor.

Não foi um beijo delicado. A vontade contida há tantos anos explodiu como ondas furiosas contra a costa. Naquele momento nenhuma palavra doce foi proferida. Eram dois homens agarrados como animais, sedentos e necessitados um do outro.

Kanon sentia orgulhoso o desejo nada modesto de Julian contra seu estômago e pressionava sua vigorosa ereção que quase rasgava o tecido de seu shorts ao encontro do traseiro do anfitrião em movimentos cadenciados. Mordiam e sorviam, explorando as cavidades quentes com línguas e suspiros. Gemidos e toques urgentes.

Kanon sentia o mundo girando. Nunca antes seu corpo reagiu a ninguém com aquele abandono. Soube. Era o certo. Era perfeito. Carregou Julian sem deixar de beijá-lo até a cama. Colocou-o sentado lá e o ajudou a se livrar da camiseta. Julian resplandecia na meia luz do quarto.

Obviamente não era a primeira vez que Kanon reparava no corpo perfeitamente talhado a sua frente. Os beijos de Julian eram doces e exigentes. Cada toque de suas mãos imprimia em Kanon a certeza lúcida de jamais voltaria a ser apenas um homem cujo tempo passava através, arrastando sua vida como uma correnteza descontrolada.

O homem que explorava seu tórax com os lábios e a língua deixava marcas profundas em sua alma. Um prazer além do prazer. Ergueu o rosto apreciando aquelas sensações por algum tempo. Porém não pode se conter e logo apoiou uma mão na nuca de Julian o puxando para mais um beijo, sentiu com um arrepio que se espalhou por todo seu corpo as mãos dele se embrenhando no elástico de sua parca roupa.

A desenvoltura de Julian não era completa, sentia que ele hesitava levemente. Isso lhe indicava que a probabilidade de que ele não houvesse navegado pelos corpos de outros homens era grande, mesmo que tentasse evitar Kanon foi invadido pela vaidade.

Sorriu se afastando um pouco e finalizou por ele a tarefa de desnudar por completo seu corpo, afastando a peça com um pé. Julian não pode conter um som de surpresa, nova onda de orgulho e satisfação aqueceu o coração de Kanon. Queria que ele lhe desejasse, que apreciasse seu corpo. Que reconhecesse seu desejo e seu apreço. Necessitava provar a Julian que seus pensamentos eram ocupados por ele. Como o afogado busca desesperado por ar ele buscava a aprovação do homem à sua frente. Sentiu o olhar incandescente mapeando toda sua pele e quando seus olhos se encontraram, Julian sorriu. Uma dádiva ímpar.

Cada gesto de Julian, cada cuidado desde sempre, tudo vertia amor. Com ele se sentia seguro e amado, precisava, tinha que não só corresponder como envolvê-lo em mais ainda. Em sua completa adoração ao homem que a sua frente personificava finalmente a tão almejada calmaria e profundidade. Beijou mais uma vez a boca dele. Depois debruçando-se o deitou na cama e beijou-lhe o rosto o peito. Acariciou todo o corpo amado e logo estavam ambos desnudos, um abraço prometido. O encontro essencial e verdadeiro. Seguiu desbravando cada recanto daquele corpo e quando Julian se derramou em sua boca gritando seu nome da forma mais linda com que nenhuma palavra jamais foi dita, Kanon sentiu mais uma vez seus olhos se encheram de felicidade em forma de lágrimas contidas em seus sempre expressivos e sinceros olhos verdes.

Não sabia que era possível sentir tamanha felicidade.

Sussurrou entre suspiros quando encaixava seus corpos finalmente na plenitude da cura que sempre foi para ambos aquele encontro.

— De corpo e alma Julian Solo — Apoiou a mão dele em seu peito para que sentisse seu coração desesperado e sincero — Há muito tempo e para sempre. Eu sou seu.

A chuva seguia forte do lado de fora. Naquele quarto como uma profecia épica finalmente realizada dois homens se ligavam para toda vida.

Chapter 48: Uma forma que eu posso segurar

Chapter Text

Mesmo tendo prometido a si mesmo, meses atrás, que jamais derramaria outra lágrima por Ikki Amamiya, ele se via agora completamente desviado deste intento.

Acordou com barulho da chuva. Hyoga analisou seu reflexo. Estava com os olhos inchados e o nariz vermelho. Havia chorado até cair no sono. Devastado. Isto não lhe acontecia há anos.

Logo depois do acidente, ele tinha muitos pesadelos, assim era comum acordar aos gritos e chorando. Esta situação se estendeu por alguns meses. No entanto, talvez mais pela compreensão do quanto o Pai não possuía traquejo para lidar com a situação, do que pela terapia que frequentou até completar 13 anos de idade, aprendeu a controlar mais as demandas de sua tristeza. O vazio causado pela ausência da Mãe nunca o deixou.

Era uma cicatriz profunda em sua alma. Assim como as pequenas que carregava em seu corpo, ela desbotava lentamente, se aquietando, mas, jamais desapareceria.

Nunca foi uma pessoa expansiva.

Além de Isaak quem mais era seu amigo? Talvez Shiryu no Ensino Médio, mas acabaram por perder contato.

Sempre teve a companhia das namoradas. As coisas funcionam desta maneira para ele. E agora, não existia nenhuma grande diferença. Já se percebia se apoiando em Milo. Em tão pouco tempo se envolveu profundamente.

Outra promessa quebrada. Ikki foi o estopim de grandes mudanças em sua vida. Esse crédito devia a ele.

No fundo de sua alma Hyoga sentia um peso que arrastava de forma automática. Estava cansado.

Logo cedo foi nadar e só retornou para casa quando pensou que seus braços e pernas se soltariam de seu corpo. Tomou banho, se vestiu e enviou uma mensagem para Milo. Ficou aguardando até obter uma resposta. Naquele momento sua única certeza era a de que precisava conversar com o Grego.

***

Despertou aos poucos ouvindo o som da chuva que batia na janela. O clima não podia estar mais adequado ao seu estado de espírito. Em outro momento, aproveitaria aquele clima ameno e nublado da forma mais preguiçosa possível e passaria o sábado imerso na companhia do Espanhol com quem dividia residência.

Porém, uma crescente angústia pretendia tomar conta de seus sentidos.

Passou a mão, ainda de olhos fechados, no espaço ao seu lado na cama, e constatou que o lugar já estava frio.

Apurou os ouvidos e notou que a casa estava silenciosa, porém, o cheiro de café pairava no ar, certamente Shura já havia providenciado o café da manhã: “Quem sabe um bolo de especiarias…”

Levantou da cama e pegou o celular que estava na mesa de cabeceira, arregalou os olhos o constatar que já passavam das duas da tarde.

Não lembrava a última vez que havia acordado tão tarde, mas, se levasse em conta a hora em que foi dormir, depois das inúmeras sessões de sexo banhadas a culpa, desejo e sem sombra de dúvida carinho, não era de se expantar o horário.

No geral era muito metódico com sua rotina, mas aprendeu com o passar dos anos que alguma coisa sempre acaba fugindo ao controle.

Nesse ponto não pôde deixar de lembrar de Camus e do fatídico beijo, e a lembrança, misturada ao cheiro de café, remontou a noite anterior.

Parece que estava preso em um ciclo que ele mesmo havia criado para si, e agora, consegui entender que algumas vezes o sexo parecia sim a solução. Não se via na pele do amigo resolvendo tudo dessa forma, mas já não se julgava tão diferente, afinal, o que tinha feito com Shura na noite anterior não era tão díspar assim.

Caminhou até o banheiro levando o celular, fechou a porta e escreveu uma mensagem para Camus, precisava conversar com ele novamente.

Da última vez as coisas não saíram da forma como ele esperava, mas mesmo assim precisava ver novamente aqueles olhos castanhos e decidir de forma definitiva o que faria com sua vida.

Não era justo o que estava fazendo com Shura e consigo mesmo. E por mais que acreditasse na lealdade do esposo, não conseguia deixar de lado a sensação de que ele também precisava resolver alguma coisa.

Fez sua higiene matinal, colocou o telefone novamente na mesa de cabeceira e rumou para a sala.

Shura estava sentado no sofá, lia o livro que tinha sido parte do estopim da morna discussão que haviam dito na noite anterior.

— Boa tarde, Rubio. Aceita café?

— Boa tarde. Vou fazer um chá… — Caminhou até Shura beijando-o. — Está gostando da leitura?

— Sim… Se estiver com fome posso preparar algo, ou podemos pedir alguma coisa.

— Gosto da ideia de pedirmos algo. — Falou indo até a cozinha e colocando a água para ferver.

— Pizza? — Sugeriu pegando o telefone que estava na mesa de centro e indo atrás de Shaka.

— Com muito queijo, por favor. — Sorriu minimamente. — Shura, eu… — Intencionou dizer algo.

— Rubio… — Interrompeu. — Não precisa. Mesmo. Eu… — Sentou em um dos bancos que margeavam a bancada e ponderou por alguns minutos. — Não tenho o direito de questionar sua amizade. Ela já existia antes da nossa relação. Além disso, não faz parte da minha personalidade ditar o que o outro deve ou não fazer… Então… Apenas esqueça. O que acha de quatro queijos?

Shaka encarou a face séria que parecia compenetrada na tarefa de buscar alguma pizzaria, ao mesmo tempo em que entoava o discurso que tinha certeza que havia sido de alguma forma ensaiado. Sentiu um certo desconforto por ter mandado uma mensagem para Camus e principalmente pela frase “já existia antes da nossa relação”.

Sim, aquela amizade existia há muito tempo e ele tinha certeza que só tinha permanecido como tal pelas peripécias do destino.

Depois, acabou se acostumando com a ideia de estar por perto como a irritante voz da consciência. E caso fosse muito sincero consigo mesmo, sempre achou mais fácil manter sob controle a amizade do que um relacionamento romântico.

No fim, o que importava era que Camus continuava ali e assim ele queria que permanecesse.

Contudo a declaração, o beijo... Tudo aquilo o estava bagunçando de uma forma que jamais acreditou ser possível. Precisava de organização, respirava sua necessidade. Porém, neste momento, não julgava ser tão ruim assim, ser desapropriado de seu senso de ordem. E já que era assim, esperava que Gaetan respondesse a mensagem.

— Acho uma ótima escolha.

— Assim será. Shaka… — Olhou o marido que continuava atrás da bancada. — Domingo pretendo visitar a minha Mãe. Ela recebeu alta e já está em casa.

— Alta? — Questionou com incredulidade.

— Sim… Comentei há algum tempo que ela ia fazer uma cirurgia para remoção de pedra na vesícula. Talvez você não lembre…

— Shura mil perdões… — Falou saindo de trás da bancada. Abraçando o esposo em seguida. — Lembro claramente de quando você me contou isso. Mas… Acho que ando um pouco perdido no tempo. Com a mudança… E tantas coisas acontecendo.

— Tudo bem Rubio. — Deu um sorriso triste. — Ela está bem. Só precisa restringir os movimentos por algum tempo. Inclusive, pensei em ficar pelo menos uma semana na casa dos meus pais. Meu velho consegue lidar direito com a arrumação da casa, mas certamente mataria minha mãe com a comida salgada dele.

— Definitivamente cozinhar não é um atributos do seu pai. — Sorriu olhando o esposo com ternura. — Eu vou com você. Quero ver a Matilde e dar um abraço nela. E ouvir seu pai cantar e se gabar do ótimo dançarino que ele é. Seus pais sempre foram bons comigo, Shura. Eu vou com você.

— Agradeço a companhia. Eles vão ficar felizes em te ver. Pensei em ir na parte da manhã. O que acha?

— Ótimo!

Realmente estava ótimo, já que na mensagem que havia mandado para Camus tinha perguntando se ele estava disponível no domingo a tarde. Conseguiria conciliar as duas coisas.

Havia esquecido completamente da cirurgia da sogra, e não podia deixar de visitá-la, muito mais por si, do que pelo esposo. Matilde e Javier sempre o trataram como um verdadeiro filho, até mais do que seus próprios pais, e esquecer que aquela mulher tão carinhosa tinha acabado de passar por uma cirurgia, só mostrava como andava fora de seu eixo.

Precisava resolver suas questões, já tinha passado do tempo.

***

Caso a sorte lhe sorrisse, conseguiria chegar no horário certo. Pela primeira vez em sua vida não estava preocupado com a sua pontualidade. Mesmo assim, já havia mandado uma mensagem para um dos colegas de trabalho e para o gerente da livraria informando sobre seu possível atraso. Ambos responderam com tranquilidade, lembrando-o que ele tinha uma boa quantidade de hora extra e que não faria nenhum mal se atrasar ao menos uma vez.

Guardou o celular e continuo apreciando o espetáculo de sons, caras e bocas que era Isaak degustando uma salada de frutas, enquanto olhava cobiçoso para o pedaço de bolo de fubá que estava na mesa.

Ao contrários das últimas noites em que se via acordando sozinho em seu aconchegante quarto no sobrado rosa, desta vez, despertou sentindo os braços do agora, seu charmoso Caolho em volta de sua cintura. Não quis acordar o namorado, mesmo que o relógio de parede indicasse que passava das quinze, e quando percebeu já estava em cima da hora necessária para sair da casa dos amigos e ir para o trabalho.

Isaak despertou e depois de falar um número inominável de baixarias em seu ouvido, seguidas sempre do rosto vermelho e do ar que misturava malícia e vergonha, se é que isso era possível, Sorento anunciou que precisava ir embora.

Sugeriu que Isaak ficasse na casa dos amigos, que já estavam de pé e preparavam um lanche, mas informando que queria passar mais tempo com ele, o rapaz o seguiu e já estavam quase no ponto do ônibus, quando Sorento notou aquele único olho verde mirando os doces e salgados que estavam expostos na vitrine de uma padaria e ouviu o som do estômago vazio do seu Ciclope.

O rosto de Isaak parecia ter entrado em combustão e o flautista decidiu que a livraria poderia sobreviver caso se atrasasse um pouco, mas não conseguiria ficar em paz sabendo que deixou seu namorado passar fome.

Namorado.

A palavra dançou em sua mente de uma forma divertida.

— Você vai chegar muito atrasado? — Isaak perguntou genuinamente preocupado. — Eu poderia ter comido em casa.

— Talvez eu nem me atrase, e por precaução, avisei o rapaz que estaria na livraria comigo e também avisei o gerente. Pode ficar despreocupado. Não tinha como deixar meu namorado passando fome. — Sorveu a xícara de café.

Isaak sentiu o rosto esquentar e não conteve o sorriso.

— Pega… Está gostoso. — Ofereceu a salada de frutas.

— Imagino… — Abriu a boca aguardando uma colherada da salada. — Está boa mesmo, justifica sua animação. — Isaak o olhou por alguns minutos sem entender — Você faz uma série de sons quando come algo que acha gostoso. Ótimos sons preciso dizer.

— Porra… Eu gosto de comer.

Sorento o analisou notando a espontaneidade da frase, mas um resquício de lascívia não lhe passou despercebido.

— Fico feliz em saber disso… — Sorriu.

— Sei bem o que te deixou feliz. — Riu. — O que vamos fazer amanhã?

— O que acha do combo filme de terror, lanche no parque, loja de discos e minha casa?

— Gosto da ideia. É um combo do caralho! Ainda mais que Segunda estamos de folga… — Sorriu malicioso.

— Sim… Estamos...

Isaak notou que Sorento pareceu pensativo, demonstrando um estado de espírito muito diferente do que apresentava até então, e se havia aprendido alguma coisa no relacionamento que teve com Kanon era que precisava conversar. Ninguém ali possuía o dom da clarividência e seria mais simples perguntar o que estava acontecendo do que ficar criando mirabolantes teorias.

— O que houve Sorento? Você pareceu preocupado com algo.

— Foi tão nítido assim?

— Não muito, mas esqueceu que eu dediquei um bom tempo na — Fez um gesto de aspas. — Observação do flautista almofadinha. Sou quase uma especialista.

— Olha só… — Riu. — Essa é uma novidade para mim. — Terminou a xícara de café. — Preciso de contar uma coisa Isaak. Talvez… Faça você mudar de ideia sobre algumas coisas. Mesmo assim… — Perigando te perder, pensou disfarçando a angústia. — Preciso te contar. Eu me inscrevi há algum tempo para fazer o Curso de Especialização Gazzelloni em flauta transversal. Fiz a solicitação de uma bolsa de estudos, e venho desde então guardando a maior quantidade de dinheiro que consigo.

— Por isso você sempre participa da equipe dos eventos e faz hora extra? Além dos múltiplos empregos?

— Isso mesmo. Sempre quis fazer esse curso. Bom… O resultado da bolsa sai nesta Segunda feira. Por isso, fiquei pensativo quando você mencionou o dia. Caso eu consiga, viajo em três meses, caso contrário, tenho mais dois meses para começar a pagar a primeira mensalidade. Sem a bolsa, provavelmente não farei o curso esse ano, mas eu vou fazer. Nesse ou no próximo ano, eu farei. — Respirou fundo. — A duração do curso é de seis meses e é na Itália.

— Não sabia que você falava italiano… — Comentou mexendo na salada de frutas.

O Flautista focou sua atenção em Isaak aguardando o que ele tinha para dizer. Mesmo que o rapaz afirmasse estar apaixonado, ele sabia que a distância poderia ser um empecilho. Poderia até mesmo estar agindo de forma precipitada, mas não achava justo omitir aquela informação. Acreditava na sinceridade em todas as instâncias de uma relação e se sentiria um grande cretino se acabasse se envolvendo mais ainda com o namorado, para depois jogar a notícia em cima dele.

Era partidário da liberdade de escolha, algo que vinha praticando desde que se libertou dos grilhões de Franz.

Sendo assim, deixaria Isaak livre para decidir. Mesmo que por dentro, torcesse para que ele decidisse tentar.

— Estou de certa forma ansioso para saber com o que mais você vai me surpreender. Segunda, né? Ainda bem que estarei com você e assim vou ser a primeira pessoa a ver sua cara de felicidade quando souber que ganhou a bolsa. — Sorriu.

— Isaak… — Sorento o olhou surpreso.

— Talvez você ainda não me leve a sério… Até entendo isso, mas… Eu nunca me apaixonei e inclusive me acho um idiota por isso. Mas… Eu quero continuar me sentindo assim e quero continuar me surpreendendo com você. A gente… Dá um jeito.

Sorento piscou algumas vezes e um sorriso caloroso ornou seu rosto, sendo prontamente correspondido pelo outro.

Eles dariam um jeito, quanto a isso não tinha mais nenhuma dúvida.

***

A luz entrava por uma fresta esquecida entre as cortinas. Lentamente encheu o quarto e em algum momento sua insistência despertou o homem esparramado na cama bagunçada.

Ainda sem abrir os olhos Milo esticou a mão em busca do telefone e tentou focar as horas sem sucesso. Pela quantidade de luz o dia já transcorria há um bom tempo. Apertou os olhos passando uma mão pelo rosto. Havia bebido mais do que planejava, ainda que não fosse as quantidades épicas que outros convidados ingeriram de forma impressionante.

Abandonou o aparelho na cama e ergueu-se reclamando do peso do corpo. Precisava usar o banheiro. Esvaziou a bexiga e depois da descarga lavou as mãos e o rosto com água gelada finalmente acordando.

Ao contrário do que pensou antes o dia estava nublado, e uma garoa forte deixava a vista de sua janela carregada de melancolia. Dia seguinte de festa tinha esse tipo de efeito, em algumas ocasiões.

Estava com fome. Finalmente conseguiu focar os olhos no celular e após checar que eram quase 14h00 notou duas mensagens de Hyoga. A primeira durante a madrugada e a segunda recente, dizendo que queria conversar. Sentiu um gelo na barriga e o coração acelerar. Mesmo que não houvesse nenhum motivo explícito para tanto se preocupou, pois sentiu que algo havia acontecido.

Tratou de responder avisando que tinha acabado de acordar e perguntando se estava tudo bem. A resposta foi quase automática: Posso passar aí?

Combinaram rapidamente e o estudante prometeu chegar em 30 minutos, o que indicava a Milo que ele já estava pronto para sair de sua casa, que ficava em um bairro em outra região da Cidade, ou pelas redondezas.

Tratou de tomar um banho rápido, já que na madrugada pelo cansaço havia apenas se trocado e dormido quase imediatamente. Logo estava limpo e vestido e se preparando para comer algo quando o interfone tocou anunciando a chegada de Hyoga.

Dentro de alguns minutos estavam frente a frente. Como havia acontecido desde que se conheceram o abraço foi um bálsamo para ambos.

Se abandonar nos braços daquele homem, era tudo o que ocorria ao Russo enquanto aspirava o perfume másculo na pele do pescoço de Milo que se inclinou para acolhê-lo.

Era semelhante a satisfação para o Grego.

Encontrar Hyoga sempre reforçava nele a falta que nem ao menos havia se dado conta sentir do rapaz com tanta intensidade. Se afastou apenas para examinar o rosto do mais novo. Mergulhar nos olhos límpidos, percebeu que algo o atormentava e tocou seu rosto com adoração.

— Hyoga… — Disse com devoção antes de beijar a boca entreaberta que o recebeu sem qualquer hesitação.

O tempo parou naquele beijo. Energia circulando entre eles. Quando Milo se afastou o rosto que o contemplava parecia mais tranquilo, faces afogueadas de desejo e um sorriso afetuoso mais poderoso que qualquer palavra.

— Eu ainda não comi, me acompanha? — Milo disse pegando a mão do rapaz e o guiando até o balcão de sua cozinha.

Os dedos de ambos entrelaçados pareciam a coisa mais acertada em todo universo e o coração de Hyoga foi se aquietando. Acompanhou a movimentação de Milo que preparava café e aceitou a oferta de comer com ele algumas torradas. Cada gesto de Milo era um convite para uma vida de certezas. Sentia nele a firmeza e a transparência de seus sentimentos.

Nunca foi dado a joguinhos, a se esquivar da responsabilidade em nenhum dos seus relacionamentos, desde os mais desapegados à aqueles em que se envolveu de verdade. Estar convivendo com Milo, ainda que não há tanto tempo, havia provado para Hyoga o quanto o tempo era relativo. Sentia-se ligado a ele, estava sem qualquer sombra de dúvidas apaixonado.

Precisava contar sobre a noite anterior, era uma necessidade para retirar de seu caminho qualquer aresta, não tinha qualquer intenção de refrear o fluxo de seus sentimentos.

Comeram em silêncio por algum tempo e então Milo passou a contar sobre a noite anterior. As peripécias de Kanon bêbado, o espetáculo que foi o pole dance, um chinês tatuado dançando no palco, seu irmão saindo de fininho com outro homem e o encontro com Freya sua mais nova melhor amiga de infância.

Hyoga escutou a tudo rindo eventualmente e quando foi mencionada Freya mordeu o lábio refreando qualquer comentário. Milo obviamente percebeu a diferença em sua expressão e aguardou sem querer pressioná-lo. Quando Hyoga explicou que aquela era uma ex namorada Milo ficou boquiaberto.

— Como assim? Me explica isso melhor? — Pediu sem conter seu riso quase nervoso. — Hyoga! Eu e ela somos muito parecidos!

Corando Hyoga concordou. Não entendia o motivo, mas de certa forma perceber que a semelhança não passaria despercebida a ninguém deixava todo clima da conversa mais leve. E cômico.

Contou que eles estudaram juntos e que o relacionamento de ambos era algo bastante antigo. Milo ria se divertindo. Comentou que tinha tirado várias fotos com a moça e inclusive trocado contato.

— Só espero que ela não se apaixone por você Milo… É muita perfeição para não encantá-la.

— Não acho que isso possa acontecer. Torço para que não. Ela definitivamente não é meu tipo. Nunca me interessei por mulher. E além disso, o principal aqui é que eu já estou completamente fisgado Russo… Nós já conversamos, quero ficar com você Hyoga.

O olhar caloroso e as palavras ditas com tanta sinceridade deram a Hyoga a confiança que precisava então ele relatou que na noite anterior Pandora tinha o procurado, que jantaram juntos e que todo o encontro tinha sido carregado por uma tensão que o esgotou… Contou sobre a mensagem que enviou para Ikki e o telefonema…

Milo já tinha percebido os olhos inchados e pretendia perguntar o que tinha acontecido. Entretanto decidiu não pressionar o mais novo… Aos poucos tudo foi fazendo sentido.

Dentro dele uma fagulha de raiva derivada da insegurança vivida em outros tempos ameaçava incendiar. Se arrependeu um pouquinho por não ter quebrado a cara de Ikki na noite anterior. Xingou mentalmente os dois ex do fatídico menage que pareciam não desapegar de seu menino. E quase se ressentiu da ex mais antiga por quem havia nutrido simpatia autêntica. Percebia um certo azedume de Hyoga para com Freya e de alguma forma isso o acalmou. Ela era linda. Ikki era um espetáculo, não tinha como negar ao menos na aparência...

O jovem a sua frente despertava desejos e interesse profundo, atraía atenções apaixonadas. Talvez Hyoga nem tivesse toda dimensão do quanto era impressionante. Milo, contudo, havia vivido o suficiente para reconhecer não só o valor do rapaz, como suas próprias reações e sentimentos. Estava irremediavelmente envolvido. Um processo impossível de ser parado tinha se iniciado no primeiro olhar que trocou com o loirinho, quando o viu como um personagem encantado. Estava apaixonado.

Hyoga assistiu às mudanças na expressão de Milo e esticou a mão sobre o balcão capturando a dele. Milo o encarou. Estava fervilhando de ciúmes, mas não era só posse. A revelação de seus sentimentos era cristalina. Não acreditava mais conseguir lidar facilmente com a possibilidade de não ter mais Hyoga em sua vida. Era assim se apaixonar perdidamente? Era profundo e poderoso o apelo de tocar a pele do outro homem. As palavras ficaram presas em sua garganta. Não queria ser mais uma vez o primeiro a se declarar.

Todos, afinal, carregam suas cicatrizes emocionais. Não seria soterrado pelas suas. Milo era um homem livre. O amor que crescia em seu peito o tornava corajoso e poderoso. Inquebrável.

— Milo, nada aconteceu e jamais aconteceria. Eu nunca traí nenhuma das pessoas com quem já me envolvi. Não faria isso justamente com você. Eu… Eu gosto de você. Só de você!

A honestidade que transbordava no olhar de Hyoga o atingiu como um soco. Baixou seus olhos sem soltar a mão do outro como se ela fosse a única coisa que o impedia de despencar por um desfiladeiro de angústia e vergonha. Amor não se constrói com desconfiança e ciúme não é um bom termômetro.

Não, Milo faria tudo certo desta vez.

— Eu vejo claramente o quanto você é uma pessoa verdadeira Hyoga… Tenho certeza que você é íntegro e está sendo sincero em tudo que diz. Merda, você está aqui visivelmente abatido e ainda me conta isso tudo que talvez eu jamais teria como saber por outras fontes. Sem dúvidas essas pessoas do passado concordam que você é especial. — Parou de falar por alguns segundos, concentrado — Quero ter a sua confiança… Eu… Houve um tempo em que me deixei levar pelo ciúme e por atitudes muito duvidosas. Quero te contar isso, antes de qualquer coisa. — Arriscou baixar seus olhos, tentava encontrar as melhores palavras, nem ao menos entendia como havia chegado neste ponto, mas não havia mais como retornar — No meu último relacionamento, como eu já mencionei para você, estávamos eu e ele sempre brigando e o pior de mim sempre vinha à tona. Não me orgulho de sentir ciúmes ou insegurança, das brigas, cenas e cobranças. De qualquer forma, não há como mudar este passado. Eu tenho certeza que ele me traiu…

Hyoga arregalou os olhos. No mesmo instante ficou irritado com esse ex que nem ao menos conhecia. Milo sorriu de leve e afagou sua mão antes de continuar desta vez sem desviar os olhos dos dele.

— Hyoga, eu percebi e acabei dando o troco, entende? Ao invés de confrontá-lo, por que no fim acredito que ele teria admitido e teríamos que terminar ou nos resolver, eu… Eu acabei passando uma noite com um editor com quem trabalhava na época. Com essa atitude eu perdi a minha razão, perdi a oportunidade de tentar ainda consertar as coisas e não sei se fui uma pessoa tão melhor que ele. No fim das contas ainda arrastamos o relacionamento por alguns anos e terminamos sem jamais retomar este assunto. Mas, eu sabia tanto do que ele fez quanto, obviamente, do que eu fiz. E ele não. Ridículo, não acha? Eu vejo o quanto você é muito mais maduro do que eu na época, talvez até mais do que eu agora e… Tudo que penso é que eu jamais cometeria os mesmo erros. Que eu gostaria muito… De ter uma chance de viver um relacionamento saudável… Com você. Hyoga, eu acho que já está na hora de definirmos nossa situação.

Milo se ergueu e deu a volta no balcão se posicionando na frente do visitante que o aguardava boquiaberto. Respirando fundo o tradutor se aproximou sentindo entre eles aquele magnetismo excitante e reconfortante. Afastou a franja de Hyoga colocando os cabelos atrás da orelha do estudante para que pudesse encará-lo sem qualquer barreira.

— Quero um namorado honesto, carinhoso e gostoso. Quero na minha vida um homem íntegro, lindo e especialmente inteligente. Maduro e seguro para dividir comigo a vida. Se você me aceitar eu serei o homem mais feliz deste mundo. Quer ser meu namorado Hyoga?

Chapter 49: Isso é nutritivo, vida dobrada

Chapter Text

Sentado no sofá entre almofadas e passando por uma inspeção felina detalhada enquanto a gatinha preta o cheirava apoiando suas patas delicadas em seu peito para então esfregar sua cabeça elegante em seu corpo produzindo um som de ronronar em uma frequência que ele desconhecia; Julian se sentia pleno.

Vindo do interior da casa, onde havia cuidado de todos os detalhes da alimentação e higiene de Deusa, Kanon apoiou-se na parede observando a cena com o coração transbordando de afeição.

Acreditou que a gatinha talvez pudesse estar irritada, afinal ele ficou praticamente 24 horas fora de casa. Entretanto ela demonstrava felicidade como raramente. Já havia percebido a predileção dela por Julian, entre todos os seus eventuais visitantes, mesmo assim se admirava do quanto vê-los em tão belo arranjo lhe agradava.

Reconhecia que a gatinha estava tão apaixonada quanto ele por Julian.

Era um tremendo idiota por não ter aceitado isto antes. Antes tarde do que nunca, não era o que diziam?

A noite que passaram juntos, o dia todo na realidade, havia sido uma sucessão de confissões e lembranças. Colocaram na mesa todas as questões. Foi cansativo e importante.

Obviamente também haviam dado vazão ao tesão reprimido por anos e anos.

Não conseguia tirar da cabeça o quanto combinavam e a maneira como o encaixe entre eles se deu de forma vigorosamente perfeita.

Estava nas nuvens. Cinzentas como o olhar que o encarava. Igualzinho ao dia que findou há pouco. Nunca pareceu-lhe tão lindo um dia nublado.

Deusa miou como se o convocasse a sentar-se com eles. Tomou lugar ao lado de Julian e a gatinha olhou de um para outro demoradamente como se desse a eles sua benção.

— Pelo jeito a Gata nem ao menos se dá ao esforço de disfarçar a predileção por você Sr. Solo.

— Ela é realmente única e incrivelmente inteligente, Kan… — Comentou enquanto afagava com o dedo indicador delicadamente o queixo de Deusa — Fico feliz por ter a aprovação dela. — Sorriu charmoso — Agora me falta a aprovação do restante de sua família.

— Entre os primos você é o eleito, sem questionamento neste sentido. Minha Mãe só tem olhos para Saga, não precisa se preocupar. Meu pai sempre te achou um ótimo partido! Se é para ter filho gay, ao menos que arrume um bom casamento. É o que ele sempre disse… Não que ele vá necessariamente se importar com o que quer que eu faça ou deixe de fazer…

— Não acha cedo para falarmos de casamento? — Julian comentou evitando se focar no que Kanon disse sobre os pais. Ele sabia muito bem que a relação entre os genitores e seu amigo sempre foi abalada por eventos e mal entendidos que poderiam ter sido resolvidos há muito tempo. Não era, entretanto, o momento de esmiuçar esta questão.

— Julian, você sabe muito bem que eu não estou sugerindo nada neste sentido. — Puxou o rosto do convidado lhe dando um beijo profundo e arrancando dele um som abafado de surpresa e prazer — Não por enquanto, ao menos.

Julian ficou ligeiramente enrubescido. Com a movimentação deles Deusa desceu de seu colo reclamando levemente, se espreguiçou no chão e partiu rumo a cozinha e área de serviço, provavelmente para inspecionar se tudo havia sido executado a contento em suas dependências.

Os dois acompanharam a movimentação da felina até ela desaparecer e então Kanon se ergueu foi até a porta e a fechou. De volta a cama, puxou Julian para seu colo, acariciando com habilidade impressionante a barriga e o peito do menor assim que os botões de sua camisa foram abertos magicamente em questão de segundos.

— De novo Kanon? — Reclamou sem qualquer empenho enquanto fechava os olhos e deixava escapar um gemido másculo e suave.

— Eu tenho quase 10 anos de atraso se for contar a primeira vez que percebi seus olhares me cobiçando, mocinho… — A camisa deixou o corpo de Julian enquanto ele sentia beijos e mordidinhas em sua nuca e ombros foi a vez de seu cinto e calça serem abertos com uma facilidade intrigante. Logo uma mão enorme envolvia seu membro com firmeza e cuidado e um arrepio correu todo o corpo de Julian.

Vendo a pele surpreendentemente macia se arrepiando, Kanon sorriu com a mente transbordando de pensamentos maliciosos. Ergueu o corpo do outro o suficiente para tirar dele as calças, já que ambos já estavam descalços. Puxou mais uma vez Julian para seu colo mantendo com uma mão a carícia que já enlouquecia o ou outro homem e com a outra trouxe seu rosto para perto o suficiente para que pudesse beijá-lo.

Assim que o visitante afastou o rosto em busca de ar o ergueu e depositou de joelhos no sofá. Julian arregalou os olhos com tamanha exposição, mas nem teve tempo de formular qualquer pensamento. Logo, Kanon lhe dedicava um carinho íntimo que lançava rajadas de energia por todo seu corpo.

O tecido escuro do shorts que Kanon havia trocado assim que chegou em sua casa estava em vias de romper-se dado o volume que crescia cada vez mais impressionante naquela região.

Julian abandonou qualquer reserva e agora se concentrava em aproveitar o que lhe era ofertado, ou um dos momentos mais eróticos e prazerosos que já havia vivenciado. Sentia seu corpo cedendo passagem hora para a língua experiente e na sequência para dedos dotados de pressão e movimentos eróticos, ao mesmo tempo uma mão forte passeando por suas coxas e costas.

Toda vez que Kanon dizia algo tinha medo de estar prestes a acordar de um sonho. Mas os elogios e exclamações carregadas de palavras de encorajamento e alguma putaria eram como uma canção aos seus ouvidos. Estava no paraíso.

Não soube quando seu corpo foi içado, tão pouco quando exatamente Kanon o penetrou olhando em seus olhos, dizendo seu nome. O tempo que passou poderia ser a eternidade ou um segundo, jamais poderia calcular. Quando atingiu o clímax pensou que perderia a consciência em breve.

O cheiro, os sons, o calor de Kanon, entretanto, o mantinham alerta. Em alguma outra camada da percepção. Como outra dimensão onde ondas de prazer se intensificaram vertiginosamente. Quando Kanon gozou já estavam no quarto. Julian sentiu a maciez da roupa de cama em suas costas, mesmo sem saber propriamente em que momento chegaram ali, ficou grato. Pois assim que Kanon deixou cair sobre ele o peso de seu corpo enorme e musculoso a textura do colchão ajudou a aliviar o impacto.

Os dois estavam suados, corações batendo a mil.

— Lar é o onde coração bate. — Kanon docemente falou depois de um tempo indeterminado o fitando emocionado. — Você me disse isso… Há alguns anos.

Julian se lembrava da ocasião. Quando Kanon deixou a Inglaterra às pressas dizendo que não tinha mais nenhum motivo para seguir por lá. Na época, ele ficou para trás para lidar com todos os pormenores práticos e técnicos. Além do peso de ver o homem com quem mais se importava no mundo fragilizado. Teve que organizar suas coisas, doar ou despachar roupas e objetos.

Kanon, à época não precisava saber como resolveu a questão do apartamento, tão pouco suas pendências na Universidade e menos ainda sobre como havia quebrado o braço de Radamanthys.

Nada disso importou antes, e menos ainda agora. Sabia que o loiro odioso jamais procuraria ou teria a chance de magoar seu amigo novamente.

Mas agora que Kanon não era mais tão somente seu mais querido amigo… Aquela frase adquiriu um novo significado.

— Você é meu lar Sr Chrysó. Onde quer que você esteja, ao seu lado, estou em casa. — Cobriu a boca de Kanon com um dedo e o olhou solene — Eu te amo.

Kanon abriu a boca para responder e o dedo foi substituído pela boca do amante que o beijou como se não houvesse amanhã. Ele achava que deveria responder algo, mas sabia ao mesmo tempo que Julian jamais o pressionaria neste sentido. Achava que correspondia de forma equivalente… Estava apaixonado… Eram amigos há tanto tempo, o amava. Não existia como não amar Julian Solo. Pretendia falar, todavia deixou-se levar mais uma vez pelas sensações despertadas pelos beijos e pela pegada exigente e devota do herdeiro Solo que logo se encaixava sobre ele cavalgando com desenvoltura impressionante. Os olhos quase negros de desejo.

Nenhum dos dois estava preparado para a intensidade do que vinham dividindo física e emocionalmente. Kanon adorava saber que era o primeiro homem de Julian. E estava envolvido com devoção. Ele sentiu seus olhos rasos de água. Nunca tinha feito sexo sem camisinha com ninguém em toda sua vida. Com Julian era a primeira vez que se via tão desarmado. O coração disparado constantemente. Precisava ter certeza de que o amava para poder dizer. Isso só podia ser amor… Não é mesmo?

Permaneceram abraçados até escutar o miadinho de Deusa arranhando a porta do quarto. Ela não queria ser excluída desse momento de candura.

— Você vai abrir a porta para Deusa, Kan? — Julian perguntou com rosto apoiado na curva do pescoço do dono da casa, espalhando assim um arrepio por todo seus corpo.

— Vou sim… Estou começando a ficar com fome também.

— Quer sair para comer? Ou pedir algo?

— Vamos pedir? Você vai dormir aqui comigo hoje Julian? — Julian concordou com um movimento de cabeça, colocando os cabelos atrás da orelha e acariciando a face de Kanon. — Ótimo… Quero ficar juntinho hoje, só nós dois… Nós três, no caso.

Julian sorriu puxando o lençol para cobrir parcialmente sua nudez quando Kanon se levantou para abrir a porta para a mini pantera que entrou como um raio vasculhando todo o cômodo.

— Pensa no que você quer comer, gosto de tudo… — Kanon havia pegado a gata no colo e Julian acompanhava sem ar a perfeição que era aquele homem em todo esplendor de sua nudez segurando com adoração a pequena felina de pelos negros e brilhantes. Sua voz demonstrava o quanto apreciava a oportunidade de estar ali — Queria tirar uma foto de vocês dois assim…

Kanon sorriu e voltou para seu lado, trazendo a gatinha que livre na cama passou a cheirar e esfregar sua cabecinha nos lençóis. Os amantes se abraçam novamente.

— Você quer mesmo fazer minha barba? — Kanon perguntou coçando o próprio queixo um tanto surpreso com o tamanho dos fios.

— Só se você quiser, se confiar na presteza de minhas mãos.

— Eu confio em você Sr Solo — Se divertia com a gatinha, que estava girando o corpo no pequeno espaço entre os corpos dos dois homens. — Não foi um plano deixar a barba, apenas fui me esquecendo de fazer e depois senti preguiça…

— Depois pensamos sobre isso então, estou com fome… — Fez um ligeiro beicinho e Kanon o puxou para ainda mais perto. — Posso tomar um banho?

— Claro Julian, você pode tudo nesta casa. Vou pedir hamburger da nossa lanchonete de sempre, que você acha? As toalhas estão no armário, pegue o que quiser.

— Perfeito, quero batata frita… Kan, vamos ficar mais 5 minutinhos abraçados?

— Certo… O tempo que você quiser Julian.

Kanon aconchegou o menor em seus braços e suspirou contente. O jantar podia esperar mais cinco minutos, afinal, ele sabia que Julian tinha esperado infinitamente mais do que isto.

E algumas esperas… Valiam a pena.

***

Respirou fundo sentindo-se desconfortável com os olhares desejosos que recebia da morena. Pandora era e possivelmente sempre seria uma mulher linda e envolvente. Fisicamente ela não era nada aquém de perfeita. Seus encantos, no entanto, não mais o seduziam.

O perfume marcante e delicado, as roupas e atitude sofisticadas. A pele lisa e aveludada… Ela, que sempre foi mimada e desejada demonstrava imensa dificuldade em aceitar que o relacionamento deles havia acabado.

Passaram alguns meses muito próximos, os dois tinham se esforçado. Apenas não deu certo. Ela tentou contornar de todas as formas possíveis. Alegou que Hyoga não voltaria para ele. E o japonês sabia disso, sem vacilo estava se forçando a aceitar.

Esse tipo de comportamento da parte dela contribuia para sua certeza de que não existia mais nenhuma chance para os dois como casal.

Ikki, atualmente, tinha certo para si que este relacionamento jamais deveria nem ter começado.

Ele entendia Pandora. Ela se sentia usada… Foi o que aconteceu, de certa forma.

Agora, mais familiarizado com sua própria essência; de posse finalmente de sua narrativa particular ou ao menos com esta intenção explícita; ele compreendia a necessidade de finalizar suas relações de forma definitiva, e própria.

Obviamente havia conversado com ela, mas foi um término sem escopo. Devia a ela e a si mesmo a honestidade que pretendia semear e colher um dia…

Não foi uma conversa fácil. Pandora era orgulhosa, confiante e arrogante. No fim estava ela também com seu orgulho ferido. Tanto por ter sido ele a romper, quanto por saber que o motivo daquela paixão jamais ter decolado era Hyoga.

A auto estima de Pandora não tinha qualquer fissura ou brecha. Ela ouviu tudo o que Ikki tinha a dizer e o presenteou com uma saraivada de verdades dolorosas. Todas ditas em doce voz e olhar mortal.

O Amamiya mais velho não se via em condições de refutar a imensa maioria do que ouviu e o que poderia ser ponderado preferiu também apenas aceitar.

No fim acabou sozinho na mesa de um restaurante limpando com um guardanapo de tecido o champanhe que foi jogado em seu rosto. Uma taça cheia do precioso líquido. Era significativo, afinal.

A ação dela foi surpreendente. Jamais calculou que ela pudesse sair de sua personagem perfeitamente talhada para os mais requintados e exclusivos círculos sociais do planeta.

Teria aceitado um tapa, xingamentos, o que viesse. Aprendeu com a vida que a catarse era algo importante para a evolução.

Pandora teve sua desforra, Hyoga seu encerramento e ele estava livre.

Finalmente.

Planejava visitar seu tio. Se afastar da Cidade… De todos, por alguns dias.

Precisava urgentemente encontrar um lugar para si no mundo, ter paz.

Ikki apenas queria, com todas as suas forças, virar a página.

Na segunda feira pediria a Aiolia uma reunião e já tinha em mente seus próximos passos para o futuro imediato.

Estava esgotado.

Encarou o tecido perolado agora úmido com a bebida que há pouco escorria pelo seu rosto. Não tinha vocação para saco de pancadas, definitivamente.

Acabava ali a permissividade. Acertou todas as suas contas. Sorriu sozinho, o olhar determinado. Era chegada a hora de buscar algo que ainda não podia definir, mas sentia em seus ossos: era seu por direito.

Ele voltou para casa carregado por uma leveza que pensava jamais ter vivenciado e dormiu, pesado e sem qualquer interrupção pela primeira vez em meses.

No dia seguinte acordou com a casa vazia. Estava estranhamente bem humorado e de alguma forma ficou satisfeito que nenhum dos outros moradores estivesse lá para testemunhar seu sorriso bobo.

Teve um sonho tão aconchegante que a sensação havia transcendido.

Preparou café e assou pães de queijo que encontrou no congelador.

Fez a nota mental de agradecer ao irmão por cuidar tão bem da casa, atento a detalhes e preocupado tanto com ele quanto com Sorento, mesmo sendo ele próprio super ocupado.

Comeu, lavou a louça e se trocou para ir para a academia.

Há bastante tempo não treinava e a vontade de lutar boxe finalmente não era mais a de ser nocauteado.

Depois de tudo preparado Ikki observou, já na garagem, a manhã promissora onde o tempo estava abrindo, ao contrário do dia anterior nublado e chuvoso.

Sentia sua esperança, mesmo abstrata, renovada. De alguma forma era o bastante para ele.

Determinado seguiu seu caminho.

***

Possuía poucas certezas em sua vida, mas uma delas era que aquele rosto sempre foi capaz de lhe transmitir toda a tranquilidade e amor que precisava.

Admirava a face de traços fortes, agora marcada pelo ação do tempo e exatamente por isso, cada vez mais bonita. Olhou com carinho os fios grisalhos que se embrenhavam em meio ao cabelo escuro que caia pelas costas, capturou com carinho uma mecha colocando-a atrás da orelha da mulher que lhe direcionou o olhar, aquele conhecido tom de avelã passou a mirá-lo com curiosidade e preocupação.

— Não me olhe assim. Eu que deveria estar preocupado. — Falou afagando o rosto a sua frente.

— Uma mãe nunca deixa de se preocupar. Não importa se saiu de uma cirurgia ou não. — Sorriu docemente. — Além disso, não criei o filho mais sério do mundo para ser enganada por ele depois de velha. O que te aflige, Miguel?

— Nada… Não é nada. — Desviou o olhar.

— Shura. — Aplicou o mesmo tom que costumava usar para chamar sua atenção quando era criança. — O que está acontecendo?

— Mãe… — Suspirou. — Não quero falar sobre isso agora. Mas pode ficar despreocupada, estou bem.

— Não me parece hijo. — Pegou uma das mãos do filho beijando-a. — Sempre enxerguei muito bem sob essa sua máscara de sisudez. E posso dizer, que também consigo ver o que existe além do nariz empinado do seu menino Rubio. — Encarou o filho ponderando. — A mesma falta que enxergo em você, estou vendo nele.

— Falta?

— Sim. Sua Abuela costumava dizer que sempre nos falta algo. Passamos a vida buscando as mais diversas coisas, e no geral, nem sequer sabemos o que estamos procurando. Então, a falta não é de todo um problema, mas sim o que você faz com ela.

— Não sei se me falta algo mamá. — Suspirou. — Talvez um pouco de bom senso.

— Shura, mi hijo, bom senso é uma das coisas que te sobram. E se por acaso você acha que precisa de mais, significa que está envolvido em algo complicado.

— Mais ou menos… — Passou a mão pela nuca.

Por mais que tentasse não conseguia esconder nada da mãe. Sempre teve uma relação muito amigável com os pais, e sua mãe continuava acreditando que sua existência era um milagre concedido pelos céus, já que finalmente tinha conseguido engravidar depois de inúmeras tentativas e duas perdas.

Matilde ainda sentia a ausência dos bebês que não chegaram a vir ao mundo, e todo o amor que mantinha em si era compartilhado com o filho e com o marido, um homem alegre, de riso fácil, e que tinha os mesmos olhos esmeraldinos que seu Shura, ou Miguel, como preferia.

O disparatado nome composto era consequência direta do agradecimento que o casal de espanhóis tinha pelo médico que cuidou da complicada gravidez.

Sem dúvida alguma a criança carregaria o nome do avô paterno, um homem por quem Matilde tinha um enorme carinho, já que não chegou a conhecer o próprio pai, mas viu na figura do médico japonês que a atendeu tanto empenho e singela atenção que assim que o menino veio ao mundo comunicou ao marido a homenagem. Só não esperava que no final das contas, o filho acabasse se habituando muito mais ao nome que era tão distante de sua origem. Uma das maravilhosas peculiaridades de seu Miguel, gostava de pensar.

— Ouça… — Levantou o dedo indicador apontando para a porta do quarto ao ouvir um par de risadas vindo da sala. — Eu amei outras pessoas antes do seu pai, mas nenhuma depois dele. Ninguém nessa minha vida me faz rir como Javier e muito menos me dedica tanto afeto e atenção. Vejo muito do seu pai em você, além dos belos olhos. E é por isso que eu sei que algo está acontecendo, afinal, essa é a primeira vez que você entra aqui sem estar de mãos dadas com Shaka. — Sorriu mediante o rosto surpreso do filho. — Sutilezas, meu filho. Suas ações sempre se perdem nas sutilezas. Adoro seu Rubio com todo meu coração, mas adoro muito mais quando vejo felicidade autêntica em seus atos. De ambos.

Shura suspirou deixando os ombros caírem e fechou os olhos ao sentir uma das mãos da mãe em seu cabelo. Ao lado daquela mulher voltava a ser apenas o garotinho de rosto sério, poucos amigos, que se abrigava na companhia dos livros e dos animais de rua que teimava em levar para dentro de casa.

Cogitou contar a ela a trama intrincada na qual havia se metido, mas as palavras morreram no meio do caminho ao ouvir passos seguidos da inesperada gargalhada de Shaka misturada a de seu pai.

Ajeitou a postura, sendo observado pelos atentos olhos avelã, no momento em que batidas na porta anunciaram a entrada do esposo e do próprio pai.

— Maltilde, seu marido vai me matar de tanto rir qualquer dia desses.

— Não tenho culpa se Miguelito não herdou meu bom humor. Ao menos herdou a beleza. Não é? — Deu uma cotovelada leve em Shura.

— Quanto a isso não posso me opor. — Shaka sorriu abraçando o esposo, que sentado na beirada da cama da mãe retribuiu o abraço.

— Comeu o bolo, Rubio? — Shura questionou.

— Comi sim, estava ótimo. Nós que deveríamos trazer algo para a sua mãe e não ela se preocupar em encomendar um bolo.

— Eu sei que você gosta de doce. — Matilde falou esticando uma das mãos pegando a de Shaka. — E gosto que meus meninos fiquem felizes. — Olhou de um para o outro. — Além disso você vai me emprestar o seu marido por uma semana. Sem ele estaria fadada a comida salgada e apimentada de Javier. — Falou com simulado pavor.

— Que ultraje! — Javier colocou a mão no peito se fingindo de ofendido. — Minha comida é ótima. Shaka nunca reclamou.

— Sou acostumado com comida condimentada. — Respondeu rindo.— Fico muito agradecido pelo carinho de sempre. — Olhou os sogros. — Vocês são pessoas raras, de verdade. E Miguel… — Alargou o sorriso ao ver o marido balançar a cabeça ao ouvir o nome tão pouco usado. — Está mais do que certo de cuidar de uma mãe tão querida.

Shura sorriu, olhando dos pais para o marido.

Um tristeza o acometeu juntamente com um aperto no peito ao relembrar a pergunta feita naquele timbre grave e com o indefectível sotaque que tanto gostava: “ Você poderia me apresentar para a sua família?” E mais uma vez repetiu para si mesmo a resposta que deu ao Cabrón no dia em que o questionamento foi levantado, enquanto acompanhava Shaka abraçar sua mãe e rir de alguma piada feita por seu pai: “Poderia. Já disse que não teria problema em apresentar nenhum namorado…”

Respirou fundo, sua mãe tinha razão, realmente faltava algo.

Chapter 50: Você mordeu um pedaço

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Os irmãos se falaram por telefone no início da tarde de domingo. Foi tempo suficiente para Kardia receber seu pedido de refeição por delivery. E tomar um banho para receber o caçula.

Milo chegou na casa do irmão com um sorriso de orelha a orelha que não tentou disfarçar. Estava completamente contente. Era um homem comprometido e feliz. Hyoga passou a noite com ele e tinha ido embora quando ele partiu rumo a casa do irmão mais velho. Haviam se entendido e decidido o relacionamento deles.

Assim que teve a entrada liberada na portaria aproveitou a solidão do elevador para arrumar um pouco seus cabelos e tentou manter uma expressão mais neutra. Assim que o irmão abriu a porta de casa, completamente risonho e com incontáveis marcas roxas em todas as partes de sua pele que eram visíveis ele caiu na gargalhada.

— Pelo que vejo a festa de Aiolos terminou muito bem para você, Kardia!

Kardia sorriu maroto. E convidou o irmão para tomar lugar na mesa enorme que se destacava em sua casa. A refeição estava já a disposição de ambos.

Milo abraçou o irmão e mapeou a mesa satisfeito. Ele havia ido de táxi até lá para que pudessem aproveitar um pouco a companhia um do outro e também beber um pouco de cerveja.

— Milo, meu irmão, você não faz ideia. Nossa… Eu nem sei por onde começar. Quer dizer, você quer saber essas coisas? Estou tão apaixonado e feliz que eu não tenho mais qualquer vergonha na cara…

— Como se você — Apontou para o irmão sorrindo enviesado — algum dia tivesse tido! — Riu abertamente — Me conte o que quiser. A surpresa de te ver indo embora com outro homem já passou. Dou conta de qualquer coisa que você queira me contar.

— Eu dei o cu! Sou um passivo enlouquecido meu irmão. — Kardia falou sorrindo de orelha a orelha. Milo engasgou com sua bebida. O irmão sempre foi direto, mas nunca o ouviu falar de forma assim tão despachada. — Não faz essa cara… Você deve saber, não? Foi enlouquecedor. Nunca me senti tão homem nessa vida… Puta merda Milo, aquilo foi uma… Uma delícia!

Milo limpou a boca com o guardanapo e voltou a encher seu copo, devolvendo novamente a garrafa para o balde de gelo. Se ocupou de abrir as embalagens de alumínio, enquanto se acalmava, e viu que o irmão havia comprado um de seus pratos prediletos e de uma das cantinas mais tradicionais da Cidade. Era um combinado de nhoque de abóbora com molho de gorgonzola e nozes.

— Coração, obrigado… Eu amo essa massa! E respondendo… — Serviu um prato de forma generosa para cada um dos dois — Você me pegou de surpresa, já que nunca se interessou por esse tipo de conversa, ao menos não comigo. Enfim… Eu não tenho problemas em falar sobre isso. E sim, pode ser muito bom, certamente. Julgando pela sua expressão e essas evidências gravadas na pele aí pela boca nervosa do Diretor — Apontou com o queixo — Foi bem bom para ambos, hein? Fico feliz por você!

A cada garfada do irmão mais novo Kardia tinha certeza de que havia feito a escolha acertada com a comida. Comeu uma porção mastigando vigorosamente. Sua mente viajava de volta para a noite que teve com Dégel, detalhes do corpo do homem que tinha virado sua vida de cabeça para baixo, a voz dele e especialmente as sensações que viveu nos braços e sob o domínio daquele homem.

— Quero me casar com Dégel. Ele não me leva ainda tão a sério. Milo, eu estou apaixonado!

— Somos dois meu irmão… — Ante a expressão de surpresa do mais velho Milo sorriu, e bebeu mais um gole antes de prosseguir — Te falei quando combinamos de almoçar hoje… Eu estou namorando. Quero apresentar meu menino para a família. Droga! Eu te entendo, quero casar e ter filhos com ele. Estou totalmente fisgado…

Ambos riram de forma bastante parecida.

— Somos uma dupla de irmãos apaixonados! — Kardia bebeu um longo gole pensativo — Preciso conquistar meu homem, para então os irmãos Kókkino estarem ambos apaixonados e namorando. — Piscou um olho sorrindo e colocando a ponta da língua sobre o lábio como apenas ele sabia fazer.

Milo fitou o irmão catalogando mentalmente aquelas expressões que atestavam a seriedade e a sinceridade de Kardia sendo aplicadas para se referir ao Diretor da Escola onde Aiolos e Seika trabalhavam; aliadas ao frescor de sua faceta mais brincalhona.

O mais velho dos irmãos Kókkino apaixonado era mesmo um evento raro.

Confraternizaram boa parte da tarde alegres com as conquistas um do outro. Milo contou sobre Hyoga o encantamento instantâneo assim que o viu. A admiração mútua a lista impressionante de afinidades.

Kardia sentia seu coração leve por ver seu irmãozinho feliz e correspondido.

Ainda se lembrava do ciúmes que sentiu quando os pais lhe contaram que teria um irmão. A diferença de seis anos nunca impediu a proximidade fundamentada na promessa solenemente feita pelo então garotinho Kardia de que sempre cuidaria do caçula, mesmo na ausência dos pais, por isso recebeu a honra de escolher o nome do bebê quando ele nascesse.

Na primeira vez que viu seu irmão achou que ele era vermelho e amassado, como uma maçã que caiu no chão. de alguma forma o comentário fez seus pais rirem e então o menino escolheu para seu irmão o nome de sua fruta preferida.

Kardia nunca mais teve ciúmes do irmãozinho que tornou-se sua maior fonte de orgulho e preocupação.

Sempre foi protetor sem sufocá-lo, mas sabia que Milo evitou demonstrar o quanto havia saído machucado de seu último relacionamento. Assim, reconhecer a empolgante narrativa apaixonada funcionava como um bálsamo para o zeloso irmão mais velho.

Igualmente Milo, que amava o mais velho com adoração, estava aproveitando a nova afinidade entre ambos. Animado com a empolgação desavergonhada de Kardia e também com a atenção recebida. Desta forma, decidiu apresentar o namorado ao irmão na mesma semana. Para tanto combinaram de tomar alguns drinks no Imperador. Tudo parecia estar entrando nos eixos e Milo sentia seu peito cada vez mais cheio de certezas e seguro de ser correspondido.

***

Olhou mais uma vez a foto no celular e em seguida a mensagem. Depois da última vez que se encontram tinha certeza que não teria mais notícias de Shaka. E ao se deparar com essa possibilidade, encarou o fato de que de certa forma sempre se enganou com relação às atitudes do amigo.

Não fazia muito tempo, acreditava piamente que ele jamais deixaria de atender um telefone seu, quando se declarou, em seu íntimo, achava sem sombra de dúvidas que não seria rejeitado. E depois, entrou em um ciclo de tormento, no qual o ponto principal eram as atitudes negligentes do amigo, após tomar consciência de seu acidente.

Lembrava inclusive de ter dito isso a ele.

Por outro lado, ele mesmo não havia procurado Shaka depois da noite em que havia se declarado.

De certa forma, ambos trilhavam um caminho que tinha muito mais chance de separá-los do que pelo menos manter a amizade que ainda prezavam.

E ao que tudo indicava ambos estavam cientes disso.

A conversa franca com Ikki, trouxe a ele um pouco mais de perspectiva, como Sorento costumava dizer. Parece que ele precisava mesmo disso.

E agora, já não acumulava mais ilusões, apenas queria acabar com aquele impasse, aquele clima ruim que fazia com que se sentisse despedaçado por estar perdendo uma pessoa importante.

Desceu do carro de aplicativo e ficou por algum tempo parado na porta do estabelecimento.

Lembrava de há pouco tempo ter tomado uma atitude semelhante mas com outro objetivo.

Agora, já não temia a rejeição e o julgamento, daquele que podia afirmar ter se tornado um precioso amigo.

Entrou na livraria e logo notou o olhar por vezes analítico, se virar em sua diversão e ser substituído por sincero afeto e diversão.

Sem pensar muito bem cumprimentou o livreiro com um abraço ao que foi retribuído sem demora.

— Como vai Sorento?

— Muito bem Camus, realmente muito bem. — Sorriu.

Camus encarou o amigo notando um ar diferente que parecia o envolver, sabia muito bem o que aquilo significava, mas decidiu não perguntar. Sorento sempre pareceu mais do tipo que gosta de ouvir do que de falar sobre si mesmo. Além disso, teriam tempo para se conhecer melhor e estreitar os laços da amizade.

— Fico feliz com isso. — Olhou em volta. — Te atrapalho, se conversarmos por alguns instantes?

— De forma alguma. O movimento costuma ser muito fraco no domingo, como você mesmo pode ver. Aconteceu alguma coisa? Você está melhor? Inclusive, me desculpe por não ter ido ao seu encontro no outro dia.

— Imagina. Você estava trabalhando. Além disso, mandou o Ikki…

— E foi uma boa ideia? — Questionou arqueando umas das sobrancelhas.

— Foi sim. Nós conversamos, bebemos um suco, comemos algo e vimos algumas fotos. Tudo na mais completa castidade, caso esteja em dúvida.

— As coisas saíram melhor do que eu esperava. — Falou aproximando-se de uma pilha de livros e ajeitando. — Fico aliviado que tudo tenha dado certo. De verdade. Entretanto, não acredito que tenha vindo até aqui só para me falar isso. Por acaso precisa de alguma indicação de livro, ou de ajuda com algo?

— Acho que de certa forma, vou continuar precisando de suas indicações, não apenas para livros e de sua ajuda. — Sorriu. — Mas, não hoje. A escolha pelo seu ambiente de trabalho partiu do meu amigo. Estou aqui para encontrar uma pessoa. Isso me lembra de algo que quero te perguntar há algum tempo: há quanto tempo você trabalha aqui? Sempre frequentei esse lugar, inclusive adoro o croissant daqui, mas nunca te vi. E eu tenho certeza absoluta que eu lembraria de você.

— Nessa filial eu trabalho há apenas dois meses. Antes, eu ficava na filial da Cidade Alta, próxima ao bairro Boêmio. Só que o trajeto era um pouco contra mão para a minha casa e era menos próximo do Imperador do que essa filial aqui. Talvez por isso não tenhamos nos esbarrado até então, porque eu também tenho certeza que lembraria dessa sua cabeleira e de você. Vou avisar ao pessoal da cafeteria que temos um francês que é fã dos croissants daqui. — Falou de forma divertida.

— Pois faça isso. Já deixei várias vezes de ir ao Bistrô que fica próximo ao meu trabalho só para tomar café aqui e comer um dos croissants. — Riu.

— Acho justo. E o braço? Quando volta ao médico?

— Em breve. A licença médica expira em pouco tempo e eu preciso voltar para a Sirene ao findar esse prazo.

— Sim, é… — Sorento o olhou surpreso. — Camus, qual a sua profissão?

— Farmacêutico… — Respondeu notando o olhar do outro. — Achei que tinha comentado isso em algum momento.

— Não, não comentou. E por acaso você trabalha na Indústria Farmacêutica Sirene?

— Trabalho. — Notou o sorriso enviesado de Sorento. — Não vai me dizer que você conhece alguém que trabalha lá, ou já trabalhou?

— Mais ou menos… Acho que nunca nos apresentamos formalmente. — Esticou uma das mãos. — Muito prazer, Franz Sorento de Sirene.

***

Isaak estava completamente absorto na tela do laptop apoiado em seu colo enquanto estava sentado em posição de lótus no chão com as costas apoiadas no sofá. Digitava em uma velocidade inacreditável. Hyoga saiu do quarto bocejando, foi ao banheiro, cuidou de todas as suas questões de ordem fisiológica e de higiene. Depois foi a cozinha e encheu um copo com água. Durante todo este tempo o som ritmado das teclas podia ser ouvido.

Hyoga observou o amigo por alguns minutos até que chamou a atenção dele com sua risadinha baixa.

— Ei Patinho feio — Usou um tom carinhoso no apelido de infância — Faz tempo que você está por aqui?

— Algum tempo… Cheguei e dormi um pouco. O que há com a digitação furiosa? Voltou a escrever fanfics ou está trabalhando em alguma programação?

— O fandom não me merece — Isaak riu apertando os lábios em um bico engraçado — Estou programando… Uma oportunidade que geralmente eu deixaria passar bateu a minha porta, e talvez eu precise levantar uma quantia para a qual não estava preparado, então aceitei alguns trabalhos freelancer… Além de estar ajudando um professor da Universidade em um projeto.

— Desde quando?

— Desde hoje! — Ergueu o olho para Hyoga esperando algum comentário afiado — Pode tirar sarro, sou um novo homem, aquele Isaak sem eira nem beira derreteu. Se eu conseguir realizar metade do que planejei com certeza terei condições de fazer uma viagem nas férias do fim do ano e sabe-se lá quais outras necessidades podem surgir nesse meio tempo — Tornou seu olhar para a tela escura que projetava reflexos de infinitos caracteres em seu rosto. Seus dedos mais uma vez trabalharam rapidamente sobre o teclado.

— Sei… — Hyoga tomou lugar na poltrona que ficava a frente do sofá, bebeu água e aguardou que o amigo voltasse a falar. Alguns momentos passaram sem que nenhum dos dois se incomodasse. Ele estava buscando as melhores palavras para contar a Isaak sobre Ikki, Pandora, Freya e especialmente seu compromisso recentemente assumido com Milo.

Para sua surpresa o amigo facilitou tudo isso simplesmente declarando:

— Aliás, estou namorando.

— Como é que é Isaak? Com quem? Desde quando? A gente fica dois dias sem conversar e… Me explica, caralho! — Exclamou dividido entre a surpresa e alegria.

— Hyoga… Você me conhece muito bem, por toda vida, é o meu irmão de outra Mãe. Você sabe, não sabe? — O loiro concordou sem pestanejar. — Estou apaixonado… Ahn que se foda, nem tem como explicar, é simples assim. É uma coisa gigantesca e apenas… Eu apenas sei, me apaixonei.

— Você e... Kanon?

— Não! Eu e Kanon foi uma história com começo, meio e fim. De verdade eu gostei dele, mas não desse jeito. Pode parecer repentino, mas a história é relativamente antiga. Estou com Sorento… Lembra dele?

— O Sorento almofadinha “ranhento” que até alguns meses atrás era objeto de seu ranço eterno?

— Este! Exatamente ele. — Sorriu apaixonado lembrando da cor exata dos olhos de Sorento, um tom de castanho claro porém intenso — Nos entendemos. Resumindo: eu gosto dele, ele gosta de mim. Finalmente a vida sorriu na minha direção, e agora somos um casal! Como eu quero o melhor para meu homem preciso parar de ser moleque e acompanhá-lo, ajudá-lo, porque Hyoga ele é a pessoa mais determinada que eu já vi e não pretendo atrasar o lado dele, tão pouco ficar para trás, jamais. Eu vou onde Sorento for. Em breve quero te apresentar a ele.

Boquiaberto Hyoga acompanhava a sinceridade ea determinação estampando a face do seu melhor amigo a cada expressão.

Não conseguia se recordar da última vez em que tinha presenciado Isaak tão pleno, feliz e tendo planos. Esmiuçando suas memórias teve certeza que Isaak nunca tinha feito um só plano, não parecia ter sonhos ou aspirações. Que guinada! Lá estava ele, um homem com um propósito. Gargalhou de alegria ao se lembrar que há pouco ele buscava uma maneira de contar ao amigo que estava namorando, já que Isaak apesar de sempre apoiá-lo costumava achar todas as suas namoradas grudentas e o último relacionamento, com Ikki, tinha abalado um pouco a ambos. Tendo em vista que o Amamiya nunca passou uma boa impressão ao amigo.

— Isaak são ótimas notícias! Nossa… Quero conhecê-lo sim! E, eu também estou namorando!

— Espero que seja com o Milo. Depois de Pandora predadora e daquele desgraçado do infern… Que cara é essa Hyoga? Não me diga que largou um grego dos sonhos para correr atrás daquele escroto?

— É isso que você espera de mim? Não seja ridículo — Respirou fundo lembrando que foi Isaak quem o apoiou quando ele ficou arrasado com as atitudes de Ikki no passado. — Calma, não tenho mais nada com o Ikki, mesmo e há muito tempo. Mas, ele reapareceu. E não foi o único.

— Mas puta que o pariu Hyoga! Como assim? — Isaak deixou o laptop sobre a mesinha de centro e erguendo seu corpo sentou-se no sofá massageando o próprio pescoço, afinal estava há algumas horas trabalhando incessantemente. — Não é hora para suspense Alexei Hyoga! Conta logo o que aconteceu.

— Tá bem — Riu por alguns segundos antes de fazer um gesto de calma com as mãos espalmadas — Sua cara irada é ótima. Me ofende um pouco você achar que eu voltaria a me envolver com o Amamiya, lamentável da sua parte. Enfim, como você adora dizer: foda-se. Estou namorando com Milo. Estamos ótimos. Eu tô apaixonado e de quatro, completamente se é que você me entende — Os dois dividiram uma risada cúmplice — Mas sim, as comportas do apocalipse deixaram escapar uma horda de ex namorados… Pandora apareceu do nada em busca de informações sobre Ikki, que já tinha aparecido há alguns dias… Não faz essa cara, a gente não conversou muito e eu não achei que teria relevância te contar, não significou nada, não vou voltar para ele. Por último na festa de Despedida de Solteiro no bar que você trabalha a Freya era uma das dançarinas do Pole Dance.

Isaak estava em choque com aquele amontoado de informações sem qualquer sentido. Felizmente Hyoga não parecia ter sido fisgado por nenhuma das assombrações do passado.

— Bem que eu achei que tinha visto aquela irmã dela por lá de relance no fim do evento. Nossa que mulher entojada... — Deu de ombros desinteressado — Sua vida é um roteiro ruim Pato, é o que posso lhe dizer.

— Vai se foder Isaak! — Hyoga rebateu rindo e sem discordar.

— Sério! Que viagem essa gente ainda atrás de você… Credo! Por outro lado, meus parabéns pelo namoro, pelo menos o Milo parece ter a cabeça no lugar, entre outros atributos — Piscou maroto enquanto efetuava mais alguns comandos antes de desligar o computador — Com todo respeito ao cunhadinho, claro. Somos então os mais novos homens comprometidos dessa Cidade. O bar deveria mudar o nome de Imperador para Cupido!

Gargalharam até quase às lágrimas. Hyoga e Isaak dividiram um olhar do mais puro afeto. Já haviam sobrevivido juntos a momentos traumáticos e situações difíceis, era muito bom para ambos poder adicionar a descoberta do amor e de um relacionamento adulto a lista de coisas em comum entre a fraterna amizade deles.

— Bom, acho que já trabalhei o bastante nisso. Estou bonito? — Perguntou Isaak se levantando e depositando o computador fechado na mesinha.

Só então Hyoga notou o capricho de Isaak perfumado e usando uma de suas melhores camisas.

— Está sim. Vai encontrar com o namorado?

— Exatamente. Ele também trabalha em uma livraria e eu quero estar lá antes do turno finalizar. Hoje a noite não volto! Ou se voltar, ele vem comigo, se é que você me entende.

Hyoga sorrindo tomou lugar no sofá e pegou o controle remoto ligando o aparelho de televisão. Isaak pegou o celular, sua carteira e chaves e alisou a camisa já seguindo para a saída.

— Certo, aproveitem e juízo!

— Jamais! Quer dizer, um pouco, que seja… Estou saindo Hyoga. Fico feliz que você não tenha se abalado com esse retorno em massa do passado. Você combina muito mais com o Milo. — Hyoga abriu a boca para falar algo, entretanto apenas corou concordando com a cabeça.

— Eu te adoro, seu idiota. — Sussurrou. As palavras do amigo eram muito importantes, tanto que nem encontrou como respondê-las a altura.

— Idiota não! Eu sou adorável, por isso que o Sorento me escolheu! Tchau! — Disse Isaak já fechando a porta.

***

Nunca foi dado a acreditar em seres fantásticos, mesmo assim, apreciava a capacidade humana de criar os mais diversos elementos para explicar o que se poderia considerar inexplicável dependendo da época. E nesse momento, se pegava pensando na possibilidade de sua vida estar sendo regida por algum tipo de entidade cósmica com um peculiar senso de humor e aptidão para deixá-lo sem chão.

— Você só pode estar de brincadeira. — Camus murmurou olhando para a mão estendida de Sorento que apenas balançou a cabeça em negativa. — Quais as possibilidades?

— No que diz respeito a você, acho que já não duvido de mais nada.

— Já que é assim… — Apertou a mão do Flautista. — Muito prazer, Gaetan Camus.

— Gaetan? — Sorriu. — Belo nome.

Não desfizeram o aperto de mão e agora Camus olhava Sorento com nítida curiosidade. Realmente não conhecia muita coisa sobre aquele homem, que sem pudor algum chamava de amigo.

— Então isso quer dizer que…

— O meu pai biológico é dono da Farmacêutica Sirene. E é apenas isso que quer dizer, nada além disso. — Decretou seriamente. — Não tenho vergonha do meu nome… Ou do que vem com ele, só não é algo que me influencia ou diz algo sobre mim. O que chamamos rosa, sob uma outra designação, teria igual perfume.

Camus analisou o Flautista com calma e sorriu no momento em que separaram o aperto de mão.

— Shakespeare. — Afirmou fazendo menção a última frase do amigo. — Pertinente. — Piscou um olho, dando um sorriso enviesado que tornou-se mais discreto ao notar a figura que entrava na livraria.

Sorento acompanhou o olhar de Camus e observou o homem alto, loiro e elegante que adentrava o local.

A julgar pela mudança na fisionomia do amigo, poderia apostar que além de ser o motivo pelo qual o francês estava ali, aquele homem era o responsável pela “longa história”, que certa vez acreditou deixar o farmacêutico consternado.

Chapter 51: Você alcançou e puxou para dentro

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Era assim desde a primeira vez em que tinha tido a sorte de colocar seus olhos sobre a figura de beleza ímpar daquele homem. Em todas, mesmo naquelas em que ostentava sua mais perfeita máscara de indiferença, Camus sentiu o impacto da presença do homem que fazia seu coração descompassar. Sabia que isso seria percebido imediatamente pelo olhar atento de Sorento e essa certeza lhe gerou grande satisfação, mais uma sensação para discutir em terapia… Não pretendia mais esconder o que sentia. Não mais das pessoas que considerava queridas em sua vida.

— Como vai Shaka? — Camus falou sem saber ao certo como cumprimentar o outro.

— Não tenho muita certeza… — Suspirou. — Não me incomodaria com um abraço. — Falou aproximando-se.

O Flautista observou a interação entre os dois homens e notou o palpável nervosismo de ambos.

— Shaka, esse é o meu amigo Sorento. — Camus falou afastando-se apenas o suficiente para fazer a apresentação.

— Muito prazer. — Sorento estendeu a mão em um cumprimento que foi prontamente correspondido.

— Igualmente. — Olhou de um para o outro. — Não sabia que Camus tinha outros amigos na Cidade. Isso me deixa aliviado, de certa forma.

— Aparentemente ele não cultivava muitas amizades. — Sorento respondeu. — Mas de uns tempos pra cá ele anda empenhado em construir laços duradouros. — Olhou de esguelha para Camus. — E está conseguindo com indiscutível êxito. — Sorriu minimamente.

— Isso me deixa realmente feliz. — Retribuiu o sorriso.

— Os senhores de ar blasé podem parar de falar de mim como se eu estivesse em outro lugar? — Camus falou com deboche cruzando os braços.

— Claro que sim. Inclusive, preciso voltar ao trabalho. — Sorrento olhou para o relógio de pulso. — Uma satisfação te conhecer Shaka, e pode ficar tranquilo, Camus está indo muito bem. De verdade. — Enfatizou a última frase, antes de se despedir dos dois com um movimento de cabeça e caminhar para os fundos da loja.

— Parece um rapaz ponderado. — Shaka comentou com simplicidade, enquanto observava o Livreiro se afastar.

— Ele é… Um ótimo amigo. Tem me ajudado bastante.

— Ao menos teve ajuda na minha ausência.

— Ambos nos ausentamos, de alguma maneira.

— No geral não te vejo muito assumindo a responsabilidade pelas coisas.

— É sempre mais fácil imputar a culpa a tudo e a todos, menos a nós mesmos.

— Tem razão… E é por isso que estou aqui. Podemos subir? Gostaria de um chá.

— Claro. — Trocaram um olhar significativo.

Subiram as escadas, escolheram a mesma mesa que já haviam ocupado em outras ocasiões, uma que ficava mais afastada das escadas e dava uma visão privilegiada do salão da livraria, sentaram-se um de frente para o outro. Shaka tomou a dianteira chamando uma das garçonetes e pedindo dois croissants, além de um chá preto e um cappuccino para Camus. Assim que a moça se afastou, olharam-se por alguns minutos, o nervosismo de outrora parecia ir se esvaindo aos poucos na medida em que Camus encontrava calmaria em meio ao sutil tom de ciano dos olhos do amigo e Shaka sentia seu corpo aquecer ao encarar o indefectível tom de terracota. Não registraram quanto tempo se mantiveram naquela contemplação mútua, afinal, não parecia haver nenhum tipo de urgência e ao contrário do encontro anterior, era nítido que uma parte da angústia que os cercava tinha de certa forma se esvaído.

De sua parte, Camus já havia entendido que independente do que acontecesse prezava aquela amizade, e sua recente incursão no mundo dos relacionamentos não sexuais, o havia mostrado que algumas vezes precisava de algo mais que um acalento em sua cama, ou em seu corpo. Mesmo assim, não podia deixar de pensar que Shaka seria capaz de lhe proporcionar toda a paz que tanto desejava, isso é claro, se ele estivesse disposto a tal coisa.

Deu um sorriso triste ao recordar da famigerada noite no Imperador, na qual pensou algo muito semelhante: “Seria muito mais fácil se sua companhia se prontificasse a tal coisa.” Ao que parece ele ainda não estava disposto a aplacar suas necessidades.

— Como está o seu ombro? — Shaka questionou notando o sorriso entristecido do outro. A bem da verdade, não tinha muita certeza de como iniciar aquela conversa e isso, para ele, era algo surpreendente.

— Muito bem. A medicação ajuda bastante. — Respondeu quebrando o contato visual, olhando para o pátio da livraria como se buscasse algo. — Em breve devo voltar ao trabalho.

— Seria melhor ir ao médico antes e ver o que ele tem a dizer. — Acompanhou o olhar de Camus. — Estou mesmo feliz por você, Camus.

— Como? — Respondeu genuinamente confuso voltando a fixar o olhar em Shaka.

— Dessa vez nem posso dizer que você está se fazendo desentendido. — Jogou os longos fios loiros para trás e sorriu ao notar que Camus acompanhava o movimento com nítido interesse. — Não sei dizer o motivo, mas me deixou feliz saber que você está indo bem, está fazendo amigos e acima de tudo está tentando se tornar uma melhor versão de si mesmo. Andei pensando muito sobre isso… E sobre muitas outras coisas.

— Posso saber especificamente sobre quais coisas?

— Claro… Dentre as que dizem respeito a nós dois, ando pensando sobre aquele dia na sua casa, sobre a nossa última conversa e sem dúvida alguma sobre aquele beijo.

— Gostou do beijo? — Deu um sorriso enviesado.

— Estaria mentindo se dissesse que não. — Revirou os olhos. — Não faça essa cara e nem venha me dizer que… — Fez um gesto de aspas com as mãos. — De homem você entende, que eu levanto dessa cadeira e vou embora. — Falou com forçada seriedade.

— Jamais! E então? — Recostou na cadeira cruzando as pernas. Uma postura semelhante à que assumiu na noite do jantar, antes de tirar Shaka para dançar.

— E então… — Suspirou jogando-se de forma cansada na cadeira, em uma atitude pouco usual. Analisou a postura de Camus antes de voltar a falar. — E então, que eu não sei. Realmente não sei Gaetan e isso me acontece com pouquíssima frequência. No geral, como você bem sabe, tenho resposta e solução para tudo. E achei durante um tempo que tinha mesmo a solução para a nossa questão. Antes de tudo, quero deixar uma coisa bem clara, eu não sou um covarde, de forma alguma. Mas… — Fitou os olhos de Camus como se buscasse ali as palavras corretas para se expressar. — Lembra do período da faculdade em que você começou a namorar com Surtr? — Camus balançou a cabeça em concordância, fazendo uma leve careta ao ouvir aquele nome. — Um pouco antes daquilo eu me assumi para a minha família. De um lado me guiei pelas suas palavras de incentivo em momentos anteriores, do outro já não aguentava mais me anular. No geral, já sou meu próprio carrasco e cumpro bem o papel de me flagelar na minha busca por não cometer erros. — Coçou a ponta do nariz antes de continuar. — O que nunca te contei foi o alvoroço que se instaurou no lar perfeito dos Parsons. Meus pais, que haviam rompido com toda a tradição familiar e queriam mostrar ao mundo do que eram capaz, tinham um filho gay. Cresci em um lar no qual a busca por controlar todos os aspectos da vida, era tido como a completa perfeição. E eu sai do espectro de completude que meus pais acreditam ter. Acho que no fundo, eles acreditam que minha orientação é algum tipo de castigo dos Deuses. — Suspirou mais uma vez.

— Não sabia disso, Shaka. Sempre achei que seus pais fossem pessoas esclarecidas.

— Eles são. Contudo, preconceito não escolhe classe social muito menos grau de erudição. Não são os piores pais do mundo, mas estão longe de ser um mar de amor e afeto, como… — Parou a frase no meio ao lembrar dos pais de Shura. — O que eu quero dizer, é que eu também passei a minha vida na busca pelo controle, e através dele eu consigo moldar as coisas da minha forma, deixar tudo do meu jeito. Tudo que me escapa, atravessa meus dedos como água, me deixa sem chão. E eu tendo a me opor a essas situações, exatamente porque preciso do controle, assim como preciso respirar. Não quero com isso me justificar, ou exercer um fraco contexto sobre minhas atitudes. Eu sou assim, em parte pelos meus pais, em outra pela personalidade que desenvolvi. E aqui, acho que você já entendeu que a sua declaração, virou minhas certezas de ponta cabeça. A nossa última conversa, tirou parte do meu controle e aquele beijo… Aquele beijo, Gaetan, tirou meu rumo.

Camus encarava Shaka com indisfarçada surpresa, primeiro pela sinceridade que captava em cada uma daquelas palavras, o esforço que sabia estar partindo do amigo ao dizer tudo aquilo e acima de tudo por mesmo assim, não conseguir notar nenhuma rachadura naquele pose altiva, o eterno ar de desinteresse com os simples mortais. Sorriu internamente, tentando recobrar o momento em que aquele tipo de comportamento deixou de o incomodar e passou a lhe causar fascínio.

Lembrava que o amigo ficou imerso em algum drama familiar durante certa parte da faculdade e por mais que tenham confidenciado uma série de coisas um ao outro, Shaka jamais falou abertamente sobre sua família. Sabia apenas que ele era filho único e que os pais haviam optado por não manter determinados elementos da tradição familiar, mas nunca questionou sobre a forma como eles viam sua orientação. Afinal, o amigo sempre lhe passou a impressão de ser o tipo de filho que seria apreciado por qualquer progenitor.

— Sendo assim… — Shaka respirou fundo antes de continuar. — Posso dizer que não sou indiferente aos seus sentimentos, muito pelo contrário. Seria muito melhor se eu fosse. Tudo seria mais simples. — Notou um sorriso caloroso ornar o rosto de Camus. — Porém…

— E lá vem o maldito porém. — Falou desfazendo o sorriso.

— Sim… Parece que sempre temos um porém. — Shaka calou-se ao ver a garçonete se aproximando. Esperaram que ela servisse as bebidas e os croissants. Shaka adoçou seu chá, sob o olhar atento de Camus. — Não sou imune a você. Não sei se alguém é. — Gracejou.

— Sorento. — Riu mediante o rosto surpreso do outro. — Nossa amizade começou de um jeito bem peculiar.

— Pois me conte isso. — Demonstrou genuíno interesse.

— Depois. Primeiro, vamos terminar essa conversa… Mesmo que não seja do jeito que eu quero, precisamos resolver isso, Shaka. Não quero ficar cheio de dedos para falar com você. Quero saber se ainda somos amigos e se em algum momento poderemos ser algo mais? Só não me interessa a indefinição, a indecisão. Uma coisa que ouvi na terapia é que preciso fechar meus ciclos, por mais doloroso que seja.

— Você tem razão. Definitivamente todo mundo deveria fazer terapia.

— Até você? — Sorriu.

— Uhrum… Até eu. — Retribuiu o sorriso. — Como eu dizia… Por mais que não seja indiferente a você, não posso largar tudo, não agora. Assim como você precisou de um tempo para repensar suas atitudes, mudar e decidir que queria traçar um novo caminho eu também preciso de tempo. Seria no mínimo cruel querer que eu desse um salto de 360° e virasse outra pessoa da noite para o dia. Não vou conseguir me libertar da minha necessidade de controle e segurança em uma semana. Assim como, não foi em um dia de terapia que você notou que não precisava caçar todas as noites. Depois daquele jantar na sua casa, ficamos um tempo sem nos falar e… Não tenho como conhecer o seu novo eu, sem conviver com você.

— Você está tentando de uma forma educada dizer que não acredita que eu mudei? — Camus bebeu um gole do cappuccino maldizendo o fato de não poder colocar uma generosa dose de conhaque dentro da bebida.

— Não. Estou tentando dizer que quero estar por perto para ver como você já mudou, e o que ainda pretende mudar. Assim como seu amigo Sorento, quero encher a boca para dizer que você está indo bem. E eu quero que você faça o mesmo comigo. Não posso largar tudo agora, não apenas por mim… — Lembrou do beijo carinhoso que a sogra deu em sua bochecha antes dele ir embora e do olhar de Shura ao dizer que poderia lhe ligar a qualquer hora, caso tivesse algum problema no período em que ele estivesse ausente cuidando da Mãe.

— Não use aquele Espanhol como muleta, Shaka. — Camus falou colocando a xícara de forma ruidosa sobre a mesa, o tom mais ríspido do que desejava.

— Não estou, Gaetan. Jamais faria isso. Não sou indiferente aos seus sentimentos mas isso não quer dizer que eu não sinta nada pelo Shura. Muito pelo contrário. Aquele homem esteve comigo em ocasiões complicadas. E eu devo muito aos pais dele. Neste momento, não posso… Na verdade, não quero terminar tudo agora. — Camus fez menção de falar e Shaka fez um gesto com as mãos pedindo que ele esperasse. — E com isso não quero que você ache que estou pedindo que você me espere eternamente, no alto de uma torre, como uma bela princesa. Não! Eu quero apenas que você saiba que eu preciso de tempo. Assim como você teve o seu, eu preciso do meu. Mas não espero que você fique ao meu dispor, de forma alguma. Conheço bem o seu charme e sei o efeito que você causa nas pessoas. Por isso… Não posso controlar a possibilidade de alguém aparecer na sua vida, você se apaixonar e o tempo que preciso acabar se tornando nosso maior impeditivo. Mesmo assim, vou ter que trabalhar com essa possibilidade, pois não quero fazer nada que possa acabar com a nossa amizade e magoar outras pessoas por quem tenho carinho.

Camus ponderou olhando para a própria xícara.

— Admito que essa conversa não foi como imaginei que seria. Não esperava ouvir nada disso de você.

— Se serve de consolo, não era nada disso que eu tinha planejado dizer. Mais uma vez tudo fugiu ao meu roteiro. — Riu. — Ao menos você não poderá me chamar de covarde novamente.

— Não, não posso. Mas… — Encarou Shaka. — Posso esperar. — Colocou uma das mãos sobre a do amigo. — Acho que foi mesmo pouco compreensivo da minha parte exigir mudanças imediatas, ainda mais levando em conta o tempo que eu te conheço.

— Como já disse… — Shaka apertou a mão de Camus, uma gostosa onda de calor passou pelos dois. — Não estou procurando uma forma de te prender ao pedir mais um tempo. — Sentiu um arrepio ao notar o brilho nos olhos do outro. — Você é livre, acho que hoje talvez seja mais livre até do que já foi algum dia. Eu só preciso entender melhor as coisas, me organizar…

— Fazer uma planilha, colocar no seu planejamento mensal e quem sabe depois me enviar um memorando. — Debochou, rindo em seguida ao ver Shaka erguer o nariz em um gesto contrariado, não soltaram as mãos. — Senti falta desse seu narizinho voltado para os astros.

— Queria dizer que não senti falta desse seu sarcasmo, mas senti. O pior é que eu senti. — Sorriu discretamente. — E respondendo ao que você perguntou antes, pretendo sempre ser seu amigo, estando ou não na sua cama algum dia.

— Espero mesmo que seja a primeira opção… Em algum momento… — Sorriu caloroso.

Shaka mordeu discretamente o lábio inferior ao contemplar um dos benditos sorrisos matadores que Camus dava sem ter a real noção do efeito que eles causavam. Retribuiu o gesto, sentindo parte do peso que estava em suas costas amenizar. Ainda precisava lidar com toda a situação de seu casamento, e com a ironia do destino que poderia apenas colocar outra pessoa no caminho de Camus.

Quanto a isso não tinha nada que pudesse fazer e ao mesmo tempo que essa constatação o apavorava, também lhe dava certo alívio. O destino poderia se encarregar das coisas, e ele só seria apanhado em meio a ele. Abrir mão do controle era mesmo um desafio, mas precisava começar de algum ponto.

Decidiu que iniciaria por aquilo que estava ao seu alcance, e nesse caso era voltar a convivência com o amigo, enquanto travava a diária luta consigo mesmo.

Notou quando Camus olhou para o pátio da loja e sorriu acenando para Sorento com a mão livre, a outra continuava enlaçada a de Shaka que sem perceber havia cruzados os dedos de ambos em um toque sutil, mas muito significativo.

O Livreiro saia da loja acompanhado de um rapaz que lançou um olhar nada amigável na direção de Camus, o que fez com que Shaka risse abertamente, captando a atenção do outro, que olhou primeiro para os dedos entrelaçados, sentindo novamente aquela onda de calor e aconchego, e uma vontade incontrolável de beijar aqueles lábios bem feitos que a agora se moldavam em uma gostosa risada.

— O que foi? — Questionou contendo o ímpeto. Havia dito que daria um tempo a ele e não estava em seus planos estragar o acordo firmado.

— Acho que nem todos sabem da imunidade do seu amigo a você. — Camus riu com gosto. — Agora vai me contar como o conheceu e o que tem feito durante a minha ausência?

— Olha… É uma longa história.

— Tudo que nós temos é tempo, Gaetan. Apenas ele nos pertence. Caso queira me doar um pouco do seu, ficarei grato.

Camus alargou o sorriso e começou a relatar com calma suas últimas desventuras. Estava sim disposto a dedicar todo o tempo que fosse necessário para finalmente fechar aquele ciclo da forma que sempre desejou.

***

Quase não se lembrava de ter algum dia vivido alguma situação parecida. Tudo que lhe ocorria eram comédias românticas e jovenzinhos rindo como idiotas. Como ele deveria estar exatamente neste momento.

Julian havia partido há pouco e se falariam mais tarde ou no dia seguinte. Deusa estava dormindo ao seu lado na cama.

Quando seu celular vibrou anunciando a chamada de vídeo atendeu sem disfarçar o sorriso. Milo estava com expressão semelhante a sua e ao se encararem não pararam de rir.

O terceiro integrante,que deveria ser Aiolia, não atendeu a chamada.

Assim que se acalmaram um pouco puderam trocar algumas palavras.

— Kanon, meu bom, ao que tudo indica o pós festa rendeu para o seu lado! — Disse Milo tocando ligeiramente o próprio pescoço.

O biólogo, que já havia sido alertado por Julian da mancha arroxeada em seu pescoço a que o dono do Imperador chamou de “Marca dos meus Beijos”, sorriu satisfeito.

— Sem dúvidas, meu moleque. Eu finalmente me acertei com Julian.

— Mas isso é motivo para comemorar! Todos estão resolvendo suas pendências românticas! Passei a tarde com Kardia, que acredite, também encontrou um companheiro naquela festa. Acho que somos realmente um bando de gregos apaixonados Grandão!

— O Diretor? — Kanon riu com gosto — Seu irmão, vamos combinar, não tem a menor tendência a ser discreto, ele secou o moço a noite todinha… Até eu, que cheguei a ficar bêbado percebi.

— “Cheguei!” — Milo fez uma expressão de desagrado nada convincente — Você estava bêbado e meloso. Como sempre! Mas que bom que dessa vez conseguiu o SEU grego! Aliás, pensei na gente se encontrar no Imperador nesta semana, quero apresentar o Hyoga para o Kardia… Para Aiolia também.

— Ele nem atendeu né… Será que o Leãozinho está de ressaca até agora?

— É uma possibilidade, apesar de que ele costuma ser bem forte com bebidas. Se bem que ele saiu com Dohko e Defteros, pelas fotos que vi no perfil do baixinho, aproveitaram fortemente viu... Bom, sou oficialmente um homem comprometido desde ontem. Quero dividir minha felicidade com vocês.

— Eu também… Caramba! Que coincidência! Julian vai adorar receber a gente lá… Vamos mais para o fim da semana? Tenho que adiantar algumas resenhas e leituras aqui, mas acho que consigo fechar tudo que preciso. Sexta, que tal? Vou ver se Julian pode ficar um pouco com a gente também…

— Olha que sorte a minha, ser amigo do namorado do dono de meu bar preferido! — Sorriu amoroso — Estou muito contente que vocês se entenderam. Quantos anos nessa amizade intensa de vocês?

— Mais do que seria saudável admitir Milo… Sabe, é tão estranho perceber o quanto eu estava me fechando para a felicidade. Quem sabe este era um dos motivos de não conseguir me conectar com Isaak… Já que ele foi o mais perto de relacionamento que cheguei desde o Inglês-monocelha, como você dizia. Quanto a Isaak, ele tão menino, parecia até que eu estava me sabotando, não acha?

— Não sei se a diferença de idade foi o crucial aí Kanon, talvez realmente pese… Mas, ao que tudo indicava vocês estavam mais pautados pela pele, pelo corpo que pela essência. E longe de mim sugerir que atração não seja importantíssima, entretanto, a gente precisa de mais, no fim das contas um relacionamento é feito por duas pessoas dispostas, as afinidades apenas facilitam e pavimentam o caminho. — Milo comentou sério, como se ele também precisasse ouvir aquelas palavras.

Kanon sentiu novamente um aperto, que havia deixado de lado há algum tempo, retornar a seu peito. Detestava ter conhecimento da traição cometida por Camus e Saga e não revelar isso ao primo.

O irmão não sabia na ocasião, que o ruivo era comprometido, e era infinitamente irônico que em um relacionamento tão longo quanto o deles Milo não tenha apresentado ao namorado toda a família. Se ao menos ele não estivesse fora do país… Sempre foi mais próximo de Milo e Saga de Kardia. Teriam se encontrado e tudo poderia ser diferente…

Mais uma ironia para o infinito contingente que entremeia as relações humanas. O tipo de situação ordinária que poderia ter gerado muita confusão, mas que de alguma maneira permaneceu nos bastidores por todo esse tempo.

Era contraditória a sensação e se sentia sufocado por ter sido ele a descobrir esse enredo.

Sabia, contudo, que a questão poderia gerar problemas mais profundos a todos os envolvidos, mesmo indiretamente.

Sentiu alguma culpa por ter simpatizado com o ruivo, depois de conhecer o lado menos psicopata dele, mesmo de leve. Contudo, seu compromisso era com Milo, seu amigo, primo por consideração.

— Acho que você tem razão. Quando a gente quer tentar, outros aspectos podem ser trabalhados, conversados… Óbvio que existem os obstáculos, os problemas da vida real, mas sem disposição o menor deles seria intransponível. Eu e Julian sempre nos demos bem, é uma pessoa que aprecio desde sempre, um amigo, um porto seguro. A gente deixou a vida nos afastar por tempo demais. Agora colocamos todas as cartas na mesa. E eu sinto Milo, que é sério mesmo, como se fosse isso… É ele o meu homem. Para sempre. Ainda não consegui dizer isso tudo, mas aqui dentro — Tocou o próprio peito — É certo. Eu me encontrei.

Milo encheu-se de afeto e orgulho pelo homem que sempre teve como um exemplo a ser seguido. Ele concordava. E torcia pelos dois.

— Acho que finalmente entendo. Sabe Kanon, desde aquele dia em que encontramos meu ex, o Camus, lembra? Eu fiquei pensativo sobre algo que aconteceu no passado. — Milo fechou os olhos momentaneamente buscando se concentrar e perdeu o momento onde Kanon visivelmente empalideceu. — Pensando sobre os caminhos que a gente escolhe e as pessoas que passam pela nossa vida ou as que nos acompanham… E sobre o que significa verdadeiramente fidelidade

Chapter 52: Inundação, não posso explicar

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Milo se ajeitou no sofá, precisava falar e como sempre a pessoa mais disposta a ouvi-lo estava a sua frente, ainda que através da tela do celular. Talvez, até o fato de Aiolia não estar participando da chamada acabaria por facilitar o que pretendia dizer…

— Hyoga foi procurado por algumas pessoas de seu passado, e você não vai acreditar… Das moças que dançaram na festa de Aiolos, você se lembra de Freya? Ela usou a peruca vermelha durante a festa.

— Me lembro sim, linda a moça, vocês ficaram tão amiguinhos que achei até que você estava ampliando seu leque de possibilidades… — Kanon brincou tentando descontrair mais a si mesmo que ao primo.

— Ughnt! Nem brinque com isso, ela é linda, mas eu não tenho nenhuma inclinação nesse sentido. Hyoga por outro lado já navegou por aqueles mares… — A expressão interrogativa de Kanon fez Milo rir — Eles namoraram na adolescência, acredita nisso? — Observou os olhos do primo se arregalando e limpou a garganta antes de prosseguir — O rapaz que estava com Aiolia, você viu?

— Sim, ele me apresentou. O assistente dele, Ikki, um tanto quieto mas bem gato, aliás… Aiolia podia se animar, não acha?

— Não acho! Kanon, ele é ex do Hyoga também.

— Como é que é? Milo, como assim? — Kanon fez um O perfeito de surpresa com a boca e coçou a barba que ainda não havia sido feita. Milo concordou com a cabeça sem disfarçar seu bico de contrariedade — Nossa... Hyoga! Uauw! Primo, me desculpe, mas o seu menino mandou bem!

— Porra Grandão, não diz isso… Só de imaginar meu sangue ferve. Eu tenho olhos, ok? Bem vi que o filho da puta é certamente… Interessante. Merda! Estou trabalhando muito meus humores para não entrar nas paranoias que vivi com Camus. O que quero te falar é que Hyoga é completamente transparente, não faz nenhum joguinho. Enquanto a gente estava na festa, ele jantou com outra ex — A expressão de Kanon era impagável e Milo quase riu, ele mesmo custava a acreditar em todo aquele absurdo intrincado — Eu sei, é completamente sem noção, enfim, a história é meio longa, mas resumindo ele dispensou a moça e naquela mesma noite o puto do Ikki foi até a casa dele. Acredita? E sim, se declarou e foi graças aos Deuses rejeitado. Bom, eu devo ser um homem civilizado ou o amor me melhorou, pois te contar… Não explodi. Que raiva. — Respirou fundo afastando a sensação ruim — Apenas fiquei contente por Hyoga compartilhar isso comigo. Ele me faz sentir seguro. E Kanon… Não me olhe assim, comecei isso tudo falando do Camus por que eu… Eu acho, não eu sei que Camus me traiu.

Kanon deixou cair o telefone em seu colo e demorou alguns segundos para se recompor. Estava petrificado com o que tinha acabado de escutar. Milo riu da reação do primo. Respirou fundo para continuar.

— Milo… — Kanon começou a falar, entretanto o primo o interrompeu.

— Me deixa continuar… Preciso falar, eu contei isso pro Hyoga, mas preciso ainda… Kanon, eu sei que ele fez isso. E eu também fiz… Eu dei o troco. Entende? De alguma forma eu acabei piorando tudo… É o tipo de erro que não pretendo repetir.

— Você sabe com quem ele..?

— Não, tão pouco me interessa. Não tem desculpa, nem para a atitude dele, muito menos para a minha, por que eu nem aproveitei, me senti tão idiota. Erramos os dois! E passou tanto tempo, você acha que faria algum sentido eu conversar sobre isso com ele, agora? Naquele dia, me ocorreu que tanto ele quanto eu insistimos em um relacionamento que era baseado mais na carne que no coração. Eu sei que ele é no fundo uma boa pessoa, mas o Camus foi muito fodido pela vida, sabe? A história dele é bastante tensa, eu torço para que ele encontre alguém com mais estabilidade e maturidade emocional para acompanhá-lo nessa jornada de cura.

— Você pensa em conversar com ele Milo? — Kanon perguntou sentindo o coração disparado. — Sobre isso que você me contou?

— Acho que não faz sentido… Cheguei a cogitar. Só que ao mesmo tempo me sinto completamente liberto, desconectado daquele relacionamento e talvez remexer nisso, rever aquela noção distorcida que eu tinha seja algo muito doloroso… Será que é egoísmo da minha parte me focar neste novo capítulo da minha vida? Eu só consigo pensar em Hyoga. Na noção de fidelidade que estou aprendendo ao lado dele. Não quero mais nenhum abutre rodeando… Não quero ter ciúmes. Quero apenas viver com ele o que a gente sente um pelo outro. O que você acha, Kanon?

Kanon estava surpreso com a maturidade do menino que ele viu crescer. Por um instante era o Milo adolescente na sua frente novamente, lhe pedindo segredo enquanto contava do primeiro beijo trocado com seu melhor amigo, confuso enquanto dizia estas mesmas palavras “Quero viver o que eu sinto... O que você acha, Kanon?”

Não pode evitar o sorriso e os olhos marejados. As vezes, realmente a vida decide o que deixamos em aberto, em outras cada um é o único responsável por seu destino. E cabia aos responsáveis, de certa forma, respeitar isso. O biólogo aceitou ali que não era de sua obrigação a decisão sobre remoer o passado de Milo e Camus.

— Acho que você está certo Milo. E eu não sei se já disse, mas tenho muito orgulho de ser seu amigo. Te amo, cara.

Milo riu alto, também um pouco emocionado. Kanon era uma referência para si. Corado ele respondeu:

— Eu também… — E seguiram conversando por um bom tempo, satisfeitos cada um a sua maneira por todas as palavras que haviam trocado e pela amizade profunda que os unia.

Kanon preferiu não pontuar que Milo havia mencionado que o amor o mudou. Era visível o quanto ele e o amigo de Isaak estavam envolvidos. Ficava feliz em saber que Hyoga levava seu moleque a sério.

Os dois pareciam um história de amor à primeira vista, não era algo tão comum quanto sugerem os filmes românticos ou impossível quanto pensavam os amargos ou os céticos.

O sorriso de Kanon se alargou. Gostava de ter acompanhado essa história desde o primeiro momento. Eles ficariam bem, todos bem.

***

Era um homem paciente, quanto a isso não havia dúvida, mas em momento algum precisou fazer valer essa faceta de sua personalidade enquanto explicava em detalhes, ao atual namorado, sua relação com o “ruivo psicopata”. Talvez se fosse outra pessoa acharia um tanto cansativo o tom com o qual Isaak o indagou e acima de tudo o brilho quase mortal que identificou em meio aquele único olho verde quando ele direcionou a atenção a Camus que parecia plenamente envolvido na conversa que se desenrolava com Shaka.

Já havia esclarecido seu Ciclope sobre o bilhete desencadeador do gostoso amasso que haviam compartilhado em momento posterior, mas não teve tempo de explicar sua atual conexão com o homem que agora sabia ser farmacêutico.

E ao mesmo tempo em que Isaak o surpreendia com uma possível cena de ciúme, ele lhe mostrava total maturidade ao contar o motivo de não se agradar da figura de Camus. Escutou tudo com atenção e ficou sinceramente feliz ao ouvir o namorado dizer que não queria esconder nada dele, até mesmo sua faceta menos “adulta”, pois estava cansado que sentir raiva de tudo e de não conseguir controlar suas mudanças de humor.

— Ao seu lado minha raiva some. Mesmo assim… Ainda sou eu e caralho… Não gosto daquele ruivo.

Sorento riu abertamente, abraçando Isaak e deixando claro que ele não precisava se preocupar. Não existia nenhum contexto sexual ou romântico entre ele e Camus. Inclusive, atentou o namorado sobre o loiro estonteante que estava ao lado do amigo. Isaak admitiu ter notado o tal loiro bonitão, mas estava mais focado em fuzilar o ruivo.

— Como um bom Ciclope.

O Flautista falou em tom de brincadeira arrancando uma careta e em seguida um belo sorriso de Isaak, que depois de olhar em voltar e entoar seu quase mantra: “Foda-se”, puxou Sorento para um beijo exigente e de tirar o fôlego.

O ósculo foi prontamente correspondido com o mesmo desejo e carinho, e ao findá-lo Sorento finalmente conseguiu verbalizar o pensamento que o tomou no instante em que viu o namorado:

— Você está lindo!

Melhor, aos seus olhos aquele garoto era lindo, metido em suas calças sempre justas e dessa vez, usando uma blusa xadrez verde por cima de uma regata preta. A cor da blusa ressaltava de forma certeira o tom daquele único olho verde, que naquela noite parecia brilhar com mais intensidade do que a estrela mais luminosa do céu.

Toda a vestimenta parecia se ajustar de forma perfeita aquele corpo, o que deixava a mente de Sorento imersa em pensamentos nada castos. A julgar pela forma que Isaak o olhava, acreditava que o outro compartilhava da mesma linha mental.

O restante do encontro se desenrolou da forma mais agradável possível. Assistiram ao filme de terror escolhido por Isaak, em uma sessão praticamente vazia. Por mais que o filme estivesse interessante não refreiavam os beijos que surgiam de quando em quando. Permaneceram de mãos dadas e em determinado momento Sorento sentiu todos os pêlos de seu corpo se arrepiarem ao sentir a respiração de Isaak em seu pescoço seguida de um beijo.

Respirou fundo, aproximando o corpo do namorado, na medida em que o assento do cinema permitia.

Saíram da sessão com fome, não necessariamente de comida e mais uma vez Sorento via-se em meio a orquestra de lascivos sons que seu Ciclope fazia sempre que comia algo que julgava gostoso. Não pôde conter um pensando que lhe acometeu e que pretendia elucidar naquela mesma noite. Até lá, mantinha-se encantado e excitado com a sinfonia de sons e gestos que era Isaak.

No meio do caminho pararam em uma loja de instrumentos musicais, Sorento contou que além de flauta também sabia tocar piano e violão, mas que não tinha a mesma destreza, o que arrancou um sorriso obscenamente malicioso de Isaak que demonstrou grande interesse sobre a habilidade manual do namorado.

Por mais que tentasse Sorento não conseguia conter o riso, ao lado daquele rapaz sua usual postura fechada se esvaia.

Olharam alguns instrumentos e o charmoso Ciclope pegou uma das guitarras da loja tirando alguns acordes com grande facilidade. Quando colocou a guitarra no lugar notou o olhar que o namorado lançava sobre si e pela primeira vez naquela noite corou.

— Quer dizer então que você toca guitarra?

— E violão. — Falou corando ainda mais ao ver o sorriso de Sorento se alargar. — Aposto que não tão bem quanto você.

— Não aposte nisso. Gostei muito do que ouvi… E vi.

— Meu pai é músico e vive viajando para diversos lugares. Além de guitarra o velho também toca baixo, piano e da última vez que conferi bateria também. — Passou a mão na nuca sem jeito. — Alguma coisa aprendi com ele. Mesmo que ele gostasse de exaltar como isso… — Apontou para a guitarra. — Facilitava na hora de pegar mulher. — Balançou a cabeça.

— Mulher não sei, mas eu fiquei muito interessado. — Sorriu.

Isaak sentiu mais uma vez o rosto esquentar e seguiu Sorento em direção a um belo piano que estava exposto.

O Flautista comentou que aprendeu a tocar aquele instrumento com a mãe, uma mulher de origem italiana e responsável pelo nome “Sorento”. Explicou por alto a conflituosa relação com o pai e não se surpreendeu ao saber que Isaak também tinha seus impasses. Não na mesma proporção, na verdade não havia um empate em si. A grande questão era que “seu velho” tentava se fazer presente de uma forma que muitas vezes o sufocava. Admitia que não deixava muita brecha para que a relação se estreitasse, o incomodava a “porra da forçação de barra”.

Sentiam-se à vontade na companhia um do outro e a declaração de Isaak sobre almejar a sinceridade naquela relação, fazia com que ambos não tivessem nenhum pudor em compartilhar sua história, até os aspectos mais melindrosos.

Sorento tinha a sensação que havia falado mais naquela noite do que em toda a sua vida e isso ao mesmo tempo em que o assustava, lhe trazia a certeza de que aquele rapaz, aquele Ciclope rebelde e irritantemente gostoso era a pessoa certa.

Já se encaminhavam para o sobrado rosa no qual o Flautista residia, quando pararam em frente a uma loja de discos e olharam a vitrine. Isaak admitiu que tinha feito uma lista em um aplicativo de música com algumas sugestões que certa vez ouviu o namorado indicando a Io.

Sorrindo, Sorento contou que pesquisou a banda que Isaak havia lhe indicado e que as músicas daquela banda eram toda a trilha sonora de seu celular, desde os alarmes até o toque.

Trocaram um olhar e sorriso cúmplice. Há quanto tempo estavam na vida um do outro em meio às pequenices e ainda não tinham percebido?

Saíram da estação do metrô e caminharam até a casa de Sorento, que apontou o sobrado rosa assim que o avistou. Isaak olhou a fachada da casa e não soube dizer o motivo, mas a palavra “lar” saltou em sua mente.

Ao se aproximarem viram um carro saindo da garagem da casa. O motorista do veículo abaixou a janela e um belo rapaz de aparência jovem e cabelos castanhos preso em um rabo de cavalo alto abriu um largo sorriso.

— Boa noite, Sorento!

— Boa noite, Shun! Está saindo para o plantão?

— Sim. Perdi outro dia de folga. — Deu de ombros. — Nada de novo. — Olhou curioso para o companheiro de Sorento.

— Shun, esse é o Isaak, meu namorado. Isaak, esse é o Shun, meu senhorio juntamente com o irmão dele, e meu amigo.

— Muito prazer! — Isaak comprimentou sem conter o sorriso.

— O prazer é meu. Só quero inventar essa ordem de títulos. Eu e meu irmão somos seus amigos… Acredito que posso dizer que também que somos sua família, não sanguínea, mas ainda sim sua família. E eventualmente essa família se formou comigo sendo seu senhorio. — Piscou um olho.

— Perfeita troca de ordem. Não poderia estar mais certo. — Sorento falou colocando a mão no ombro de Shun pela janela do carro.

— Fico feliz em conhecer seu namorado. Pena que você o trouxe em um dia em que meu irmão está intragável e intratável. Mas você sabe lidar bem com o espírito indomável dele. Não se assuste Isaak, não é todo dia que ele está de mau humor.

— Sem problemas. Todo mundo tem seus dias… — Isaak falou com simplicidade.

— Você tem um ponto. — Shun olhou para o relógio do painel do carro. — Tenho que ir. Daqui a pouco a Dra Sendai começa a me mandar mensagem. Às vezes tenho a impressão que aquele é o único hospital da cidade. — Riu. — Espero te encontrar com mais calma, Isaak. Sinta-se à vontade. Tem comida na geladeira e acho que tem cerveja também.

— Voltarei com mais calma sim. Ainda preciso apresentar a minha família a do meu namorado. No meu caso se resume apenas ao meu irmão de outra mãe.

Shun balançou a cabeça de forma afirmativa e acenou antes de sair com o carro. Sorento abraçou Isaak por trás e depositou um beijo na nuca exposta, sussurrando em seu ouvido.

— Acho que ainda não falei como aprecio toda vez que você diz que sou seu namorado e fica corado em seguida. Você é adorável, Isaak.

— Sorento… — Murmurou entre dentes. — Será que podemos entrar logo? Caso contrário vou praticar atentado ao pudor em frente a sua casa.

O Flautista soltou uma sonora gargalhada, que para Isaak soou como música. Beijaram-se antes de entrar na casa, e Sorento abriu a porta ainda em meio aos beijos. Sentiu a habilidosa mão do namorado abrindo os primeiros botões de sua camisa e pararam os movimentos ao ouvir o som da televisão da sala. Trocaram um sorriso maroto e Isaak passou a mão pelo cabelo de seu Almofadinha ajeitando as mechas. Caminharam de mãos dadas até a sala.

— Boa noite, Ikki. — Sorento falou sorrindo.

— Boa noite, Sorento eu precisava mesmo con… — Parou a frase no meio ao notar o homem parado ao lado do seu inquilino. Já tinha visto aquele único olho verde em outras ocasiões e tinha a plena noção do perigo instaurado nele.

— Isso só pode ser uma brincadeira de muito mau gosto! — Isaak vociferou apertando a mão de Sorento que o olhava com incredulidade. — Jura que tinha que ser esse japonês filho da puta?

 

Por alguns minutos um filme passou pela mente de Sorento e ele começou a trabalhar com a possibilidade de Isaak ser a tal pessoa que certa vez Ikki havia dito que tinha magoado.

Seus olhos ganharam um tom opaco, um zumbido se instaurou em seus ouvidos e sua mente começou a vagar tentando encontrar alguma lógica em meio às reações que presenciava.

Um aperto mais forte em sua mão o trouxe de volta, no mesmo momento em que abafou um gemido de dor. Nesse instante Isaak parou de encarar Ikki e o ódio em seu olhar se abrandou ao ver o rosto confuso de seu namorado. Só havia presenciado fisionomia semelhante uma única vez, no dia em que se beijaram depois da discussão. Sabia que naquele momento seu Almofadinha estava fora de si, e parece que agora a situação se repetia. Algo lhe dizia que Sorento não tinha todas as cartas para interpretar perfeitamente o que se passava e fazer valer-se de sua capacidade de dedução.

— Desculpe, não queria te machucar. — Isaak murmurou afrouxando o aperto nas mãos do namorado e fazendo uma leve carícia com o polegar. — Só não esperava encontrar esse bosta aqui.

— Isaak… — Sorento suspirou cansado. — Podemos ir embora se você quiser. Essa casa pertence ao Ikki e ao Shun.

— Essa também é a sua casa Sorento.— Ikki falou com toda a calma que conseguiu juntar. — Achei que soubesse disso. — Respirou fundo. — Eu vou. Preciso sair mesmo… — Notou Isaak ranger os dentes.

— Sinceramente gostaria que ninguém precisasse sair. Somos todos adultos aqui, mas… — Passou a mão pelos cabelos. — Também não quero que ninguém se sinta desconfortável. — Sorento olhou para Isaak. — Não me oponho a irmos para outro lugar, esse sendo o seu desejo.

— Meu desejo é estar com você. Podemos ficar no seu quarto. Assim não cruzo com ele… — Apontou para Ikki com desdém.

— É a última porta no final do corredor. Você se incomoda de ir na frente? Preciso trocar duas palavras com Ikki.

— Claro que não… Só… Não demore.

Isaak deu uma última olhada em Ikki e virou as costas pisando firme, o sangue correndo quente em suas veias. Sorento soltou um longo suspiro, encarando o senhorio que parecia fazer um grande esforço para não responder os comentários de Isaak.

— Sorento eu não…

— Aquele é o meu namorado. O cara de quem escondi meus sentimentos por mais de um ano. Não escondi só dele, acho que foi mais de mim mesmo. De todo modo, estou apaixonado por ele Ikki, e acredito que você entenda o que isso quer dizer. — Ikki balançou a cabeça de forma afirmativa, sem esconder o pesar em seus olhos escuros . — O que talvez você não entenda é que isso não muda o fato de você e Shun serem pessoas realmente importantes para mim. Por isso, preciso entender o que está acontecendo. Depois nós dois conversamos com calma. Também quero te ouvir.

Ikki apenas balançou a cabeça em negativa, não sabia se queria conversar sobre a escrota situação que era encontrar o Escudeiro Caolho de Hyoga. E por mais que tivesse vontade de socar a cara do garoto no momento em que ele o ofendeu, sabia que não tinha esse direito. Isaak lamentavelmente não estava errado.

Algumas memórias retornaram e Ikki apertou os punhos. A culpa jamais o abandonaria? Mesmo admitindo seus erros e aceitando as consequências, não tinha sangue de barata e tão pouco vocação para saco de pancadas, especialmente dentro de sua própria casa.

Desligou a televisão e pegou a carteira que estava na mesa de centro, sob o olhar atento de Sorento. Era sem dúvida alguma um dramalhão dos infernos, justamente seu inquilino, não, seu amigo, estar envolvido com o homem que Hyoga sempre elencou como sua única família.

Seria mais fácil se Sorento fosse apenas um inquilino.

— Não acho sensato você dirigir hoje. — Olhou para Sorento que o encarava de braços cruzados e fez um gesto com a cabeça indicando as latinhas de cerveja que se amontoavam no chão. — Caso queira sair, chame um carro. Ok? — Ikki sorriu minimamente concordando com a cabeça.

Coletou seu celular e as chaves de casa. Deixou as do carro sobre o móvel e concentrou-se em dar espaço para Sorento. Saiu tão rápido de casa que quando se deu conta já estava na rua, entretanto não tinha para onde ir.

***

Aiolia declinou de almoçar na casa dos pais e também do convite para sair com Défteros e Dohko, que todos chamavam de velhote mas demonstrava uma energia praticamente inesgotável para festas e baladas.

Não era um momento em que gostaria de estar sozinho, entretanto não estava disposto o suficiente para disfarçar sua contrariedade.

Sabia que não podia culpar a ninguém além dele mesmo.

Enviou no fim da tarde uma mensagem para Lyfia, a moça que conheceu na despedida de seu irmão. Ela visualizou, mas não respondeu. Suspirou. Nem ao menos se sentia rejeitado. Ela provavelmente se deu conta de que ele era um homem raso no que dizia respeito a envolvimento emocional. Ou talvez apenas estivesse ocupada. Percebeu que não se importava verdadeiramente.

Nesses momentos ele telefonaria para Milo, ou Kanon ou mesmo o irmão; todos eles deveriam estar com seus respectivos pares. Dormiu boa parte da tarde e comecinho da noite se sentindo miserável.

Quando acordou viu a chamada de vídeo em grupo perdida, mas não sentiu nenhum ânimo para respondê-la.

Não era um esforço ficar feliz pelos primos, seus melhores amigos, mas naquele momento estava frustrado. Exausto. Era um fraco. Seria um esforço mostrar a eles esse lado tão desarrumado de si mesmo.

Girou os olhos entediado. Já estava pensando em entrar em contato com o primo mais velho e seu chinês festejante quando brilhou em seu celular uma mensagem.

Leu o conteúdo intrigado. Eles poderiam conversar no dia seguinte… Por que Ikki estava lhe escrevendo em um domingo a noite?

Movido pela curiosidade e sem muito refletir apenas efetuou uma chamada para seu assistente.

Chapter 53: Venda sua alma, sinta o sangue

Chapter Text

O Flautista virou as costas dirigindo-se a seu quarto, ouviu a porta da frente da casa sendo fechada com tranquilidade.

Parou um segundo na porta de seu quarto, respirou fundo e entrou.

Isaak estava de pé olhando a estante de livros que ficava em um dos cantos do cômodo. Trancou a porta e permaneceu alguns segundos encostado nela, depois caminhou até a cama e sentou na beirada. Ficou encarando as costas de Isaak, que continuava olhando a estante de livros passando os dedos pelas lombadas dos títulos que estavam caprichosamente arrumados.

Sorento nunca se incomodou com o silêncio, muito pelo contrário, mas naquele momento não ouvir o timbre melodioso da voz de seu namorado o deixava nitidamente incomodado.

Passou mais uma vez a mão pelos cabelos, registrando que aquele havia se tornado um hábito toda vez que estava nervoso. O gesto era muito semelhante ao que viu sua mãe fazer em meio às diversas discussões com o detestável Franz.

Conteve um suspiro se preparando para dizer algo quando finalmente ouviu a voz de Isaak:

— Sempre senti muita raiva, mas nunca fui muito adepto do ódio. Mesmo assim, posso dizer que odeio profundamente aquele homem. — Isaak permanecia de costas. — Ele machucou pra caralho uma das pessoas que mais amo nessa vida. Acho que amo até mais do que a mim mesmo. — Pegou um dos livros que estava na estante. — Não esperava que algum dia precisasse voltar a vê-lo.

— A pessoa a quem você se refere é o Hyoga?

— Sim. Eles tiveram uma história conturbada. Hyoga… Foi muito mais homem do que algum dia Ikki poderia sonhar em ser. Foi mais honesto… Mesmo com receio. Ele se jogou, se feriu. Ele é assim, por mais que goste de disfarçar seus sentimentos. Aquele japonês partidário do demônio fodeu meu amigo. Se eu pudesse eu… — Isaak apertava o livro nas mãos, ainda de costas.

— Isaak, olha pra mim, por favor! — Sorento pediu docemente, tendo seu pedido atendido. — Vem cá! — Chamou estendendo umas das mãos.

Isaak deixou o livro na escrivaninha que ficava ao lado da estante e andou lentamente até Sorento. O sorriso caloroso, a mão esticada e o olhar que o desarmava em segundos. Era ridículo, mas aos mirar aqueles malditos olhos castanhos toda sua raiva de desfazia. Segurou a mão de Sorento e se acomodou em seu colo. Parece que gostava mesmo se sentar ali. Bufou levemente com o pensamento.

— Jamais vou questionar seus motivos para sentir raiva ou ódio. Ainda mais levando em consideração que seu irmão de outra mãe, foi magoado em meio ao processo. Entendo seu lado, e peço que você também entenda o meu. Shun e Ikki são sim a minha família. Quando cheguei nessa casa eu não tinha ninguém, hoje eu tenho um lar. Mas, meu lar jamais estaria completo sem você, minha Vida. — Isaak sorriu abertamente, seu coração batia de forma tão descompassada que achou por alguns minutos que jamais voltariam a bater normalmente. Ao menos não enquanto estivesse ao lado daquele Almofadinha. — Então… Eu deixo em suas mãos. Não vou te obrigar a ficar aqui, ou visitar minha casa, mas caso queira permanecer hoje e em qualquer outra ocasião, não posso negar que ficarei feliz. Vou tomar cuidado para que não haja mais encontros entre você e Ikki, mas ainda sim, preciso que você entenda que independente do que aconteça eles são parte de mim, assim como você.

Isaak suspirou, passando o polegar pelo rosto de Sorento contornando as bochechas, o nariz arrebitado e parando nos lábios. Mirou os olhos castanhos que o encaravam como se esperasse alguma resposta.

— Eu sei — Murmurou em um fio de voz.

Adorava o som da voz daquele homem, cada menor gesto de Sorento fazia com que refletisse, entretanto Isaak não podia permitir que ele seguisse falando. Por um instante era como se seu corpo não existisse e sentiu as palavras chegando a sua boca.

Por algum motivo tinha receio que Sorento considerasse cedo demais, ele mesmo jamais havia pensado em proferir qualquer coisa neste sentido.

Assim, seu corpo tomou por ele a decisão e buscou faminto os lábios de Sorento que imediatamente reagiu apertando-lhe a cintura com a pressão exata e no exato local em que precisava que fosse feito. O arrepio se espalhou por todo seu corpo e gemeu, desavergonhadamente gemeu o nome dele… Implorando.

Sorento tomava o controle da forma mais orgânica que Isaak conseguia conceber.

Abriu elegante cada um dos botões de sua camisa como se fosse uma tarefa digna de mérito, sorriu arrancando mais uma vez o fôlego do rapaz em seu colo e beijou toda a face de Isaak, passando com suavidade os lábios pela cicatriz sem fazer qualquer pergunta, suas mãos habilidosas deram fim a camisa e a regata de Isaak e enquanto lhe beijava o pescoço Sorento sussurrava o quanto o considerava lindo.

Eles se ergueram e foi a vez das roupas do Flautista deixarem seu corpo.

Logo os dois estavam nus se contemplando.

Sorento o guiou até a cama e Isaak manejou empurrar levemente o corpo do livreiro para que ele se sentasse na beirada da cama. Dessa forma, pode realizar um desejo que havia cruzado sua mente desde a primeira vez em que se viram e que finalmente podia deixar transbordar.

Isaak caiu de boca naquela ereção deliciosa como se sua vida dependesse disso. E Sorento aprovava cada gesto tocando seus cabelos com firme gentileza. Ele também estava há tempo demais com essa vontade implorando para ser saciada.

— Sorento, o seu gosto é delicioso... — Ele falou levantando seu olho, o restante do rosto coberto pela franja, a boca inchada e úmida pela liquido que o membro do livreiro vertia suavemente, sinal de que seu orgasmo em breve seria concretizado.

Anos de autocontrole foram colocados a prova neste momento e a Sorento só restou puxar o corpo de Isaak com destreza falando em uma voz enrouquecida que mal reconheceu como sua:

— Me deixa te provar também, Isaak…

A força do outro não cessava de impressionar Isaak que logo se viu sobre o corpo de Sorento, ainda com seu rosto sobre a virilha do anfitrião e com a bunda empinada, deixando assim tanto seu pau quanto seu cuzinho a disposição do livreiro que não precisou de qualquer pedido ou comando para iniciar uma deliciosa sequência de movimentos que quase arrancaram a alma de Isaak do corpo.

Ele, não conteve um grito abafado ao encontro do púbis de Sorento que muito satisfeito com as reações causadas passou a brincar delicado com os dedos na entrada do outro garçom.

— Sabe quantas vezes eu bati punheta pensando nesse seu cuzinho, Isaak? Quantas vezes eu quis te foder encostado com força entre aqueles armários do quartinho do bar? Quantas vezes memorizei cada movimento dessa sua bunda apertada nas suas calças sempre pretas?

Foi a vez de Isaak respirar fundo e se concentrar para não explodir cedo demais. Sentiu o primeiro dedo insinuante romper a resistência que seu corpo imprimia instintivamente. Ele estava entregue. E ouvir aquele tipo de coisa partindo da boca sempre requintada de Sorento possivelmente o enlouqueceria.

Sentiu uma palmada ardidinha em uma das nádegas e passou a língua primeiro por seus lábios e depois gulosamente pelo pau que parecia ter crescido ainda mais enquanto batia em seu rosto.

— Por sua causa infinitas vezes eu tive que evocar forças desconhecidas, para resistir a esse encanto que vem de você… — Já eram dois dedos e uma língua competindo por espaço enquanto a outra mão dedilhava com louvor o membro pulsante.

O garçom mais novo desistiu de retribuir, estava fora de si, os movimentos de Sorento o guiavam. Quando deu por si sentiu um terrível abandono, foi o movimento do livreiro subindo sobre seu corpo e lhe beijando com tanta força que pensou sentir um leve sabor de sangue em seus lábios.

O anfitrião se afastou o suficiente para alcançar os preservativos em sua cômoda. Isaak aproveitou este momento para analisá-lo em todo esplendor de sua nudez. Suspirou contente.

Sorento de alguma forma conseguia se esconder com as roupas que escolhia e em sua postura cotidiana. Ele era forte e chegava a ser ligeiramente parrudo, coxas grossas e a barriga seca, músculos discretamente à vista. Isaak salivava, o que não deixou de ser notado pelo livreiro que também admirava a beleza selvagem a sua disposição. Abriu e colocou o preservativo sem tirar os olhos de Isaak. Se aproximou com o tubo de lubrificante em mãos.

— Fica de quatro para mim, Isaak?

Como se aquelas palavras fossem proferidas por uma divindade, elas foram obedecidas sem qualquer hesitação. Sorento tocou mais uma vez com adoração o corpo que estava ali a sua mercê. Os gemidos cada vez mais despudorados e os palavrões abafados eram sua recompensa.

Aplicou uma camada generosa de lubrificante na entrada que piscava lhe convidando e sobre o preservativo. Abraçou Isaak mordendo-lhe com alguma força a nuca.

Abaixo de seu corpo Isaak se mexia em busca de mais contato. A voz de Sorento em sua orelha o acalmava e excitava em uma confusão de sensações que desconhecia.

— Me avise se doer, está bem? Só vai ser bom para mim se também for para você.

— Você é perfeito Sorento… — Isaak começou a falar mas sua voz desapareceu ao sentir seu corpo deliciosamente invadido.

— Está gostando? Hunmmm? Fala para mim o que você quer...

— Quero… — A voz de Isaak estava; como ele todo; transtornada de prazer. Sentiu todo corpo de Sorento encostado ao seu e a pressão interna daquele volume que o preenchia de forma tão plena e inacreditável. — Sorento… — Choramingou

— Eu vou te foder tão gostoso Isaak, nunca mais você vai querer outro pau que não seja o meu.

— Sim… Aãhn… Sorento… — Os últimos pensamentos de Isaak foram de que Sorento estava com razão, ele certamente não tinha nenhum motivo para desejar nenhum outro homem.

O sexo com Sorento superava todas as sua referências, era intenso e potente, mas carregado de um cuidado e carinho que só o levavam a pensar que isso provavelmente era o que chamavam de Fazer Amor. Sorento escolheu este momento para se inclinar puxando seu rosto para um beijo enquanto acelerava seus movimentos. O ritmo carregava Isaak para uma dimensão da poesia musicada produzida por ambos. Estava fodido, não só literalmente. Seu coração transbordava. Estava fodida e perdidamente apaixonado.

Sorento o tomava como um animal e cuidava de si como se fosse algo precioso.

A perfeição fez com que ele se derramasse no colchão sem ser tocado novamente. Os olhos rasos. Inebriado pelos movimentos e pela boca deliciosamente suja do Flautista enquanto lhe fodia com precisão e carinho. Sim, isso só podia ser amor.

Sentiu o corpo de Sorento desabando sobre o seu ainda tremendo. Estava realizado. Mas a noite mal havia começado…

***

Ikki passou uma mão pelos cabelos e olhou a sua volta. Havia caminhado sem pensar por algum tempo.

A entrada da estação do metrô mais próxima havia ficado para trás. Não tinham muitos estabelecimentos abertos em um domingo a noite naquela região. Pensou em adentrar o primeiro bar que aparecesse, só para livrar seu peito do peso que sentia.

A vontade de ligar para Hyoga foi dura e custosamente sufocada. Não faria isso.

Retirou o celular do bolso e pensou em tentar Camus, eles não se conheciam há muito tempo, porém, o Ruivo parecia mesmo disposto a ajudá-lo e o principal sem a carga de cobranças e culpas que ele próprio se impunha. A chamada foi direto para a caixa postal.

Apertou os lábios resignado. Ocorreu-lhe telefonar para Pandora, imediatamente afastou a ideia. Nem ele era tão detestável para agir desta forma.

Correu os olhos por sua pequena lista de contatos. Jamais incomodaria o irmão em um plantão somente por estar se sentindo um bosta solitário. Sorriu ao ver o nome do Tio, efetuou a ligação.

Kagaho atendeu logo, a voz sonolenta.

— Ikki… Ei garoto, aconteceu alguma coisa? — Ikki não pode deixar de sorrir sentindo a pressão diminuir. Aos olhos de Kagaho ele sempre seria um menino, de muitas formas isso era bastante reconfortante.

— Desculpe te acordar Kagaho…

— Tudo bem, deitei há pouco. Tenho uma audiência amanhã e preciso ainda me inteirar de alguns documentos logo cedo… Mas, me diga, o que houve?

— Precisava apenas escutar a voz de alguém querido…

— Shun está trabalhando? — Questionou Kagaho já se sentando. Os lençóis de cetim deixando a mostra suas invejáveis e atléticas formas masculinas, mesmo na penumbra de seu quarto. Escutou o sobrinho concordando e sorriu de leve. Eram os dois bons garotos, sua irmã ficaria orgulhosa — Que bom que ainda me inclui entre as pessoas queridas; e quando você vem me visitar? Shun e June passaram um fim de semana por aqui recentemente, você que não vejo há alguns meses…

— Tem razão, verei se consigo tirar minhas férias e te retorno, vou falar com a pessoa responsável no escritório. Eu realmente preciso sair um pouco da Cidade.

— Então, faça isso e venha! O ar da Montanha vai te fazer bem. E eu estou com saudades.

— Eu também, sinto muito sua falta. — Antes que se emocionasse na rua Ikki decidiu desligar — Te aviso assim que possível e combinamos. Não vou mais tomar seu tempo. Boa noite.

Escutou a réplica da voz tão conhecida e desligou.

Sentia falta de Kagaho e se preocupou com a voz dele soando tão cansada. Impulsivamente digitou uma mensagem para Aiolia dizendo que queria conversar. Guardou o telefone no bolso da calça, pensando que talvez pudesse pegar um quarto em qualquer hotel apenas para passar a noite e pedir serviço de quarto, algumas cervejas e quem sabe comida japonesa… Sentiu o telefone vibrando e em um movimento preciso atendeu a ligação surpreso e estranhamente animado.

— Aiolia! — Ikki disse antes mesmo que o arquiteto do outro lado pudesse falar algo. Sua surpresa pelo retorno da sua mensagem não sendo abafada pelo seu habitual ar de desinteresse e autocontrole.

— Ikki, boa noite. Sua mensagem me preocupou. Está tudo bem? — Perguntou estranhando a espontaneidade do assistente. Ouviu o barulho de carros e algumas vozes. — Onde você está?

— Na rua… Precisei sair e como tinha bebido não podia dirigir, acho que vou para um hotel. Não vou voltar para casa… — Torceu o nariz, a quantidade de cerveja ingerida para seus padrões era alta, não imaginou que teria que sair de casa.

Aiolia até esqueceu sua própria ressaca, nunca tinha presenciado uma atitude tão fora da sua noção de Ikki antes. O assistente estava falando muito mais do que costumava.

— Por que hotel Amamiya? Existe algum motivo para que não possa voltar para sua casa? Você está acompanhado?

— Estou sozinho Aiolia — Suspirou pesaroso — Sempre sozinho… Não quero voltar e empatar a foda do meu amigo com o amigo do meu ex. É isso. — De repente a cabeça de Ikki parecia muito pesada.

— Vem para cá. Onde você está exatamente? — Ikki respondeu o nome do bar em que havia parado ao lado e escutou a voz de Aiolia se afastando um pouco — Sei, qual é… Um de toldo vermelho, é isso? Na avenida do Parque Central?

— Sim… Mas o toldo é… Parece laranja, tem uma banca de jornais na esquina com a Ladeira que vai para Rodório, sabe? — Ikki respondeu fazendo uma careta, estava um pouco envergonhado ao se dar conta de que Aiolia estava saindo de casa àquela hora para vir buscá-lo.

— Ahnnn sim, esquina com a Ladeira, você está bem depois da estação de metrô. Estou indo te buscar. Não saia daí.

Ikki não teve tempo de agradecer. Escutou o som da ignição do carro e da ligação sendo finalizada na sequência.

Permaneceu alguns segundos encarando a tela do celular até que escureceu. Guardou novamente o aparelho no bolso da calça e alisou suas roupas, passou as mãos pelos cabelos.

Enquanto permanecia recostado na parede diversas pessoas entraram e saíram do bar. Estava tão exausto de se sentir acuado. Tinha tomado algumas decisões e aceitado todas as consequências de seus erros anteriores, tudo entretanto tinha limite, e o seu estava perigosamente próximo. Permaneceu assim por diversos minutos, quase esquecendo o motivo de estar ali sozinho naquele horário.

Qualquer um que o conhecesse, aliás, estranharia seu comportamento. Não que fosse especialmente orgulhoso da fama de impaciente e explosivo, todavia, não queria perder sua essência. Gostava afinal de ser quem era.

Notou o carro vermelho estacionando e o vidro abaixou revelando Aiolia que lhe sorriu caloroso. Sorriu em resposta, abertamente como há muito não fazia, percebeu a surpresa de Aiolia e agradeceu mentalmente ter enviado aquela mensagem no impulso para o Arquiteto Chefe, entrou no carro.

***

Permaneceu de olhos fechados por algum tempo, mesmo após despertar. Seu cérebro ainda parecia não acreditar que o calor que sentia de encontro ao seu corpo era daquele Ciclope gostoso, agora seu Ciclope. Abriu os olhos aos poucos e deu de cara com a face adormecida.

O rosto parcialmente encoberta pelos fios claros e uma espécie de mínimo sorriso zombeteiro. O que será que ele está sonhando?

Sorriu mediante o pensamento levantando da forma mais sútil possível e deixando a cama. A noite anterior foi muito melhor do que poderia algum dia ter imaginado. Isaak era gostoso em um nível que transcendia a existência humana. Quase um ser mitológico.

E ao contrário do que havia dito, não acreditava ser Isaak aquele que jamais iria querer outro homem.

Caminhou até o banheiro e olhou rapidamente o livro que seu namorado havia deixado na escrivaninha na noite anterior. Alargou o sorriso. Poético podia-se dizer.

Entrou no banheiro encostando a porta apenas para abafar o som do chuveiro. Escovou os dentes e entrou dentro do box, sentiu a água morna bater em suas costas e com isso uma leve ardência. Inclinou o corpo e viu uma série de arranhões. Certamente seu rosto acabaria se tornando uma máscara de sorrisos, tendo em vista que não conseguia refrear o erguer de lábios.

Aquelas marcas eram consequência de um dos momentos em que se amaram, sim, porque já não podia mais negar aquilo era amor.

E sequer poderia se enganar dizendo que era tudo recente. Estavam envoltos naquela trama há mais de um ano e apenas pela teimosia de ambos, e o surgimento de um Deus Grego no meio do caminho, as coisas acabaram estagnando.

Mas não podia negar, depois da noite anterior que o que sentia por Isaak era algo inédito em sua vida. Teve outros namorados, já se apaixonou algumas vezes, mas nunca daquela forma. Jamais teve aquela vontade incontrolável de tomar alguém, cuidar e ter a pessoa apenas para si. Jamais se julgou possessivo e acreditava que todos eram livres para seguir seus caminhos. Apenas esperava que os de Isaak convergissem em direção aos seus.

Fechou os olhos lembrando dos gemidos, das promessas de luxúria e carinho sendo proferidas ao pé do ouvido, sentiu algo se remexer dentro de si e um latejar em uma parte significativa de seu corpo. Suspirou e já pensava em mudar a água do chuveiro quando sentiu um par de mãos em seu corpo e beijos em cima dos arranhões que se estendiam por suas costas.

— Está doendo? — Isaak perguntou subindo os beijos espalhando um arrepio pelo corpo de Sorento.

— Nem um pouco. E mesmo se estivesse teria valido a pena.

— Você é tão gostoso Sorento. — Isaak falou virando o corpo do namorado de frente para si.

— Agora ao menos você pode dizer com conhecimento de causa. — Riu. — Levando em conta que já provou.

— Não sei se provei o suficiente...

Voltaram para a cama com a mesma urgência com a qual se deliciaram um com o outro na noite anterior. Depois de terem seus corpos saciados, acalmavam os corações em uma carícia leve. Sorento sentou com as costas apoiadas na cabeceira da cama e Isaak com a cabeça em uma de suas coxas.

— Acho que você vai precisar de algo para esconder seu pescoço. — Sorento comentou enquanto fazia cafuné no namorado.

— Ah foda-se nem ligo! A gente mete gostoso e o mundo que se exploda. — Riu.

— Muitíssimo bem apontado. — Acompanhou o riso olhando de relance para a escrivaninha. — Alexandre Dumas e a vingança bem sucedida. Achei no mínimo poético sua escolha entre os títulos da minha estante.

— Eu vi o filme há alguns anos junto com o Hyoga. Nunca li o livro, mas não acharia ruim se ele se vingasse do japonês dos infernos.

— O final do livro é diferente do filme. — Ponderou por alguns minutos. — Não sei muito bem o que pensar sobre vinganças, mas acredito que em alguns casos continuar vivendo com a dor e a culpa, possa ser uma forma efetiva de dar o troco.

— Sorento… Não me leve a mal. — Isaak levantou ficando de frente para o namorado. — Eu enxuguei todas as lágrimas do meu amigo. Estive ao lado dele e vi parte do brilho que ele sempre teve se apagar. Hoje ele está bem. Tem um ótimo namorado e eu consigo enxergar novamente a vivacidade que ele sempre teve. Mesmo assim, não posso esquecer o mal que aquele cara fez ao meu irmão. Entendo que ele seja alguém querido para você mas… — Desviou o olhar ao ver o rosto sério do Flautista. — Não sei se posso relevar…

— Ei… — Sorento colocou os dedos no queixo de Isaak fazendo com que ele o encarasse. — Já disse que não quero que se sinta desconfortável. Entendo o seu lado. Não compartilho da mesma ojeriza pela figura de Ikki, mas entendo você. Podemos nos encontrar na sua casa, ou em qualquer outro lugar no qual você se sinta bem. A única coisa que eu quero é estar com você.

— Você não devia dizer essas coisas assim do nada. — Corou.

— Soam melosas demais? — Sorento sorriu.

Melosas demais? Isaak pensou, encarando o Flautista. O mais louco é você ser tão fofo, depois de me foder até meu olho bom quase sair de órbita. Ah caralho, esse Almofadinha é perfeito!

Concluiu o pensando sentindo um latejar nas bolas e sem dizer nada apenas atacou mais uma vez os lábios do namorado que em nada parecia desgostar da atitude impetuosa.

— Hoje sai o resultado da sua bolsa? — Isaak questionou mudando de assunto.

— Uhrum… — Passou a mão pelo cabelo alcançando o celular na mesa de cabeceira. — Sendo sincero, não há uma grande esperança. Sei que sou bom, mas não sei se o suficiente para uma bolsa.

— Você está sendo modesto.

— Será? — Sorento desbloqueou o celular e foi até a caixa de e-mails.

Isaak acompanhava seus movimentos e se aproximou preocupado ao ver que o namorado empalidecia gradativamente, puxou o celular da mão dele e em seguida o olhou vendo um sorriso estonteante se formar no rosto daquele homem por quem estava loucamente apaixonado.

— Consegui! — Sorento exclamou sorrindo. — Eu consegui, Isaak.

— Caralho Sorento, você me assustou. — O abraçou rindo. — Parabéns meu Almofadinha. Tinha certeza que você conseguiria! Está feliz?

— Muito, ainda mais por estar compartilhando o momento com você.

— Já disse para não falar essas coisas… — Mordeu os lábios e abaixou o olhar corando.

— Vou ser menos meloso, prometo. — Riu. — Você não faz ideia de como eu queria essa bolsa.

— Não precisa ser menos nada… — Murmurou. — Agora vem aqui que vou te dar um belo presente de parabéns.

Chapter 54: A forma que você chora

Notes:

(See the end of the chapter for notes.)

Chapter Text

Uma música animada e de batida forte vibrava na mesinha de cabeceira junto com o aparelho celular. Estava tão relaxado e dormindo tão pesado que levou muito mais tempo do que normalmente para desligar o despertador.

Lentamente se ergueu para uma posição sentada e estranhou os músculos doloridos. Um formigamento suave nas extremidades. Coçou a nuca e bocejou abrindo os olhos devagar e deixando que eles se acostumassem a luz suave que entrava por baixo das cortinas.

Ergueu-se e seguiu para o banheiro, torceu o nariz para algumas almofadas colocadas em um canto ao lado de sua poltrona, costumava guardar tudo no baú ao pé da cama quando se deitava. Urinou e tirou o calção do pijama com que sempre dormia. Notou uma mancha roxa bem evidente em seu abdômen e atônito analisou seu reflexo no espelho que ficava ao lado do boxe. Estava coberto de chupadas e arranhões. Antes que pudesse entrar em pânico algumas memórias retornaram como uma pancada. Ele se apoiou na pia para não cair.

A avalanche de cenas e sensações lhe tirando o fôlego momentaneamente.

No mesmo instante uma ideia lhe ocorreu e retornou nu em pelo ao quarto. Acendeu a luz.

O quarto estava bem desarrumado, a roupa que tinha usado no dia anterior havia sido colocada na poltrona e a cama estava completamente revirada. Nem o lençol de baixo havia resistido, além de estar afastada da parede ao menos uns 40cm, sinal de que havia sido… Bom, de que não havia permanecido em repouso.

Sentiu seu rosto ardendo e buscou o telefone celular, como previu uma mensagem de Ikki, de áudio, enviada há quase 2 horas. Respirou fundo e apertou o play sentindo seu constrangimento aumentar na mesma medida em que as memórias se tornavam mais claras e seu membro respondia em uma ereção faminta. Empurrou o mastro para baixo enquanto se concentrava no que havia sido enviado por seu assistente.

“— Aiolia, bom dia, por favor não pense nada ruim, não aconteceu nada de errado. Tentei te acordar, mas você estava apagado. Caramba, primeira pessoa que conheço que dorme mais pesado que eu. Fechei a porta e passei a chave por baixo dela. Estou em um carro de aplicativo agora, preciso passar em casa e me aprontar para o trabalho e tudo mais.

Eu só queria que você soubesse que… Bom, que foi ótimo. Tomara que tenha sido para você também. A gente pode conversar sobre isso se você quiser, ou deixar para lá também, se preferir. Mas, se precisar de alguém para desabafar novamente — A voz dele ficou ainda mais baixa e ligeiramente maliciosa — Pode contar comigo… — Aiolia estremeceu ao ouvir o sorriso impresso na voz de Ikki — De qualquer forma nos vemos mais tarde.”

Respirou fundo. Era o que lhe faltava.

Ele que tinha evitado por mais de dez anos se debruçar sobre este aspecto da sua sexualidade. Que poderia ter conversado com o irmão ou qualquer um dos primos, mas preferiu lidar sozinho com suas questões... Tinha transado com seu assistente!

Um cara que ele sabia que era apaixonado pelo namorado de Milo. Justo ele…

O contexto não era nada favorável. Sabia que eticamente não deveria ter se deixado levar. As implicações, inclusive legais, que esta noite poderia descortinar lhe passaram pela cabeça com algum pesar.

Nunca tinha olhado para Ikki de forma maliciosa. Jamais havia levado a fundo nenhuma perspectiva de se envolver com outro homem! Mas claro, tinha percebido que o rapaz era bonito, depois a descoberta de que ele era Bi e então todas aquelas sensações confusas na despedida de solteiro.

Droga! Aiolia sabia muito bem que nunca tinha se interessado por nenhum outro homem que não Milo. O mesmo que era seu melhor amigo desde a adolescência, praticamente um primo e com quem havia compartilhado seu primeiro beijo, tantos anos antes.

Na época Milo disse que gostava dele, seu coração confuso não suportou. Pensou na família, na opinião dos outros. Era um menino. Teve medo, insegurança e agiu como se nada tivesse acontecido. Semanas depois Dante, um outro rapaz da escola, se declarou, e ele e Milo namoraram apaixonadamente por alguns anos.

O primo se assumiu, tornou-se mais próximo pouco a pouco de Kanon; e Aiolia teve seu sentimento sufocado, enterrado como se fosse apenas uma memória juvenil.

Nunca esmiuçou sua sexualidade pois o único homem que havia lhe chamado a atenção era aquele para quem ele mesmo deu as costas.

De certa forma, agora conhecendo a história de Ikki e do tal Hyoga, pensava que eles tinham agido de forma parecida. Sentia a angústia de seu assistente, amargurado, pois ao contrário de si, o outro não tinha a inocência e a completa inexperiência para se escorar neste vacilo da vida.

Talvez esta afinidade torta tenha facilitado o desenrolar da noite. E o pior é que analisando friamente, sabia que não conseguia sentir a menor culpa por isso.

A mensagem de Ikki tinha, ao contrário, lhe atiçado os sentidos. Já que ela carregava nas entrelinhas a safadeza que tinha degustado no corpo do outro arquiteto.

Voltou para o banheiro e conferiu em um olhar uma quantidade incerta de preservativos usados e amarrados na lixeira. Não pode evitar um sorriso. Realmente tinha se esbaldado na noite anterior e percebido que o prazer dividido com outro homem tinha suas especificidades, uma certa crueza e bestialidade diferente do que conhecia e se deleitava com mulheres.

Entrou no box e ligou a ducha ajustando a temperatura até deixá-la de seu agrado, primeiro morna.

Deixou que a água corresse por todo seu corpo e foi aos poucos diminuindo a temperatura, até que o banho se tornasse gelado.

Os flashes estavam se tornando memórias completas. Eles tinham conversado, rido, bebido e dividido impressões sobre diversos assuntos. Os dois solitários e desejosos de alívio...

Em algum momento compartilharam recortes de suas desventuras amorosas e logo estavam agarrados e aos beijos. Tudo sem qualquer delicadeza. Nenhum deles bêbado o suficiente para poder culpar o álcool, mas inegavelmente este havia sido um facilitador.

Enfim a sua primeira vez com outro homem. E quem diria… Mesmo não tendo sido com aquele no qual ele sempre secretamente havia depositado alguma expectativa, ele tinha gostado muito.

A quem queria enganar? Tinha adorado! O sexo foi inacreditável.

Ikki tinha sido incrível e agora, o Íroas mais novo estava se masturbando com as lembranças das sensações compartilhadas. Praticamente gozou a seco, sinal de que tinham realmente aproveitado a noite juntos.

Mesmo que o moreno tenha lhe oferecido a oportunidade de deixarem o dito pelo não dito, sabia que não poderia agir assim.

Tinha fodido o outro, em posições surreais, vigorosamente por horas, gozado como uma besta no cio. Gemido e rugido ao ponto de, agora no dia seguinte, estar quase rouco.

Definitivamente não tinha condição ou chance alguma de apenas deixar para lá. Além de tudo, ele era o Chefe de Ikki, que o procurou alegando exaustão e pedindo para tirar férias depois de pouco mais de 2 anos trabalhando juntos de forma ininterrupta, ou seja, férias merecidas.

Aiolia estava decidido, antes dessa justa pausa de seu assistente, uma conversa franca entre os dois tinha que acontecer. Não permitiria que aquela insanidade temporária, por mais deliciosa que houvesse sido, afetasse a relação profissional entre eles e principalmente a amizade que construíram paulatinamente embasada em respeito e companheirismo.

Terminou sua higiene. Trocou de roupa e tomou seu café da manhã. Estava faminto. Escovou os dentes e conferiu mais uma vez seu reflexo, agora pronto para sair.

Por sorte nenhuma das marcas em sua pele era visível, estava vestido como de costume: calça jeans reta, camisa social bem alinhada.

Seguiu para o trabalho ansioso como há muito não se sentia. Tinha muito trabalho a ser feito, na próxima semana seu plano era se dedicar apenas aos últimos preparativos do casamento de Aiolos e agora com as férias de Ikki, não podia contar com seu braço direito no escritório fazendo as vezes de seus olhos, então teria ainda mais com o que se preocupar e dedicar nessa semana.

***

“Nada nunca é igual. Seja um segundo mais tarde ou cem anos depois. Tudo está sempre se agitando e se revolvendo. E as pessoas mudam tanto quantos os oceanos.”

Lembrava perfeitamente da primeira vez que havia lido o trecho que escrito em um post it amarelo, estava preso na parte inferior de seu monitor.

Shura ainda morava na minúscula kit net no Bairro Industrial, e tinham acabado de completar dois meses de namoro. Em meio ao furor sexual e aos anseios do corpo por alimento, Shaka aguardava o namorado terminar o banho para que pudessem sair para jantar ou até mesmo pedir algo pelo delivery.

Observou alguns dos livros que estavam empilhados na mesa de cabeceira do namorado. Um deles o chamou a atenção pelo título e ao abrir na página que estava marcada viu o parágrafo grafado levemente a lápis. Não soube dizer o motivo, mas tirou uma foto do trecho e da capa do livro. Dias depois comprou um igual e desde então, aquela passagem em específico sempre ia e voltava a sua mente, como as ondas dos mutáveis oceanos. Contudo, em nenhum momento de sua vida ela parecia fazer tanto sentido quanto agora, quando ia aos poucos abandonando parte das certezas que havia cultivado ao longo de sua existência.

A máxima que basicamente pautava suas ações e girava em torno de sua convicção de que sempre que pudesse controlar as variáveis de um jogo, o resultado seria o que esperava, já não mais residia em si. Admitia, com certa contrariedade, que demorou mais tempo do que o aceitável para chegar a essa aparente simples conclusão. Poderiam até mesmo lhe dizer que era óbvio, mas ainda acreditava que o óbvio não existia, ele era apenas uma construção.

Assim como quase tudo, assim como a si próprio.

Passou parte da sua vida ouvindo que bastava determinar um objetivo, ajustar seu foco, aplicar o esforço e tempo necessário e certamente conseguiria o que almejava.

Hoje, sabia que não existia falácia maior, e inclusive tinha ganas de agredir a primeira pessoa que inventou tal coisa. Violência física nunca foi um de seus meios para resolver as coisas, ao que tudo indicava jamais seria, mesmo assim, não se furtava de sentir indignação por ter seguido por tanto tempo acreditando naquilo. No fim, não importava o tempo dedicado, o esforço, a ânsia, as coisas poderiam simplesmente não acontecer. Por maior que fosse a sua sensação de controle mediante uma situação, descobriu que não passava apenas de uma mera ilusão. Tudo poderia ruim em uma questão de segundos.

Lógico que não excluía a necessidade de fazer sua parte mediante os desafios da vida, porém, não sabia definir se devido às suas escolhas, destino, intervenção divina, sorte, ou por qual motivo fosse, algumas vezes os caminhos apenas não convergiam da forma como ambicionava. De maneira simplista, apenas descobriu que algumas coisas não eram para ser, ou apenas não seriam exatamente como havia tencionado.

Ao que tudo indicava, o simples poderia sim ser o mais difícil.

Suspirou, recostando na cadeira, enquanto se deixava levar por mais um de seus torrenciais embates mentais, enquanto relia o parágrafo usurpado do livro que possuía tanta importância em sua vida, quanto o homem de quem havia capturado a dica de leitura.

E assim como o tempo passou desde aquele dia naquela kit net, ele também havia passado para o sentimento que construíram juntos.

Nada nunca é igual, pensou levantando os olhos e captando partes do e-mail corporativo que informava o retorno de Camus as suas funções na Farmacêutica Sirena. Tinham resolvido parte do drama que os cercava, e os deuses sabiam como ele detestava um drama. O incomodava toda aquela de situação de incerteza, conflito e descontrole.

A vida ao lado de Shura sempre lhe deu a perspectiva de uma relação honesta, madura, tranquila e deliciosa, como sabia já havia provado ser verdade.

Poucos minutos antes de receber o e-mail da empresa, tinha acabado de desligar o telefone depois de uma ligação que fez para o seu marido. Shura continuava na casa da mãe, mas não deixava de lhe mandar mensagem e se preocupar, e por sua vez, Shaka retribuía tal cuidado. Gostava daquele Espanhol, sim, gostava. Inclusive acreditava que poderiam ter um grande futuro… Quer dizer… Poderiam?

De alguma forma sentia que a dúvida que se espalhava em seu ser como uma espécie de erva daninha, também estava presente em seu companheiro. O solo do coração de um homem é mais empedernido, pensou dando um riso nasalado, desgostoso.

Por algum tempo imaginou que se não fosse a declaração de Camus poderia ter seguido sua vida placidamente com Shura, mas hoje, assim como já não acreditava que poderia resolver tudo apenas com seu esforço, dedicação e controle, também sabia que não existia maior engano do que aquele. Não se arrependia da decisão, jamais. Mas, alguma coisa parecia deslocada há algum tempo e apenas preferiu ignorar.

Bom… Agora seria um pouco difícil fechar os olhos para toda a série de fatos que se sucediam. Bebeu o último gole de chá que tinha em sua caneca e respondeu ao e-mail com um "recebido".

Restava agora, lidar com o fato que era o regresso de seu amigo dentro de dois dias, e acima de tudo encarar as consequências de suas atitudes, que incluíam o beijo avassalador que havia dado em Camus, ao findarem a noite em que o havia encontrado para pedir paciência, calma, tempo.

— Bom… — Murmurou falando consigo mesmo. — Tempo é algo relativo… A noção… — Passou a mão no rosto. — Não seja cretino, Shaka! Não seja cretino! — Repreendeu a si mesmo.

Tirou os óculos de grau e massageou a têmpora, um gesto que sabia mimetizar de Shura, mas que nesse momento tinha como intuito acalmar as lembranças que trazia de Camus.

Nada naquela noite havia saído de acordo com o que planejou, e lembrava inclusive de ter admito isso ao próprio amigo. Acabou confessando que também nutria sentimentos por ele, pedindo tempo para que as coisas se acalmassem e finalmente pudesse abdicar de sua necessidade extrema de controle.

Depois disso, a noite se desenrolou de forma orgânica, como se o tempo que passaram separados não tivesse de forma alguma alterado o que existia entre eles, pelo contrário. A amizade estava ali, sem dúvida alguma, mas agora conseguia perceber que também residia entre os dois muito mais do que isso. Os toques que aconteciam sem querer, a onda elétrica seguida do arrepio, a necessidade de se manter perto, o olhar que se perdia nos lábios, nos movimentos, tudo, absolutamente tudo que conseguia captar fazia com que sentisse que aquela noite era permeada por um clima de sedução, que para seu deleite e desesperado sabia ser mútuo.

Ainda no café da livraria ouviu as novidades sobre a vida de Camus, e registrou além da amizade com Sorento, o herdeiro, que de acordo com Gaetan, certamente preferiria ser apresentado como livreiro, garçom, amigo, a recente relação com Ikki, seu atropelador.

Nessa parte não pôde deixar de torcer o nariz e por mais que o movimento tenha passado despercebido pelo amigo, admitia que o rapaz que personificava a exata mistura entre:

— A descendência japonesa e algo que só poderia ser a dádiva de algum ser do submundo. — Segundo as palavras de Camus, não o alegrava de forma alguma.

Por mais que aquela constatação o causasse desconforto, percebeu que o amigo não aplicava a malícia sempre presente quando comentava sobre suas aventuras sexuais.

Conhecia aquele homem o suficiente para saber que ele se sentia atraído pelo rapaz, e quem sabe, sentiu seu ego massageado, se não fosse o interesse que ele demonstrava explicitamente pela sua pessoa, talvez tentasse desvendar qual sorte de divindade havia participado do nascimento de tal espécime.

Avançaram noite adentro em meio a conversa, a necessidade de permanecerem juntos e Shaka sugeriu que jantassem no restaurante árabe que haviam descoberto juntos, assim que conseguiram o emprego na Sirene.

— Não podemos viver apenas de croissant, chá e café. — Sorriu encarando Camus aguardando sua resposta.

Naquele momento não soube dizer qual foi o estopim, mesmo em retrospectiva não sabia definir ao certo o que o acometeu entre o fim de sua frase e o sorriso luminoso que Gaetan lhe direcionou.

Caso pensasse com um pouco de calma, ficaria claro que o que lhe impulsionou foi o desejo represado dentro de si, desde o momento em que havia conhecido o dono daqueles fios vermelhos, na época ainda curtos, havia divisado em meio aos demais universitários aquele rosto de traços finos, lábios perigosamente chamativos e aqueles malditos olhos que pareciam esconder brasas prestes a se incendiar.

A única coisa que sabia precisar com exatidão foi que sua mente ficou em branco, seu corpo agiu de forma instintiva e quando deu por si estava a milímetros de distância dos lábios de Camus.

Podia sentir a respiração dele, contar as sardas que salpicavam aquele rosto e acima de tudo, enxergava as labaredas que se formavam naquele olhar terracota e eram direcionadas a si, com o único intuito de lhe queimar, fazer seu corpo entrar em combustão, alimentando seus gestos e mantendo sua mente nublada.

As mãos de Gaetan pousaram em seu corpo e acompanhou-o soltar um último suspiro antes de fechar os olhos e entreabrir os lábios. O convite estava feito.

E Shaka aceitou-o com tal entusiasmo que alguma coisa dentro de si pareceu ter acordado.

A maciez dos lábios, a forma como seus corpos se encaixaram e acima de tudo a sensação de entrega, tudo ali o entorpecia, fazendo com que seu corpo desenvolvesse um novo vício, um que fazia com que aprofundasse cada vez mais o ósculo sem sequer lembrar de onde estavam, ou das consequências.

Sem que notasse, uma de suas mãos se enroscou em meio aos fios vermelhos, fazendo com que os puxasse com certa violência. Em troca recebeu um gemido lascivo e sentiu os dentes de Camus prendendo seu lábio inferior, puxando-o em seguida.

Os sons, o toque, o calor, a insensatez, tudo transformava um simples caminhar em um espetáculo no mínimo prazeroso aos olhos daqueles que soubessem apreciar aquele quadro. Mesmo que os dois homens envolvidos estivessem alheios ao quão excitante era a cena que desempenhavam, enquanto Shaka passava languidamente a língua pelos lábios de Camus que murmurava de forma ininteligível. Apartaram o beijo em busca de ar, os olhos semicerrados, a respiração ofegante, roupas e cabelos em desalinho.

E finalmente deram-se conta que estavam parados na calçada, em meio a uma rua relativamente deserta, quando o ônibus que estava parado no ponto que ficava do outro lado da rua saiu e ouviram duas garotas gritando em coro:

— É isso ai cara, manda ver!

Arregalaram os olhos ainda agarrados, medindo um ao outro, não precisam de uma análise apurada para registrar a nítida ereção que despontava em ambos. Olharam ao redor, ao mesmo tempo, em um movimento quase ensaiado e ao se olharem novamente começaram a rir.

Sim, uma gostosa gargalhada!

Não sabiam ao certo do que estavam rindo, ou o motivo daquela reação, mas em meio ao riso abraçaram-se novamente.

Afastaram-se respirando com mais calma, ajudando um ao outro ajeitar o cabelo, a roupa, sem desviar o olhar. Gostavam do que enxergavam ali, e quando estavam recompostos, seguiram para o restaurante árabe.

Não falaram nada sobre o beijo, não precisavam. Sabiam o que aquilo significava.

Mesmo assim, Shaka não pôde deixar de sentir um aperto no peito ao chegar em casa, precisava lidar com as consequências de suas ações.

Precisava lidar consigo mesmo e acima de tudo, com Shura. Ele ainda ficaria algum tempo na casa da mãe e depois disso tinha o casamento do melhor amigo, Aiolos. Não queria estragar a alegria de ninguém, mas também não queria manter uma mentira.

As pessoas mudam tanto quantos os oceanos, pensou pegando uma pilha de relatórios que estava em sua mesa. Apenas torcia para que Shura entendesse sua mudança, de alguma forma, sentia que ele também havia mudado.

***

Kanon trabalhou o dia todo com um sorriso no rosto, ele tinha pilhas de fichas para analisar e alguns documentos para ler e fazer mais fichamentos… Tentou ao máximo adiantar sua pendências, e só conseguiu parar no fim da tarde para refletir sobre o que faria com as novas informações adquiridas.

Depois da conversa com Milo chegou a conclusão de que mesmo tendo sido libertado, ainda que inconscientemente, da missão de contar para o amigo sobre toda a questão Camus/Saga ele ainda não havia passado estas informações aos outros dois envolvidos.

Seu sorriso se apagou um tanto. Tinha ainda essa pendência.

Não acreditava que o irmão pudesse ter uma crise de consciência e procurar por Milo para falar disso. Saga já havia deixado claro que não sentia nada muito além de um desconforto com a situação, e ele provavelmente cultivava somente alguma preocupação com uma possível reação negativa advinda de Kardia, do que com a resposta do próprio Milo. Atualmente ele estava focado em sua “amizade” com Afrodite.

De qualquer forma, Saga não era um homem exatamente previsível, então era imperativo que conversasse com ele o quanto antes.

Não podia conceber a ideia de que Camus ou Saga procurassem Milo justo agora que ele estava tão bem. Por outro lado, reconhecia que tinha pressionado Camus nesta direção e algo lhe dizia que o Ruivo acabaria por buscar Milo, para alguma conversa.

E assim, a confusão acabaria se instaurando com possibilidade de descambar em algo ainda pior do que antes, agora que ele também conhecia a outra metade de segredos daquele relacionamento de Camus e Milo.

Honestamente não conseguia imaginar os dois juntos. Provavelmente como mencionou o primo, a ligação deles deveria ser extremamente carnal. Os dois eram jovens e bonitos. Isso ninguém jamais poderia questionar.

Ponderou sobre a confissão de Milo e foi forçado a refletir que por mais que dado a sua experiência pessoal; o desfecho sórdido de seu relacionamento com Radamanthys; tivesse um olhar completamente enviesado a respeito de traição, tinha entendido quando Milo disse que estava refletindo sobre “os caminhos que a gente escolhe e as pessoas que passam pela nossa vida ou as que nos acompanham… E sobre o que significa verdadeiramente fidelidade…” eram questões que sabia que careciam de um olhar mais maduro.

Milo e Camus eram jovens, e três anos antes, obviamente, ainda mais.

Não que a juventude fosse um passe livre para toda e qualquer atitude, tinha consciência que não, entretanto, era um contexto que não podia ser ignorado. E ao que tinha captado ambos sofreram consequências silenciosas de seus atos.

Quem poderia saber onde o relacionamento deles poderia ter chegado se tivessem agido de forma diferente. Esticou os braços se afastando do computador e massageou as têmporas tirando e depositando seus óculos de leitura sobre a escrivaninha.

O compromisso de Milo para com Hyoga agora, era certamente mais lapidado, era algo palpável, concreto. E certamente Camus talvez se beneficiasse da informação. Não tinha como saber… Assim esperava.

Não tinha se decidido ainda como encaminhar a conversa. Observou o horário. Fim da tarde, precisava ajeitar algo para comer. Escreveu rapidamente no celular:

"Quero conversar com você, quando pode me encontrar?" — Apertou os olhos e estalou os dedos antes de enviar a mensagem para Camus.

Escutou os miadinhos de Deusa vindos da cozinha onde repousavam seus potes para água e comida e foi ao encontro dela, para averiguar qual era a reclamação. Estava aguardando o telefonema de Julian para poder combinar com ele o encontro no Imperador. Sentia seu coração leve e seu corpo aconchegado na saudade de Julian.

Era uma novidade a sensação de bem-querer e tranquilidade mesmo com a saudade e o desejo. Puxou o corpinho de Deusa; que já arranhava suas panturrilhas; para seu colo e fechou os olhos para receber o carinho que ela lhe dedicou esfregando sua cabeça na curva de seu pescoço, enquanto ronronava alto. Ela, como sempre parecia ter um termômetro para seus sentimentos e Kanon estava, neste momento, acima de tudo feliz.

O celular vibrou e ele apoiou a gatinha com um braço enquanto buscava o aparelho em seu bolso. Duas novas mensagens. A primeira de Camus informando que estava livre no dia seguinte e a segunda de Julian avisando que estava indo para lá com jantar e com o equipamento necessário para fazer a sua barba.

Não conseguia tirar o sorriso do rosto.

No dia seguinte resolveria essa pendência com Camus, e em breve também com o irmão, mas hoje teria mais uma vez a companhia do homem que o amava. Sentiu as unhas da gata em seu ombro, todavia, ele não se importou.

Seu coração batia mais acelerado pela chegada de Julian, mas ele cada vez mais se reconhecia inteiro.

***

Camus respondeu a mensagem pensativo.

Kanon querendo conversar com ele podia significar que ele havia finalmente se decidido a falar com Milo.

Deixou o telefone em uma mesinha lateral e retirou o roupão felpudo o colocando em um gancho preso à parede. Observou a água preenchendo a banheira e derrubou nela alguns sais. Tocou levemente a água aprovando a temperatura. Entrou na banheira fechando os olhos para absorver o bem-estar.

Seu dia havia sido longo, com a terapia, retorno ao médico e alguns outros afazeres práticos da casa, como pagar contas. Movimentou o braço, que estava semi imobilizado por alguns dias, e avaliou que realmente poderia retornar ao trabalho. Não sentia mais nenhum desconforto.

Tinha mais dois dias de atestado e então retornaria a Sirene, curiosamente o nome da empresa agora era indissociável do amigo. Por mais que não fosse dado a pensar o mundo guiado por forças intangíveis como sorte e azar, não se fartava de pensar que no dia em que sua ”sorte” havia virado, Sorento surgiu como um presente inesperado, destes que a gente pensa que não vai ter qualquer apego e acaba descobrindo que era realmente o que mais precisava.

E, no caso do farmacêutico ele desesperadamente precisava de amigos, especialmente alguém tão sensato quanto o livreiro, garçom e herdeiro.

Sorriu de leve quando afundou mais seu corpo na água quente. Os cabelos se espalhando contra a louça branca e flutuando na água turva de produtos aromáticos. Manteve os olhos fora da água perdido em algumas memórias. Com sorte em breve finalmente estaria livre deste "conflito" não resolvido com Milo. Apertou os olhos, cada vez isso lhe parecia distante de si.

A conversa anterior com Shaka havia lhe deixado um pouco dividido, todavia, não pretendia pressioná-lo ou se perder em divagações ou auto sabotagem. Apenas ansiava não deixar mais nenhum fio solto, nenhuma pendência era o que lhe ocupava a mente. Fechou os olhos apoiando a cabeça na lateral da sua grande banheira. E deixou que seus dedos longos passeassem pelos lábios vermelhos suspirando ante as lembranças.

Krest, seu terapeuta, tinha razão, após atravessar alguns véus não era possível voltar a ver a vida de forma velada. Tinha noção de suas responsabilidades sobre seus atos e das consequências destes. Nem tudo precisava ser pesado e monolítico.

A ele, também cabia uma fatia de felicidade e calmaria neste mundo. Sozinho ou acompanhado, estava certo de que valia a pena buscá-la.

Sentiu as lágrimas de alívio chegando aos seus olhos, sem qualquer desespero, quase sereno, sorria.

Notes:

O livro mencionado por Shaka é "O oceano no fim do caminho" do Neil Gaiman.
E a frase: "O solo do coração de um homem é mais empedernido", é uma referência ao livro "O cemitério" do Stephen King.

Chapter 55: Isso nunca vai adormecer

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A noite anterior ainda estava vívida em sua mente, cada toque, afago e a promessa represada nos olhos cinzentos de tempestade. Ninguém nunca havia lhe dedicado tão profundos e significativos olhares. Seu corpo todo formigava feliz. Envolvido. Cada gesto e palavra reforçando o desejo entornado de dar vazão, realizar. Eles esculpiam com habilidade um o anseio do outro, com zelo e afeto.

E, na noite anterior mais uma vez isto se tornou evidente. Tendo como ápice Julian fazendo sua barba, certamente um dos momentos mais carinhosos e eróticos que já viveu.

Passou a mão pelo queixo, agora liso e tentou manter uma expressão mais neutra. Tinha uma conversa importante pela frente e ninguém levava a sério alguém com um sorriso de pateta constante enfeitando o rosto. Pigarreou e acertou a postura sem mirar seu reflexo no elevador espelhado.

Devido aos compromissos profissionais de ambos, mas especialmente a agenda movimentada de Julian só conseguiriam se ver na sexta feira; dia do encontro marcado por Milo para que ele pudesse oficialmente apresentar o namorado aos primos.

Ele, contente, aproveitaria a oportunidade para confirmar para os primos que finalmente estava com o dono do Imperador. Era uma torcida generalizada que ele talvez tenha demorado demais a dar ouvidos.

Agora, entretanto, estava pela segunda vez na casa do ex namorado de Milo.

A conversa que tinha pela frente com Camus, era um território inexplorado. Limpou a garganta enquanto deixava o elevador.

Camus aguardava altivo na porta de seu apartamento. Ele parecia um pouco mais magro, Kanon ponderou enquanto dividiam um aperto de mãos. Haviam se falado mais cedo e combinado de jantar juntos na casa do farmacêutico.

Kanon, em todas as ocasiões em que pode deitar seu olhar sobre a figura de Camus, sempre se impressionava com a beleza do outro homem, desta vez, ele ainda exalava uma mudança sutil em sua aura sempre tão magnética. Algo tinha mudado, mesmo que ele não acreditasse que tinha o direito de esmiuçar esta impressão, sentia-se curioso.

Seguiu o protocolo de tirar seus calçados e desta vez observou um pouco do entorno refletindo sobre qual seria o signo do ruivo. Um homem apaixonado e correspondido era sempre um tolo, sorriu internamente deixando escapar um assobio muito discreto de suas narinas.

Camus o guiou até a cozinha para comer. Camus serviu uma salada verde e risoto de cogumelos, preparados por ele. A comida estava deliciosa e acompanharam de uma taça de vinho branco, o que parecia estar levando o anfitrião as nuvens.

— Passei alguns dias tomando anti inflamatório, realmente estava sentindo saudades de beber vinho — Camus comentou enquanto pousava sua taça sobre a mesa em um sorriso muito discreto. — Gostou do jantar? Quer sobremesa?

— Estava tudo muito gostoso. Agradeço Camus, estou satisfeito. — Pousou seu guardanapo — Você cozinha muito bem — O ruivo corou satisfeito, era uma prazer que estava redescobrindo — Mas, precisamos conversar sobre Milo.

— Obrigado. Precisamos sim… Tudo bem com ele? Não tive oportunidade ainda de escrever para ele ou combinar algo. Tive um pequeno acidente…

— Ele está muito bem. Acidente? O que houve? — Kanon perguntou demonstrando preocupação enquanto franzia as sobrancelhas.

— Você pode não acreditar, mas eu fico muito feliz em saber que está tudo bem com o Milo. Eu fui atropelado… — Falou tranquilamente abaixando os olhos a expressão surpresa no rosto do primo de seu ex namorado.

Naquele momento Camus praticamente já havia apagado a memória de Saga, que atribuiu anteriormente àquela figura, os dois realmente eram muito diferentes. E qualquer um que realmente estivesse disposto a analisar os gêmeos perceberia isso. Não era uma questão de quem era melhor ou pior e sim apenas aspectos bem evidentes que iam além do primeiro olhar mas que explicitam que aquela bela aparência contém essências distintas.

Kanon escutou a breve narrativa de Camus sobre o acidente e ponderou satisfeito que felizmente não havia sido nada grave. Camus ofereceu um café e permaneceram em um silêncio estranhamente agradável enquanto apreciavam a bebida fumegante.

Não havia mais como postergar a conversa. Kanon suspirou enquanto começava a falar ainda confortavelmente sentado. Camus a sua frente, dobrava um guardanapo de tecido entre os dedos, sinal de que estava um pouco nervoso.

— Milo sabe que você o traiu… — Os olhos castanhos de Camus triplicaram de tamanho e seu rosto empalideceu assustadoramente, apertou o tecido entre seus dedos até que os nós estivessem muito brancos — Não por mim, ele simplesmente sabe. — Kanon continuou ameaçando um olhar para o homem à sua frente. No fundo ele percebia agora que o ruivo de alguma forma também havia se machucado com aquela traição. Era algo complexo e conflituoso. — Milo conversou comigo recentemente, ele não me forneceu nenhum detalhe, mas pelo que falou eu suponho que percebeu pelas suas atitudes exatamente na época em que as coisas se deram com Saga. Pelo que conheço de Milo, ele deve ter notado no mesmo dia, talvez… Ele é muito mais perspicaz do que seu comportamento sugere. Por favor Camus, respire… Você está me assustando.

Camus piscou algumas vezes sentindo um sabor ruim em sua boca. Por alguns instantes teve receio de que fosse regurgitar seu jantar, o vinho e o café que tanto havia apreciado há pouco.

Um nó estacionado em sua garganta, a infinidade de cenários dramáticos lhe ocorrendo na velocidade da luz.

A ansiedade e baixa auto estima se insinuando. Tratou de tentar brecar esta espiral. O processo de não cair nos seus abismos habituais, de romper com o costume de ser caçador e presa era bastante arraigado.

As palavras de Kanon retumbavam em sua mente. Milo sabia. Milo o desprezava. Era justo.

Entretanto, ele não suportava o desprezo daquele homem. Todo alívio que experimentou na véspera ameaçou abandoná-lo. Sentia a tensão esmagando-lhe os ombros. Movimentou de leve o pescoço, respirando pausadamente e tentando organizar seus pensamentos.

Sabia que apesar do relacionamento deles não ter dado certo, Milo era uma pessoa maravilhosa. Que não merecia se sentir de alguma forma diminuído ou desvalidado por uma atitude impensada e autodestrutiva de Camus em uma de suas noites mais desastrosas emocionalmente. Ainda que tenha vivido prazeres inenarráveis com Saga, foi um sexo sem qualquer intenção de compromisso. E mesmo que não admitisse, isso nunca o contemplou completamente. Sentia-se de alguma forma agarrado a uma escuridão que lentamente o corroía, independente do prazer desfrutado por seu corpo, sua alma permanecia oca… Sedenta.

Já Milo Kókkinos era solar e lindo em todos os sentidos possíveis e agora; com a ajuda da terapia; que entendia melhor os motivos de projetar parte de seu rancor sobre a figura do ex durante tanto tempo, sentia-se em débito com o Tradutor, apenas gostaria de poder de alguma forma consertar as coisas…

Desejava saber que Milo estava bem e feliz. Pois do fundo do seu coração sentia que ele era uma pessoa merecedora de toda a felicidade que pudesse ser extraída deste mundo. E havia sido ao lado de Milo, por mais que não fosse assim tão óbvio, que ele havia iniciado sua jornada de cura. Sem a perspectiva de um relacionamento com uma pessoa intensa, carinhosa e verdadeira ele jamais poderia ter se dado conta do quanto havia vivido mergulhado no chorume comportamental e em emoções distorcidas que lhe eram endereçadas e estimuladas por Surtr. Sem a referência de uma pessoa aceita e amada por sua família; talvez ele jamais houvesse se dado conta do quanto isso importava e fazia diferença na formação de alguém, do caráter e da maneira como cada um se vê disposto a dividir a vida com outras pessoas. Como cada um se coloca frente às dificuldades, amarguras e belezas da vida.

Sem Milo, talvez ele jamais tivesse se dado conta de si mesmo e consequentemente do que sentia por Shaka.

Era uma pessoa importante em sua vida e apesar de assumir seus erros lhe doía a perspectiva de ser odiado por ele.

Como se pudesse escutar estes pensamentos Kanon estendeu a mão cobrindo as do ruivo que ergueu seus olhos tumultuados para ele, instintivamente.

— Ele não sabe sobre Saga. E no que depender de mim ele jamais saberá. — Apertou de leve as mãos geladas de Camus e recolheu seu gesto — Eu vou conversar com meu irmão e vamos enterrar esta história. Por ele e por você e especialmente por Milo. Mas antes… Tem algo que preciso te dizer… — Camus havia sido pego de surpresa pela empatia demonstrada por Kanon e mais uma vez lamentou que não houvesse conhecido este homem em circunstâncias diferentes, de alguma forma apenas sabia que eles poderiam ter sido amigos — Milo… De cabeça quente ao ter certeza de que você o traiu acabou ele também por ficar com outra pessoa.

Camus estava estático, de boca e olhos escancarados. Milo tinha lhe premiado com um par de chifres! Estava compenetrado, por alguns momentos pensando quais eram as possibilidades para que isso tivesse acontecido. Imensas! Milo sempre foi bonito, sedutor e cobiçado e Camus inclusive se recordava de um Editor bastante ousado e manipulador que por algum tempo rodeava seu ex como abelha está sempre próxima do mel.

Kanon o observava muito sério e quando seus olhares se cruzaram os dois não puderam evitar a gargalhada compartilhada. Riram de nervoso e divertimento a beira das lágrimas.

A vida era mesmo um festival de ironias, decepções e coincidências. Mas, era também o palco potencial dos encontros.

O coração de Camus se esvaziou quase imediatamente de boa parte da culpa que carregava. Krest com certeza apontaria alguns aspectos mais simbólicos dessa descoberta, naquele momento, todavia, tudo que o Farmacêutico conseguia pensar é que não conseguia culpar Milo e que o ligeiro desconforto pela notícia não era nada em comparação com a libertação que ela lhe trazia. Não apenas pelo óbvio de chifre trocado, como poderiam comentar alguns sábios, mas também por não ter se submetido a tudo de forma passiva. Por ter mantido seu espírito combativo e aguerrido. Ele não havia quebrado a essência de Milo e isso era um conforto indescritível. Sentiu muita gratidão por Kanon ter-lhe confiado estas informações.

Depois de algum tempo eles se acalmaram e Kanon contou que já tinha sua conversa combinada com o irmão, o qual visitaria ainda naquela semana para levar o traje do casamento.

Conversaram um pouco mais sobre Milo, e Camus confidenciou o alívio experienciado… Kanon pareceu compreender o anfitrião. Falaram abertamente sobre toda a confusão que de alguma forma estava sendo felizmente evitada e compartilharam mais alguns sorrisos aliviados. Camus preferiu não mencionar que sabia que Milo já estava namorando, não conhecia o rapaz, mas segundo Ikki qualquer um seria um sortudo por poder desfrutar da companhia do tal rapaz.

No fundo, Kanon conseguiu compreender que apesar dos caminhos tortos o Ruivo havia sim gostado de seu primo, e que se errou com ele foi principalmente por ter questões mal resolvidas em si mesmo. Por ter tido ele também sua parcela, ao que tudo indicava, bem generosa de mazelas e dor. Era sim uma pena… Mas o erro não o transforma automaticamente em um vilão. A vida adulta tinha muito mais camadas do que sugeria o maniqueísmo da juventude.

Suspirou apertando os lábios.

Amadurecer envolvia também o exercício de tentar não só se colocar no lugar do outro, mas de aceitar que às vezes as pessoas se viam em locais que jamais estaríamos, afinal, cada um tem sua travessia nessa aventura sem roteiro chamada por nós de vida. E não cabia a ninguém julgar pesadamente outros… A maior parte das pessoas estava sempre apenas tentando seu melhor, errando e acertando sem orientação ou referências. E aprendendo, nem sempre da forma mais suave ou saudável, mas os bons sempre aprendiam.

Naquele momento os dois sabiam que não poderiam apenas iniciar uma amizade, mas a semente dela estava plantada em ambos. Quem sabe um dia? Não tocaram nesse assunto, mas a afinidade fez germinar essa possibilidade. Em um futuro indeterminado talvez se lembrassem da primeira vez que se viram no bar, ou das conversas subsequentes rindo de forma cúmplice como há pouco.

Kanon sentia que havia tomado a decisão certa. Se despediram sem prometer nada um ao outro. Ainda assim satisfeitos, pois uma boa amizade estava no horizonte… Distante, mas, possível.

***

Há alguns anos não tinha uma semana tão movimentada e prazerosa, uma cortesia de Isaak. Basicamente passaram dois dias trancados dentro de seu quarto no sobrado rosa, e nos seguintes revezaram entre a casa um do outro. O mais surpreendente, é que tirando a noite de seu primeiro encontro, Ikki e Isaak não haviam mais se esbarrado.

Quanto a animosidade que existia entre eles, não havia nada que Sorento pudesse fazer, apenas respeitar a posição de ambos. Inclusive, não contou para Ikki que havia conseguido a bolsa e pediu que Shun guardasse segredo, assim que o Amamiya mais velho voltasse poderiam conversar.

Por hora, acreditava que o rapaz precisava focar apenas em si mesmo e em suas questões.

Excetuando Ikki, mandou uma mensagem para as demais pessoas que sabia que ficariam felizes com sua conquista e isso incluía Camus, que retornou minutos depois pedindo mais explicações sobre toda a história e trazendo uma alegria contagiante na voz.

Também comunicou a mãe sobre a bolsa de estudos e com grata surpresa atendeu a ligação da progenitora que em meio a voz embargada pelo choro, brindou-lhe com toda a sorte de palavras carinhosas e de incentivo que alguém poderia querer. Deteve-se um pouco naquela conversa e uma coisa acalmou seu coração, uma última frase antes da despedida: “Também rompi os grilhões.”

Apenas Sorento sabia exatamente o que aquilo queria dizer, ela também estava livre. Teriam tempo para conversar melhor depois.

Ao regressar ao trabalho depois dos dias de folga, comunicou a Gerente sobre o posterior desligamento do trabalho. Não deixaria seu posto de garçom imediatamente, trabalharia até aproximadamente um mês antes de sua viagem e como sempre preferia agir de forma clara, evitando complicações, chamou Thétis para uma conversa franca.

Recebeu as sinceras congratulações da Gerente, que por mais que comandasse aquele lugar com mãos de ferro, nunca deixou de demonstrar o apreço que tinha por seus funcionário.

Conversaram por aproximadamente meia hora, acertando detalhes sobre o futuro desligamento, o pagamento de todos os encargos trabalhistas e no final não conseguiu esconder a estranheza ao saber que precisaria falar com Julian Solo.

Sabia que ele era o dono do bar, mas todas as questões relativas às contratações e demissões, passavam apenas pela Gerente, mesmo assim, não fez grandes perguntas.

Thétis o informou que aparentemente na sexta feira o Senhor Solo estaria no bar e qualquer dúvida poderia questionar diretamente o próprio Imperador.

 

E chegada a sexta feira, Sorento continha a curiosidade, enquanto sentado em uma cadeira no escritório do proprietário, olhava Julian Solo folhear uma pilha de papéis e em seguida o encarar.

— Antes de tudo acredito que devo parabenizá-lo pela conquista, Sorento. — Julian falou recostando na cadeira.

— Agradeço, senhor Solo. — Sorento sorriu minimamente.

— Não tem o que agradecer. Thétis enxerga longe e sempre brinda esse lugar com uma sorte de funcionário brilhantes, em diferentes aspectos. — Sorriu. — Mas admito que essa é a primeira vez que ela contrata o único herdeiro de um grupo farmacêutico bilionário, Franz Sorento de Sirene.

O garçom piscou calmamente, mantendo o mesmo rosto calmo e impassível de sempre, segundo Isaak, aquela era sua expressão de “descaso com a simples existência humana.”

— É disso que se trata? — Sorento questionou, a voz tranquila.

— Mais ou menos. Como todos sabem, Thétis é a responsável pelas contratações. Muitas vezes só coloco os olhos em meus funcionários em situações específicas e preciso dizer que a primeira vez que te vi fiquei intrigado. Não leve meu comentário como algo negativo, mas fiquei curioso sobre os motivos que levaram um homem que nitidamente parecia ter frequentado as mesmas escolas que eu a trabalhar como garçom. E com isso quero deixar claro que não estou desmerecendo a profissão, muito pelo contrário. Não é do meu feitio ter esse tipo de opinião torpe. Inclusive, sequer creio que conhecimento formal seja o único condutor de uma boa educação. Entretanto, você não parecia o tipo de homem que havia sido criado para o trabalho que estava desempenhando, e digo isso pois sei, não por experiência própria como pode imaginar, o quão cansativo e pesado é o trabalho aqui. — Sorento balançou a cabeça em concordância, indicando que havia entendido os argumentos de Julian. — Sendo assim, sua figura chamou minha atenção naquele dia e por mais de um motivo, mas isso quero deixar para conversarmos depois.

— O Senhor quer saber os caminhos que me levaram ao emprego de garçom? — Sorento questionou erguendo umas das sobrancelhas em um gesto que não passou despercebido por Julian.

— Primeiro vamos cortar as formalidades. Pode me chamar de Julian. E não, não quero que me conte seus motivos. Eles não são da minha conta de todo modo, apenas quero contextualizar minha atitude posterior com relação a você. Ou melhor, com relação a ligação que recebi do seu pai, alguns dias depois.

Pela primeira vez o garçom demonstrou alguma impaciência e certo desconforto. Não podia acreditar que Franz tinha feito tal movimento, na verdade estava indignado, não surpreso. Era de seu conhecimento que o pai usava de todas as armas que tivesse em mãos para conseguir o que queria, mas não passou por sua cabeça em momento algum que ele poderia confrontar seu empregador.

— Qual tipo de ameaça ele fez? — Perguntou sério. — Melhor… Qual foi o favor que ele prometeu em troca da minha cabeça?

— Vantagens diversas, já que dinheiro não é um dos meus problemas. — Julian suspirou. — A questão Sorento é que eu jamais apunhalaria um dos meus funcionários. Eu tenho a consciência que para muitos o meu estabelecimento é um lugar de passagem, seja até conseguirem algo que considerem melhor, ou enquanto reestruturam suas vidas, talvez as duas coisas, mas eu sempre cuido dos meus e isso inclui todos que estão sob meu teto. Não estava nos meus planos te contar essa história, mesmo assim, informei ao seu pai que você só deixaria O Imperador por sua própria vontade e como não confio em homens da estirpe dele, peço desculpas por isso… — Sorento fez um gesto com as mãos indicando que não se importava. — Pedi a Thétis para me avisar caso houvesse alguma mudança no seu comportamento ou pedido de demissão. Não exclui a possibilidade de você ser coagido a abandonar o emprego e caso isso acontecesse… Bom… Tenho meus meios para evitar complicações. No fim, fico feliz que esteja nos deixando por estar galgando novos horizontes e quis ter essa conversa para que você saiba que não importa o caminho que te trouxe até aqui, as portas do Imperador sempre estarão abertas para todos aqueles que sempre cuidaram de seus pilares. Esse lugar não seria nada sem todos vocês. Além disso, tome cuidado Sorento, seu pai não parecia nada feliz com a ausência de seu herdeiro.

O Flautista encarou Julian por alguns segundo ponderando sobre tudo que tinha ouvido até então. Definitivamente estava surpreso, não esperava aquele tipo de atitude de seu contratante. De certo modo, conseguia se enxergar em Julian. E talvez, de acordo com a tal contextualização que ele havia feito questão de inserir, esse sentimento de espelhamento fosse mútuo.

— A única coisa que posso dizer é obrigado. — Sorento sorriu sinceramente. — Não acho que Franz esteja acostumado as pessoas não se curvarem a ele, ou acatarem suas ordens.

— Bom… — Julian riu. — Ele não ficou nada feliz. Agora… — Pigarreou limpando a garganta. — Tem a outra questão que quero tratar com você e talvez você me considere menos nobre e mais invasivo.

— É agora que vamos falar sobre Isaak e Kanon? — Sorento deu um sorriso enviesado recostando na cadeira

— Sabia que você era perspicaz, Sorento. — Sorriu cruzando as mãos sobre a mesa.

— Dizem que sou observador, mas de certa forma, acho que estivemos fazendo movimentos semelhantes Julian, desde o dia em que fomos apresentados.

— Você notou meu interesse no Kanon?

— Sim, da mesma forma que acredito que você tenha notado o meu em Isaak. — Julian concordou. — Todavia, só percebi que Kanon correspondia às suas investidas na noite da despedida.

— Isaak já parecia confuso com relação a você há algum tempo. Inclusive notei a dúvida nas atitudes dele. E sobre ele…

— Não precisa se preocupar, estamos namorando. — Sorento interrompeu.

— Preocupação não era bem a palavra que eu buscava. — Julian falou com certa altivez.

— Imagino. Mesmo assim ela expressa a real situação. Estamos juntos. Sendo assim, imagino que fique mais leve a situação quando deixar claro que também está com Kanon.

— Sempre sagaz.

— Não haveria motivo algum para tocarmos nesse assunto se esse não fosse o cenário, não é? — Julian meneou a cabeça. — Independente de qualquer coisa, realmente sou grato pelo que fez. — Sorento falou levantando da cadeira e estendendo uma das mãos. — Caso não tenha mais nada que queira falar comigo, preciso ir, meu expediente começa em dez minutos.

Julian levantou da cadeira apertando a mão de Sorento. Não havia mais nada que precisasse ser dito, tudo tinha ficado às claras entre eles.

Saiu do escritório seguindo atrás do garçom que entrou na sala de funcionários, onde Isaak aguardava com uma fisionomia preocupada. Assim que notou a chegada de Sorento, viu o rosto do rapaz se iluminar e um sorriso ornar sua face, desviou a atenção caminhando até a mesa na qual Kanon o aguardava com uma expressão enigmática.

Apenas sorriu, sentando ao lado dele que logo se apossou de sua mão, não precisava explicar nada, de alguma forma, sabiam que agora tudo estava resolvido, para todos.

***

O humor de Ikki havia melhorado consideravelmente e a maior parte das pessoas que convivia com ele percebeu isso.

Não que o jovem arquiteto distribuísse grosseria aos quatro ventos, como sua expressão sempre fechada poderia sugerir, entretanto ele era sim uma pessoa fechada e de poucas palavras. E no ambiente de trabalho esse tipo de comportamento acaba sendo percebido por todos e em alguns casos de forma pejorativa.

De alguma forma a semana passou sem que ele e a Aiolia tivessem qualquer oportunidade de conversar sobre a noite que passaram juntos.

Os dois agiram com a cordialidade e o profissionalismo de sempre. Tentaram, claro encontrar alguma brecha para que pudessem conversar, contudo ela não apareceu.

Assim como seu assistente, Aiolia também estava revigorado e inegavelmente bem humorado durante toda a semana. Entretanto, como sempre mantinha uma persona agradável calorosa na medida os outros colaboradores do escritório não perceberam grandes mudanças no seu comportamento, e qualquer demonstração poderia ser atribuída ao envolvimento e ansiedade com os preparativos com o casamento de Aiolos, que todos sabiam ser basicamente o herói do irmão mais novo.

Como foi combinado com o setor de Recursos Humanos, Ikki sairia de férias por 30 dias e o Arquiteto chefe também estaria ausente do escritório por alguns dias uma parte de suas férias que usaria para auxiliar o irmão e a cunhada com os últimos preparativos do iminente casamento.

Estiveram ocupados com um sem número de pendências e demandas, buscando adiantar ao máximo todas as atividades que tinham pendentes, além de organizar agendas para que pudessem cumprir prazos e realizar os projetos com a qualidade que sempre empregavam.

Assim a semana passou e na sexta feira quando Ikki foi se despedir, já que viajaria para a casa de Kagaho naquela mesma noite eles apenas dividiram um abraço apertado e forte, talvez um pouco mais longo do que ditava a etiqueta.

Aiolia estava de saída para o Imperador onde encontraria com os primos, Milo havia combinado o encontro para apresentar seu namorado a todos. Uma sensação agridoce o tomava. Desfrutou do contato do corpo de seu assistente falou baixo para que apenas ele soubesse:

— Se cuida Ikki… Se precisar de mim me liga, não pense duas vezes.

— Obrigado. — Ikki respondeu fechando os olhos e sentindo um arrepio suave atravessar seu corpo. — Você também, aproveite sua pausa, a festa do seu irmão, mande meu abraço aos noivos… E eu vou ficar 10 dias lá. Depois estarei de volta na Cidade...

Apesar de saberem que era preciso uma conversa franca nenhum dos dois insistiu nesse sentido. Cada um à sua maneira tinha suas pendências e paralelamente aceitava o conforto que haviam conseguido quando dividiram uma noite com muito mais intimidade do que a de seus corpos. Não combinaram mas ficou subentendido que passado o casamento e com o retorno de Ikki poderiam finalmente conversar. Não houve nenhum beijo ou promessa.

Dividiram mais um olhar profundo, carregado de significados indistintos, então, Ikki deixou o escritório.

Ele caminhou ereto e sem olhar para trás. Não chegava a estar em conflito, quem sabe anestesiado. O aconchego do abraço tinha lhe pegado de surpresa, não estava preparado para isso.

Shun tinha apoiado sua viagem feliz por vê-lo finalmente parar um pouco para descansar. Sabia que o irmão caçula teve que se segurar para respeitar seu espaço. Não tinha falado com Sorento novamente, mas fez questão de enviar uma mensagem ao amigo assegurando a ele que de sua parte estava tudo bem entre eles. Que torcia por sua felicidade e que entendia sim a posição de Isaak apesar de seguir achando que ele era um moleque chato.

Avisou que estaria fora da Cidade por dez dias e que se Sorento precisasse de qualquer coisa para entrar em contato com ele.

Ikki esperava logo estar na companhia de seu Tio, longe da Cidade e livre para poder não só repousar como refletir sobre o que faria da sua vida dali para frente. Organizou tudo para pegar a estrada direto do trabalho. Gostava de dirigir.

Sozinho, Aiolia tomou seu lugar em sua mesa e abaixou a cabeça a apoiando nos braços. Estava cansado. Talvez devesse ter falado algo, feito algo. Permaneceu quieto por alguns minutos e então passou a organizar suas coisas. Ainda tinha uma longa noite pela frente e na próxima semana o plano era manter-se a disposição dos noivos além de ser o responsável por diversos pontos importantes para que no dia mais importante da vida de seu irmão tudo fosse perfeito.

Seu celular vibrou e ele leu na tela a mensagem de Kanon avisando que ele e Julian já estavam no Imperador a espera.

Um sorriso suave formou-se em seu rosto.

Seus primos estavam felizes. Com parceiros que pareciam ser boas pessoas e era uma noite de comemoração, na próxima vez em que estariam todos juntos seria o Casamento de Aiolos e Seika.

Não podia se dar ao luxo de ficar abatido.

E, bem no fundo sentia arder uma suave chama de esperança, algo novo em seu coração. Ergueu-se pegando seus pertences e partiu rumo ao bar do Imperador.

Chapter 56: Sonho que um dia virará vida

Chapter Text

Entraram no bar de mãos dadas e o coração de Hyoga parecia estar a ponto de lhe escapar pela boca. Estava confiante em seus sentimentos e no relacionamento que ele e Milo vinham construindo. A cada dia se aproximavam mais, se conheciam cada vez mais, dividiam mais intimidade, não somente de seus corpos e o passo de estar ali; naquele momento; para ser apresentado ao irmão dele e outras pessoas que eram de conhecimento de Hyoga que Milo amava profundamente, era assustador.

Ao mesmo tempo era profundamente significativo.

A noção de que estava cada vez mais sendo incluído na vida do Tradutor, assim como assumido, literalmente, lhe geram novas sensações e perspectivas.

Esta era, com certeza, a primeira vez em que pensava de forma concreta em dividir sua vida com outra pessoa. Não apenas no calor do momento, mas em ficar juntos… Em amadurecer, envelhecer, dividir a vida para sempre. Sentiu o coração acelerar e então acalmar-se quando Milo apertou de leve sua mão. Fitaram-se rapidamente. Estava tudo bem. Ao lado de seu homem sentia-se confiante.

Reconheceu de cara Kanon, que ele obviamente já conhecia e sorriu levemente. Na noite anterior havia conversado com Isaak e o amigo o incentivou a fazer amizade com o Grandão. Aos olhos de Isaak, Kanon se tornou basicamente um modelo de hombridade. Nem parecia que há algumas semanas eles estavam como gato e rato brigando para logo caírem na cama. Guardou para si o sorriso que quis despontar em seus lábios. A vida, às vezes, se resolvia nela mesma, o mundo girava e enfim… As pessoas legais, ao seu ver, estavam sempre tentando o seu melhor.

O amigo, aliás, não estava em nenhum lugar que pudesse ver. Naquela noite a Gerente sabiamente havia o designado para ajudar no bar, posteriormente Hyoga viria a saber, mas conseguiu distinguir a figura de Sorento no extremo oposto, atendendo algumas mesas com a mesma seriedade que havia notado nele nas vezes em que se esbarram quando o Flautista dormiu na casa deles.

Chegaram a mesa onde já estavam Kanon, Julian e Kardia. As apresentações foram feitas. O irmão de Milo o abraçou muito forte quase lhe tirando do solo e bagunçou seus cabelos.

— Hyoga, já soube que você está fazendo meu Maçãzinha feliz e é tudo que eu preciso para gostar de você. Estou de olho, hein?

— Obrigado. — Respondeu firme — Fique tranquilo, Milo me faz muito mais bem que eu jamais poderia esperar e não existe como eu não valorizar isso. Quanto ao meu afeto não há nada a se questionar. Milo é melhor coisa que já aconteceu na minha vida.

Milo abraçou Hyoga pelos ombros e depositou um beijo em sua face sussurrando em seu ouvido:

— E você na minha, meu príncipe… — O gesto espalhou um arrepio bom por seu corpo e deixou o mais novo com o rosto corado.

Os homens sorriam enquanto se acomodavam na espaçosa mesa em um dos cantos mais discretos do Salão que ainda não estava completamente cheio. Logo, Bian estava a frente deles para o atendimento.

— Boa noite Senhores, meu nome é Bian estarei atendendo sua mesa nesta noite. Aqui estão os cardápios, Nossa Gerente me informou que estão reunidos para jantar. Se precisarem de alguma sugestão estou a disposição. — Ele sorriu para todos e recebeu um sorriso de límpido de Hyoga. Além dos cumprimentos dos outros homens.

— Meu bom Bian, estamos aguardando ainda uma pessoa, mas você pode nos trazer algo para um brinde… Todos aceitam champanhe? — Julian convidou.

Milo olhou para o namorado com os olhos brilhantes e ele apenas concordou sorrindo. Antes que o garçom deixasse o local Aiolia chegou e ele anotou mentalmente a quantidade de taças necessárias para o brinde, pedindo licença se afastou.

Kanon foi o primeiro a abraçar Aiolia, um enlace apertado que rendeu ao mais novo um suspiro suave e um imenso sorriso.

— Mas vejam só vocês, Kanon todo carinhoso, fez a barba! Nem parece aquele bêbado da Despedida de Solteiro! — Gracejou ainda no enlace. Julian cobriu elegantemente a boca com um guardanapo para rir. — Segue sendo lindo. Boa noite senhores! Perdoem o atraso, vim de aplicativo e pegamos, pelo horário, um pouco de trânsito.

— Tudo bem Aiolia, quero te apresentar o Hyoga! — Milo começou animado. O recém chegado sorriu cordial e estendeu a mão para Hyoga que recebeu o cumprimento se erguendo do banco para diminuir a diferença de altura entre eles.

No mesmo instante Aiolia conseguiu mapear que um dos motivos do encantamento de Ikki, e de Milo, era a beleza e o frescor da juventude impressos nas feições de Hyoga e ornados por uma aura um tanto misteriosa. Realmente não existia como negar que era um jovem no mínimo encantador ao olhar. Com certeza deveria ser agradável aos outros sentidos. Tentou não medir de forma deselegante o outro rapaz.

Hyoga por sua vez teve a ligeira sensação de já ter visto aquele homem de beleza impressionante antes, não quis, entretanto, pensar no assunto naquele momento.

O recém chegado cumprimentou Milo com um afago ligeiro no ombro e sorriu para todos de forma calorosa, como sempre. Estavam acomodados em uma mesa para um grupo grande, assim os casais estavam sentados juntos e Kardia entre eles. O irmão de Milo levantou-se para cumprimentá-lo e depois mudou de lugar para que pudesse sentar-se ao seu lado.

— Vou sentar do lado do Leãozinho hoje, já que somos os únicos avulsos aqui. Aliás, já contei para o Milo e quero comunicar a vocês. Se tudo der certo na minha vida o próximo casamento será o meu! Eu estou apaixonado! — Kardia anunciou orgulhoso. Sorrindo charmosamente para todos.

— Mas vejam só! Fiquei para titio, é isso mesmo? — Aiolia riu cobrindo a mão de Kardia — Meus parabéns, o Coração foi flechado pelo cupido finalmente!

— E como foi, meu querido Leãozinho, e como foi. — Kardia alargou o sorriso afagando a mão de Aiolia que ao virar o rosto notou que Hyoga o olhava com certa atenção, retribuiu o olhar sorrindo da forma mais simpática que conseguia e suspirou com quase alívio quando Milo chamou o namorado o inserindo em uma conversa animada entre os casais.

— Eles formam um belo par, não acha? — Kardia comentou estudando as feições de Aiolia.

— Muito… Milo parece feliz. — Respondeu virando na cadeira ficando de frente para o Kókkino mais velho.

— Há alguns anos que não vejo minha Maçãzinha assim… Em algum momento acreditei que você seria o responsável por tirar esse tipo de sorriso dele. — Kardia falou em um tom mais baixo.

Aiolia abriu a boca levemente em claro sinal de surpresa, fechando-a em seguida, dando de ombros. De alguma forma a certeza de que Kardia não o recriminava era como dividir um peso que nem ao menos tinha se dado conta estava carregando.

— Então você sabe. — A frase saiu quase como um sussurro. — Há quanto tempo?

— Desde sempre, eu acho. — O tom de confidência. — Não sou um dos melhores advogados da cidade à toa. Além disso, Milo na adolescência teve sua cota de sentimentos por você. Isso me fez ficar de olho no desenrolar das coisas. Não foi bem da maneira como achei que seria. No entanto, ele parece feliz e isso me deixa em paz. Gostaria que você também fosse feliz.

— Eu sou. — Respondeu um tanto sem jeito mudando de posição na cadeira.

— Feliz em outras áreas além da profissional. — Kardia colocou uma das mão na perna de Aiolia que acompanhou o movimento com um sorriso desanimado. — Acho louvável sua tentativa de se satisfazer através da felicidade dele. De alguma forma, isso é algo que eu esperaria do irmão mais novo do Aiolos. — Riu — Mas você é jovem, inteligente, bonito, gostoso… — Sorriu sacana — E não pode ficar por tempo indeterminado esperando uma brecha.

— Eu sei. — Suspirou. Diminuindo ainda mais o tom de sua voz. — Achei que dessa vez…

Aiolia parou de falar ao ouvir uma risada alta de Milo, que trocou olhares com ele enquanto enxugava as lágrimas que surgiam em seus olhos devido ao riso.

— Vocês dois vão ficar ai tricotando em segredo é? — Milo falou em tom de brincadeira apontando de Kardia para Aiolia.

— Claro que não. Também quero saber qual o motivo de tanta graça. — Aiolia respondeu se voltando na direção dos demais, ainda sentindo a mão de Kardia em sua perna, que de alguma forma parecia tentar lhe dar força.

O advogado não estava errado. Realizar-se através da felicidade do outro era uma faca de dois gumes. Ao mesmo tempo em que se sentia inebriado ao perceber a alegria de Milo e o bem que aquele belo rapaz parecia fazer a ele, não podia ignorar a pontada de ciúme que o acometia ao computar cada gesto, toque e palavras sussurradas.

Gostaria sim de ser ele a tirar aquelas reações, mas de alguma forma sabia que a oportunidade parecia perdida. O que conseguia enxergar entre aqueles dois não parecia ser algo que se quebraria com facilidade, e os Deuses sabiam que independente de seus sentimentos, jamais torceria pela miséria de Milo, muito pelo contrário.

Dedicou alguma atenção aos gestos de Hyoga e não pôde deixar de lembrar de Ikki. Um sorriso involuntário ornou seu rosto. A vida podia muitas vezes ser uma paródia de si mesma. Tanto tempo trabalhando juntos e nunca havia reparado no Assistente além daquilo que saltava aos olhos: Ikki era extremamente bonito. Mas até aí, nada que lhe fizesse tremer nas bases. E mais uma vez, se pegava pensando nas ironias da vida. Eram iguais e diferentes em certa medida e que grande dramalhão era seus objetos de desejo estarem juntos. E por mais que o ciúme tentasse o corroer, não era ínvido ao ponto de não notar a simetria que existia entre Milo e Hyoga.

A chegada do garçom com a bebida o tirou brevemente de seus pensamentos, afinal, estavam ali para celebrar a amizade e o amor, não para remoer as oportunidades perdidas.

***

Bian parou na bancada do bar ao mesmo tempo que Sorento. Ambos fizeram os pedidos a Krishna, enquanto Isaak, de costas, arrumava alguns copos em uma bandeja, virando rapidamente ao ouvir a voz de Sorento, que discretamente piscou um olho para o namorado, fazendo com que seu rosto se tornasse púrpura.

— O Sr Solo pediu uma garrafa de champanhe, Krishna. Qual você sugere? — Bian perguntou entregando algumas comandas ao Barman.

— Huum… Aqui. Pode levar essa daqui. Já que o pedido é do próprio Imperador, acho que o valor não será um problema.

— Creio que não. — Riu aguardando Sorento se afastar, chamando Isaak em seguida. — Como estão as coisas? — Questionou sinceramente preocupado.

— Está tudo bem. — Respondeu simplesmente. — Acho que Thétis quis evitar qualquer tipo de constrangimento. — Deu de ombros. — Mesmo que eu ache que não haveria nenhum. No fim… — Falou mais baixo debruçando na bancada chegando mais perto de Bian. — Cada um ficou com um almofadinha… — Olhou de relance para Sorento que sorria contidamente anotando um pedido em uma das mesas. — E o meu é um gostoso do caralho! — Riu junto com Bian que já estava com a bandeja na qual uma garrafa de champanhe e seis copos repousavam.

Caminhou até a mesa na qual os presentes estavam imersos em meio ao riso, e a um clima palpável de descontração. Pediu licença distribuindo os copos e fazendo menção de abrir o champanhe, ao que foi educadamente impedido por Julian que fez questão de abrir a garrafa empurrando a rolha e distribuindo a bebida nos copos antes que pudesse derramar. O belo espetáculo de bolhas dançando nas taças pareceu acentuar o tom de leveza daquela noite.

Kanon não conteve o sorriso de satisfação ao acompanhar o gesto de Julian e em um ato impensado beijou-o antes mesmo que pudessem fazer o brinde. O gesto foi copiado por Milo e Hyoga, e Kardia e Aiolia apenas se olharam levando as taças sorrindo em seguida acompanhando os casais presentes. Cada um imerso nos sentimentos que aquela cena despertava.

Do outro lado do salão Sorento sorriu ao olhar a mesa, direcionando em seguida sua atenção ao bar, no qual Isaak também sorria olhando com divertimento para os casais e depois para um surpreso Bian, que ainda não tinha se afastado da mesa.

— Kanon! — Julian chamou admirado, ainda com os lábios próximos.

— Julian… Eu… — Kanon pareceu tomar consciência que havia beijado o dono do estabelecimento sem o mínimo pudor em meio a um salão recheado de clientes e funcionários. — Me des…

Sua fala foi interrompida pelos lábios de Julian que iniciou um novo beijo.

— Jamais se desculpe por me querer. — Julian murmurou afastando-se levemente de Kanon. — Agora vamos ao brinde.

— Ao Amor! — Kardia convidou e todos uniram suas taças repetindo o brinde.

Aiolia bebeu um gole generoso e entregou sua taça para o irmão de Milo. Com um gesto preciso chamou por Bian que atendeu em um piscar de olhos.

— Eu preciso de cerveja. Como sempre sou bem atendido por aqui vou confiar na sua escolha. — Bian sorriu anotando algo em seu bloco e passeou os olhos pela mesa, Kanon fez um gesto com a mão pedindo que duplica-se qualquer que fosse o pedido de Aiolia. Milo e Hyoga pareciam imersos um na contemplação do outro e Julian piscou um olho para Bian que abriu ligeiramente os olhos surpreso. Aparentemente ele podia levar um balde com algumas garrafinhas do rótulo que lhe parecesse mais adequado ao momento. Afastou-se mais uma vez em direção ao bar.

— Só trabalha gente bonita aqui, hein Solo, é o critério de contratação? — Kardia riu bebendo a taça de Aiolia, a sua já pousada sobre a mesa.

— Honestamente me faço a mesma pergunta, eu não participo do processo seletivo, minha Gerente, entretanto, demonstra ter um faro bastante fino para talentos em belas embalagens, por assim dizer — Decretou o Imperador enquanto corria seu olhar pelo salão discretamente. — Mas me contem, como estão os preparativos para o Grande dia de Aiolos? Falta tão pouco tempo… — Elegantemente mudou de assunto.

Kanon que o conhecia tão bem apenas sorriu ao seu lado. Ele bem sabia das belezas que circulavam naquele bar. Felizmente tinha a certeza de que a mais bela das joias do Imperador era o seu companheiro.

— É verdade, a data está bem próxima. — Aiolia suspirou pensativo — Está tudo correndo muito bem, seguindo o cronograma. Domingo tem ensaio com os Noivos, famílias, Padrinhos e Madrinhas. Não vai ser nada muito suntuoso, apenas uma cerimônia simples, como Seika e Aiolos desejavam.

— Você basicamente organizou esse casamento Aiolia! — Kanon cumprimentou deixando o amigo orgulhoso. — Certeza que será maravilhoso.

— Quem sabe eu não organizo o seu também Grandão? Ou o do Milo — Completou piscando divertido. Milo quase engasgou com sua bebida e Hyoga não disfarçou sua risada contagiante enquanto batia de leve nas costas do namorado que não sabia se reclamava ou concordava com a brincadeira. Julian ergueu a taça em sinal de concordância.

— Ou o meu, poxa… — Kardia fez uma expressão falsamente indignada — Levem meu amor a sério! Vou conquistar aquele homem, eu caso até de vestido, véu e grinalda se ele quiser… — Comentou com olhos sonhadores como se visualiza-se o traje e a cerimônia. Todos sorriam com sua expressão.

— Ou o seu Kardia! Se o noivo concordar, faço questão. — Disse o arquiteto o fitando divertido.

— Eu sei que ele também gostou de mim, logo ele vai se dar conta disso. Uma hora ele vai aceitar nosso destino. Não vai ser tão cedo, mas eu sou paciente. Não me olhem assim! Tenho certeza de que somos destinados, sinto no meu coração! — Professou com a mão direita no peito.

Na mesa todos riram mais uma vez em uma aconchegante onda de harmonia.

Aiolia admirou a presença de espírito e a segurança de Kardia. Sentia-se de alguma forma contagiado por essa sensação. Talvez devesse ser um pouco mais solto, se arriscar mais. Era um pensamento tentador.

Teria pela frente diversas demandas em que já havia se comprometido para que tudo fosse perfeito no casamento de seu irmão. Entretanto, algumas possibilidades começavam a se insinuar em sua mente. Ante a este pensamento sua expressão suavizou, o que foi notado pelo Kókkino mais velho que preferiu guardar para si suas indagações.

Bian voltou pouco tempo depois com um balde de gelo repleto de long necks de cerveja.

Julian pegou uma aprovando o rótulo e fazendo um gesto positivo com a cabeça para o garçom, que depois de perguntar se precisam de mais alguma coisa, retirou-se aguardando os próximos pedidos.

Cada um dos presentes pegou uma long neck e antes de começarem a beber encostaram as garrafinhas uma na outra em um brinde mudo. Tinham o que comemorar.

Ainda imerso em seus pensamentos Aiolia bebeu com gosto a cerveja estalando a língua e encarando Hyoga de forma divertida.

— Hyoga… — Aiolia chamou com a voz branda. — Vou entender caso sua resposta seja uma negativa, afinal, pode ser muita informação — Fez um gesto de aspas com as mãos. — Mesmo assim, quero que saiba que falo em nome de todos… — Sorriu olhando para Milo. — Ao dizer que gostaria que aceitasse. Sendo assim, quero formalmente convidá-lo para o casamento do meu irmão. Será um evento familiar, repleto de amigos e pessoas queridas e pelo que posso ver… — Suspirou, aquele sentimento agridoce retornando. — Você está enquadrado em todas as categorias.

Todos os presentes sorriram mediante as palavras de Aiolia e Kardia olhou-o com indefectível carinho. Ele tinha sido sincero.

Como disse ao "primo", ele de certa forma assistiu; anos antes; a semente do que poderia ter sido o amor de Aiolia e Milo, ser deixada de lado. Não culpava nenhum dos dois. Cada um deles sempre fez o melhor que podia. Adolescentes confusos, um clichê que boa parte das pessoas não contestaria, exatamente pela própria experiência.

Havia o peso de todas as questões e angústias que permeiam o crescer e também o inegável receio de ser julgado. Por isso, conseguia enxergar o quão significativa era a atitude do “primo”. O amor que sabia que ele dedicava a Milo não era apenas um engodo para justificar sua ausência de relacionamentos sérios.

De certa forma lamentava por eles, ao mesmo tempo, sentia a felicidade que emanava do irmão transportando de forma gratificante. Torcia sinceramente para que Aiolia seguisse seu caminho. Algo lhe dizia que o rapaz tinha seus planos, de todo modo, focou sua atenção no cunhado aguardando sua resposta.

Hyoga sentiu como se aqueles segundos fossem de alguma forma crucial. Os olhares sobre si fizeram com que seu rosto corasse involuntariamente. O tom de voz de Aiolia não foi impositivo de forma alguma, e tinha plena consciência de que não havia obrigação em aceitar o convite, mesmo que o Arquiteto tenha deixado claro que se agradaria de sua presença. Mordeu o lábio inferior, respirando fundo e teve certeza de sua resposta ao ouvir a voz de Milo em seu ouvido de forma sussurrada:

— Faça apenas aquilo que te deixar confortável. Minha felicidade reside na sua.

— E a minha não seria mais possível sem você. — Hyoga respondeu ao namorado no mesmo tom confidente, antes de olhar para Aiolia e replicar com toda a convicção. — Fico honrado com o convite e por fazer parte de um momento tão especial. Pode contar comigo.

Milo abraçou o namorado e o beijou, Kardia e Kanon bateram palmas rindo alto, Aiolia apenas assentiu sorrindo e Julian balançou a cabeça escondendo o riso com as mãos.

— E que assim seja! — Aiolia falou desbloqueando o celular encarando o aparelho com atenção. — Você vai sentar na mesa junto com o Milo e toda a família Kókkino. Pronto… Já está marcado.

— Você poderia colocar o Dégel na minha mesa também. — Kardia falou manhoso.

— O arqueiro é o Aiolos, não eu. Não tenho flechas de cupido Kardia! — Aiolia falou revirando os olhos enquanto bebia mais um gole da cerveja.

— Vocês desmerecem meu amor… — Falou de forma teatral apoiando o rosto nas mãos e direcionando sua atenção a Hyoga. — Então, meu querido cunhadinho vai conhecer os sogros e o resto da família em uma única noite. Você tem coragem, garoto! Gosto disso. — Hyoga empalideceu engolindo seco. Rindo Kardia emendou. — Não se preocupe, vai dar tudo certo.

— Existe algo com o qual eu precise me preocupar antes? — Hyoga questionou com seriedade. Todos sabiam exatamente à que ele se referia.

Aquela pequena comunidade Grega era calorosa e amorosa, mas também apegada a alguns costumes e valores.

— Absolutamente nada. — Milo respondeu. — Todas as questões da família Kókkino sobre quem preenche o coração de seus filhos já foram resolvidas anteriormente. Tivemos nossa dose de drama, lágrimas, gritos e abraços. Nada fugindo do estereótipo grego.

— Além disso, a ajuda de outros ramos do panteão grego ajudaram bastante. — Kardia completou e junto com Milo trocaram olhares significativos com Kanon.

Ele acompanhou de perto como foi duro para Kanon quando ele saiu do armário, assim, entendia a afinidade e a admiração que seu irmão nutria pelo Chrysó mais novo. Milo se espelhava em Kanon em diversos aspectos.

E agora, Kardia encontrando-se ele próprio apaixonado por outro homem, sentia que finalmente tinha condições de compreender algumas camadas que sempre lhe pareceram inalcançáveis. Ninguém escolhia a quem iria amar, mas todos tinham a potencial possibilidade de decidir a forma como se colocar nas relações humanas, se posicionar na família e na sociedade. E ele sentia muito orgulho por estar cercado por pessoas íntegras.

— Sendo sincero… — Kardia esticou-se tentando ficar mais perto de Hyoga. — Quem deveria estar preocupado é o nosso adorado Sr. Solo. Sério… Os pais dos gêmeos, esses sim são casca grossa. — Gargalhou em seguida sendo seguido por Milo e Aiolia.

— Não tenho como refutar essa afirmação. — Kanon falou disfarçando o riso. — E olha que você trabalha com o Gêmeo queridinho deles. — Todos riram. — Mesmo assim, acho que eles não vão criar grande caso, ainda mais agora que Saga decidiu parar de chamar Afrodite de amigo e assumir o título apropriado.

— Pago para ver a cara dos seus pais quando Saga informar que está namorando um homem. — Aiolia falou pegando outra long neck no balde. — Um homem espetacular, diga-se de passagem.

— Isso é uma unanimidade. — Kanon concordou sendo seguido pelos demais. — Além de ser lindo, parece que ele está ensinando ao meu irmão o que é empatia. — Falou mais para si mesmo do que para os demais. Julian notou o tom quase misterioso na voz de Kanon e estreitou os olhos curioso. — De todo modo, sendo homem ou mulher, meus pais ficariam chocados. Saga é conhecido por seus casos frívolos de uma noite. Assumir um compromisso, já vai deixar o casal Chrysó de queixo caído.

— E você acha que eles vão receber bem o namorado do seu irmão? — Hyoga perguntou já se sentindo mais à vontade em meio aquele grupo.

— Sem dúvida alguma. Hyoga, vou te contar uma coisa sobre meus progenitores... — Kanon falou em tom quase professoral. — Minha Mãe se agrada de coisas belas. O belo a conquista de uma forma inimaginável. E meu Pai está preocupado em manter as cifras bancárias da família em ordem, de modo que suas futilidades possam ser mantidas sem drama. Portanto… — Bebeu um gole da cerveja. Suas ações sendo acompanhadas por Julian. — Seria correto afirmar que os gêmeos Chrysó tiveram muito êxito na escolha de seus parceiros.

— E com isso você quer dizer o que exatamente? — Julian falou em tom de desafio. — Por acaso está insinuando que eu e Afrodite somos dois bonitões endinheirados?

— Exato, meu amor. Você é o meu bonitão endinheirado. — Kanon deu um beijo leve nos lábios de Julian.

— Em casa conversamos sobre isso. — O Imperador falou com simulada seriedade, e Kanon sentiu um frio na barriga ao ouvir o “em casa”.

Os presentes perceberam sorrindo a expressão apaixonada de Kanon.

Todo jantar transcorreu de forma agradável, entre brindes com as cervejas, comentários espirituosos e histórias antigas que deixavam Hyoga cada vez mais envolvido com Milo e à vontade entre aquele bando de homens gregos e calorosos.

Na próxima vez em que estivessem todos reunidos Aiolos estaria se casando.

Chapter 57: O auge da felicidade

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Finalmente o grande dia chegou! Com toda certeza uma data importantíssima para a família Íroas, mas de alguma forma toda aquela simbologia acabou sendo apropriada pelos outros, e Kanon sentia que um novo capítulo na vida de todos eles, ou ao menos o fim de longos processos particulares eram marcados naquela data.

Todos estavam vestidos com elegância, perfumados e arrumados. Ternos bem cortados. Um incomparável desfile de homens bonitos.

As mulheres exibiam vestidos leves, coloridos. Pedido da Noiva que todas estivessem à vontade. Queriam uma festa dançante, simples. Entre os Íroas era difícil fugir completamente da ostentação, porém a família do Noivo respeitou essa decisão, ainda que não fosse exatamente uma recepção simples, ela mantinha uma aura minimalista. Aiolia estava orgulhoso do resultado final.

O Salão estava organizado com requinte, mas existia um sistema de buffet onde uma equipe auxiliava a todos. Assim os convidados circulavam buscando bebidas e alimentos de acordo com sua vontade.

Uma alegria que o casal, agora uma nova família Ogasawara-Íroas, sempre fez questão de transmitir e compartilhar com todos.

Kanon estava sereno, era agradável ver a todos desfrutando de momentos longe de suas preocupações diárias.

Seus pais dançavam tranquilamente. Percebeu um brilho peculiar nos olhos escuros do Patriarca quando lhe apresentou Julian como namorado, entretanto nada foi dito, assim, não sabia ainda com certeza qual era a opinião dos progenitores frente a seu relacionamento.

Não que isso fosse modificar algo em suas escolhas. Há tempos vivia de seus próprios recursos e desde que havia se assumido, deixado o curso de Direito no segundo ano e decidido se enveredar por outros caminhos, ainda que acadêmicos, a relação com o Pai era pautada por ligeira desaprovação constante. Algo que há alguns anos não o magoava, como já tinha feito em outros tempos. Felizmente, ao crescer descobriu que família não era apenas uma conjunção randômica de DNA, mas também aquela que cultivamos, entre pessoas que se importam tanto para nos apoiar quanto para nos apontar os equívocos. E estas podiam, ou não ter a mesma origem, sobrenome ou sangue.

Atualmente tinha uma convivência pacífica e civilizada com os Chrysó, em doses homeopáticas e sem qualquer intenção de qualquer das partes envolvidas de mudar esta dinâmica.

Julian se destacava, mesmo em meio a tanta gente bela e arrumada, pela capacidade de gerenciar atenções e encaminhar diálogos para contextos mais amenos, em determinados momentos parecia ser ele o anfitrião da festa. Uma visão que lhe acariciava a alma. A cada momento compartilhado, desde que decidiram por estar juntos, tinha cada vez mais certeza de que este era verdadeiramente seu caminho.

Trocaram poucas palavras com seus pais e logo estavam apenas os dois. O olhar intenso lhe assegurando de que não precisava se preocupar com nada. A certeza de que aquele homem moveria montanhas, secaria os oceanos em nome de sua felicidade. Era incrível, Julian conseguia se agigantar com uma facilidade nata. Decididamente gestos que tocavam a divindade. Mais um aspecto cativante.

Passaram quase todas as noites que antecederam a cerimônia de casamento juntos. Conversaram, cozinharam e fizeram amor. Eram um casal, sem sombras de dúvidas um casal entrosado e apaixonado. Naquela semana o namorado externou a intenção de telar sua residência para que Deusa pudesse também visitá-lo e ter um ambiente seguro para si. Disse que averiguaria com Aiolia se era possível e caso não fosse; ele sempre poderia se mudar para um imóvel onde estas adaptações fossem mais fáceis de se colocar em prática.

O coração de Kanon explodia de contentamento. Julian o conhecia profundamente e sabia como a sua Gatinha era importante para si e jamais o havia desmerecido ou diminuído a relevância da felina em sua vida. Ao contrário, mostrava disposição em incluir Deusa a maior parte do tempo como eles. Sorriu pensando que talvez o próximo casamento a ser planejado pelo primo fosse mesmo o seu.

Ou quem sabe do irmão, sorriu vendo Saga aceitar um lenço de Afrodite e secar sem muita delicadeza o próprio rosto. O advogado havia chorado durante toda a cerimônia.

Perto dali Kardia mal disfarçou um sorriso ao passar próximo a uma mesa repleta de jovens amigas de Seika e captar parte da conversa delas. As moças estavam admiradas com a beleza dos Padrinhos: Shura e Aiolia, que ao que tudo indicava pareciam modelos fotográficos aos olhos delas. Buscou pelo ambiente a razão de seu afeto e planejou se aproximar lentamente de Dégel.

Já que a abordagem direta tinha rendido frutos deliciosos, porém efêmeros, e ele desejava muito mais daquele homem.

Tinha se decidido a observá-lo mais atentamente e só então recorrer a outras estratégias. Sorriu consigo mesmo ao perceber que as mocinhas haviam suspirado também comentando a sua passagem, sem efetiva discrição, e ao avistar Defteros e Dohko conversando com o irmão de Seika e um outro rapaz que ainda não conhecia, juntou-se a rodinha deles.

Shiryu era sério e educado, ao contrário de Dohko, mais reservado. Simpatizou imediatamente com o rapaz, após feitas as apresentações. Ele era irmão mais novo de Dohko, aparentemente a grande diferença de idade se explicava por um novo casamento do Pai de ambos, mas como era de se esperar para a ocasião, nenhuma grande explicação foi necessária.

— Kardia! — Defteros começou o abraçando pelos ombros, os cabelos escuros brilhando a cada movimento — Você sabia que o Dohko aqui era delegado e não me avisou? Passei todos esses dias fazendo amizade com a Polícia!

Todos riram do pretenso drama do primo mais velho.

— Dohko, não estranhe meu primo, ele é apegado a fama de delinquente juvenil que tinha no colégio tipo… Há quantos anos mesmo? Deve ser quase a idade dos mais novos aqui!

— Imagina, eu já aceitei que ele me ama, basta ele aceitar. — Dohko sorriu de lado, brindando com o mais novo amigo — Tem muita mulher bonita nessa festa, desse jeito meu coração não aguenta. — Suspirou dando uma leve cotovelada de incentivo no irmão ao seu lado. — Quem sabe está na hora de sair do atraso hein Shiryu…

— Temos a presença da maior parte das tias e primas gregas, tome cuidado ou vai acabar saindo desta festa de casamento marcado! — Comentou Defteros misterioso fitando os mais jovens. Ele e Kardia dividiram um olhar cúmplice — Daí nem adianta andar armado. — Completou desta vez rindo e fazendo um gesto em direção de Dohko que deu de ombros. — Especialmente por que depois de toda aquela sensibilidade no Casamento, você chamou muita atenção…

— Olha só, o que ele tem de alto têm de insolente. Foi uma linda cerimônia, em nada fere minha masculinidade ter derramado algumas justas lágrimas pelo enlace de uma familiar tão querida quanto nossa doce Seika!

Ao ouvir o nome da irmã Seiya, que até aquele momento permanecia pensativo com o olhar perdido em algum ponto ignorado pelos outros, voltou seu rosto para eles. Desde a Despedida de Solteiro o rapaz tinha em diversos momentos sido pego em longas pausas silenciosas e reflexivas. Ele sorriu erguendo seu copo para os outros. Kardia retribuiu o gesto brindando com o rapaz. Défteros e Dohko trocaram um rápido olhar e Shiryu apertou os olhos na direção de Milo e Hyoga.

— Aquele rapaz… Vocês conhecem? — Apontou para Hyoga que naquele momento conversava com uma das tias de Aiolos e Aiolia.

— Não se empolgue, é o namorado do meu irmão. — Kardia comentou sem dar muita importância aceitando um salgadinho oferecido por Dohko que já havia se engajado em outra conversa com Defteros a respeito de qual era mais saboroso.

— Por acaso o nome dele é Alexei Hyoga? — Shiryu perguntou estreitando os olhos e voltando na sequência o rosto sem qualquer malícia para o irmão de Milo a espera da resposta.

— Hyoga… Sim, quanto a Alexei não sei. Da onde você conhece meu cunhadinho?

— Nós estudamos juntos! Nossa, que surpresa! — Shiryu informou com um sorriso discreto. — Perdemos o contato no fim do Ensino Médio, depois que eu me mudei para iniciar o curso universitário em outra Cidade. Vou lá cumprimenta-lo.

Shiryu meneou a cabeça afastando-se do grupo, sendo seguido discretamente por Seiya que direcionava-se a um ponto específico da festa.

Kardia aceitou a oferta dos salgados oferecidos pelos amigos enquanto mapeava o entorno buscando a figura do Diretor.

Os outros dois, percebendo sua movimentação, trocaram mais uma risadinha cúmplice, como se fossem dois adolescentes.

 

 

No outro lado do Salão Milo e Hyoga jantavam enquanto comentavam discretamente o quanto a cerimônia havia sido bonita.

De fato Milo acompanhou dos primeiros bancos a Celebração do Enlace Matrimonial com o pensamento fixo em Hyoga, que ocupava um lugar mais ao fundo do Salão onde se deu o Rito.

Para o jovem Kókkino a cada minuto a certeza de ter encontrado no estudante o seu par estava cada vez mais concreta. Acompanhou toda a cerimônia feliz por seus amigos e pelas pessoas que eles gostavam. Para ele, Aiolos também era um exemplo; alguém sempre dedicado em alegrar todos a sua volta e um educador, antes de mais nada um professor. Com quem ele também muito havia aprendido sobre lealdade e companheirismo. Não à toa era basicamente o herói de Aiolia.

Assim que teve uma oportunidade voltou seu rosto para trás buscando Hyoga e tendo seu olhar capturado por ele imediatamente. Um rápido sorriso que seria posteriormente lembrado por diversos convidados do Casamento.

Mas esta ainda era uma história bastante distante, naquele momento.

Os Noivos estavam lindos e radiantes. Suas palavras carregadas de sinceridade e esperança.

Todos pareciam ter sido receptivos para com o namorado de Milo. Em determinado momento da festa, uma das tias chegou a comentar que finalmente ele havia arrumado para si “um bom moço e não aquele francês que não falava com ninguém”. O que rendeu um olhar um tanto pesado em Milo, que Hyoga captou mas preferiu não esmiuçar. Sobre a tal tia, não havia como se queixar, às vezes os mais velhos se esqueciam da etiqueta e a mesma senhora apertou afetuosamente e com impulsiva intimidade uma bochecha de Hyoga o chamando de adorável e apenas lamentando os lindos filhos que eles não fariam juntos, antes de partir em busca de mais comida no buffet.

Os dois se entreolharam como se naquele momento estivessem tendo ao mesmo tempo um impossível relance do futuro. Nunca tinha, mesmo que remotamente, ocorrido a Hyoga a ideia de um dia ter filhos.

Milo, por sua vez, sempre sonhou em ter uma família grande, amorosa e barulhenta. De certo, por sua natureza justa, zelosa e calorosa seria um bom pai, o mais novo o fitou pensativo. Levaria ainda um bom tempo, mas chegaria o dia em que este tema retornaria para ambos e essa perspectiva o incomodou ligeiramente.

Sentiu uma minúscula tensão pretendendo se instalar entre ambos e apertou a mão do namorado que lhe sorriu com doçura. Ele abriu a boca para falar algo que se perdeu quando foram abordados por um rapaz bastante bonito e de traços asiáticos.

***

Ao que tudo indicava, Hyoga não era o único que se debruçava mesmo que momentaneamente em pensamentos sobre o futuro.

Não muito longe dali, um enigmático Shaka observava os convidados. Não podia negar que o clima geral de certa forma o contagiava. Não era todo dia que se via em meio a uma espiral de carinho, amor e risos entoados com nítida sinceridade.

Em meio aquele cenário dedicou maior reparo ao esposo.

Shura estava deslumbrante!

O terno feito sob medida realçava de forma perfeita todas as partes daquele corpo que julgava dignas de nota. E bom… Eram muitas. Sorriu levemente ao ver o rosto sério, que sabia ser apenas um disfarce para o embaraço que seu Espanhol sentia sempre que se via cercado por muitas pessoas.

Notou com certa surpresa que há algum tempo não pensava em Shura como seu.

Repetia que ele era seu esposo, seu companheiro, seu namorado, mas em algum momento aquelas palavras se esvaziaram de seu real sentido, sendo apenas mais uma parte do roteiro que havia se acostumado a reproduzir.

Talvez ele ainda fosse seu amigo… Talvez.

De alguma forma seu cérebro muitas vezes funcionava como uma espécie de labirinto e por mais que tentasse decorar os melhores caminhos, geralmente via-se apenas dando voltas e mais voltas, sem efetivamente sair do lugar.

A situação na qual se encontrava era sem sombra de dúvidas um exemplo de como conseguia consumir a si mesmo em meio ao drama e ao caos, mesmo que tivesse aversão a ambos.

Suspirou pesadamente pegando outra taça de champanhe na mesa de bebidas da qual estava próximo, e de onde observava a interação de seu marido com o Noivo. Alargou o sorriso sem nenhum pudor quando viu o rosto surpreso de Shura se abrandar ao ser fortemente abraçado por Aiolos e em seguida por Aiolia que entrou em meio ao enlace.

Pela primeira vez em algum tempo, não sabia precisar com exatidão quanto, via um sorriso sincero no rosto daquele homem e isso o desestabilizou de alguma forma.

Não sabia se pela constatação do fato, ou se pela beleza do sorriso em si.

Seu olhar cruzou com o esposo que percebeu que estava sendo encarado, Shaka suspirou. Definitivamente não era indiferente.

Terminou em um único gole sua taça de champanhe, muniu-se de outra pegando uma a mais. Aproximou-se do marido, no momento em que o noivo e seu caçula afastaram-se para falar com os demais convidados.

— Infelizmente eles não têm Cuba Libre. — Shaka falou entregando a taça a Shura.

— Seria uma surpresa se tivessem algo do tipo em um casamento dessa estirpe. — Riu sendo acompanhado por Shaka. — Mesmo assim obrigado pela bebida. — Aproximou-se enlaçando a cintura do Rubio. — Você está lindo!

— Pelo jeito você não prestou atenção ao espelho antes de sair de casa.

Olharam-se intensamente, havia beleza no encontro do esmeralda com o ciano, mas no fundo sabiam buscar o calor que só emanava do específico tom de terracota.

E mesmo sem conhecer a verdade um do outro, sentiam em seus ossos que algo havia esmorecido entre eles. O clima difuso foi desfeito com a chegada de Seiya que um pouco sem jeito aproximou-se do casal. Shura estranhou aquele andar desconcertado, o rapaz era muitas coisas, tímido definitivamente não era uma delas. Apenas pedia aos céus que ele não fosse inconveniente.

Tinha um senhor teto de vidro que poderia ser estilhaçado ao ser jogada a menor das pedras.

— Olá, Seiya. — Shura cumprimentou fazendo um gesto que ele se aproximasse. — Foi uma bela cerimônia. Esse é o meu esposo Shaka e esse é o Seiya. Além de irmão da noiva ele também é meu colega de trabalho.

O rapaz apertou a mão de Shaka um pouco incerto, sentindo levemente o peso de ter o olhar do outro sobre si, de alguma forma aquele homem parecia estar o analisando intimamente.

— Imagino que não seja com ele que você costuma sair para beber. — Shaka comentou de forma inesperada arrependendo-se em seguida do tom que usou.

— Não. Ele sai muito com… — Seiya parou a frase no meio do caminho sem saber ao certo o motivo. Desde a Despedida de Solteiro sentia algo estranho dentro de si, como se o papel de moleque fanfarrão não lhe coubesse com tanta tranquilidade quanto antes. Inconscientemente sabia que almejava encontrar alguém, se apaixonar, sentir ao menos um terço do que percebia nos casais que se avolumavam naquele salão. Não, não estava sendo levado pelo clima geral, afinal, tinha esse sentimento crescendo dentro de si desde a Despedida de Solteiro. E algo, uma voz lá no fundo, dizia que contar ao esposo de Shaka que seu marido basicamente ficava às voltas com Máscara da Morte, não era uma atitude digna, e acima de tudo, não era algo que lhe dizia respeito. Inclusive, envergonha-se das insinuações que tinha feito na noite da Despedida. — Com o pessoal mais velho da equipe. O pessoal gosta de uma festa naquela empresa. E isso em todo o canto. — Aproximou-se de Shaka falando mais baixo. — Eu nem gosto de fofoca, mas o dono da empresa é o mais festeiro.

Shaka sorriu levemente balançando a cabeça informando que havia entendido o recado do mais novo. Shura permaneceu em silêncio observando Seiya, disfarçando o espanto. Ao que tudo indicava não precisava se incomodar com a indiscrição do rapaz, contudo o deixava perplexo a mudança de atitude.

Conversaram por mais alguns minutos nos quais o casal notou os olhares nada discretos de Seiya na direção de uma moça que estava sentada sozinha em uma das mesas, perto dali. Em um acordo tácito concordavam que era uma belíssima mulher. Shura a reconheceu como uma das Madrinhas do Casamento.

— Vai falar com ela Seiya. — Shura falou colocando a mão no ombro do rapaz. — Ela não vai saber do seu interesse se você não se aproximar. Convide a moça para dançar.

— Eu? — Questionou enrubescendo levemente. — Vocês já prestaram atenção naquela mulher? Ela é perfeita!

— Pois é lindíssima, quanto a isso não me oponho. — Shaka comentou inclinando levemente a cabeça observando a moça. — Todavia, também não me oponho a sua aproximação. Não existe nada em você que o desabone, meu jovem. Além disso, as negativas da vida também nos ensinam algo. Vá até a mesa da moça, pergunte se pode se sentar e converse com ela. Caso esteja nervoso demais para iniciar um diálogo, convide-a para dançar. Alguns casais se formam em meio a uma dança. — Trocou um olhar cúmplice com Shura.

— Uma dança pode dizer muita coisa. Falando nisso, quer dançar Rubio? — Shura convidou galante, recebendo um sorriso luminoso em troca.

Seiya ponderou por alguns segundos e despediu-se informando que deixaria o casal mais à vontade, ao que ouviu risos discretos de Shaka e Shura. Caminhou com passos firmes em direção a mesa na qual a mulher que havia chamado sua atenção desde o primeiro momento que tinha visto, estava sentada balançando displicentemente entre os dedos uma taça de champagne quase vazia.

Desviou seu caminho indo em direção a mesa de bebidas buscando mais duas taças de champagne e registrou o momento em que Shura e Shaka começaram a valsar em meio ao salão junto com os demais convidados. Formam um belo casal — Pensou mesmo que ainda acreditasse que Shura ficava melhor ao lado de um certo Italiano carrancudo.

Repreendeu-se mentalmente, direcionando-se a mesa da “mulher perfeita”, como a havia denominado mesmo sabendo muito bem qual era seu nome. Shura e seu esposo não tinham como adivinhar que ele alimentava um encanto por aquela mulher, amiga íntima de suas irmãs, há um bom par de anos.

Muniu-se de seu melhor sorriso e ajeitou a postura enquanto caminhava, sem notar que passava ao lado de Afrodite e Saga, que pareciam imersos em um conversa com o circunspecto Patriarca da família Chrysó.

Pela primeira vez Saga enfrentou um olhar de contrariedade por parte do Pai e o isso o afetou menos do que gostaria de admitir.

Nunca entendeu o desejo de Kanon de ser compreendido, ao menos assim que começou a se descobrir e saiu do armário. Admirava o irmão e suas escolhas, e achava que o gêmeo mais novo tinha demorado tempo demais para perceber que não precisava do aval de ninguém para ser quem era. Kanon era maravilhoso, e só isso deveria bastar.

Sendo assim, não se abalou com o olhar do Pai e não disfarçou o orgulho quando Afrodite tomou a dianteira e começou a conversar com seu progenitor sobre toda a sorte de assunto que vinha a tona. Aos poucos sentiu o ar inquisidor se abrandar, mesmo que o rosto continuasse fechado.

A Matriarca juntou-se a eles e com ela as coisas foram mais amenas. Já havia comentado brevemente que estava namorando um homem e quando ela viu uma foto de Afrodite, pareceu não se incomodar nem um pouco com a perpetuação sanguínea da família Chrysó. Sua Mãe sempre foi dada ao belo, e aos seus olhos, não existia nada mais bonito do que Afrodite. Quanto a isso Saga não tinha a menor dúvida.

Enquanto Afrodite encantava seus pais com seus atributos físicos e mentais, buscou o olhar do irmão entre os convidados e como se guiado por uma conexão que cabia apenas aos dois, teve seu olhar retribuído. Sorriu levantando a taça de champagne ao ver Kanon ao lado de Julian que parecia captar todas as atenções. O movimento foi repetido pelo irmão mais novo que movimentou os lábios externalizando a frase que costumava dizer apenas quando estava em elevado nível alcoólico, o que não era o caso dessa vez.

Saga ampliou o sorriso, respondendo ao irmão:

— Também te amo, irmãozinho. Muito.

Estavam felizes, completos como nunca imaginaram que estariam algum dia.

Depois de retribuir o olhar do irmão Kanon mais uma vez observou o entorno. Pessoas confraternizando, comida e bebida a vontade. Todos elegantes e alguns já dando mostras dos exageros nos brindes. Uma gargalhada chamou sua atenção e viu Aiolos e Seika abraçados enquanto Aiolia e Marin, os respectivos irmãos entregavam juntos um envelope para os recém casados.

Ele sabia que era o resultado dos esforços dos amigos mais próximos de ambos. Uma quantia considerável que poderiam usar para viajar ou investir em algo. A felicidade daquele casal era algo que contagiava a muitas pessoas que conviviam com eles. Uma história de amor que começou com olhares despretensiosos na Sala de Professores, evoluiu para uma amizade e incentivados inicialmente pela Madrinha Shaina, foi aos poucos evoluindo para esta relação sólida que encantava a todos que os conheciam.

Kanon suspirou, para si o amor nascido na amizade era um terreno muito fértil. Sentia-se um tanto bobo, apaixonado, mas não tentava disfarçar o quanto estava feliz também por sua própria conquista. Ao seu lado Julian agora parecia ser a única pessoa da festa. Depositou um beijo afetuoso no topo da cabeça do namorado. E sussurrou em seu ouvido:

— Eu te amo, obrigado por tudo, minha vida é muito melhor com você.

— Kan… — Julian ergueu para ele os olhos carregados de emoção. O oceano tempestuoso que finalmente encontrava estabilidade e calmaria. Era tudo o que mais desejava escutar, e sabia que um dia essas palavras seriam ditas, não imaginou que tão cedo. Em um impulso abraçou o namorado e eles mantiveram aquele contato por muito tempo.

Foi uma jornada longa para eles. Julian não se arrepende de nada. Seu coração estava transbordando. Sentia o de Kanon batendo forte enquanto apoiava o rosto no peito do homem que há pouco disse corresponder seu amor. Ele ouvia ao fundo os sons da música, das conversas, brindes, risadas. Se sentia em casa de uma forma que não julgava ser possível.

Kanon repetiu que o amava e ele suspirou.

Sim, era o grande dia de Aiolos, mas não somente dele.

Por toda a parte o clima era de entendimento, fechamento de ciclos, novos começos.

Chapter 58: Isso te mata aos poucos

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A cerimônia foi bela e emocionante. Padrinhos e Madrinhas usando trajes elegantes feitos sob medida. Marin e Shaina, lindas em vestidos delicados em um tom pálido de prateado exibiam cabelos presos em uma trança lateral frouxa e Seika um coque alto adornado por um arranjo intrincado com pedrarias delicadas. Seu vestido de noiva era longo e perolado.

As madrinhas e outras amigas estiveram auxiliando a Noiva durante toda a festa atendendo familiares e cortando conversas por vezes intermináveis dos mais fracos com bebida, permitindo assim que em alguns momentos o jovem casal pudesse também aproveitar um pouco da noite.

Aiolos e sua esposa dançaram e cumprimentaram a todos alegremente. Realizados.

Vendo a alegria do irmão e da cunhada Aiolia sentia-se também realizando sua felicidade. Não plenamente, sabia muito bem que tinha suas pendências sentimentais. O encontro dias antes no bar do Imperador e a inesperada conversa com Kardia haviam lhe dado material para grandes reflexões para as quais ainda não tinha se debruçado integralmente pela falta de tempo e também pela necessidade de conversar com alguém que pudesse entendê-lo. Sorriu afastando-se de um grupo de familiares e buscou pelo salão algum dos amigos mais próximos. Todos pareciam bem, aproveitando e ele a cada instante sentia-se mais deslocado.

Era uma percepção que carregava um traço de amargor. Quantas vezes naquela noite havia sido abordado por familiares elogiando seu empenho em que o Casamento do irmão ficasse perfeito e perguntando com os mais variados níveis de cobrança embutidos quando seria ele o noivo…

Ao contrário do que normalmente fazia, não teve muita paciência nesta noite. Foi educado com todos, claro. Dançou com algumas belas mulheres, entre convidadas que mal reconheceu e outras que já tinha cruzado em festas de família ou eventos da Escola onde trabalhavam os noivos. Deu atenção a muitas tias e primas; e em algum ponto da noite não quis mais desempenhar este papel. Achegou-se de Dohko e companhia e permaneceu boa parte do tempo ao lado deles. Risadas e brincadeiras leves. Como era seu costume não exagerou na bebida.

Em seu íntimo uma decisão se formando lentamente. Uma risada mais alta de seu irmão serviu para si como um sinal. Aiolos e Seika giravam pelo salão e outros casais os seguiram embalados por uma música dançante.

Buscou com os olhos seus primos e todos pareciam entretidos. Dohko havia se afastado para se juntar ao irmão em uma conversa animada com Milo e Hyoga. Kanon e Julian abraçados conversavam com Defteros que pareceu ser o único a percebê-lo e movimentou o rosto afirmativamente para si como que o encorajando. Seu coração se acelerou.

Antes que desistisse pegou seu celular e escreveu uma mensagem. Enviou e guardou o aparelho, um sorriso maroto lhe adornando o rosto. Aproximou-se mais dos outros para participar da conversa.

 

Hyoga ficou visivelmente surpreso e inegavelmente satisfeito ao reconhecer o amigo com quem não falava há mais de 2 anos. Milo acompanhou a movimentação deles em vias de ficar apreensivo, mas este fragmento de seus comportamentos anteriores foi abandonado assim que Hyoga o apresentou orgulhosamente como seu namorado.

— Shiryu este é meu namorado Milo, ele é primo do Noivo. — Ele estava radiante quando voltou-se para o namorado. — Quero lhe apresentar o Shiryu, estudamos juntos! Shiryu é da família da Noiva, mas contou que o irmão mais velho dele é amigo dos gregos, você deve conhecer!

Milo cumprimentou o rapaz e sorriu alegre ao reconhecer quem era o irmão dele assim que Dohko se juntou a eles dando um forte abraço em Hyoga.

O mundo era mesmo pequeno.

Eles todos cresceram na mesma Cidade e os mais novos foram bastante próximos durante os anos do Ensino Médio. Dohko se lembrava de Hyoga sempre tão sério quanto Shiryu e ficou contente por encontrá-lo bem.

— Que maravilha te ver Alexei! E aquele seu amigo do cabelo colorido? — Dohko perguntou piscando. — Vocês eram umas pestes! Quantas vezes Milo, eu ainda um oficial atendi chamadas de bagunça com esses moleques tocando rock pesado na garagem da casa do… Como era mesmo o nome dele?

— Isaak! — Hyoga riu alto com a lembrança. — Somos amigos até hoje! A gente tinha uma banda de hardcore Milo, consegue imaginar?

— Você precisa me contar isso em detalhes. — Disse abraçando o mais novo pela cintura. Hyoga concordou com a cabeça e sorriu suavemente para ele.

— Shiryu você ainda fala com alguém daquela época? — Perguntou.

— Shunrei está aqui, ela vai gostar de te ver. Eu falo às vezes com o Ohko, nosso primo, lembra? Mas ele mora na China hoje em dia. E quanto ao restante, bom… Não falava com muita gente da escola, então perdi o contato. — Os dois riram, sempre tiveram afinidade na introspecção.

O Tradutor se agradou também ao ver que seu namorado tinha outros amigos além de Isaak, sendo ele uma pessoa sempre cercada pela família e amigos tinha essa preocupação. Sabia que quantidade não era sinônimo de qualidade, mas acreditava que alguém tão especial quanto Hyoga merecia ter mais amigos. Ele gostava muito de Isaak, e admitia que tanto ele quanto Kanon pareciam agora estar genuinamente mais completos. Era grato por ter conhecido Hyoga por intermédio de ambos, mesmo que entre eles não tivesse dado certo, Milo tinha um encantamento ao pensar que consigo e Hyoga seria diferente… Entre eles tudo se resolveria, apenas sabia.

Gostou de ouvir um pouco sobre Hyoga adolescente. Os rapazes trocaram contatos e combinaram de voltar a se falar com mais frequência. Logo Shiryu e Dohko se afastaram rumando para outro canto da festa. Milo pode abraçar novamente seu namorado.

— Bonito o seu amigo… — Comentou no ouvido de Hyoga que se afastou para encará-lo com uma expressão faceira.

— Verdade, esta festa é um verdadeiro desfile de gente bonita… Eu tenho sorte de estar com o cara mais espetacular, não concorda?

— Esta deveria ser minha fala… — Milo beijou-lhe os lábios com doçura. — Dorme comigo lá em casa hoje?

— Sim… Sempre que você quiser.

— Ótimo. Eu quero sempre Hyoga… Para sempre. — Tocou o rosto do mais novo sentindo seu coração preenchido — Vamos dançar?

Hyoga aceitou com alguma relutância, ele gostava de dançar, mas não estava acostumado a festas formais como aquela. Milo era um excelente dançarino. Entre eles existia uma harmonia tão grande que todos os movimentos se deram de forma fluída como como se houvessem sido ensaiados.

 

Em outra parte da festa Seiya dançava com a irmã mais velha com um sorriso que não arrefecia. No bolso de sua calça um cartão com o telefone que havia conseguido na conversa há pouco com Shaina. Suspirou ao se lembrar de que ela quase sorriu, do seu coração acelerado e de que ao menos poderia entrar em contato com ela em outra ocasião.

— Casamos nossa irmã Seiya, algo me diz, entretanto, que esse seu sorriso se deve a um outro motivo. — Marin caçoou por sobre o ombro do caçula dos Ogasawara.

— Você me conhece muito bem… Estou feliz por ver Seika feliz. Eu gosto de uma pessoa Marin, e hoje pela primeira vez criei coragem de falar com ela…

— Você se refere a Shaina? — As bochechas do rapaz se tingiram de vermelho. — Ela é mais velha que você Seiya, tem certeza de que é uma boa ideia?

— Aiolos também é mais velho que a Seika e isso nunca foi um problema para ninguém. — Marin estreitou os olhos frente a lógica inegável do irmão. — Não custa tentar… Ela é mesmo especial… E eu gostaria de ter seu apoio.

— Você tem, meu irmão, claro que tem. Bom, ela é amiga da nossa família há anos, tem um gênio pior que o meu, e eu vi o cartão que te entregou, ou seja não te rejeitou.. — O rapaz sorriu com a informação. — Sua alegria é minha realização.

— Só que você não pode passar sua vida somente cuidando dos outros Marin, eu já estou crescido. Você tem que ser feliz também.

— Eu sou. — Ela disse encarando o irmão com afeição. — Pode ficar tranquilo quanto a isso! — Fechou os olhos por um instante, enquanto o abraçava, pensando nas mudanças que estavam por vir agora que seriam apenas os dois em casa. Estava de coração tranquilo. Nesta noite nenhuma preocupação com o trabalho a afetaria, apenas aproveitaria para comemorar com seus familiares e amigos.

Seguiram dançando. Ela teria tempo depois para comunicar sobre a nova proposta de trabalho recebida… Afinal, não era o momento ainda de pensar sobre isso.

 

Perto dali Saga e Afrodite observavam os convidados serem embalados pelo ritmo da música dançante. O advogado notou que o namorado ficou por alguns minutos perdido em seu mundo particular enquanto sorria docemente acompanhando o ir e vir de pessoas da pista de dança.

— Pelo seu olhar acredito que queira completar o time de dançarinos dessa festa. — Saga falou segurando a mão do namorado.

— Seria ótimo! — Sorriu entrelaçando os dedos com os do advogado. — Mas não era sobre isso que eu pensava.

— E posso saber qual era o pensamento que recheava essa sua cabecinha linda? Sério Afrodite, algumas vezes quase sinto ciúmes dos seus pensamentos e de como você se perde neles.

— Pois não deveria, afinal, geralmente meus pensamentos me levam a você. Mas… — Balançou a cabeça de forma negativa ao ver o namorado estufar o peito mediante suas palavras. — Não posso ficar dizendo isso por aí, pois você já é convencido o suficiente.

— E por acaso eu não tenho motivo pra isso? — Puxou-o levemente abraçando-o

— Quem sabe… — Deu um sorriso enviesado. — De todo modo… — Aconchegou-se no abraço. — Não era necessariamente sobre você que eu pensava, mas sim sobre os familiares e amigos adoráveis que você tem.

— Adoráveis? — Riu.

— Sim querido, adoráveis. Todos eles e cada um a seu modo. Existe tanta beleza nesse casamento e ela está longe de ser apenas a física, muito mais do que isso. Estou falando da leveza da amizade, da cumplicidade do amor a até mesmo da sutileza da indecisão que consigo enxergar em alguns. — Olhou sério para o namorado. — Você deve aprender a apreciar essas pessoas, respeitar e valorizá-las Saga, pois elas já nutrem esses sentimentos por você. É algo realmente bonito de se ver.

Saga suspirou e apertou o abraço no qual mantinha Afrodite, encarando por um tempo indeterminado o rosto bonito que durante meses o acompanhava em todos os seus pensamentos. Estava satisfeito não só com toda a interação de seu agora namorado com a família e amigos, como com o efeito que ele visivelmente causava em todos. Saga assim como sua adorada Mãe, também apreciava a beleza, todavia, acima de tudo era fascinado com o poder. E Afrodite Nyman era a personificação de todo e qualquer noção de poder da natureza e/ou social. Um pensamento que não o abandonava, a capacidade daquele homem conseguir absolutamente tudo o que desejava e isso incluía colocar a si mesmo na palma de sua mão. Não com dominação, uma versão muito mais complexa disso. Saga o adorava e em função disso havia parado para refletir sobre diversos aspectos de sua própria personalidade e atitudes. No decorrer da última semana, quando encontrou com Kanon, isso ficou evidente com a percepção de seu irmão mais novo.

Ninguém o conhecia tão bem quanto seu gêmeo e ter atestado por Kanon o bem que Afrodite lhe fazia era para ele a constatação de que finalmente estava se encaminhando para se tornar alguém melhor… Nunca antes teve esse tipo de preocupação. O próprio rolo, mesmo que não intencional, com Camus o então namorado de seu primo que a princípio nada havia lhe causado, tornou-se posteriormente algo incômodo. Percebeu o quanto aquela noite, ainda que deliciosa, e jamais negaria este fato, havia significado apenas um passatempo para ambos. E assim como seria horrível para Milo saber do que aconteceu. Não se sentiria bem, acaso a situação gerasse algum desapontamento em Afrodite, já que naquela noite era ele o alvo principal de suas atenções, ainda que tenha passado a noite com outra pessoa. Atualmente, entretanto, estava feliz por Kanon ter-lhe assegurado que o melhor era não remexerem mais neste passado. Ele que estava imerso neste processo lento e por vezes inconveniente de auto conhecimento, preferia apenas apagar aquele momento de sua vida.

— Definitivamente não sei o que você fez comigo, senhor Nyman, mas desde que te conheci tenho a crescente vontade de me tornar uma pessoa melhor. — Beijou levemente os lábios de Afrodite antes de continuar. — Às vezes é difícil encarar alguns aspectos nada bonitos de mim mesmo, especialmente na presença de alguém tão incrível quanto você…

— Ora senhor Chrysó, muito me surpreende esse reconhecimento de sua parte. — Sorriu fazendo um carinho na bochecha de Saga. — Todos temos o potencial para sermos pessoas incríveis, no geral, alguns só se esforçam para o contrário. E com relação a você, não precisa mais encarar nada sozinho. Eu estou aqui, e estarei pelo tempo em que esse sentimento prevalecer, o que me parece que não será pouco.

— Pois assim eu espero. Você me faz uma pessoa melhor, Afrodite.

— Correção, você quer ser uma pessoa melhor! E seja por você, por sua família, seus amigos e é claro por mim, afinal, eu não estaria com você se não o julgasse igualmente valoroso.

— Agora eu preciso fazer uma correção... — Enfatizou o “eu”. — Caso ainda não tenha percebido, você é meu amigo, minha família e o homem por quem estou perdidamente apaixonado. E antes que eu comece a agir como o Kanon, acho que seria interessante irmos para a pista de dança. — Conduziu Afrodite que gargalhava sendo levado pelo namorado.

— Pois eu espero que você seja um bom dançarino, a camurça desse calçado é mesmo delicada. — Piscou maroto.

— Acho que é a única coisa realmente delicada em você, não é minha Flor? — Deu um sorriso sacana.

— Saga, Saga… Vamos logo dançar antes que eu acabe desfazendo toda a boa impressão que deixei em seus pais. — Acompanhou o sorriso do outro.

Partiram para a pista de dança e mesmo que não intencionassem, chamavam a atenção por sua sintonia e acima de tudo pelo sorriso inédito que não deixava os lábios de Saga e que podia ser notado por todos os convidados.

 

— Todos parecem felizes… — Defteros falou consigo mesmo enquanto se servia de uma fatia de bolo que estava sendo oferecida por um dos garçons. Ponderou alguns minutos, optando por pegar apenas um pedaço e olhou curioso para Aiolia que tirava uma foto do bolo enquanto mordia o lábio inferior e digitava freneticamente no celular. — Esses jovens…

— Falando sozinho, meu velho? Sabe que esse é um dos sinais da idade avançada, né? — Dohko falou divertido enquanto se aproximava.

— Pois então estou em idade avançadíssima. — Riu observando o amigo. — Vejo que a sua disposição não é só para beber. Com quantas pessoas já dançou hoje? — Riu analisando o rosto corado, a camisa com dois primeiros botões abertos e a gravata frouxa.

— Não faço ideia… — Sorriu pegando a taça de champanhe que Defteros tinha em mãos, bebendo o conteúdo em apenas um gole e deixando em uma mesa próxima. — Onde conseguiu esse bolo? Parece gostoso.

— Com um dos garçons… — Levou uma garfada do bolo aos lábios passando a língua pelo canto da boca. — Está realmente gostoso.

— Estou vendo… — Sorriu de canto. — E não lembrou de mim, não é?

— Lembrar eu lembrei. Mas não sabia se você gostava de doce. — Deu de ombros.

— Uma coisa que precisamos remediar. — Aproximou-se pegando o pulso de Defteros e levando a mão dele em sua direção. — Você precisa saber mais sobre mim do que meus gostos alcoólicos. — Mordeu um pedaço generoso do bolo, ignorando o garfo, recolhendo parte da cobertura que ficou em seus lábios com os dedos.

Defteros sorriu medindo a figura de Dohko.

— E isso quer dizer que vou continuar estreitando meus laços com a polícia? — Ergueu uma sobrancelha recebendo uma risada gostosa em troca.

— Isso mesmo! Vem homem, vamos dançar. Só falta você. — O delegado falou pegando o que restava do bolo e colocando na mesma mesa em que havia deixado a taça vazia. — Você come depois… Bolo… Ou o que quiser.

— Vou cobrar isso...

— Claro, sempre mantenho minha palavra. Agora vamos, você guia. — Piscou um olho puxando o gigante grego que o seguia com um sorriso enigmático.

Somaram-se aos demais convidados que se avolumavam na pista de dança.

 

Em determinado momento os casais apenas trocaram seus pares e o riso preenchia o local. Hyoga ficou surpreso quando se viu abraçado pela sogra que sorria de forma luminosa, da mesma forma que Milo, e sussurrou em seu ouvido, fazendo com que corasse e retribuísse o abraço. De onde estava, rodopiando pelo salão junto com Kanon, Milo vislumbrou o namorado e sua Mãe e seu coração se encheu de um sentimento que parecia o dominar.

— Eu vou casar com esse homem, Grandão! — Milo falou convicto, recebendo uma gargalhada de Kanon.

— E eu vou casar com o meu Imperador. — Falou mais alto fazendo sua voz cortar o som da música. — Aiolia vai ter trabalho com tantos casamentos.

— E quem faz o casamento dele? — Aiolos perguntou aproximando-se dos dois, em meio aos passos de dança quase sincronizados que fazia junto com a esposa.

— Vocês todos deveriam fazer o casamento dele. — Seika falou aos risos puxando Milo para dançar com ela.

Todos concordaram trocando olhares cúmplices buscando Aiolia que parecia estar muito concentrado no celular em um canto da festa. Ele sorriu lindamente para a tela que lhe iluminava as feições e a cunhada que o observava acompanhou aquele gesto. A frente dela Milo concordou com o comentário mudo. Todos queriam a felicidade do mais novo dos Íroas.

— Acho uma pena que não tenha dado certo com a Marin. — Seika falou para Milo com quem dançava.

— Bom… Essas coisas a gente não escolhe, né? — Segurou uma das mãos dela fazendo com que girasse ao som da música. O vestido fazendo um movimento gracioso. — O importante é que você levou todo um grupo de gregos com você. De alguma forma, estava escrito que seriamos todos uma só família. — Seika sorriu abraçando Milo, que levantou a moça do chão girando com ela.

Aiolos riu alto ao ouvir a risada sonora da esposa, e notou que Shura estava próximo dançando animadamente com Shaina. Aproximou-se deles.

— Com licença Shaina, será que posso roubar seu parceiro de dança? — Falou galante fazendo Shura balançar a cabeça com simulada indignação enquanto ria.

— Claro, já abusei muito do seu padrinho bonitão. — Sorriu discretamente. — Vou buscar outro parceiro. — Falou rumando em direção ao outro lado da pista de dança. E logo sendo abordada por outro convidado, o qual dispensou em menos de dois segundos.

— Não sei se fico feliz ou preocupado com o novo parceiro dela. — Aiolos riu.

— Que nada, a moça é ótima! — Falou com animação atípica. — Vamos dançar ou não? — Apontou para um canto do salão. — Até o Rúbio está animado e gostou muito da sua cunhada.

— Fico feliz que estejam se divertindo. Muito mesmo! — Aiolos passando o braço pelo pescoço de Shura, enquanto se balançavam ao som da música. — Você sabe que eu te amo, né?

— Sei sim. E a recíproca é verdadeira meu amigo. Agora… — Shura olhou afetuoso para Seika. — Tenho mais algumas pessoas com quem dividir meu carinho. Já posso imaginar os filhos lindos que vocês terão.

— Está bêbado, Shura? — Aiolos questionou em meio ao riso, sendo acompanhado pelo amigo.

— Nem um pouco. Precisa de mais do que umas taças de champanhe para me embebedar, mas estou realmente feliz por vocês e por fazer parte disso.

Aiolos puxou Shura o abraçando. Em poucos minutos aquele único enlace virou um abraço coletivo no qual se juntaram além dos gêmeos, Afrodite que já não se importava com o estado de seu sapato, um risonho Milo e Hyoga, que agarrou a mão de Shiryu que estava parado ali perto fazendo com que o amigo recém encontrado o acompanhasse, primeiro surpreso depois compartilhando da alegria geral e por último Defteros e Dohko. Sendo inclusive esse último responsável pelo encerramento do abraço ao entoar em seu tom de voz divertido.

— Defteros, essa mão na minha bunda é sua?

Todos explodiram em uma sonora gargalhada. De onde estava, Aiolia acompanhou a tudo com um imenso sorriso, sobressaltando-se ao ouvir o toque de mensagem chegando em seu celular.

Defteros não conseguia controlar o riso enquanto se deixava levar por Dohko, mais uma vez, para uma parte mais afastada do salão de festas. Shura deu um beijo afetuoso no bochecha de Aiolos e caminhou em direção a Shaka, que já não dançava mais com Marin e o aguardava munido de duas taças de champanhe e um sorriso arrebatador. Pegou a bebida e sentiu o corpo arrepiar quando o marido murmurou algumas palavras de encontro a seus lábios, em breve chegaria a hora de ir embora.

 

Diversos casais dançavam, trocando de forma despretensiosa ao sabor dos acordes tocados. As amigas e amigos dos noivos se misturavam com suas famílias, sem qualquer distinção. Ébrios, festivos. Unidos na missão de celebrar a união de Aiolos e Seika.

Para todos os convidados foi uma bela celebração, uma festa farta e divertida. Música, comida e bebida que seguiram generosamente madrugada adentro. Pouco a pouco a festa foi se dispersando. Por cansaço, dever cumprido, pelo peso da idade ou a urgência dos sentidos.

Afinal nem todos tinham todas as suas questões resolvidas. Não ainda.

Chapter 59: Hipnotize

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No bar a noite estava estranhamente tranquila, poucas mesas ocupadas, assim os funcionários podiam aproveitar para relaxar um pouco, situação essa nada comum nas sempre agitadas noites no Imperador.

Enquanto Io levava alguns pedidos e Sorento atendia uma mesa, Isaak e Bian estavam próximos ao bar atentos a qualquer necessidade de sua interferência, mas livres o suficiente para conversarem.

— Estou feliz por vocês Zak, é uma ótima notícia que finalmente se entenderam. Estava conversando com Io e pensamos que seria bacana da gente sair qualquer dia os quatro, karaoke ou algo assim… O que você acha?

— É uma boa ideia, preciso ver quando o Sorento pode… Sempre serei grato a vocês dois por aquela noite…

— Não seja bobo, foi apenas um empurrãozinho — Sorriu como se recordasse de algo com bastante ternura — Às vezes o mundo te ajuda e um dia você retorna o favor.

Isaak concordou buscando com os olhos a figura de seu namorado que parecia flutuar com elegância pelo salão. Algumas pessoas entraram no bar e Bian com um gesto confirmou que ele atenderia a este grupo. Ainda pensativo Isaak voltou a acompanhar a figura de Sorento que agora falava com as pessoas de uma mesa mais afastada.

Em seu coração Isaak sabia que estava irremediavelmente ligado aquele homem. Refez mentalmente algumas contas. Apesar dos encontros frequentes, e magníficos, e das poucas horas de sono ele vinha dedicando algumas horas de suas tardes, justamente quando o namorado estava na livraria, para trabalhar em alguns projetos e em breve já receberia uma quantia interessante. Neste ritmo, até o fim do ano poderia confortavelmente realizar uma de suas ideias. Ao pensar sobre o fim do ano, lembrou-se de sua visita anual ao Pai e pela primeira vez teve vontade de apresentar alguém a ele. O velho com toda certeza aprovaria Sorento, tanto por ele ser lindo quanto por ser tremendamente genial e um músico impressionante.

Sentir-se tranquilo e feliz era uma sensação nova para Isaak e ao contrário do que talvez pudesse projetar em outros momentos de sua vida ele sentia-se completo e nada entediado. Era bom ser correspondido e de alguma forma era melhor ainda estar apaixonado.

No caixa Thétis observou a movimentação. Ela estava satisfeita com a noite tranquila, arriscou um olhar para o bar e teve seu olhar capturado pelo Barman. Krysaor emanava uma energia bastante dominadora que fez um arrepio atravessar seu corpo. Trocaram um rápido sorriso milimétrico de entendimento mútuo. Estava tudo correndo bem. Com a entrada de novos clientes Isaak se prontificou a ir atendê-los e ela retomou a atenção para o caixa.

***

Alguns dias fora da Cidade realmente o tinham ajudado a colocar tudo em sua vida sob uma nova perspectiva. O flerte com o rapaz na galeria de arte, as memórias novas e antigas. Ikki se sentia conectado consigo mesmo na presença de seu tio e a calma que almejava um dia encontrar para si ele via naquele rosto com que tanto se parecia. Kagaho prometeu que ele logo visitaria os sobrinhos.

Ikki comprou um pote de geleia e algumas velas aromáticas para presentear Camus, nesta viagem ele tinha estranhamente comprado lembrancinhas para suas pessoas queridas.

Se encontraram mais uma vez na casa do Ruivo. Um jantar tranquilo, desta vez apenas pediram uma pizza e conversaram, aprofundando um pouco mais aquela jovem amizade a que ambos tanto valorizavam. Em algum momento, o celular de Ikki tremendo com a chegada de mensagens chamou a atenção de Camus, que riu malicioso

— Pelo jeito o reencontro com o Grego vai ser quente, vocês mal podem esperar, ao que tudo indica…

— Na realidade eu nem tinha falado com ele até agora. Não conversamos sobre se ver antes de eu voltar ao trabalho, mas estamos trocando umas mensagens e eu recebi uma foto de uma fatia de bolo, veja só…

— Um belo bolo, e até onde me lembro um belo grego — Riu sorrateiro da expressão quase desesperada de Ikki — Não faz essa cara Ikki… Ainda não me acostumei com você sem ser todo sisudo… Aiolia te pegou de jeito mesmo, quem diria?

— É um tanto estranho que ele seja primo do Milo, não acha? — Ikki sorriu de lado ignorando o comentário do amigo, ele já tinha contato sobre a noite que passou com seu chefe e ficou secretamente aliviado por Camus não o recriminar.

— Eles são tipo melhores amigos que se chamam de primos, mas não são primos de verdade, se isso te alivia em algo… De qualquer forma eu convivi um tempo com eles. Aiolia sempre foi bonito, expansivo, porém fechado… Um tipo interessante, definitivamente. Acho que vocês de um jeito bem peculiar, combinam.

— Ahn Camus, eu não sei… A gente trabalha junto…

— Isso não necessariamente é um problema. Eles devem estar todos no casamento a essa hora… Ternos bem cortados, cabelos penteados. Milo ficava muito gato de terno, puta merda. — Camus riu se lembrando, da perspectiva que Shaka também ostentasse tal indumentária, dado que seu maldito Espanhol era o padrinho de Aiolos. — Aposto que a festa está muito alegre e bonita…

O arquiteto acompanhou atento às mudanças minúsculas na face do ruivo e ajeitou seu corpo no confortável sofá do apartamento de Camus. Notou algumas almofadas em tons fortes de verde petróleo e roxo, uma novidade sem dúvida, escolheu manter-se quieto sobre tudo isso.

— Sim… Todo homem fica mais elegante em um bom terno. — Falou por fim fechando os olhos quando seu telefone, ao seu lado no sofá, vibrou novamente, nem precisava olhar para saber que Camus lhe endereçava uma expressão zombeteira.

— Bom, eu tenho certeza que ninguém vai se abalar para me trazer uma fatia de bolo, mas, você quem sabe consiga comer essa gostosura…

— Não fique me dando ideias, meu amigo, é tudo muito novo para mim!

— Ikki, você já amargou demais por um erro. Acontece, você se desculpou, fez tudo que podia. Só de ter se arrependido e estar buscando não cometer o mesmo erro você já deveria se sentir orgulhoso. Nosso mundo valoriza demais os heróis, mas nem todo mundo tem vocação para ser um deles. Vida que segue…

— E quanto a você — Eles se encararam sem qualquer sombra de animosidade — Sua vida seguiu?

— Sim, não tenho a menor dúvida quanto a isso. — A tranquilidade de Camus poderia ser confundida com frieza por algum desavisado. Ainda que fosse recente, aquela amizade inesperada era muito valiosa para ambos. E Ikki já começava a mapear a sinceridade e a franqueza do ruivo em sinais bastante sutis.

— Bom, se ele não te escolher é um idiota. — Ikki sentenciou e recebeu do outro um sorriso milimétrico.

— Ele tem bons motivos para não me escolher, meu amigo… De qualquer forma eu não blefei quando disse que a vida seguiu. Eu me sinto outra pessoa. Alguém melhor. Quem diria, até amigos eu tenho, e uns bem gostosinhos. Afinal, você sabe, de homem eu entendo. — Sustentou o olhar do moreno por mais alguns instantes e depois bocejou. Ambos riram. A piada era recorrente.

Ikki reconhecia a beleza impressionante do farmacêutico, ao mesmo tempo sabia que não havia qualquer traço de sedução em seus comentários ou na interação deles.

O convidado achou melhor se despedir e voltar para sua casa. Dividiram um breve abraço e combinaram de se falar em breve. Era bom para aqueles dois homens ter amigos. Tinha sido uma noite agradável de conversa e leveza, concordaram que seria ainda melhor se o jovem Sorento pudesse estar entre eles.

Como não havia bebido, Ikki voltou para casa dirigindo. Durante todo o percurso ele repensou os últimos acontecimentos de sua vida e as palavras de Camus “Vida que segue” estavam impregnadas em sua mente.

O arquiteto não tinha como saber muito do Camus de antes, além do que foi contado pelo próprio. Uma longa e tortuosa história de amor não declarado e sabotagem emocional.

Para ele, esta era também uma lição.

Já em seu destino ele contemplou a casa escura e silenciosa. Pensou um pouco e digitou algumas palavras em seu celular.

A essa altura de sua vida já havia aprendido que sempre era pior se arrepender por não ter tentado.

***

Chegaram em casa em meio ao riso, que estourou em uma sonora gargalhada quando Shaka errou umas duas vezes a chave na fechadura da porta antes de conseguir abri-la. Shura terminou de fechar a porta, enquanto o marido se apoiava nele tirando os sapatos e os deixando de forma displicente no chão. Um sinal de que o nível alcoólico de seu Rubio estava bem elevado, mas não o suficiente para que ele não se empenhasse em deslizar as mãos de forma despudorada pelo corpo do Espanhol, deixando claro o que desejava.

Shura sorriu aceitando o convite e antes mesmo que pudesse sugerir que fossem para o quarto sentiu seu corpo ser imprensado pelo do esposo. Entregaram-se no chão da sala, sem reservas e sem preocupação. Conheciam os caminhos um do corpo do outro. Sexo nunca foi um problema entre eles, ao menos aquilo nunca havia sido uma questão. Sentiam desejo um pelo outro, quanto a isso não existia a menor dúvida. O prazer que compartilhavam era incrível, e o orgasmo arrebatador, sempre e todas as vezes. E mesmo assim, enquanto se entregavam mais uma vez, alternando-se no corpo um do outro, perceberam que alguma coisa havia esmorecido. Aquela chama inicial estava extinta, e não apenas pela dinâmica do tempo de relacionamento e rotina, na verdade, levando em conta a personalidade daqueles dois, esse certamente não seria um impeditivo para que continuassem a se amar.

No fundo sabiam o real motivo, mas naquele momento isso não importava. Estavam concentrados um no outro, no prazer do toque, dos suspiros e gemidos que conseguiam arrancar.

Poderiam pensar em suas questões depois, com o clarear do dia, depois que o efeito de plenitude ocasionado pela festa passasse.

Ainda tinham algum tempo para se debruçar sobre seus conflitos, por hora, só interessava a Shura as ordens ditadas em tom lascivo que saiam dos lábios de Shaka e a unha que se afundava na carne de sua cintura trazendo um misto de dor e prazer. Assim como tudo que cercava seu Rubio.

Naquele momento, entretanto, se amaram com entrega profunda e completa, como se não houvesse mais ninguém, como se fosse a última vez.

***

Mais uma vez estavam no apartamento de Kanon ambos jogados na cama nus depois de se amarem apaixonadamente. As roupas caídas no pé da cama e Deusa deitada sobre uma peça do terno caríssimo de Julian.

O Imperador se aconchegou entre os braços de Kanon e praticamente ronronou:

— Você me faz o homem mais feliz do mundo…

— Achei que você ia pegar aquele buquê! — Julian ergueu para ele os olhos divertidos. — Foi bem mais épico cair na cabeça do Defteros! Afinal ele consegue ainda ser mais alto que você… E da cabeça dele em câmera lenta para as mãos do Dohko… Chega a ser ridículo.

Kanon gargalhou com a lembrança. Realmente eram um par bastante inusitado para todos aqueles que não estiveram na despedida de solteiro. Eles agiam de forma bastante ambígua. Tanto Kanon quanto Julian, entretanto, sabiam o quando um sentimento poderia se conservar em uma amizade para crescer como um amor sólido.

— Não nego que adoraria se desse em algo viu… Mas, seria lindo você com o buquê também. — Kanon confessou beijando o topo da cabeça do namorado.

— A gente pode casar se você quiser, Kan. — O encarou com olhos transbordando de afeição e honestidade.

— Não brinca com isso Julian… Acabamos de começar a namorar.

— Apenas por que você demorou para aceitar o óbvio. Eu vou te amar e cuidar de você de qualquer forma Grandão, mas adoraria que fosse meu esposo.

O coração de Kanon parecia a ponto de estourar seu peito. Inclinou-se sobre o homem que amava e o abraçou com força.

— Vamos conversar sobre isso novamente sem tanto champanhe no organismo? Eu adoraria… E Julian, você nunca antes me chamou de Grandão!

— Bom, agora eu acho que tenho conhecimento de causa para usar o apelido. — Piscou malicioso. — Estou mesmo um tanto alterado pela bebida e pela festa. Eu fiquei muito feliz a noite toda. Não me lembro de já ter me sentido tão vivo.

Riram juntos.

Kanon o abraçou e ignorou o comentário malicioso concentrando-se em mais uma confissão. Aprendia a cada dia o quanto Julian era um homem de sentimentos profundos e posicionamento firme. Não poderia existir nesse mundo melhor escolha para si.

Ele também estava satisfeito com o resultado da noite. Tudo tinha corrido bem. E se no dia seguinte... Interrompeu seu pensamento ao perceber que Julian ressonava nos seus braços…

Sorriu cheio de ternura, se no dia seguinte o herdeiro Solo ainda demonstrasse interesse em retomar aquela conversa ele com certeza consideraria. Conseguia escutar dali a gata roncando deitada entre as roupas no chão. Julian se moveu e Kanon manejou puxar um lençol para cobri-los.

Sim, Kanon Chrysó também nunca antes tinha se sentido tão vivo quanto ao lado de Julian.

***

Abriu os olhos e mirou cansado a paisagem do lado de fora do ônibus. Felizmente, por mais que fosse um pouco distante, o caminho até a casa que dividia com o esposo era agradável. Somado a isso, tinha sido agraciado com um trânsito incrivelmente fluido para o horário no qual se deslocava até sua residência.

Aquela semana tinha sido uma das mais cansativas desde que tinha começado a trabalhar na Indústria Sirene e a maior parte devia ser imputada ao seu estado emocional, e não ao trabalho que desempenhava. Havia passado quase uma semana desde o casamento de Aiolos e mesmo que o final de semana tenha sido banhado por um clima ameno e olhares carinhosos, ao chegar para o trabalho na segunda-feira e dar de cara com Camus, todas as suas dúvidas vinham à tona.

A bem da verdade, não tinha necessariamente uma dúvida, teve tempo suficiente para colocar seus pensamentos em ordem, mas sendo justo consigo mesmo, nunca foi bom em encerrar relacionamentos, sendo eles românticos ou não.

Além disso, todas as amarras que parecia ter atribuído a si mesmo, estavam se soltando aos poucos: Matilde demonstrava clara e rápida recuperação, o casamento do melhor amigo de seu esposo havia acontecido, era perceptível a qualquer um que Camus estava mesmo mudando e acima de tudo, estava cansado de podar a si mesmo. Nesse ponto não conseguia deixar de lembrar do prazer que haviam desfrutado ao chegar em casa, ainda embriagados e felizes, logo depois do casamento dos amigos. Por mais pleno que tenha sido, parecia imerso em um ar de fenecimento. Sendo assim, não conseguia mais se esconder atrás de suas intermináveis desculpas. Durante todo o domingo, primeiro enquanto arrumavam juntos a bagunça que haviam deixado na sala e depois quando recordava os olhares, os toques e os sorrisos trocados no casamento, seus pensamentos iam e viam, oscilando entre acreditar que estavam no começo de uma reconciliação ou no prelúdio do fim

Com o passar da semana, teve certeza que a segunda opção era a correta. E durante os dias que se sucederam tentou conversar com Shura, mas como nada entre eles parecia seguir a linha lógica que ambos gostavam de se agarrar, passou a semana em uma série de desencontros com seu marido.

Em algum ponto cogitou se ainda compartilhavam o mesmo teto, afinal, no dia em que Shaka chegava cedo em casa, Shura ligava avisando que precisava fazer hora extra, e vice versa. O mais estranho, é que não sentia a euforia que no geral transparecia na voz do esposo quando ele mencionava as “viradas” que fazia na empresa. E de alguma forma, isso também lhe causou desconforto e ao mesmo tempo alimentou a ideia do “podemos deixar para depois”, mesmo que já tivesse decidido que precisava ter uma conversa séria com Shura.

Nos poucos momentos em que seus horários conciliavam, o Espanhol parecia exausto e queixava-se do trabalho e do ar tenso que estava se alastrando pela empresa e sobre o qual não conseguia tecer maiores considerações. Sem sombra de dúvidas, a condição na qual o esposo se encontrava, em certa medida cortava o coração de Shaka, ao mesmo tempo, deixava claro que algo precisava ser feito.

Desceu do ônibus no ponto próximo a sua casa e em poucos minutos estava abrindo a porta da residência. Como era de seu feitio acendeu todas as luzes, encaminhando-se direto para o quarto. Seu intuito era tomar um banho e relaxar, mas ao olhar o cômodo, a cama que agora compartilhava com Shura e os móveis do recinto, percebeu que nada ali era dele. Ou melhor, não se identificava com nada que via naquele quarto, ou até mesmo na casa. Viviam juntos há um mês e não havia empreendido nenhum esforço para deixar aquele lugar com um pouco de sua essência. Costumava espalhar mais dos seus gostos por ali quando ainda não viviam juntos do que quando passaram a compartilhar a vida.

Para algumas pessoas isso poderia não ter nenhuma importância, mas esse não era o caso de Shaka. Como bom controlador organizado que era, mesmo que sua organização fosse seletiva, não costumava ser descuidado com esse tipo de detalhe. Cogitou até mesmo comprar algumas tintas para pintar a casa, quando ainda acreditava que poderia transformar aquele lugar em um lar para ambos, mas depois, aquela vontade se foi. Aquela casa parecia muito mais um lugar de veraneio, uma estadia temporária. Quem sabe Camus não estava certo quando o inquiriu dizendo que ele parecia já contar com o fim.

E mais uma vez percebeu como aquela palavra vinha martelando em sua mente: fim.

E já que era assim, não havia outro jeito. Respirou fundo, finalmente tomando coragem e sem muito esforço tirou da parte de cima do guarda roupa uma mala. A mesma na qual havia trazido suas coisas e agora organizava para ir embora.

Em pouco mais de meia hora havia arrumado algumas roupas, artigos de higiene, documentos e tudo aquilo que julgava essencial. Olhou com certa apreensão para a mala e conferiu a hora no relógio de pulso, jogando-se na cama em seguida. Fitou o teto por alguns minutos e antes que notasse um nó se formava em sua garganta. Não era para ser assim, não precisava ser assim na verdade. Sempre acreditou que os relacionamentos existem para ensinar algo, agregar valor. E o sofrimento? Bom, esse era opcional.

Estava cansado daquele imbróglio.

Não costumava inserir-se naquele tipo de situação, gostava de paz, almejava por ela. Nem que fosse sozinho.

Levantou da cama engolindo a vontade de chorar que crescia cada vez que começava a formular o discurso que apresentaria a Shura. Rumou para o banheiro, tirando as roupas e sem perceber quase as jogou no cesto de roupa suja. Tomou ciência do ato e em meio a um suspiro pesaroso começou a dobrar as roupas, deixando-as em cima do vaso. Entrou no chuveiro e de olhos fechados começou a imaginar como seria dizer a Shura que precisava de um tempo. Não, tempo não era a melhor palavra. Não queria procrastinar mais nada, precisava ser o mais claro possível, aquele era o fim.

Abriu os olhos e enquanto sentia a água do chuveiro molhando seu rosto, sabia que ela também lavava as lágrimas que teimavam em escorrer. Estava convicto de sua decisão, essa constatação inclusive lhe trazia certo alívio, mas ainda sim, não era fácil. Realmente teve sua cota de felicidade com Shura, tinha certeza disso, todavia, via claramente que já não existia um futuro naquela relação.

Terminou o banho, pegou a roupa que deixou dobrada em cima do vaso, colocou em um saco plástico e arrumou em um canto da mala. Vestiu-se e caminhou até a cozinha, deixando suas coisas no quarto.

Colocou a chaleira no fogo e assim que a água ferveu depositou o infusor com as ervas prontas para o chá. Serviu-se e sentou em um dos bancos que margeavam a bancada da cozinha. Não tinha mais nada que pudesse fazer além de aguardar a chegada de Shura. Não importava o horário e muito menos o estado de espírito no qual ele se encontraria, dessa vez era definitivo. Precisavam conversar, resolver suas questões. Mais um ciclo precisava ser fechado para outro começar.

***

No geral demorava um pouco mais de uma hora no deslocamento do trabalho para casa, mas naquele dia o universo parecia ter conspirado a seu favor e em quarenta minutos já estava na varanda de casa. Assim que abriu a porta notou as luzes acesas e com isso registrou a presença do esposo.

Respirou fundo tirando os sapatos e deixando-os ao lado da porta, colocou a mochila em cima de um dos sofás da sala e seguiu em direção a cozinha, onde sabia que encontraria o Rubio.

Ao chegar ao cômodo, Shaka jazia sentado em um dos bancos altos que margeavam a bancada da cozinha. Os longos fios loiros presos em um rabo de cavalo alto e as elegantes roupas de linho que ele costumava usar. Suspirou, buscando a força no sorriso luminoso que tinha visto no rosto de Ângelo quando o ouviu dizer que: Não o deixaria esperando mais tempo.

— Boa noite Rubio. — Cumprimentou aproximando-se de Shaka. Tencionou dar um beijo no topo da cabeça do esposo, mas deteve-se. Por algum motivo aquele movimento não lhe parecia mais correto.

— Boa noite… — Shaka apertou levemente os olhos mediante a atitude de Shura. Mas manteve-se em silêncio. Não estava em condições de exigir manifestações de afeto, já que planejava informar aquele homem que já não o amava mais. — Aceita um pouco de chá?

— Não, obrigado. Vou pegar água mesmo. — Caminhou até o bebedouro da cozinha enchendo um copo e sentando-se ao lado de Shaka.

O loiro assistiu aos movimentos de Shura com nítido interesse, como se memorizasse cada um deles. Em contrapartida, Shura apresentava um semblante mais fechado do que seu habitual e não se furtou de analisar o rosto de Shaka milimetricamente, como se tentasse captar a menor das expressões. Nenhum dos dois disse nada por um tempo que pareceu interminável. O silêncio, algo que nunca os incomodou, pairou no ar de uma forma estranha, atípica, mas ao mesmo tempo trazendo à tona aquilo que suspeitavam.

Shaka bebeu o último gole do chá e Shura de sua água, sorriram discretamente e suspiraram ao mesmo tempo.

O último suspiro antes do mergulho.

Chapter 60: Você chora por um final feliz

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A sensação de que algo estava se orquestrando entre eles era palpável, todavia, não sabiam muito bem quem daria o primeiro passo. Sendo assim, depois de abrir e fechar a boca umas duas vezes Shura foi o primeiro a falar.

— Shaka… — Suspirou. — Realmente não sei a melhor maneira de iniciar essa conversa.

— No geral, eu diria que do começo, mas esse não me parece o melhor momento para que eu comece a empreender uma aura piadista. — Colocou a xícara sobre a bancada. — De todo modo, parece que no meio das nossas desventuras, ambos decidimos ter uma conversa no mesmo dia. Sem combinar, sem programar…

— Talvez ainda exista um pouco da nossa conexão. — Shura falou dando um sorriso triste.

Percebeu que aparentemente não estava sozinho, ao menos não naquele momento, não na constatação de que algo estava errado entre eles, mas sabia que ficaria no instante em que contasse ao Rubio que além de estar apaixonado por outro homem, andava dormindo com ele por pelo menos três meses. Sinceramente, preferia omitir essa parte, mas estava cansado de mentir, enganar, sempre era tempo para reparar seus erros, ou ao menos mitigar o que já havia feito.

— Ela ainda existe em muitos aspectos Shura. Acho que provamos isso no casamento do Aiolos e depois dele. — O Espanhol balançou a cabeça de forma afirmativa e como se tomasse fôlego continuou.

— Você... Foi feliz? — Shura perguntou com a voz entrecortada.

— Não acredito em ser feliz, afinal felicidade é algo variável. Oscila de acordo com a ocasião, o tempo… Enfim, sazonal, mas sem querer ser um pseudo filósofo chato, sim eu tive uma grande cota de felicidade com você Shura. Quanto a isso não existe dúvida. Mas, tenho a sensação que em algum momento nos perdemos.

Shaka analisou o rosto do ainda esposo e o que pôde ler ali o deixou apreensivo. Tinha ciência que a situação deles não era das melhores, ambos inconscientemente, acabaram movimentando-se de maneira a criar um distanciamento entre eles.

Mesmo que Shura continuasse sendo compreensivo e atencioso, sentia um quê de obrigação em suas atitudes. E de sua parte, começou a questionar todo pequeno sinal dissonante que conseguia captar nas atitudes do Espanhol.

— Sim… E acredito que eu fui o culpado por isso. Rubio… Shaka… — Começou a estalar os dedos. — Realmente não existe uma maneira fácil ou branda de dizer isso...

— Shura… Não acho que devemos procurar culpados. — Shaka o interrompeu. — Nada tão cristão. Apenas vamos...

— Eu cometi um erro. — Suspirou fechando brevemente os olhos.

— E quem não comete? — Shaka perguntou disfarçando a insegurança.

Por algum motivo as atitudes de Shura lhe causavam estranheza. Estava claro que pretendiam terminar aquele relacionamento. Sentia-se desconfortável por ter compreendido tarde demais que também gostava de Camus. Inclusive, cogitou manter-se afastado do Rbuivo após o término para que sua mente não o julgasse tão seriamente. Todavia, alguma coisa parecia incomodar o Espanhol. Será? — Shaka pensou arregalando os olhos. — Será que ele percebeu? — Engoliu em seco.

— Em certa medida você tem razão… — Shura murmurou para si mesmo retomando o tom mais alto em seguida. — Só que isso não muda o fato de que eu enganei nós dois. Eu jamais deveria ter te chamado pra morar comigo…

O pesar na voz de Shura era tanto que o loiro sentia que poderia capturar o sentimento caso estendesse as mãos em sua direção e mesmo assim, por algum motivo que não sabia precisar, tinha a clara impressão que jamais sentiria vontade de tocar aquele homem.

— Arrependido da impulsividade? — Empinou o nariz assim que pronunciou a frase. Mesmo que concordasse com aquela afirmação, a angústia que notava na voz de Shura o afetava de sobremaneira.

— Não por isso. — Passou as mãos nervosamente pelos fios escuros — Não me arrependeria se a decisão tivesse sido tomada pelos motivos certos. Eu queria a sua companhia para me ajudar a manter minhas certezas, mesmo que no fundo eu soubesse que já estava tudo perdido. — Suspirou em seguida olhando aflito para Shaka.

— Shura, me considero um homem muito inteligente, como você bem sabe, sendo assim, interpretação de texto é algo no qual sou bom, mas estou com certa dificuldade de compreender todas as entrelinhas do seu discurso, mesmo que parte dele pareça com algo que eu já estava esperando. Acredito que ambos concordamos que algo se perdeu em nossa relação e que o ideal seria… Terminarmos. Mas… Parece que você tem algo a mais para dizer e… — Franziu a testa ao perceber que estava perdido nas próprias palavras. — O que afinal de contas você quer me dizer? Seja direto.

Por mais que mantivesse o rosto calmo e a voz serena de sempre, Shura sabia que Shaka estava abalado. Era bom em ler os sinais que vinham daquele homem. Apertou a junção entre os olhos em claro sinal de cansaço, encarou o par de olhos ciano que tanto o encantaram em momento anterior, e que ainda lhe causavam admiração, nada mudava o fato daquele homem ser irritantemente bonito. E antes que ele dissesse algo, formulou a frase que mesclava culpa e alívio.

— Eu traí você.

Shaka franziu o cenho inconscientemente chegando para a frente no banco, como se a proximidade o ajudasse a ouvir melhor o que o Espanhol acabara de dizer. Encarou-o por alguns minutos.

— Você me traiu? — Questionou com nítida incredulidade. — Shura…

— Eu sinto muito Shaka, mas… Eu não deveria ter te chamado pra viver comigo enquanto estava confuso por causa de outra pessoa. Acabei traindo você… Me traindo… Ignorando todo o senso de lealdade e honra que sempre defendi e dos quais já havia falado diversas vezes com você… Mas… Aconteceu. Não foi planejado e… Também não fiz muito esforço para impedir.

Shaka retomou a sua posição, ereto, o rosto impassível, o olhar julgador tentando desvendar o que se passava na mente de Shura e acima de tudo assimilar o que estava ouvindo. Como bem havia dito, ele era um homem inteligente e sempre achou um tanto peculiar os olhares do Espanhol enquanto mirava o celular. No geral, eles variavam entre o deleite profundo e a consternação. Sempre sendo acompanhados de um milimétrico sorriso. Nunca o questionou sobre aquilo, pois Shura não costumava se intrometer em suas muitas vezes intermináveis conversas com Camus pelo aplicativo de mensagem. Mesmo assim, sabia que algo dentro de si já havia soado um alarme há algum tempo, mas… Nunca acreditou que aquilo seria possível.

Umas das coisas sobre a qual aquele homem sempre se gabava era de seu senso de lealdade, dever e amizade. E agora isso.

Uma vontade absurda de gargalhar o acometeu, contudo não se deixou levar, eram um magnífico par de mentirosos. Aparentemente tinha mesmo escolhido o parceiro perfeito, não eram iguais apenas na personalidade fechada, mas também na teia de mentiras que eram capazes de construir.

Contemplaram-se por minutos, que pareceram desdobrar-se em horas.

— Você está me traindo há quanto tempo, Shura? Melhor… Você transou com esse cara? — Shaka questionou levantando do banco e pegando o restante do chá que havia sobrado, despejando em sua xícara.

— Isso é realmente necessário? — Respondeu, contendo o nervosismo na voz.

— Na minha opinião… — Sorriu enviesado. — Nada disso era necessário. Devia ter sido pudico antes de me trair. Agora quero saber a verdade.

— Aproximadamente três meses… E sim, eu fui pra cama com ele. — Passou a mão pela nuca.

— Depois que falou três meses, a segunda questão ficou bem óbvia. — Sentou novamente no banco. — Então começou antes de virmos morar juntos. — Cruzou as pernas fitando o Espanhol.

— Sim… Bem antes. — Shura sustentava o olhar de Shaka.

— Quem é a pessoa? — Bebeu o chá.

— Um colega de trabalho… — A voz saiu em um fio.

— E exatamente o que você espera de mim? — Sorveu o último gole do chá antes de continuar… — Qual foi o momento em que eu te negligenciei o suficiente para que ao invés de conversar comigo você tenha preferido foder com outro cara?

— Momento algum Shaka… — Suspirou. — Eu tinha sim minhas dúvidas, inseguranças, nunca engoli muito bem essa sua amizade com Camus. — Fez um gesto com as mãos pedindo para Shaka esperar. — Mas nada disso justifica, eu sei! A única coisa que posso fazer é pedir desculpas a você por ter te chamado para viver comigo e tentar desculpar a mim mesmo por ter sido desleal com as minhas convicções.

— Você não acha que isso aumenta o quão cretino você é? — Ajeitou a posição da xícara sobre a bancada enquanto sustentava o olhar.

— Acho que seria mais cretino ainda se somasse mais uma mentira as que venho contando até agora.

O tom de voz de Shura deixava claro que ele não tinha nada mais a dizer, e Shaka finalmente sentia o peso daquela informação. Um misto de decepção, tristeza e entendimento o acometia. Sim, entendimento. Não estava tão limpo naquela história quando parecia. Também havia traído, lógico que em escala menor. Dada a proporção, poderia até mesmo se dar ao luxo de se sentir isento de culpa. Contudo, não era exatamente isso que lhe importava naquele momento.

Um sentimento crescente de raiva passou a dominá-lo.

Shura conseguiu perceber o cair de ombros e a quebra da postura que evidenciava uma aura quase divina.

Sentiu um aperto no peito, finalmente era acometido pelas reais consequências de suas atitudes. Não conseguia deixar de pensar há quanto tempo já deveria ter iniciado aquela conversa, mas ao ver o olhar do loiro, entendia os motivos pelos quais havia adiado aquela atitude. E no mesmo instante, a imagem do sorriso do Italiano e do toque carinhoso em suas mãos retornaram a sua mente e percebeu que enfim, estava tomando a atitude correta. Ressentia-se pelo fato de magoar Shaka no processo, mas naquele momento, só conseguia se preocupar com o brilho avermelhado dos olhos castanhos e com as promessas que havia feito ao seu Cabrón.

— Shaka, você é incrível, e sabe disso, não precisa dos meus elogios. Só aconteceu… E eu não tenho nenhuma justificativa real para te dar. Não contei antes porque queria ficar contigo, aos poucos fui percebendo que bom… Não era apenas sexo e fui me deixando ficar… Levar. Não queria trair ninguém… E tentava compensar…

— E você acha que existe compensação para isso? Acha de verdade? — Questionou rispidamente levantando do banco e aproximando-se de Shura.

— Não… Não existe. — Acompanhou a aproximação, a raiva latente. — E eu realmente não sei o que te dizer… Só não queria que me odiasse.

— Não espere que eu lhe preste homenagens. — Shaka deu um sorriso de escárnio parando em frente a Shura e levantando uma das mãos.

Em um reflexo Shura fechou os olhos aguardando o que viria a seguir. Tinha certeza que o destino da mão erguida era seu rosto e sinceramente não fazia nenhuma questão de se esquivar. Aguardou pacientemente mas o golpe não veio. Abriu os olhos e encontrou Shaka ainda de pé à sua frente, os braços ao lado do corpo. O rosto com a aparência cansada, mas que trazia um certo ar de alívio. Suspirou, recebendo um sorriso triste e um olhar pétreo em troca.

— Minha vontade era deixar uma marca bem definida nesse seu rostinho bonito, Shura. — Shaka falou de forma ríspida. — Um soco também seria ótimo.

— É justo! Faça como achar melhor.

— Não vale a pena… Apenas não vale. Achei que você me conhecesse o suficiente para saber que eu seria capaz de entender sua paixão por outra pessoa. Esse tipo de coisa acontece… Algumas vezes apenas não temos controle. — Shaka falou afastando-se ligeiramente. — Só não consigo entender sua deslealdade. Três meses, Shura! — Exclamou irritado.

— E você teria entendido tranquilamente se eu tivesse contado antes? — O Espanhol perguntou depois de passar a mão pelo cabelo em um gesto nervoso.

— Tranquilidade não é a melhor palavra. Mas, não sou imaturo, compreendo que as pessoas podem se apaixonar, mesmo vivendo bem com outra pessoa, amando… Pode acontecer. Ninguém está imune.

— Alguma coisa me diz que não estou sozinho nessa questão. — Shura falou com tranquilidade. — Certamente eu teria tirado um peso de ambos se tivesse iniciado essa conversa antes. Não é?

— Sim, teria. — Shaka levantou. — Temos um considerável tempo perdido para recuperar. Vou buscar minhas coisas.

— Não precisa fazer isso hoje. — Levantou do banco seguindo Shaka.

— Já está feito. — Apontou para as malas. — Eu sabia que não estávamos bem, Shura. Só não sabia que estava sendo brindado com um belo par de chifres.

— Espero que algum dia você possa deixar de me odiar.

— Não te odeio. — Sorriu triste. — Mas vou ficar muito aliviado em não ter mais que ver a sua cara. Depois te mando mensagem para combinarmos a minha mudança. Ficaria muito agradado se você não estivesse em casa no dia. — Falou de forma prática olhando a tela do celular.

— Assim será. Posso te levar até o seu apartamento, será mais rápido que esperar um carro de aplicativo.

— Não vejo motivo pra isso. — Olhou para Shura — Não somos um casal e não somos amigos. Além disso, no momento, eu desejo distância de você. Apenas isso. — Olhou o celular e viu que o carro de aplicativo que havia pedido se aproximava.

— Adeus, Shura. Não te desejo mal… Só não consigo mais olhar pra você.

— Até algum dia, Shaka… Espero que em algum momento minha figura não lhe cause mais ojeriza. — Tocou levemente no ombro de Shaka. — Seja feliz! Ou pelo menos tenha mais alguma cota de felicidade real.

O loiro o olhou seriamente, mirando a mão em seu ombro, deu um longo suspiro, balançou a cabeça em uma afirmativa, abriu a porta da casa e saiu fechando-a com um baque.

Por mais que estivesse decepcionado, não podia deixar de sentir alívio e acima de tudo um crescente gosto de liberdade. Foi sincero ao dizer que não odiava Shura, não podia odiá-lo. Não se via indo para a cama com Camus por três meses, enquanto mantinha um relacionamento com outra pessoa. Ao menos nesse ponto era diferente do Espanhol, mas sequer poderia dizer que não se viu na cama do ruivo durante esse tempo em que esteve pensando sobre suas questões. Trocaram alguns beijos, dois para ser mais exato, e sabia que existia sim a possibilidade de cair nos braços dele, contudo, caso tivesse acontecido, não teria procrastinado tanto a decisão de dar fim ao casamento.

Não era hipócrita em dizer que não tinha seu peso de responsabilidade e atitudes contraditórias em toda aquela questão, mas sabia que jamais teria empurrado por tanto tempo a situação se já estivesse frequentando a cama de outra pessoa. Pensando bem, a hipocrisia permeava sim suas atitudes, assim como a do ex. Eram mesmo dois espécimes semelhantes, mas agora, não estariam mais juntos e isso não o incomodava.

De todo modo, nada mais importava. Shura não era mais parte de sua vida. Viu o carro de aplicativo estacionando, saiu da varanda caminhando em direção ao veículo. Deu uma última olhada na casa antes de entrar no carro. Respirou fundo.

Nem tudo foi ruim, nem tudo foi drama e tristeza. Existiu carinho, cumplicidade, amor.

O fim não foi dos melhores, mas a jornada até ali teve seu saldo positivo.

Não era a hora de dizer isso a Shura, quem sabe algum dia quando toda a raiva e decepção passasse. Quando pudessem realmente ser sinceros e aquela sombra sumisse.

Quem sabe um dia…

Por hora, estava voltando para seu apartamento e pensando em sua mudança. Precisava levar suas plantas e finalmente soltou uma gargalhada.

O motorista do carro o olhou pelo retrovisor.

— Algum problema, Senhor?

— Nenhum… Agora não tenho nenhum. Apenas pensei no trabalho que vai ser levar minhas plantas de volta para o meu apartamento. — Riu mais ainda mediante o rosto confuso do motorista.

Ele ficaria bem, o ciclo estava encerrado. Poderia seguir sua vida. Um sorriso sacana ornou seu rosto.

Definitivamente tinha muito tempo perdido para compensar.

***

A semana depois da festa foi bastante pesada no trabalho e Hyoga admitiu a si mesmo que teria também bastante trabalho para se adaptar a um conjunto tão barulhento e animado de pessoas. Para alguém introspectivo como ele, um evento festivo como o casamento cobrava sua conta por dias, até que estivesse completamente restabelecido.

Milo era solar, sabia desde o primeiro momento disso e se deu conta de que ele era cercado por pessoas que gostavam da sua companhia e desejavam sua presença não era nenhuma surpresa.

Entretanto, como ele próprio sempre esteve em um círculo diminuto de pessoas, sentia-se de certa forma esgotado.

Foi bom ter ido a festa, mas perdeu a conta de quantas pessoas conheceu, em algum momento teve receio de confundir os primos, os tios e tias; trocar nomes… Milo esteve ao seu lado por praticamente todo o tempo. Dançaram, se olharam com intensidade e de forma ainda tímida fizeram alguns planos.

Em retrospectiva este havia sido um ano bastante atípico em sua vida e ainda faltava um tempo para terminar. Finalizou seu turno e preparou as coisas para deixar o trabalho.

Dormiria na casa de Milo naquela noite, não tinham se visto durante a semana e finalmente poderia ficar um tempo a sós com ele.

Saiu do edifício e deu de cara com o deslumbrante sorriso que sempre lhe roubava o fôlego.

Se abraçaram com afeto e depois de um rápido beijo nos lábios entraram no carro.

Durante o trajeto, em todas as oportunidades Milo tocava suas mãos, às vezes fazendo com que ele acompanhasse o movimento de troca de marchas do carro.

Hyoga decididamente gostava de ver aquele homem dirigindo. Ainda que o relacionamento deles fosse relativamente recente, algo em seu íntimo constantemente lhe apontava o quanto vinham criando e tecendo juntos uma rede de pequenos detalhes e momentos. Estava apaixonado. Era muito bom. Nada da angústia que conhecia antes, nada da pressão de seus relacionamentos anteriores. Não se sentia cobrado a desempenhar nenhum papel e tão pouco notava em Milo alguma expectativa nublada ou difusa. Eram sempre muito honestos e isso lhe dava uma paz interior gigantesca.

Na casa do namorado logo estavam aos beijos na cama. Ambos com saudade. Milo foi cuidadoso e carinhoso, de alguma forma, a dinâmica entre eles era sempre muito fluida. Hyoga, entretanto, descobriu que preferia receber Milo em seu corpo e como para o parceiro de todo jeito era maravilhoso, na maior parte das vezes era assim que acabavam.

Depois de descansarem um pouco, Milo teve a ideia de esvaziar uma ou duas gavetas em seu armário para que Hyoga pudesse guardar ali algumas coisas, ambos vestindo apenas samba canção passaram a executar a tarefa. Era sempre divertido ouvir as histórias que acompanhavam todos os gestos do namorado.

— Nossa, eu nem me lembrava mais dessa calça… Ganhei de presente de aniversário de uma das tias há uns dois anos e ficou apertada, acabei não trocando, nem me lembro o motivo. Quer provar? Acho que vai te vestir bem… E você fica lindo de azul — Piscou para o namorado — Eu sou um tanto bagunceiro e faz muito tempo que não mexo nessas gavetas.

Hyoga sorriu observando a peça, uma calça jeans com lavagem azul escura e bastante elastano. Uma peça bonita, com certeza usaria. A dobrou e deixou ao seu lado. Estavam separando algumas roupas para doação e outros papéis para que Milo organizasse posteriormente. O dono da casa puxou um moletom dobrado e do bolso dele caíram alguns papéis que Hyoga notou serem fotografias do tipo polaroid.

Milo ficou imediatamente pálido.

Eram fotos suas com Camus. Os dois permaneceram em silêncio por alguns segundos.

— Ãhnn… Não uso esse moletom há tanto tempo, não me lembrava dessas fotos aí mais…

— Eu posso ver? — Hyoga perguntou sem desviar os olhos dele.

— Pode, se quiser… Tenha em mente que não significam mais nada. — Milo disse, sentindo um receio irracional de que Hyoga pudesse se chatear. O mais novo se inclinou e depositou um beijo em seus lábios.

— Eu sei Milo, mas faz parte da sua história, e eu fico curioso para ver fotos de você mais novo… Só que se preferir que eu não veja, respeitarei.

— Tudo bem, por mim. Você sabe, eu tive um término um tanto conturbado no último relacionamento. E acho que em algum momento devo ter ficado ranhetando com estas fotos. Não me lembro mesmo da situação para guardar isso aqui… Entretanto, lembro do momento das fotos, veja — Entregou as quatro fotografias para Hyoga que teve que sufocar um som surpreso quando reconheceu um personagem presente nelas.

— Eu ainda tenho essa câmera, na realidade quebrou há algum tempo e não fui atrás de arrumar, a gente acaba se acostumando em fazer tudo pelo celular. Talvez até resolva isso, gostaria de colocar algumas fotos nossas pela casa, se você não se importar.

— Milo, eu adoraria! — Respondeu sentindo as faces esquentarem — Você sempre foi bonito. Impressionante.

Milo riu puxando o corpo de Hyoga para perto do seu, abraçando-o da forma que sempre desarma o estudante. Beijou-lhe os cabelos.

— Quer saber das fotos? Eu te conto.

— Quero sim, reconheci Aiolia nesta aqui… — Disse finalmente lembrando que já tinha o visto antes de conhecer Milo, na companhia de Ikki. — Ele é arquiteto, né?

— Sim, e trabalha com aquele seu ex... — Fez um bico que recebeu uma leve mordida do mais novo. Voltou a sorrir — Aiolia neste dia estava muito contente. Ele é bastante dedicado ao trabalho.

Hyoga observou a imagem. Estavam em uma lanchonete com decoração retrô. Aiolia e Milo posam cada um de um lado da mesa como se brindassem copos de milk shake.

As outras fotografias mostravam Milo e o ruivo, sentados lado a lado e de mãos dadas sobre a mesa. Foi inevitável sentir uma pontada em seu coração. Havia uma somente de Aiolia, falando ao celular e rindo e uma do ruivo, um olhar intenso, destes que devassam a alma diretamente lançado para a câmera. Lindo, não tinha outra palavra. Jamais esqueceria daquele rosto.

Era o homem que assediou Kanon na noite em que se conheceram. Então…

Percebeu o olhar de Milo sobre si e notou que havia se perdido em seus pensamentos.

— Aiolia estava comemorando uma promoção. Foi divertido até, a gente frequenta essa lanchonete desde moleques. Neste dia, eu e o Camus fomos embora meio rápido, antes dos primos chegarem. Ele estava cansado e o pessoal realmente demorou horas para chegar… Aiolos chegou um pouco antes com Seika e fizeram companhia para Aiolia, sei que depois Kardia e Saga também estiveram por lá. — Observou atentamente o rosto de Hyoga e respirou fundo — Você ficou chateado? Isso é passado, não significa mais nada. Quer que eu jogue fora as fotos?

— Não, Milo. Sério, eu já disse… Faz parte de sua história, eu não tenho que decidir nada sobre isso. Mas, confesso que esse ruivo é mesmo muito bonito…

— Para mim você é muito mais Hyoga! Eu sou louco por você. — Puxou o menor para seu colo e Hyoga sentiu a enorme ereção dele contra seu traseiro, corou. — E não só fisicamente, ainda que eu adore seu corpo todo. Eu gosto de tudo em você… Amo, tudo em você Hyoga. — Beijou o pescoço e a face de Hyoga lhe tirando o juízo. As fotos caíram no chão. — Eu tenho que me segurar para não te sufocar. Queria você ao meu lado o tempo todo. O que posso oferecer agora, sem parecer um doido completo são duas gavetas e as chaves do apartamento. Quero que você tenha passe livre na minha casa, eu adoro ter você aqui. Ver sua escova de dentes no banheiro, sua mochila na entrada… Entende? Eu quero dividir tudo da minha vida com você. Só com você, meu amor.

O coração de Hyoga batia disparado. Buscou os lábios do namorado pois não se sentia em condições de dizer mais nada. Tudo que Milo disse ele compartilhava. Estava feliz em saber que Isaak estava bem encaminhado, naquele momento, entretanto, tudo que se destacava em sua existência era permeado pela presença quente e brilhante daquele homem.

— Você não me sufoca… Faz amor comigo, Milo? Eu te amo.

O sorriso de Milo tornou-se maior e mais brilhante. Ergueu-se com desenvoltura surpreendente e carregou o corpo do amado para a cama. Conheciam já os caminhos, a pressão, o calor e cada ponto sensível. Era mais do que sorte terem se encontrado. Era mais do que destino. Eles mereciam finalmente um porto seguro, um coração disposto. Terreno fértil para o amor e para a edificação de uma relação adulta e saudável.

Todo o mundo foi esquecido. Eles estavam cada vez mais próximos e integrados. Milo não tinha dúvidas. Desta vez, sentia, era pra sempre.

— Eu te amo… — Sussurrava o tempo todo distribuindo beijos no rosto de Hyoga enquanto mais uma vez desfrutavam do sublime encontro de seus corpos, corações e almas.

Chapter 61: Uma virada do destino

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Acordou ao sentir a claridade adentrar o quarto através da cortina que havia deixado aberta. O misto de exaustão e tranquilidade que sentiu ao entrar em seu apartamento o acometeu de tal forma que apenas abriu as janelas do ambiente para arejá-lo, deixou a mala e as coisas que trouxe da casa de Shura em um canto da sala e deitou-se na cama fitando com inédita curiosidade o teto branco de seu quarto.

Em dado momento pegou-se pensando sobre sua relação com o ex marido e finalmente concluiu que não existia nenhum arrependimento de sua parte.

Foi uma boa relação, até o momento em que ambos se mostraram dispostos. Não culpava sua amizade, e até mesmo suas atitudes consideradas pouco usuais como estopim da traição. Por mais que enxergasse alguns de seus equívocos, ainda sim, não se julgava o principal responsável.

Na verdade, não lhe cabia buscar culpados. Ambos tinham sua cota de responsabilidade. Quem sabe o jeito fechado de Shura fez com que ele deixasse de externalizar aquilo que lhe incomodava, assim como sabia que havia reprimido por anos o que sentia por Camus e fazia vista grossa para algumas atitudes inoportunas do ruivo.

Uma coisa era certa e sobre isso debruçou-se antes do fim da relação:

Shura nunca foi um estepe.

Aquela relação não era de forma alguma, uma maneira que havia criado para mimetizar a que gostaria de construir com Gaetan. Quanto a isso não tinha dúvida. Apaixonou-se de verdade por aquele homem, e acreditou que poderiam ser felizes juntos. O que de fato ocorreu por algum tempo. Mas… Em algum momento os sentimentos que escondia a sete chave decidiram vir à tona.

Foi uma grande confluência de fatores seu casamento coincidir com a jornada de Camus, e com a tal nova paixão de Shura. Lembrava de ter ouvido certa vez, que quando uma traição ocorre é porque um dos lados deixou um espaço para que o coração do companheiro fosse preenchido por outro. Não acreditava nisso. Todavia, essa era a segunda vez que pensava sobre essa questão. Se assim fosse, teria que aceitar que havia deixado uma brecha para que o coração do ex marido fosse preenchido, e ao mesmo tempo, teria que aceitar que no seu sempre existiu um espaço dedicado a Camus. Um que ninguém poderia jamais ocupar e quanto isso, Shura jamais teria culpa.

Ele sempre foi o mais disposto.

E hoje sabia, sem nenhum pingo de hesitação, que a mudança para a casa do Espanhol foi uma forma de continuar prendendo-se às suas necessidades de controle. E assim como o próprio Shura havia admitido, da parte dele foi uma tentativa deturpada de compensar os erros que estava cometendo, além de tentar se agarrar a ideia de lealdade que tanto exaltava.

Não eram tão diferentes no final das contas.

Assim como confessou na conversa que tiveram, sabia que alguma coisa estava errada entre eles, e mesmo assim insistiam em manter aquela relação. Sentia-se desconfortável em certa medida pelos beijos clandestinos, mas ao mesmo tempo não se furtava de se entregar aos prazeres que conseguia extrair do corpo do ex, e essa constatação o fazia entender parte do que o “antigo” Camus dizia.

Era um hipócrita, sempre foi.

— Dizem que admitir é o primeiro passo. — Murmurou minutos antes de se deixar levar pelo cansaço físico e mental.

E assim que abriu os olhos, franzindo o cenho devido a claridade, a enxurrada de pensamentos que o assaltaram antes do sono voltaram com todo o vigor. Suspirou colocando o braço na frente dos olhos e virando de barriga pra cima, mais uma vez planejava mirar o teto. Não precisava buscar mais nenhuma resposta, estava claro o que precisava fazer, mas parte da coragem que o instigou na noite passada havia se esvaído. O que não indicava que de alguma forma intencionasse prolongar ainda mais suas decisões.

Apenas estava cansado.

Em um impulso sentou na cama, olhou o quarto agora banhado pelo sol e sorriu. A sensação de estar em casa era boa.

Alcançou o celular na mesa de cabeceira e arregalou os olhos ao notar que passava das dez horas da manhã. Seu expediente começava às oito. Riu alto ao ver as inúmeras ligações perdidas do RH, e as mensagens. Em todos os anos naquela empresa jamais havia se atrasado. Era compreensível a preocupação de todos. O riso morreu ao ver que entre as ligações da empresa tinham algumas de Camus. Mordeu o canto do lábio enquanto abria o aplicativo de mensagem e constava que ele também o procurava. Certamente preocupado. Sorriu. Precisava organizar sua vida primeiro. Agilizar sua mudança, colocar tudo nos eixos, depois poderia se acertar com Gaetan. Ele precisaria esperar apenas um pouco mais, primeiro tinha que resolver as questões práticas.

— Mesmo assim… — Sussurrou apertando o botão de discagem rápida do telefone.

— Shaka, o que aconteceu com você?

— Acho que perdi a hora. — Sorriu ao notar o tom de preocupação na voz. — Não tenho o direito de me atrasar pelo menos uma vez? — O outro ficou em silêncio. — Quer dizer então, que não tenho esse direito Gaetan?

— Claro que tem. — Camus riu com alívio. — Só não é do seu feitio.

— Acho que você é a melhor pessoa para enumerar as coisas fora do meu feitio que eu tenho feito ultimamente. — Provocou.

— Bom… Isso é verdade. — Falou no mesmo tom, trocando por um mais sério. — Você está bem?

— Estou sim. Muito bem. Camus… Shura e eu terminamos.

Shaka ouviu o som da respiração de Camus do outro lado da linha e suspirou enquanto voltava a fitar o teto.

— Não quero falar sobre isso por telefone. Só achei que você não merecia meu silêncio… Não outra vez. Além disso… Precisamos conversar.

— Quando? — A ansiedade indisfarçada na voz.

— Em breve. Eu preciso organizar minha mudança, trazer minhas plantas...

Camus estourou em uma gargalhada e depois de alguns minutos Shaka o acompanhou parando de mirar o teto e levantando da cama.

— Você e essas plantas. Acho que são os únicos seres vivos por quem você tem algum amor. — Falou em tom de brincadeira.

— Você sabe muito bem que essa não é bem uma verdade… — Caminhou até a sala mexendo na mala que havia trazido. — Ao menos eu espero que saiba, senão será tudo em vão no final das contas.

Mesmo a distância Shaka notou a surpresa de Camus que depois de alguns segundos calado pigarreou voltando a falar.

— Você sempre me surpreende.

— Espero que de forma positiva. — Sorriu. — Preciso ligar para a Sirene. Ainda não justifiquei minha ausência, primeiro quis falar com você e te pedir apenas um pouco mais de tempo. Você sabe eu…

— Primeiro vai ver sua mudança, salvar suas plantas da ira do Espanhol, organizar sua casa e seus shampoos e depois se sobrar um tempinho roubar uns beijos do seu velho amigo aqui. — Debochou.

— Bom… De fato você me conhece. — Falou com simplicidade ignorando o tom debochado. — Só mais um pouco...

— Só mais um pouco… — Repetiu suspirando em seguida. — Tudo bem Shaka, eu espero. Até logo…

— Até logo, Gaetan e não se preocupe. Eu vou fazer valer a pena. — Desligou.

 

Quando desligou o telefone um sorriso luminoso ornava seu rosto. Sabia o que precisava fazer.

De forma prática ligou para a empresa informando que se ausentaria naquele dia, possuía um invejável banco de horas do qual nunca fez uso e pelo qual nunca recebeu os adicionais, sendo assim, não haveria nenhum problema em tirar aquele dia para resolver suas pendências. Escreveu um e-mail formal que enviou para o trabalho e em seguida passou a desfazer a mala que tinha levado consigo. Quando olhou novamente o relógio já passava do meio dia.

Entrou na internet buscando uma empresa para efetuar sua mudança. A busca foi mais complicada do que imaginava, primeiro porque precisava de uma empresa que trabalhasse com pequenas mudanças e segundo por ser um trabalho em cima da hora. Tentou de pronto a empresa que havia levado suas coisas para a casa do Espanhol, mas eles não possuíam horário para sábado.

Depois de algumas horas, finalmente conseguiu firmar um acordo com uma transportadora mediante o pagamento de uma polpuda taxa pela presteza do serviço.

— Vou lembrar de nunca mais me mudar para a casa de ninguém… — Falou consigo mesmo soltando um riso nasalado.

Com tudo acertado, assumiu novamente seu tom sério e redigiu uma mensagem para o ex-marido.

“Boa tarde, Shura. Pretendo fazer minha mudança amanhã logo pela manhã, mais precisamente às 9:00. Acredito que seja o melhor para ambos. Eu sei que a casa é sua, mas ficaria muito grato se pudesse fazer a minha mudança sem que precisemos nos esbarrar. Aguardo sua resposta.”

Releu a mensagem antes de enviar. Deixou o celular em cima do sofá planejando pedir algo para comer, mas o alerta de mensagem chamou sua atenção. Era a resposta de Shura.

Essa foi rápida. Pensou, desbloqueando o celular.

“Não me oponho ao horário muito menos com minha ausência. Assim será. A casa estará livre para que faça sua mudança… Vou deixar algo que lhe pertence em cima da bancada da cozinha, tenho certeza que dará o destino correto. Obrigado por todo esse tempo, Shaka. Valeu a pena.”

Shaka sorriu ao ler a mensagem.

Maldito Shura! Seria bom te odiar. Pensou com uma pitada de curiosidade sobre a tal coisa que ele deixaria na bancada. No fim, tinha mesmo valido a pena. E o tal colega de trabalho de seu ex era um cara de sorte.

Olhou a hora no celular e franziu o cenho, havia se perdido completamente no tempo. Poderia comer alguma coisa na rua, precisava sair urgentemente.

Não sabia se era consequência do horário no qual havia acordado ou se de alguma forma o tempo estava brincando com ele, mas quando se deu conta estava atrasado para seus próprios planos. Agora não adiantava se lamentar, fazia parte de sua tentativa de abrir mão do controle aprender a lidar com planos frustrados e já que era assim, decidiu comprar um belo pão doce na padaria que tinha na esquina de sua casa, e comê-lo dentro do metrô enquanto bebia o macchiato ultra adoçado que havia comprado na mesmo local.

No mundo ideal, teria conseguido terminar suas pendências com folga para encontrar Camus na porta da Sirene, levá-lo para um belo jantar e finalmente resolver as questões que ignoraram por anos.

Infelizmente a vida não era uma comédia romântica, mesmo que acreditasse estar muito perto de protagonizar uma.

No mundo real, estava com os dedos melados da cobertura do pão doce, o cabelo preso em um coque frouxo e equilibrava o copo na mão em um malabarismo notório dos usuários de transporte público.

Suspirou pesarosamente, saiu de casa com tanta pressa que sequer lembrou de colocar uma roupa que o tornasse mais atraente.

Bom… Ele já me viu de pijama, de samba canção e meias. Se ainda assim esse homem me quer, não vai ser essa roupa que vai me desabonar. Pensou tentando convencer a si mesmo de que aquele arroubo confuso e pouco planejado era o mais correto.

Desceu na estação mais próxima da casa do amigo e durante todo o caminho tentou elaborar seu discurso. Desistiu assim que chegou na portaria do prédio dele, em nenhuma das vezes em que conversaram, seguiu o roteiro que tinha preparado previamente.

O melhor seria se deixar levar. Aquela ideia o incomodava ligeiramente. Não era de seu feitio, mas como ele mesmo havia atentado mais cedo, nada daquilo era.

Falou brevemente com o porteiro que sem mais delongas permitiu sua passagem. A facilidade com a qual conseguiu entrar o deixou aliviado e alarmado ao mesmo tempo.

A segurança nesse prédio não era das melhores. Riu de si mesmo, parece que qualquer tipo de pensamento, por mais inútil que fosse, servia para deslocar o foco do nervosismo que sentia naquele momento, enquanto aguardava escorado na porta do apartamento de Camus.

Mesmo que não deixasse transparecer, sua mente estava a mil e por alguns segundos, os dedos que ainda estavam um pouco grudentos devido ao pão doce, começaram a incomodar de tal forma, que cogitou voltar para casa.

Covarde! Ouviu a voz de Camus retumbando em sua mente.

Não, não sou um maldito covarde. Foi o último pensamento que teve antes de olhar para o corredor e distinguir a figura de Camus vestindo suas usuais roupas pretas e portando um sorriso curioso que encobria o olhar quase faminto.

— Vejo que continua vivo. — Camus falou calmamente enquanto se aproximava. O olhar certamente não condizia com o tom de voz macio.

— Ou isso, ou sou um fantasma que veio te assombrar. — Shaka falou da forma mais séria que conseguiu, lembrando de quando foi ele a iniciar o diálogo que agora reproduziam. Sorriu mediante a inversão de papéis.

— Você já me assombra o suficiente em vida, Shaka. — Cortou o espaço entre eles ficando de frente para o outro farmacêutico que continuava escorado na porta. — Acho que agora eu te convido para entrar e peço para você colocar os sapatos no lugar apropriado. — Riu.

— Felizmente você não é como eu e vai continuar esse diálogo da forma que quiser.

— Ainda quero que entre… Não me importo com seus sapatos. — Mediu Shaka, o brilho intenso no olhar. — E muito menos com qualquer coisa que esteja usando.

— É muito melhor assim. — Sorriu. — Não vai abrir a porta?

— Pretende fugir dessa vez? — Questionou com a chave na porta.

— Não. — O encarou com seriedade. — Nunca mais. — Camus abriu a porta.

Shaka entrou e de imediato notou algumas mudanças no apartamento. As paredes continuavam no mesmo tom de branco que conhecia, mas notava algumas almofadas coloridas, de um tecido que lembrava muito a seda e que ornaram muito bem com uma manta de tecido liso em um tom de cinza chumbo. Além disso, viu algumas velas aromáticas e dois livros na mesa de centro, um deles era “Formas de voltar para casa” do Alejandro Zambra e o outro era “O olho mais azul” da Toni Morrison. Franziu levemente o cenho, empinando o nariz ao sentir um cheiro adocicado pelo apartamento e um toque de canela. Adorava canela! Parecia que uma recente fornada de biscoitos tinha sido feita naquela casa.

Tudo aquilo era muito diferente e ao mesmo tempo era familiar. Todos aqueles detalhes e sutilezas eram pequenas representações de Camus, aquele que conheceu na faculdade e sem dúvida alguma o que agora estava parado à sua frente aguardando que terminasse sua inspeção com um sorriso calma e caloroso.

— O cheiro desse apartamento está delicioso, Gaetan. — Começou a tirar os sapatos.

— Fiz uma fornada de biscoitos recentemente e por algum motivo o apartamento ficou com cheirinho de casa de vó. — Riu.

— Não… Está com cheiro de lar. — Sorriu. — Ainda tem algum biscoito? — Perguntou mordendo o lábio. — Você sabe que adoro doces.

— Claro. — Riu. — Aceita um suco?

— Suco? — Questionou surpreso.

— De uns tempos pra cá tenho preferido. Acho que acostumei depois do tempo que fiquei tomando os remédios para o ombro. Mas se você quiser vinho, minha adega continua cheia.

— Por hora fico satisfeito com um copo de água, mas antes de tudo preciso lavar as mãos. Posso? — Perguntou apontando para a pia da cozinha.

— Fique à vontade, Shaka. Temos algumas mudanças, mas você continua sabendo onde está tudo nesta casa. Seu espaço aqui não mudou.

Shaka lavou as mãos, sentindo o nervosismo voltar ao ouvir aquelas palavras. Enxugou as mãos no pano de prato, colocando-o de volta no lugar, bebeu um copo de água e sentou ao lado de Camus que o aguardava no sofá bebendo um copo de suco que julgando pela cor era de uva.

— Está mais confortável? — Camus perguntou olhando para as mãos de Shaka.

— Estou sim. Meus dedos estavam melados. — Deu de ombros. — Estava me deixando louco.

— O pior é que eu não duvido. — Um brilho enigmático perpassou o olhar de Camus.

— Não me olhe assim… Eu comi um pão doce. — Shaka falou recostando no sofá.

Camus riu também recostando e um silêncio pairou entre eles. Não era algo incômodo, muito pelo contrário, há algum tempo não se sentiam tão confortáveis na companhia um do outro. Contudo, havia uma certa ansiedade e uma urgência que precisava ser sanada.

— Você está bem? — Camus foi o primeiro a falar.

— Sim… Ele estava me traindo com um cara do trabalho há três meses. Não faça essa cara…

— Desculpe, Shaka. — Camus fechou a boca que havia aberto em sinal de surpresa. — Mas ao mesmo tempo que fico surpreso, também não me espanto. Sempre achei aquele cara muito condescendente.

— Pode ser. — Encarou Camus. — Acho que você só quer que eu diga que você tem razão.

— E não tenho? — Sorriu de canto.

— Não sei. — Revirou os olhos, enquanto arrumava o cabelo no coque. — Isso não importa, não mais…

— E o que importa?

— Nós dois… Quanto a isso você realmente estava certo. — Sentou de lado no sofá, fazendo com que Camus o encarasse. — Eu sei que passou um tempo, mas hoje cedo você disse que esperaria um pouco mais. Isso me faz crer que você ainda quer… — Respirou fundo. — Eu também quero, sempre quis. Dessa vez sem jogos, sem enrolações e sem amarras desnecessárias. Já passou dá hora de fazermos isso Gaetan. O que você acha?

— Acho que pelo tempo que estou te esperando você deveria fazer isso de uma forma mais romântica. — Falou de modo sarcástico. — E com um pouco mais de drama.

— Ah claro, vou trazer um buquê de flores, ajoelhar, declamar um poema, fazer juras de amor eterno e depois me debulhar em lágrimas. — Revirou os olhos. — É muito a minha cara fazer isso. — Empinou o nariz.

— Pois deveria… — Sorriu, dedicando o mesmo olhar faminto de quando entraram no apartamento.

— Eu faço então. — Aproximou-se de Camus. — É isso que você deseja?

— Não. — Falou enfático. — Eu desejo você. — Ajeitou-se no sofá tornando o espaço entre eles quase nulo. — E da última vez que eu soube você disse que faria valer a pena.

— E eu vou. — Colocou a mão no rosto de Camus. — Pelo tempo em que quiser ficar comigo vou fazer com que valha a pena e vou compensar todo o tempo que perdemos e o que te fiz sofrer enquanto me esperava.

— Quem disse que você não sabe ser romântico, hein senhor Parsons… — Deu um sorriso enviesado beijando a mão que estava em seu rosto.

— Achei que você havia dito que assim que eu resolvesse todas as minhas coisas poderia roubar uns beijos do meu velho amigo. Até agora não consegui nenhum beijo.

— É só isso que você quer roubar do seu velho amigo? — Debruçou-se sobre ele aproximando os rostos.

— Primeiro quero atualizar o título para novo namorado, mesmo que você continue sendo meu velho amigo e… — Roçou levemente os lábios. — Beijos certamente não são a única coisa que quero roubar de você. — Falou antes de puxar Camus e iniciar o tão desejado beijo, não podia negar que a fome que via nos olhos do outro, era o exato reflexo do que estava presente nos seus.

***

Kanon finalizou o e-mail e o releu, a luz da tela do computador se refletindo nas lentes de seus óculos de leitura. Satisfeito o enviou e reclinou-se na cadeira suspirando.

Estava finalmente enviando seu artigo para a apreciação do Orientador. Isso significava que teria ao menos uns dias de paz. E tudo que pensava era em ficar com Julian e quem sabe encontrar com os amigos.

O namorado já tinha avisado que estava sediando um evento no Bar e que por esses dias ficaria complicado se ausentar por muitas horas, então acabaram por decidir de se encontrarem todos lá, o que não seria nenhum sacrifício já que a cada dia tinha mais lembranças afetuosas anexadas àquele local.

Nas ocasiões em que esteve por lá obviamente viu Isaak, trocaram poucas palavras, mas percebeu algumas mudanças significativas no rapaz.

Era um tanto peculiar debruçar seu olhar em alguém por quem um dia já nutriu sentimentos fortes e conflitantes, quando estes todos se acalmaram, tornaram-se apenas uma lembrança positiva. Jamais duvidou de sua compatibilidade sexual com o garçom, mas agora, dividindo sua cama e seu coração com Julian sabia que sintonia aliada a sentimento era algo sem comparação. Os momentos divididos com outras pessoas pareciam lembranças embaçadas. Ter a chance de viver plenamente este relacionamento era algo que lhe fazia finalmente entender o que era felicidade.

Ele percebia que Isaak também estava encaminhado, provavelmente apaixonado, já que lampejos que havia captado nele agora pareciam longos raios brilhantes flutuando à volta de um outro garçom.

Era bom que assim fosse, não tinha nada contra Isaak, desejava seguir com sua vida e para si quanto mais pessoas felizes no mundo, melhor.

Retirou os óculos os deixando sobre a mesa e apertou a junção dos olhos.

Reavaliando os últimos tempos de sua vida, se deu conta de que praticamente todas as suas pendências estavam encaminhadas. Ouviu o miado doce de Deusa um segundo antes dela pousar em seu colo em um pulo preciso.

Estava contente também por Saga, pela sorte dele ter conhecido Afrodite e pela clara influência positiva que este estava agregando ao irmão mais velho. Pensou em Milo e em sua história de amor à primeira vista, tão descomplicada e bela. De alguma forma, o simples fato de que Isaak tinha colocado Hyoga em sua mesa naquela noite parecia agora um lance mágico. Especial. Se não tivesse conhecido o garçom caolho não teria arrastado Milo para o Imperador e não teriam cruzado o caminho de Hyoga…

Naquela mesma noite ele viu o ruivo pela primeira vez. A perspectiva de que tudo poderia ter descambado para confusão lhe atormentou por muito tempo. Felizmente não foi assim.

Lembrou-se de Camus, até por ele sentia empatia, tinha amadurecido algumas questões pessoais e mesmo não concordando com atitudes tomadas pelo ruivo, não o julgava mais de forma tão contundente. Sabia que a vida era tecida à muitas mãos e às vezes um nó vinha da ação de outra pessoa, consequências nem sempre claras ao primeiro olhar…

Todos podiam errar, mas a vontade de acertar tinha que ser levada em consideração.

Afagou o corpinho macio de sua gatinha e sentiu o coração encher-se de carinho. Talvez fosse chegada a hora de adotar um amiguinho ou amiguinha para fazer companhia a ela. A ideia o alegrou, conversaria com Julian sobre isso…

Seu telefone vibrou sobre a mesa e leu a mensagem com o sorriso se alargando. Era Milo, que teve a mesma ideia de marcar um encontro dos primos no Bar do Imperador.

Deusa respirava pausadamente dormindo despreocupada. Permaneceu parado alguns momentos para não incomodá-la. Ocorreu-lhe que de alguma forma estavam fechando um ciclo, com o casamento de Aiolos e tudo que aconteceu nos últimos tempos.

Decidido escreveu uma mensagem e enviou aos primos. Era tempo de celebrar.

***

Abriu os olhos com certa dificuldade depois de apertá-los por alguns instantes. A luz forte do flash de uma fotografia sendo tirada o incomodou.

— Não me diga que você tirou uma foto minha enquanto eu dormia… — Resmungou baixinho.

— Foi uma selfie — Kardia respondeu sorrindo enquanto se aconchegou mais ao lado de Dégel na cama. — Desculpe pelo flash. Meu irmão e os primos vão se encontrar e eu quis dar um bom motivo para a minha ausência. O melhor no caso…. — Buscou os lábios do Diretor e o beijou com vontade.

Dégel pensava em reclamar, entretanto não tinha energia para isso. Ainda se perguntava o que Kardia possivelmente havia encontrado em si para ser tão obstinado.

O Grego o perseguiu de forma não tão metafórica por semanas, e esta era a segunda vez que brilhava quente em sua cama. Neste momento seria impossível recapitular os eventos. Kardia já estava sobre seu corpo se encaixando enquanto mordiscava seu pescoço. O pensamento lógico o abandonava sempre que aquele homem passionalmente o envolvia.

Deixaram juntos a festa de Aiolos, dias antes, trocaram beijos e conversaram. Dégel pediu alguns dias para pensar.

Hoje, quando chegou em sua casa, Kardia aguardava na entrada. Nem queria esmiuçar como ele tinha conseguido seu endereço, apenas aceitou que também tinha sentido falta do loiro e que talvez devesse apenas deixar que o outro homem guiasse o ritmo.

Kardia dizia que o amava. Ainda não sabia se acreditava nisso. Todavia não podia negar que estava envolvido.

— Deixe-me ver a foto… — Recebeu o telefone e torceu o nariz. — Fiquei péssimo, olha o tamanho do meu nariz!

— Você é perfeito. Mas, podemos tirar outra, se preferir…

— Prefiro não tirar foto. — Respondeu passando os dedos sobre os cabelos.

— Essa não é uma opção… — Disse Kardia deixando o aparelho de lado e começando a se mexer.

Dégel mordeu os próprios lábios gemendo. O maldito grego o dominava, apenas por que no fundo ele permitia. Puxou o corpo do outro e inverteu as posições.

— Você já enviou a primeira foto, admita.

— Sim… Mas, fica tranquilo, não foi no grupo da família!

Dégel ameaçou ficar bravo, sentindo uma onda de rubor tomar seu corpo. Perdeu-se no sorriso safado e nos olhos que não se desviavam dos seus.

— Pro inferno ao seu lado. Kardia, você venceu! Quer namorar comigo?

— É um bom começo… Aceito por alguns meses até a gente poder casar...

Não disse mais nada, estavam perdidos nas sensações. Certa vez algum sábio disse que era uma merda se apaixonar. Por muito tempo Dégel concordaria sem hesitar, naquele momento, entretanto, tudo que lhe ocorria era que finalmente se sentia completo.

Chapter 62: O amor o incitou a aceitar

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Disfarçou o sorriso que mesclava desejo e carinho ao ver Sorento entrando no quarto vestindo apenas a calça do pijama e com a toalha sobre os ombros. Os fios castanhos ainda pingavam e emanavam o cheiro gostoso do pós banho. Analisou-o com cuidado enquanto ele passava a toalha pelos cabelos e fingia não notar a atenção que lhe era dedicada. Deixou de tentar disfarçar sua contemplação quando o namorado sentou de frente para si na beirada da cama.

— Se soubesse que você queria mais, tinha te convidado para tomar banho comigo.

— Com você eu sempre quero mais. — Pegou a toalha jogando-a na direção de uma cadeira que ficava no quarto, tentando desfocar a atenção de seu rosto corado. — Mas, sei que você anda cansado dividindo sua atenção entre seus trabalhos e eu.

— Isaak, se existe algo com que valha demandar minhas energias, sem dúvida alguma satisfazer você é esse algo. — Sorriu ajeitando-se na cama deitando ao lado de Isaak. — Além disso… — Sussurrou rente aos lábios do namorado. — Comer você me deixa revigorado.

— Ah seu Almofadinha… — Isaak estreitou os olhos antes de beijar Sorento, que sorria em meio ao beijo.

— Não precisa se preocupar comigo. — O Flautista falou assim que apartaram o beijo. — O período em que começamos a namorar é sem dúvida o de maior disposição que tenho apresentado durante esse mais de um ano. — Riu. — Ando dormindo muito bem graças a você.

— Mesmo nessa minha cama minúscula? — Isaak questionou olhando Sorento deitado de lado e notando, não pela primeira vez, que ambos quase não cabiam naquele espaço.

— É uma cama de solteiro. E ambos cabemos nela. Além disso, se a questão for o sexo, transamos mais na sala do que no quarto. — Deu de ombros.

— A questão também é essa. Não quero precisar ficar fodendo na sala porque tem mais espaço. Quando vou na sua casa é super confortável. A cama é grande, o banheiro fica no quarto, se não fosse o japonês partidário do demônio estaria tudo certo. Até conversar com o Shun é legal. Só tenho ganas de estrangular o Ikki sempre que o vejo.

— Eu sei… — Suspirou. — Por isso estamos aqui. Assim você não comete assasinato e eu não preciso fazer visita íntima na cadeia.

— Muito engraçadinho, senhor Almofadinha.

— Disponha. — Fez uma mesura leve, dando um beijo na bochecha de Isaak. — O que está te incomodando?

— Eu sei que é desconfortável pra você. Vira e mexe eu pego você estalando o pescoço e movimentando os braços. Sem contar que basicamente durmo em cima de você.

— Não vejo problema nenhum nisso. Muito pelo contrário. — Sorriu puxando Isaak para perto de si. — Assim você dorme pertinho de mim.

— Eu dormiria mesmo se fosse uma cama gigante… — Murmurou escondendo o rosto no peito de Sorento.

O Flautista o olhou com uma sobrancelha levantada, a face interrogativa, aguardando Isaak terminar seus resmungos ininteligíveis.

— Aaaah eu me tornei o que mais desprezava, o apaixonado meloso. — Virou de costas escondendo o rosto com as mãos enquanto falava. — Estou aqui puto comigo mesmo porque não importa a porra do tamanho da cama. Eu vou dormir grudado em você de qualquer jeito. Seu cheiro… Me acalma.

Sorento sorriu abraçando o namorado, depositando um beijo em sua nuca. Sentiu o corpo do outro garçom arrepiar. Gostava das sensações que conseguia despertar naquele Ciclope.

— Pois então não há problema com essa cama. Ela é ótima e você sabe disso.

— Era na época em que eu não tinha namorado e detestava a ideia de passar várias noites com alguém. — Girou o corpo encarando seriamente o rosto de Sorento. — Vou comprar uma cama de casal. — Decretou como se desse a notícia mais importante de todas. — Posso dormir em cima de você, mas que seja confortável.

— Isaak, não precisa gastar dinheiro com isso. Já falei que estamos bem com essa cama aqui. Além disso, se a questão é apenas o meu conforto, vou viajar em alguns meses. Não gaste seu dinheiro com isso.

— E por acaso não pretende voltar?

Sorento olhou com atenção para o namorado e percebeu onde estava o real incômodo. Não tinham segredos um com o outro. Depois dos inúmeros desentendimentos pelos quais haviam passado, até finalmente conseguirem ficar juntos, haviam decidido não deixar que mais nada os atrapalhasse. Não existiam meias palavras, e nada ficava por ser dito, mas isso não queria dizer que a mente de Isaak trabalhasse de forma linear.

No geral, ela fazia pequenas conexões até chegar ao real motivo de seu desconforto. E Sorento não podia negar que gostava muito da forma como aquela mente se descortinava aos poucos para ele.

— Claro que sim. Por acaso não tenho um namorado que vai ficar esperando por mim? — Sorriu beijando a testa de Isaak.

— E se por acaso você receber uma proposta irrecusável? Daquelas que só temos uma vez na vida. Quem garante que você vai voltar? — Finalmente transpareceu sua real preocupação.

— Izzy, vem cá. — Sorento pediu abrindo os braços. Isaak adentrou o abraço, rindo do apelido bobo. Caso fosse outra pessoa, provavelmente teria socado a cara da criatura que ousasse inventar tal apelido estúpido, mas sendo Sorento… Para o caralho! Fazia tudo por aquele maldito e gostoso Almofadinha. Tinha realmente se tornado a droga de um meloso apaixonado. — Nunca esteve nos meus planos permanecer na Itália. Na verdade, como já te falei, apenas quero fazer esse curso. Sempre quis. É muito mais uma conquista pessoal do que qualquer outra coisa. — Isaak fez menção de falar e o Flautista pediu que aguardasse. — E caso recebesse uma proposta, antes de qualquer resposta falaria com você. Não sou leviano com relação ao que temos e estamos construindo. Já falei diversas vezes que adoro você, meu Ciclope. Jamais faria algo para te magoar. E qualquer resposta estaria embasada em quantas vezes poderia vir te visitar, caso precisasse ficar na Itália, e se você gostaria ou poderia me visitar também.

— Lógico que te visitaria. — Falou aconchegando-se. — Não quero parecer idiota. Mas… Porra, esse negócio de estar apaixonado é novidade pra mim. E ao mesmo tempo em que é gostoso, também cria algumas angústias e isso me deixa doido.

— Sem angústias. Acredite em mim. — Apertou Isaak dentro do abraço como se tentasse transmitir a verdade em suas palavras.

— Claro que acredito. — Suspirou beijando o peito de Sorento.

— Além disso, nada garante que eu vá conseguir alguma coisa. Posso simplesmente voltar e continuar trabalhando no Imperador e na livraria. O que não seria demérito algum. Na verdade… Quando voltar acredito que estarei desempregado. — Riu de si mesmo.

— Não se preocupe. Eu ofereço casa, comida e roupa lavada. — Isaak gracejou. — E um monte de atitudes estúpidas e melosas que não consigo controlar. Acho que vou morrer de diabetes. — Fez uma careta, recebendo a gargalhada de Sorento em troca.

— Olha só que ótimo partido eu arrumei. — Beijou-o. — Vamos ficar diabéticos juntos.

Isaak sorriu, logo em seguida assumindo um ar mais sério.

— Eu… Estou fazendo alguns serviços freelancer dentro da área de programação e estou conseguindo juntar uma boa grana.

— Isso é ótimo!

— Sim. Sem modéstia eu sempre soube que era um gênio desperdiçado e andava meio sem rumo. Não queria ser garçom pra sempre, mas também não queria viver em um escritório todo engravatado. Sempre acreditei que em algum momento arrumaria meu próprio caminho e você meio que me deu um empurrão pra isso. Você é a pessoa mais determinada que eu conheço e eu quero seguir essa sua determinação. Então, estou juntando dinheiro para… — Ficou completamente vermelho. — Te visitar no final do ano.

Sorento estagnou por alguns minutos e depois passou a distribuir uma trilha de beijos pelo rosto e pescoço de Isaak, arrancando primeiro risos e depois suspiros dele.

— Você ainda não tinha me contado isso!

— Queria fazer surpresa.

— Pois foi uma ótima surpresa. Vou alugar um apartamento legal para que possamos ficar à vontade quando você for me visitar. A Itália é muito bonita no final do ano. — Sorento deitou sobre ele. — Falei com a minha Mãe esses dias. Ela finalmente vai se divorciar do Franz. Parece que arrumou uma ótima advogada. Se não me engano se chama Marin Ogasawara. Pelo que minha Mãe falou ela está deixando os advogados do velhaco loucos. — Riu, sendo acompanhado pelo namorado. — Depois que o divórcio sair ela vai voltar para a Itália. Acho que estará lá no final do ano.

— Que legal! Assim eu posso conhecer sua Mãe.

Isaak arregalou os olhos assim que terminou a frase sentindo o rosto esquentar. Sorento o olhou com impagável ternura. Definitivamente adorava aquele Ciclope.

— Claro. Ela vai adorar conhecer você. Tenho certeza que vão se dar muito bem. E quando eu conheço seu Pai? Ao menos dois gostos já temos em comum: música e você.

— Podemos ir antes da sua viagem. — Isaak falou ainda sem jeito. — No geral vou visitá-lo no final do ano, mas como vou para a Itália, podemos ver meu velho antes.

— Seria perfeito! Isaak… — Sussurrou. — Eu te adoro e queria muito me sentir revigorado.

Isaak gargalhou encarando Sorento, e sorriu malicioso.

— A gente vai se virando com essa cama, depois compro a de casal…

O Flautista concordou, para ele nada daquilo importava, apenas queria estar com Isaak. Fosse na diminuta cama de solteiro, ou em outro país. Sua máxima de evitar problemas se desfez no minuto em que sentiu o coração descompensado de Isaak e ouviu a frase: "Está sentindo? Isso nunca me aconteceu antes". E se aquilo lhe trouxesse problemas, de fato, era um risco que estava pronto a correr.

***

Durante muito tempo experienciou uma angústia recalcitrante no fundo de cada um dos seus sorrisos charmosos e gestos sedutores. Desempenhou com maestria e esmero um personagem que acreditou sem qualquer alarde ser sua verdadeira essência.

Já havia se perguntado em que momento os fantasmas do passado deixaram de assombrá-lo o suficiente para que pudesse finalmente ver além do que parecia antes um limite intransponível.

Deixar o passado para trás, superar os traumas que por tanto tempo arrastou e propagou. A terapia era um processo. Não foi nada fácil no começo e ele foi resistente, portanto Krest teve que ser bastante enfático em alguns momentos. Camus se indispôs com o terapeuta algumas vezes, agora, no entanto, não se imaginava sem o acompanhamento. Realmente sentia-se mais como ele mesmo… Ainda descobrindo quem era essa pessoa e sorvendo cada momento do processo com vivacidade.

Estar liberto e entusiasmado para viver finalmente sua história com Shaka lhe acelerava o coração. Paralelamente sentia-se tão sereno…

Mesmo sendo ele um homem que valorizava o prazer, isso não mudaria, se deu conta de que não conhecia todas as camadas dele. Estar apaixonado era assustador e maravilhoso. E mesmo que não tivesse ainda escutado as palavras, ser correspondido era avançar rumo a perdição almejada. E no caso deles, merecida.

— Eu te disse que faria valer a pena… — Shaka sussurrou em uma entonação perigosamente sensual ladeando o rosto de Camus com as mãos em um afago por ele bastante ansiado. O Ruivo fechou os olhos e respirou fundo.

— Sentir você tão perto… Já vale a pena.

— Eu quero que você me sinta por dentro Gaetan.

— Você vai me matar assim, Shaka. — O Loiro sorriu muito suavemente e passou o polegar pelos lábios avermelhados antes de unir suas bocas em um beijo faminto.

Ambos se deleitam com o sabor compartilhado na entrega e na posse. Misturados sem qualquer hierarquia ou receio. Se conheciam há tanto tempo… Dar vazão a essa vontade antiga era libertador e em algum nível nostálgico. Como se fosse uma impossível dobra no tempo.

Se beijaram e se despiram sem pressa.

Eram ambos homens experientes. Entretanto, a primeira vez juntos trazia atrelada em si uma gama de sentimentos que supera o simples encaixe de seus corpos. A realização de uma designação em nível ímpar.

Camus deixou que Shaka ditasse o ritmo. Nem mesmo ele acreditaria se lhe contassem que algum dia ficaria sem ação nos braços de outro homem.

Sempre imaginou que seu peito explodiria, literalmente quando chegasse o momento em que Shaka também o quisesse. Estava sim nervoso, sentia sua pele formigando a cada toque, a cada arfar, mas nada o preparou para a calmaria em sua alma. Um paradoxo, sem dúvidas.

Olhar nos olhos de Shaka era ver tudo que percorria a noção de divino, sentir suas mãos era aceitar despencar em um penhasco de infinitas sensações.

Pensava que não existia como estar ainda mais inebriado, e descobria a cada palavra em sua orelha o quanto estava enganado.

Shaka o tirava do eixo. Esta faceta do loiro, que ele apenas imaginou por anos, era indescritível. Nenhuma palavra chegava aos pés do que seria vivenciado nos braços daquele homem magnífico. Nem mesmo esta designação parecia correta. Aos olhos de Camus, ele realmente era algo próximo do etéreo, da divindade e o fato de sussurrar como em uma oração baixarias deliciosas apenas lhe conferia mais encanto.

— Olhe para mim, Gaetan — Shaka ronronou se movendo e Camus teve dificuldade de concatenar as palavras.

Há diversos minutos estava sendo guiado para o paraíso. Puxou os cabelos loiros com a força exata para que pudessem se encarar e beijou sua boca de forma profunda e íntima. Sentia o corpo de Shaka o abraçando da forma mais primal, sua pele se arrepiando.

O momento perfeito. Nunca foi um homem de atrasar seu prazer, ao contrário o buscou por toda sua vida com voracidade selvagem, no entanto, o que descobria agora é que não conhecia uma gama infinita de sensações. Com seu velho amigo, antigo amor, tudo era carregado de uma energia especial.

 

Estavam transando há algumas horas. Primeiro tomaram banho juntos, algo rápido e eficiente, obviamente apreciaram seus corpos por todo o caminho até o quarto, e os primeiros toques possessivos foram logo substituídos pela dança de Shaka, e Camus aceitou que seguiria este homem até o mais profundo dos infernos. Experimentou mais um orgasmo avassalador e tombou suado arfando.

Shaka logo deitou-se ao seu lado tirando com cuidado os fios vermelhos que se colavam a sua testa úmida devido ao suor.

Enfim, tinha acontecido. Deram as mãos. Não precisavam de palavras. Não por enquanto. Buscou os olhos de seu amante e sentiu seu coração acelerar frente a profundidade daquele olhar turquesa.

Finalmente poderia descansar, valia a pena viver. Quase adormecido aconchegou-se ao corpo de Shaka, que por sua vez nem.por um.instante lembrou-se da bagunça que haviam feito. Estava pleno… Em estado de graça. Pegou no sono com um belo sorriso em seu rosto.

***

Não sabia dizer exatamente há quanto tempo estava deitado observando o rosto tranquilo de Camus enquanto ele dormia. Por alguns segundos, na noite anterior, cogitou a possibilidade de retornar a sua casa e não passar a noite na casa dele. Tão rápido quanto veio, o pensamento se desfez. Não havia nenhum sentido, em não aproveitar ao máximo a companhia daquele que se lançou tão abertamente em seus braços. Jamais imaginou tamanha entrega e muito menos a espiral de sensações que vivenciou.

Era tudo tão diferente, intenso, desconcertante e certo.

Suspirou tirando os fios ruivos que cobriam parcialmente o rosto do amigo e agora amante. Sorriu. Finalmente estava em casa, não precisava mais se deter ao controle de tudo. Talvez a inconstância não fosse de todo ruim. Sentiu o toque suave dos lábios de Gaetan em sua mão e prendeu brevemente a respiração ao perceber que também era observado pelos brilhantes, porém, sonolentos olhos de terracota.

— Você ainda está aqui. — Camus falou em um tom baixo, a voz rouca do recém despertar.

— Claro que estou. Onde mais estaria? — Shaka sorriu levemente.

— Cheguei a pensar que tinha sido um sonho.

— Me envaidece saber que pareço um sonho pra você. — Passou o polegar pela bochecha de Camus. — Ao mesmo tempo, me preocupa. Os sonhos tendem a ser melhores do que a realidade.

— Não posso imaginar nada melhor do que a noite passada. — Sorriu enviesado. — Talvez uma reprodução dela logo pela manhã… — Deu de ombros dando um sorriso sacana.

Entregaram-se mais uma vez e Camus pretendia deixar Shaka terminar o banho na banheira com a justificativa de que iria fazer novos biscoitos de canela para ele. Surpreendeu-se ao notar que o sempre sensato amigo parecia estar mais interessado em desfrutar de seu corpo do que do doce, o que era realmente uma surpresa se tratando daquele homem. Depois de mais alguns orgasmos, e de sentir que iria se dissolver nos braços do amante, finalmente foi liberado, quando o som das barrigas vazias se fez presente.

Sendo assim, Shaka terminava seu banho, enquanto sentia o aroma adocicado se espalhar pela casa e chegar ao banheiro. Vestiu um roupão cinza chumbo que Gaetan havia deixado para ele e caminhou até a cozinha. Os longos fios loiros balançam úmidos enquanto caminhava, ainda registrando o cheiro agradável da casa e seguindo o som da música que tocava baixinho.

— O cheiro está delicioso. — Shaka aproximou-se, beijando levemente os lábios de Camus.

— Que bom que gostou. Cozinhar virou uma espécie de terapia para mim.

— Pois acho uma ótima terapia. Principalmente se eu puder experimentar tudo.

— Claro. Estou quase virando um mestre confeiteiro. — Sorriu, analisando Shaka vestido com seu roupão.

Era real. Finalmente ele estava ali e era seu. Conhecia aquele homem o suficiente para saber que nenhuma grande declaração banhada a quilos de açúcar e mel seriam proferidas por ele, mas sabia identificar no sorriso singelo e no brilho que enxergava no olhar que lhe era direcionado, que sim, finalmente estavam juntos.

— Você tem algum compromisso hoje? — Shaka perguntou servindo-se do café fresco que estava na cafeteira.

— Nenhum. — Respondeu abrindo o forno, tirando os biscoitos e colocando-os em um prato. — Espero que goste, só… — Parou de falar ao ver o outro farmacêutico pegando um dos biscoitos.

— Estão deliciosos. — Shaka falou enquanto assoprava o biscoito, recebendo um olhar recriminatório. — Não vou esperar esfriar. Biscoito é bom quentinho. — Deu de ombros.

— Só tome cuidado para não queimar a boca. — Sorriu. — Quer fazer alguma coisa mais tarde?

— Uhrum… Por isso perguntei. Vou fazer minha mudança agora, inclusive… — Pegou mais dois biscoitos assombrando-os. — Preciso me apressar.

— Coma com calma. Eu te deixo lá. Quando voltar… Posso te ajudar a arrumar suas coisas.

— Ótimo! E depois podemos sair para beber. Gosto muito da sua nova vibe de sucos, mas… Acho que deveríamos nos dar ao luxo de alguns desmandos. O que acha? — Mordeu o lábio inferior com ansiedade, aguardando a resposta.

— Perfeito! — Aproximou-se abraçando Shaka. — Já sei até onde podemos ir.

Sorriram, mais uma vez sentindo a urgência e a fome soterradas por anos. Ao que tudo indicava, Shaka também teria que abrir mão de seu senso de pontualidade.

***

Poucas foram as ocasiões em que esteve no apartamento de Aiolia. A bem da verdade, nem ele mesmo devia passar muito tempo em sua casa, já que parecia passar a maior parte de sua vida no escritório.

A decoração era contemporânea e arrojada, cores sóbrias e mobiliário utilitário e charmoso. O pé direito alto, janelas imensas que garantem iluminação natural além de um ambiente arejado e confortável. Um apartamento que poderia figurar em qualquer revista de decoração.

O convite já tinha pegado Kanon de surpresa. Teve receio que fosse testemunhar uma crise pós casamento de Aiolos ou quem sabe o rescaldo da paixão recolhida e não mencionada que parecia ser de conhecimento geral, à exceção de Milo. Preparou-se, mas então, ao ver Aiolia animado e cheio de planos, já se sentiu aliviado e mesmo despreocupado.

O primo o convidou pois precisava muito de alguém para conversar. Felizmente não era uma pauta dramática, apenas sua justificativa para a ausência no encontro dos gregos mais tarde.

O mais velho jamais negaria que se agradava por possuir a confiança do Iroas mais novo. Com Aiolos ainda em sua Lua de Mel, era reconfortante ter sido o escolhido para aconselhar Aiolia.

Estavam na varanda bebendo limonada geladíssima. O mais velho escutou pacientemente tudo que o primo contou. Aiolia ficou em silêncio e aguardou. Kanon deu um generoso gole em seu copo e limpou a garganta antes de falar

— Então, o que você está me dizendo é que está saindo com o seu assistente… Que, por acaso é o ex do atual namorado de Milo? É isso?

— Sim. Eles tiveram um relacionamento conturbado, Kanon.

— Sem dúvida é um enredo peculiar — Limpou a garganta e mirou os grandes olhos verdes que o encaravam aguardando — Aiolia! Mas, se você está feliz, Milo com toda certeza ficará contente por você.

— Acho que sim. Mesmo assim, é de certa forma estranho. Não acha?

— Estranho que o cara tenha um passado? Todo mundo tem, Leãozinho… — Aiolia sorriu levemente ao ouvir o apelido carinhoso — Eu não sei detalhes. Mas você e Milo se conhecem da vida toda. Eu sei que você está feliz por ele, com certeza ele ficará por você se reconhecer que esse seu lance com o assistente gostoso é algo legítimo. — Sorriu de lado para o primo — Para mim parece que já está te fazendo bem! Nunca esperei você assumir um romance assim, Aiolia.

— Assim com outro cara? Ou assim tão rápido? — Kanon deu de ombros sorrindo — Amanhã será nosso primeiro encontro oficial, vamos em um restaurante italiano. Eu quero falar com Milo direito… Só não acho que hoje no meio de todo mundo seja uma boa ideia. Sabemos que é difícil para mim não responder a uma pergunta de Milo se ele fizer diretamente. Além disso eu e Ikki vamos assistir futebol juntos hoje, comprei no pay per view a gente torce pro mesmo time.

— Torcem e jogam no mesmo time ao que tudo indica! — Riram juntos — Fica tranquilo, Leãozinho. Tudo se resolve conversando. Depois me conta se o restaurante vale a visita, estou querendo levar Julian para jantar em algum lugar diferente também. Eu preciso ir, só passei aqui pois você disse que era importante. E foi. Estou feliz por você Aiolia. E quero conhecer esse moço melhor.

— Obrigado, Kanon! Você vai conhecê-lo sim… Estamos nos dando muito bem.

— Ótimo. Você merece.

Dividiram um forte abraço de carinho e camaradagem.

Aiolia agradeceu sentindo seu coração mais leve. No fundo, sabia que mesmo que a princípio a notícia não o agradasse, por querer o melhor para si, Milo acabaria aceitando.

Ikki definitivamente havia aprendido com seus erros do passado.

E entre eles existia uma amizade sólida. Além do sentimento que germina à sua própria vontade, de forma saudável e que ambos pretendiam carinhosamente cultivar.

 

O biólogo despediu-se feliz pelo primo.

Todas as pessoas que gostava pareciam estar com suas vidas se encaminhando bem. Recordou-se de sua juventude como um estudante cético de direito que carregava ironia em todas as suas interações. Lembrou-se de como cada passo até a maturidade havia sido de certa forma doloroso e precioso. Tinha recomeçado em um curso com o qual se identificava. Aprofundou sua amizade com Julian e agora, anos depois, estavam juntos.

Acreditava que hoje era um homem melhor do que um dia já tinha sido.

O amor molda e muda as pessoas. Para ele amizade era amor. Fraternal e profundo.

Seguiu para o Imperador em um carro de aplicativo. Estava com o coração leve.

***

Estavam nus deitados na cama do quarto de Shaka. Parece que a tentativa de arrumar seus pertences foi por água abaixo e depois de recolher suas amadas plantas e os demais pertencentes da casa de Shura, mandou uma mensagem para Camus que de pronto o encontrou na porta de seu prédio. Depois que as coisas foram descarregadas e os funcionários da transportadora foram embora, olharam-se por alguns segundos antes de mais uma vez se entregarem. Camus estava felizmente surpreso com a disposição de Shaka, que deitado em seu peito, enrolava uma mecha de cabelo ruivo nos dedos.

— Acabei não ajudando muito na arrumação.

— Posso fazer isso depois. — Aconchegou-se mais. — Tempo não vai faltar.

— Ainda bem que pensa assim, pois já passam das dezoito. Passamos a tarde inteira na sua cama… bom, não só na cama… — Sorriu lascivo.

— Foi um tempo bem empregado. — Olhou para Camus. — Podemos passar a noite aqui também se você quiser, ou podemos seguir o plano de sair para beber e comer algo.

— Eu quero estar com você, Shaka. Não importa aonde. Mas gostaria de sair um pouco, exibir você por aí. Agora como… — Deteve-se mediante o olhar curioso. — Bom… Não apenas amigo.

— Você quer dar um nome? — Apontou de um para o outro. — No geral acho que nomear as coisas pode acabar engessando-as. Mas não vejo mal em te apresentar como meu namorado, amante, ou o que você quiser.

Camus deu um de seus sorrisos arrebatadores, aqueles que Shaka conhecia tão bem e que durante anos havia se empenhado para resistir. Agora não precisava mais se preocupar com isso. Tinha finalmente concluído um ciclo. No momento em que tirou seus pertences da casa de Shura e despediu-se do local munido da foto que o ex havia deixado sobre a bancada da cozinha, percebeu que finalmente estava seguindo o caminho certo. Todas as suas atitudes o haviam levado até ali, e como dizia no recado que Shura havia deixado sobre a foto: “Pode não ter sido o melhor final, mas foi o nosso. Desde o começo, sempre foi sobre nós e de certa forma, continuará a ser. Seja Feliz, Rubio.”

Ele seria, ao mirar o sorriso de Camus e sentir seu coração se aquecer, sabia mais do que nunca que seria sim feliz. Shura estava certo, tudo sempre foi sobre eles. Sobre suas escolhas, vontades, conhecimento e decisões. Os algozes e os heróis.

— Vamos para o tal lugar que você havia sugerido mais cedo. Quero ser exibido por você e te exibir também, Gaetan. Faço o que você quiser desde que possa ter mais desses seus sorrisos.

Camus suspirou puxando-o para um beijo, sentindo Shaka o abraçar e sussurrar algo em seu ouvido. Estancou os movimentos, surpreso, se aquilo era um sonho, não queria mais acordar.

Chapter 63: Essência da Verdade

Notes:

(See the end of the chapter for notes.)

Chapter Text

Milo chegou relativamente cedo no apartamento de Hyoga e Isaak. Já que todos iriam para o Imperador ele daria uma carona para o garçom.

Como seu namorado ainda estava se arrumando, aguardou na sala com Isaak, que aproveitou para ter uma conversa séria com Milo.

— Milo, você sabe que Hyoga é como um irmão para mim e que apesar dele ser um ano mais velho eu me considero de certa forma o guardião daquele idiota? — O visitante sorriu, já estava acostumado à maneira carinhosamente peculiar que os dois se tratavam — Você realmente gosta dele?

— Com todo meu coração, Isaak. — Encarou o outro rapaz diretamente — Eu sei que ele já foi magoado antes, quem nunca foi? Não posso prometer nem a você e nem a ninguém que nunca vou decepcioná-lo, mas quero que saiba que deliberadamente eu jamais faria algo para machucar Hyoga.

Isaak exibia um sorriso de lado muito sutil. Naquele momento ele reconheceu em Milo um certo ar de sabedoria que identificava em Kanon e isso fez com que a mais breve das dúvidas se afastasse de seu coração.

Tinha um arrependimento residual de não ter estado tão presente por Hyoga durante todo o processo em que ele esteve envolvido com o japonês dos infernos e de certa forma acabava por projetar esta frustração no tal Ikki. Conversar e estar na presença de Sorento parecia trazer benefícios não só a sua alma e energia sexual, como ao seu intelecto e amadurecimento emocional, sem sombra de dúvidas.

Sabia que não existia como uma cara do porte de Milo se intimidar com sua pessoa, todavia reconhecia a necessidade de deixar claro que Hyoga não era sozinho no mundo, pois ele jamais seria enquanto Isaak estivesse vivo.

E ao perceber que o namorado do seu melhor amigo valorizava sua atitude, a certeza de que o rapaz estava, assim como ele próprio, em boas mãos se solidificou.

— Eu fico tranquilo, Kanon sempre falou de você com carinho. E ele pode até achar que eu não escutava, mas eu sei que ele é bom para julgar o caráter das pessoas. Estou torcendo por você e Hyoga.

— Obrigado Isaak, significa muito para mim e tenho certeza que também para Hyoga.

— Que tem eu? — O objeto da conversa chegou na sala naquele momento, perfumado e com os cabelos úmidos sobre a camiseta que havia ganhado de presente do Pai de Isaak no natal do ano anterior.

— Você está lindo, meu príncipe. — Milo falou o puxando para um abraço. Hyoga se deixou levar e percebeu o sorriso satisfeito de Isaak.

— Vamos nessa, meu casal? Eu tenho que trabalhar hoje e vocês podem ficar se lambendo no respeitável estabelecimento comercial no qual preciso bater ponto em breve.

— Sério, o que vocês estavam falando? — Hyoga perguntou deixando o colo do namorado e alisando sua roupa.

— Apenas ajustando nossos ponteiros. Dando minha benção e tal… Ai! — Isaak massageou o braço beliscado pelo amigo — Não faz isso Hyoga! Machucou…

— Ele te falou alguma besteira, Milo? — Hyoga perguntou olhando de forma aguda para Isaak que armou um grande bico.

— De maneira alguma. — Riu o namorado achando cada vez mais adorável a relação dos dois — Isaak assim como eu só quer te ver bem e feliz…

— Viu só o que eu passo Milo? Esse Alexei é um ingrato! — Isaak emendou em um muxoxo.

— Vamos lá gente, ou Isaak se atrasa e eu quero tentar não ser sempre o último a chegar nos lugares. — O mais velho convidou, ainda sorrindo. Os três deixaram o apartamento.

— Tá doendo mesmo, Isaak? — Hyoga finalmente perguntou quando já estavam no carro.

— Nada, você é um fracote.

Hyoga já ia responder quando percebeu os sorrisos dos outros dois ocupantes do carro.

— Vocês estão se unindo para rir de mim agora, é?

— A gente te ama. — Isaak disse simplesmente passando a prestar atenção em seu celular.

Hyoga cruzou o olhar com Milo que apenas concordou com a cabeça, seus olhos brilhantes e então logo retornou a atenção para o trânsito.

No seu lugar Hyoga recostou-se satisfeito. Estava contente, os homens da sua vida se davam bem, tinha reencontrado; no casamento de Aiolos; outro querido amigo. E era bem vindo entre os amigos e familiares de Milo. Era bom sentir-se correspondido e acolhido.

***

O trajeto até o Imperador foi rápido. Já na entrada percebeu que o evento que Julian tinha participado já devia ter finalizado há algum tempo, pois dois funcionários da equipe de limpeza desciam as escadas quando ele subiu.

Julian estava no banheiro privativo de seu escritório terminando de escovar os dentes e após alguns segundos o recebeu sorrindo e na ponta dos pés depositou um beijo em seus lábios. Kanon aprofundou o encontro de lábios e puxou o corpo menor, para cima. Julian estava tão acostumado a isso que suas pernas instintivamente enlaçaram o corpo do namorado.

— Como foi o evento? — Kanon perguntou carregando o outro até sua mesa de trabalho.

— Foi mais uma reunião em território neutro para um acordo de cavalheiros não tão educados… Negócios. Mas acabou rápido. Senti sua falta. Como foi com Aiolia?

— Tudo bem. Ele está ótimo, envolvido com o assistente. Vão passar a noite vendo jogo e amanhã jantar num restaurante italiano…

— De certa forma faz bastante sentido. — Julian ponderou enquanto Kanon lhe beijava o rosto e fazia carinho na base de sua coluna. — Não se empolgue, Grandão, logo sua família estará aqui.

— Eu sei… Quero só ajudar meu homem a relaxar. Posso? — Insinuou uma mão sobre a ereção nada discreta de Julian e passou a língua entre os lábios do Imperador sorrindo.

— O que você quer, Kan? — Perguntou já murmurando enrouquecido.

— Quero uma escova de dentes de presente… Vou precisar de uma em breve. — Ajoelhou-se abrindo o zíper da calça de alfaiataria exclusiva do namorado.

— Kanon… — A voz de Julian era um sussurro.

Kanon ergueu os olhos para ele e então esfregou o rosto no tecido da boxer, onde um pequeno ponto de umidade já despontava.

— Eu amo seu cheiro, amo seu gosto e tudo em você... — Baixou o tecido com delicadeza. O membro de Julian liberto acertou seu rosto e ele fez uma expressão de satisfação que quase matou o namorado de felicidade. — Eu te amo. — Falou antes de envolver o pau que já gotejava em sua boca de uma só vez iniciando um vai e vem lento e empenhado. Saboreava sugando e lambendo gemendo a cada reação do parceiro.

Julian teve que se concentrar em não berrar o quanto Kanon era habilidoso. Sentia os dedos de seus pés se retorcendo nos sapatos e um arrepio difuso que subia e descia por sua coluna em velocidade desproporcional.

Ver o prazer estampado em todos os gestos de seu amado fazia de Kanon o homem mais feliz do mundo. Adorava fazer amor com Julian de toda forma. Ouviu alguns palavrões dignos de marinheiros serem proferidos entre dentes do elegante Imperador e o aperto em seus ombros se intensificou. Logo sorvia a semente sentido-se recompensado e privilegiado.

Recuperou o máximo de compostura possível e ergueu-se abraçando o namorado.

— Eu te amo! — Repetiu feliz.

Com os olhos embaçados e um sorriso bobo que em nada se assemelhava a sua costumeira expressão de controle Julian apenas sussurrou:

— Eu te amo, Kanon.

***

Shaka franziu o cenho ao notar para onde estavam se encaminhando. Assim que o carro de aplicativo parou em frente ao bar, olhou de esguelha para Camus que mantinha um sorriso discreto. Desceram e sentiu seus dedos serem entrelaçados aos dele.

— De certa forma foi aqui que tudo começou. — Camus falou olhando seriamente para Shaka. — Por isso quis te trazer aqui novamente. Dessa vez, não vim para caçar e você não vai precisar me dissuadir de minhas ideias deturpadas.

— Gostei disso. — Respondeu por fim notando o alívio na face do ruivo.

Entraram no bar, sentando-se na mesma mesa que haviam ocupado na fatídica noite, na qual Camus havia finalmente percebido que precisava empreender uma real mudança em suas atitudes. Assim que se acomodaram, foram abordados por um enigmático Sorento, que escondia com primor o sorriso divertido, mas não o olhar.

— Boa noite, senhores. Bem vindos ao Imperador.

— Boa noite, Sorento. Se me chamar de senhor mais uma vez eu faço uma reclamação formal. Sinto calafrios ao ouvir você me chamando de senhor.

— Memórias desagradáveis? — Shaka instigou. — O que acha Sorento?

— Certamente memórias infelizes. — Sorriu. — Como estão? — Perguntou olhando de Camus para Shaka.

— Juntos. — Shaka respondeu antes que Camus pudesse dizer algo.

— Esplêndido! — Alargou o sorriso ao notar que o amigo olhava com nítida surpresa para o parceiro. — Querem fazer os pedidos agora, ou vão esperar um pouco mais?

— Podemos fazer agora. — Shaka adiantou-se, ainda sobre o olhar admirado de Camus. — Gostaria de uma cerveja, pode escolher o rótulo que achar melhor. Gaetan sempre diz que você tem ótimo gosto para bebidas.

— Certo. Aceitam alguns petiscos?

— Claro. O que prefere? — Olhou com carinho para o boquiaberto companheiro.

Camus pigarreou, fechando a boca que formava um prefeito “o”, enquanto olhava a interação dos dois.

— Acho que uma tábua de frios seria ótimo.

— Perfeito. — Sorento terminou de anotar os pedidos. — Vou trazer as bebidas. Espero que desfrutem da sua noite no Imperador e… Estou muito feliz por você meu amigo. — Colocou a mão no ombro de Camus que sorriu balançando a cabeça afirmativamente. Cogitou abraçar o garçom, mas deteve-se lembrando que estavam no ambiente de trabalho dele.

 

Sorento afastou-se e o casal se olhou com paixão e cumplicidade, entrelaçando as mãos sobre a mesa. Camus iniciava uma conversa, registrando todas as reações do parceiro, quando notou a cor deixar a face de Shaka e o olhar antes sereno tornar-se assustado e preocupado. Virou a cabeça na direção em que ele olhava, uma vez que, havia sentado de costas para a entrada do bar e arregalou os olhos antes de soltar um longo suspiro.

***

Isaak entrou no bar rindo da indignação de Hyoga, e seguindo apressado para se trocar. Estava alguns minutos atrasado, mas como andava fazendo uma quantidade significativa de horas extras, a Gerente respondeu sua mensagem informando o atraso com um: “Fique tranquilo. Sorento, Io e Bian já chegaram e o movimento está sob controle.”

Milo seguia ao lado do namorado e parecia como sempre iluminar o local com seu sorriso.

Estava entretido com a graciosa interação entre os amigos, quase irmãos, mas por algum motivo que jamais saberia explicar, sua atenção foi atraída para um canto mais afastado do salão do bar. Olhou rapidamente, desviando a atenção, voltando a olhar em seguida. Seu olhar recaiu sobre com um par de olhos de um indefectível tom de turquesa, que julgava conhecer de tempos remotos. Estreitou os olhos e sorriu, a vida era realmente uma sequência de ironias.

Sentiu Hyoga segurando sua mão, mirando a mesma direção na qual agora registrava a figura do ruivo, que primeiro demonstrou clara surpresa, segundos depois, dedicando-o um olhar que continha tamanha tranquilidade, que jamais julgou possível vinda de Camus. Na mesma hora, Sorento parou na mesa deles, chamando a atenção de ambos. Hyoga fez um carinho na mão de Milo, que sorrindo caminhou com o namorado para outra mesa.

 

Em poucos minutos, Isaak voltava ao salão munido do avental e de uma fisionomia soturna, até trocar olhares com Sorento e seu rosto se abrandar.

 

Milo e Hyoga sentaram em uma das mesas, e o mais novo não conseguia desgrudar os olhos do ruivo que parecia de algum modo diferente. Em seu íntimo estava preocupado com o namorado. Não questionava os sentimentos de Milo, sabia que o que compartilhavam era verdadeiro, mas mesmo assim não conseguia deixar de se preocupar. Sentiu o toque suave das mãos do Grego em seu rosto e o encarou, recebendo um sorriso caloroso em troca.

— Não se preocupe, meu príncipe. Minhas questões com Camus estão resolvidas. Agora ele está com quem sempre deveria ter estado, e eu tenho você. Não poderia querer mais nada!

Hyoga suspirou beijando a mão do namorado. Olharam mais uma vez para a mesa e Camus erguia um copo de cerveja, sorrindo e fazendo um cumprimento com a cabeça. Shaka repetiu o gesto e Milo sorriu, gesticulando que ainda não tinha bebida para corresponder ao cumprimento. Hyoga notou que os dois homens riram, antes de virarem um de frente para o outro e nitidamente esquecerem que existia um mundo ao redor deles.

 

Na outra mesa, Shaka sentiu a cor voltar ao seu rosto quando notou que Camus não parecia abalado com a presença de Milo, não mais do que a surpresa e a ironia da situação poderiam despertar.

***

Era gostoso dividir momentos com outra pessoa que não fossem repletos de angústia e dissabor. De sua parte sabia que a maior parte desses sentimentos tinham sido sua responsabilidade, mas agora, olhando Aiolia xingar com toda a força de seu pulmão o árbitro do jogo, enquanto passava o dorso da mão na boca, limpando o resquício de cerveja, tinha a certeza que o caminho até o amadurecimento tinha sido espinhoso, mas necessário.

Não sabia muito bem o que esperar daquela relação, apenas estavam deixando as coisas acontecerem, da forma mais natural e tranquila possível. E em alguns momentos, lhe causava certa estranheza a ausência de aflição ou sofrimento. Mesmo sabendo que Aiolia poderia enfrentar algumas complicações mediante a família, por conta de sua precedente relação com Hyoga, ainda sim, Ikki sentia-se seguro, feliz, querido. E isso ia além da indiscutível compatibilidade que possuíam na cama.

Sorriu, mesmo sendo um homem de poucos sorrisos, e foi retribuído por Aiolia que agora o observava. Tinham um longo caminho a percorrer e não podiam afirmar que tudo daria certo, mas de uma coisa tinham certeza, já não mais os impedia o medo ou o passado.

Agora, caminhavam em direção ao futuro e até onde conseguiam enxergar, ele parecia promissor.

***

Assim que Kanon sentou na mesa acompanhado por Julian, notou o discreto movimento que Milo fez em direção a uma das mesas que ficava em um canto mais afastado do pátio do bar.

Conteve a surpresa ao notar a farta cabeleira ruiva e mais ainda ao identificar que realmente tudo estava superado, tanto da parte de seu primo quanto da de Camus. Também não lhe surpreendeu quando seu olhar cruzou com o de Isaak e ele lhe dedicou um sorriso sincero.

Percebeu os olhares do mais novo para um outro garçom e a ideia que o cercava há algum tempo se materializou de forma verdadeira. Ficou feliz por ambos, não guardava mágoa. Em todo o caminho o mais importante é a jornada, e a sua findava ao lado de Julian, que conversava animadamente com Milo e Hyoga.

— Vejam só, quer dizer que Defteros virá acompanhado do Dohko? — Julian perguntou escondendo o sorriso maroto com as mãos.

— Pois é. — Milo falou animado. — Ele tentou falar com o Saga, mas parece que ele está de lua de mel com o Afrodite, ou sei lá o que. — Riu. — Então, ele mandou mensagem para mim.

— O que está rolando entre esses dois? — Kanon questionou deixando suas divagações de lado.

— Também queria saber. — Milo respondeu olhando para Hyoga que riu mediante o olhar curioso do namorado. — Eles agem de um jeito tão ambíguo.

— Eles já se conheciam? — Hyoga perguntou para Julian.

— Não que eu saiba. Até onde eu sei eles se conheceram na despedida de solteiro do Aiolos e instantaneamente se deram bem. Um daqueles raros casos de sincronia.

— Vai ver o Defteros se apaixonou pela tatuagem. — Milo riu sendo acompanhado pelos outros dois que estiveram na festa. — Ele tem as costas fechadas com um tigre tatuado. Muito bonito por sinal. — Explicou a Hyoga.

— E como o Defteros viu?

Os três riram, sendo seguidos por Hyoga que começou a imaginar o que teria acontecido naquela despedida.

— Esse é um ambiente que eu gosto. Gente bonita e risonha.

— Pois falávamos exatamente de vocês. — Kanon falou levantando da cadeira, seguido pelos demais e cumprimentando Dohko e Defteros.

— Posso saber o que estavam falando?

— Claro. Estávamos cogitando que você se apaixonou pelo Dohko por conta da tatuagem. — Milo abraçou e beijou os dois.

— Olha… — Defteros trocou um sorriso sacana com o Delegado. — Isso não deixa de ser uma verdade.

— Ainda acho que ele caiu na minha dança sensual.

Os dois homens riram alto, sentados um ao lado do outro. Os demais continuavam sem saber ao certo se eles estavam falando sério ou não.

— Os senhores andam muito sem assunto se a pauta dessa reunião é minha interação com o velhote aqui. — Defteros apontou para Dohko.

— Você ainda não entendeu, meu velho? Somos irresistíveis. Eles sequer conseguem parar de pensar em nós.

— Ah pronto! Agora ele achou mesmo um parceiro ideal. — Kanon falou revirando os olhos, ouvindo o riso discreto de Julian. — Não vamos convidá-lo para o nosso casamento.

— Kanon! — Julian exclamou ouvindo os demais rirem.

— Tudo bem, tudo bem. Podemos convidá-los. — Sorriu, vendo Julian balançar a cabeça em negativa enquanto sorria. — Você vai casar comigo, Imperador. Não tem escapatória.

— Não que eu esteja buscando uma. Você que fugiu de mim durante todos esses anos.

— Sou testemunha. — Milo falou enfático, vendo Hyoga segurar o riso.

— E o que você sabe? — Kanon falou brincalhão ameaçando passar a mão nos cabelos de Milo.

— Kanon Chrysó, não se atreva. — Olhou-o desafiador.

Todos riram ao notar o olhar desafiador de Milo se tornar um charmoso bico indignado, e Hyoga puxar o namorado para um beijo, ficando levemente vermelho depois.

 

Do outro lado do salão Isaak sorriu ao ver o amigo beijar o namorado.

— É uma bela mesa. — Sorento comentou parando ao lado de Isaak.

— É sim. — Olhou ao redor, notando que estavam longe dos clientes e encostando a cabeça no ombro de Sorento. — Hyoga parece feliz. Não é todo dia que o vejo tão animado e desenvolto.

— Talvez ele finalmente tenha encontrado o que procurava. — Sorriu.

— Pode ser. — O encarou. — Seu amigo ruivo psicopata também parece estar feliz. Fracamente Sorento, você é amigo de uns tipos muito duvidosos. Para um homem que vive dizendo que evita problemas. Oh dedo podre para escolher amizade!

— Você acha? — Riu. — Pois também sou amigo do Io e inclusive ele nos convidou para um encontro de casais.

— Io e Bian são sua única salvação. De resto… — Fez uma mínima careta. — Algum defeito você precisava ter.

— Posso te compensar depois por esse meu incomensurável defeito.

— Pois vai mesmo. Podemos ir para a sua casa hoje? — Recebeu um aceno afirmativo. — Ótimo! — Notou um cliente fazendo sinal em uma das mesas, fez menção de beijar a bochecha de Sorento que virou o rosto e lhe deu um beijo rápido nos lábios, surpreendendo Isaak.

— Tenho que arrumar um jeito de mitigar meus defeitos… — Falou em um tom de voz baixo antes de voltar ao salão para atender umas das mesas.

Isaak ainda admirado, acompanhou o namorado se afastar. Sorento era mesmo surpreendente e para os diabos o mau gosto para amizades!

O que realmente importava era que estava cada dia mais apaixonado por aquele maldito Almofadinha e sentia que a recíproca era verdadeira. Em algum momento sabia que precisaria parar de torcer o nariz para os amigos do namorado.

Mas, isso poderia esperar.

Hyoga estava feliz com Milo e pelo que soube tinha reencontrado Shiryu, aos poucos percebia que ele havia se perdoado por tudo que aconteceu, inclusive perdoando o próprio Ikki. Talvez também fosse sua hora de aceitar que não esteve tão presente quanto gostaria na vida do amigo durante aquele momento turbulento, e assim, deixar de projetar em Ikki suas próprias frustrações.

Era pouco provável que algum dia se tornasse amigo do irritante japonês endemoniado, entretanto já havia passado da hora de deixar aquela situação ir, seguir seu rumo.

Quem sabe, aquilo também fizesse parte de seu amadurecimento. Deu de ombros, no momento precisava mesmo era atender uma das mesas.

Cada urgência se acertaria em seu devido tempo.

***

Shaka acompanhava com atenção o relato de Camus sobre a comoção que foi sua ausência na empresa. Ao que parece, por baixo dos panos, estava rolando uma espécie de bolão para descobrir o motivo pelo qual o "Senhor certinho" tinha faltado ao trabalho.

Ele balançava a cabeça rindo e colocou a mão no rosto para abafar a gargalhada quando Camus admitiu que entrou no bolão.

— Não esperava menos de você, Gaetan. — Bebeu um gole da cerveja. — Você está mesmo bem?

— Não poderia estar melhor. — Camus inclinou ligeiramente a cabeça. — Porque a pergunta?

— Bom… — Levantou as sobrancelhas movimentando o rosto na direção da mesa na qual Milo estava.

— Não se preocupe. — Sorriu. — Estou realmente bem. Minhas questões com o Milo já ficaram para trás.

— Algo me diz que essa não é a primeira vez que você o vê depois que terminaram.

— Não é. A gente se esbarrou por acaso há um tempo atrás. — Suspirou. — A história acabou se mostrando mais confusa do que eu acreditava. Resumindo: como você deve imaginar, eu fui infiel a Milo e ele também me traiu, ele sabe da minha traição.

Deteve-se mirando com seriedade o rosto de Shaka. Aguardava o tão conhecido olhar inquisidor, mas para sua surpresa ele não veio. Ao contrário, o loiro apertou sua mão que estava sobre a mesa e lhe dedicou um sorriso encorajador.

— No começo do meu relacionamento com Milo, eu fui para a cama com um desconhecido e este homem calhou de ser um dos primos dele. Não sei se você lembra, mas ele tinha vários primos de consideração e nunca cheguei a conhecer todos. Então… — Suspirou. — Acabei conhecendo mais do que seria o ideal um deles. Mas… — Lançou um olhar agudo. — Eu não sabia que era um dos parentes dele. Não sabia mesmo.

— Eu tenho certeza disso. Você nunca foi inescrupuloso, Gaetan. Apenas estava seguindo um caminho que possuía um grande potencial de lhe causar sofrimento.

— Sim. — Ponderou antes de continuar. — Na noite em que viemos aqui, confundi o Kanon, o cara que está na mesa com Milo. Alto, loiro, sorriso aberto. — Shaka olhou discretamente anuindo em seguida. — Com o Saga, o irmão gêmeo dele, o cara com quem eu... — Ante o gesto de compreensão de Shaka continuou — A confusão foi uma espécie de estopim para mim. Sai daqui escondido e me sentindo imundo. Foi uma péssima noite, mas necessária. Por fim… Acabei conhecendo Kanon e concluímos que o melhor seria deixar toda essa história no passado. Milo sabe da minha traição, não tem conhecimento da pessoa, mas ele percebeu. Não poderia esperar menos dele. E tomei conhecimento da traição dele. De certa forma tudo foi resolvido.

— As pessoas estão imersas em um grande tom de cinza, muito mais do que o branco ou preto. — Shaka beijou o dorso da mão de Camus. — No geral tendemos a procurar um herói e um vilão em toda a história. Mesmo que necessariamente não haja um. A vida nos impele a algumas escolhas e dentro do senso moral de cada um, acabamos julgando as atitudes alheias e delegando os papéis. Tudo muito maniqueísta e irreal. Somos nossos próprios heróis e vilões. — Riu. — E eu continuo sendo um grande hipócrita porque não dediquei esse belo discurso ao Shura. — Suspirou. — Tudo ao seu tempo. — Olhou mais uma vez para a mesa de Milo. — Ele parece feliz. Você também.

— Eu não poderia estar mais feliz. Você não tem noção do quanto eu desejei isso. — Levantou as mãos que estavam unidas. — Você!

— Essa última parte tenho alguma noção. — Sorriu de lado. — O que acha de bebermos mais uma e irmos embora?

— Acho ótimo. Dessa vez juntos, pela porta da frente e diretamente para a sua cama.

Sorriram e chamaram o garçom para que fechasse a conta. Ainda precisavam recuperar o tempo perdido e a urgência que enxergavam um no outro, apenas alimentava a certeza de que realmente não existiam heróis ou vilões, apenas a eterna tentativa de acertar e a busca pela felicidade.

E ao que tudo indicava, a última parte já haviam encontrado.

***

O braço de Milo sobre seus ombros era a sensação mais agradável e acolhedora que conseguia se lembrar. Hyoga aconchegou-se e suspirou discretamente. O namorado bebeu um longo gole de seu copo e puxou seu corpo ainda mais para perto.

A mesa seguia animada. Julian corado e observador como sempre, Kanon, Defteros e Dohko riam de algo que ele não tinha acompanhado.

— Você está bem, Hyoga? — Ouviu acompanhado de um arrepio a voz de Milo em sua orelha.

— Sim. Estou muito feliz. Eu adoro que você e Isaak se dão bem, e estou me habituando a uma mesa cheia, nunca tive antes isso em minha vida — Beijou os lábios de Milo que sorriu — Obrigado, Milo.

O sorriso do Tradutor como sempre ocorria fez seu coração se acelerar. Ser correspondido era uma aventura magnífica, era um homem feliz, afinal.

— Quero propor um brinde! — Milo surpreendeu Hyoga o tirando de seu devaneio apaixonado.

O restante da mesa, acostumado a seus rompantes de sorrisos e calor, acompanhou entre risadas e copos sendo preenchidos por Dohko e Julian.

— E ao que vamos brindar, moleque? — Kanon perguntou após trocar um olhar com seu namorado. Os olhos tempestuosos de Julian lhe deixando sereno, pleno.

— Ao amor, quer clichê mais merecedor que este? — Os homens concordaram.

Bateram suas canecas repetindo em um animado coro:

— Ao amor!

Individualmente todos dedicaram um momento para refletir sobre a profundidade da temática do brinde. E mesmo que naquele momento não tivessem conversado a respeito, concordavam que o amor permeia toda jornada, as relações, as ligações improváveis e o futuro, sempre incerto que podia ser construído a cada gesto, no fundo depende da ação das pessoas e uma certa dose de acaso...

Após o brinde, Dohko e Defteros voltaram a comentar uma série de coincidências que ao que tudo indicava cercaram a ambos já há muito tempo.

 

Kanon e Hyoga trocaram um olhar longo. Para ambos, estar mais uma vez em uma mesa do Imperador trouxe a nostalgia daquela primeira noite em que se conheceram.

Perceberam a saída de Camus e seu acompanhante que foram bastante discretos.

Io retornou a mesa com uma bandeja cheia de petiscos, ante um chamado de Julian que nenhum deles se deu conta. Na mesa a conversa seguia animada.

Kanon sorriu para o rapaz. Era engraçado, naquela noite ele esteve no bar atrás de Isaak e assim acabou com Hyoga em sua mesa. Se deu conta de que Milo e Hyoga se encantaram desde o primeiro momento e ele que tanto tempo passou alheio ao seu amor, preso em questões que talvez pudesse ter decidido antes, entendia agora que no fim tudo sempre acontecia na hora certa, desde que os envolvidos estivessem dispostos e trabalhassem nesse sentido.

 

A vida não é um filme onde sobem os créditos ao fim e tudo se acaba.

Dia a dia cada um à sua maneira, dentro de sua própria métrica, sempre teria seus desafios e suas conquistas.

No fim a verdade pertence a todos e a ninguém e em essência, todos estavam sempre apenas fazendo o seu melhor.

— Quanto eu preciso pagar para saber dos seus pensamentos? — Julian sussurrou ao ouvido de Kanon que sorriu e o abraçou.

— Estou apenas pensando na vida. E em como ela pode ser boa…

Retornou a atenção à mesa agitada. Permaneceu de mãos dadas com Julian. No Imperador tudo corria como sempre, funcionários unidos e dedicados, clientela satisfeita.

Entre os amigos os laços se estreitaram. Depois de tantos encontros e desencontros estavam todos preparados para qualquer reviravolta ou ironia da vida: estavam juntos.

Fim

Notes:

Esta história foi originalmente publicada entre março de 2020 e janeiro de 2021.

Toda a envolvente e controversa aventura de Shura e Máscara da Morte pode ser
acompanhada na série "Catarse" de MorganaLFay, publicada na plataforma spirit.
Vale muito a pena! <3

Muito obrigada a quem chegou aqui!

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